sábado, março 19, 2016

Responsabilidade na governação

Ouvindo as declarações do Sr. Primeiro-ministro sobre a privatização dos portos e logo de seguida sobre a situação cada vez mais complicada da TACV a primeira pergunta que nos ocorre, é: estará o governo ainda em “estado de graça”? Só pode ser, considerando que ainda culpa o governo anterior e não se sente compelido a assumir que errou ou que as suas políticas falharam em produzir o resultado pretendido. Ninguém acreditaria que quem fala assim encontra-se no fim de mandato do seu terceiro governo consecutivo.
É consenso geral nas democracias que aos governos recém-empossados se dá um máximo de seis meses de graça. Passado esse tempo torna-se progressivamente mais difícil e aceitável que continue a recorrer ao governo anterior para se justificar. Insistir  nesse caminho inevitavelmente tem consequências na integridade e funcionalidade do sistema político. Negar que quem governa tem concomitantemente responsabilidade plena pelos actos de governação e por tudo o que respeita à colectividade nacional significa quebrar o vínculo fundamental entre os cidadãos e o governo que nas democracias legitima o exercício do poder: o princípio do livre consentimento dos governados.
Quando se entra no caminho de esquivas ou mesmo de fuga à responsabilidade começa-se logo  a agir de forma a que os cidadãos não tenham toda a informação, ou os meios para se expressarem livremente ou se sintam livres para se organizarem e questionarem políticas, prioridades, resultados e impacto dos actos do governo. Quer isso dizer que os recursos do Estado começam a ser utilizados para constranger os indivíduos no exercício dos seus direitos, mesmo que não tenha sido esse o plano original. Para evitar assumir responsabilidade, faz-se propaganda e, pelo caminho, coarcta-se a liberdade de expressão, a liberdade de informar e de ser informado. Acaba-se sempre por condicionar a liberdade de imprensa e a liberdade de reunião e de manifestação e também por esvaziar as pessoas da autonomia em relação ao Estado e torná-las mais dependentes e mais submissas. Viu-se tudo isso nos últimos quinze anos.
A funcionalidade de um sistema que se guia pelo princípio do contraditório perde-se se a responsabilidade não é assumida e se culpabiliza sistematicamente o governo anterior por resultados menos bons da governação. Confundem-se os papéis e a oposição que já foi poder é obrigada a defender-se em vez de se manter activa a questionar a acção governamental. O parlamento como instituição sofre com os papéis invertidos dos seus protagonistas e com a frustração provocada pela atitude das bancadas rivais e do próprio governo. A imagem externa da instituição fica negativamente afectada quando os debates não trazem nada de positivo, bloqueios em matérias chaves se mantêm por muito tempo e frustrações individuais ou de grupo são ventiladas em plenário.
Sem um processo permanente de responsabilização, as promessas eleitorais não têm qualquer significado. Se o governo armado com a sua maioria parlamentar e com todos os recursos do Estado pode deturpar a realidade e substituir resultados por ilusões não vai se sentir amarrado às promessas que fez durante a campanha. A percepção que assim é tende a alienar as pessoas da política, aumenta o cinismo em relação aos políticos e pode fazer do eleitorado uma presa fácil para o populismo e a demagogia.
Um outro custo das constantes fugas à responsabilização pelos actos da governação é a perda paulatina de eficiência e eficácia em tudo o que se faz. Como se recusa o contraditório também não se reconhecem as falhas, não se absorvem as sugestões para mudar de procedimentos ou de rumo e o mundo dos governantes reduz-se cada vez mais ao grupo de fiéis ficando de fora os críticos, os inovadores e os ousados. Não estranha pois que a retoma de crescimento todos os anos anunciada tarde em acontecer, assim como o desemprego custe a diminuir. A gestão das empresas públicas torna-se cada vez mais complicada com os custos a serem assumidos pelo Tesouro Público e os serviços esperados pelos utentes pecam em qualidade, fiabilidade e preço. Uma distância maior começa a separar o país de ilusões todos os dias reproduzidos pelos governantes das dificuldades vividas no país real. Não estranha que de repente se oiça do fundo desse país real o grito de mudança.
Em período de campanha para as eleições legislativas é fundamental que a par com as promessas eleitorais seja afirmada a vontade de governar com honestidade seguindo uma ética de responsabilidade. Não é de aceitar governo que queira ficar em estado de graça por cinco, dez ou quinze anos de graça.
            Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 9 de Março de 2016

sexta-feira, março 18, 2016

Alternância de Poder

Cabo Verde vai a eleições para a escolha do novo governo no dia 20 de Março. Vários partidos disputam os votos para a eleição de deputados à Assembleia Nacional. Felizmente que de entre eles há partidos que podem constituir alternativas de governo. A democracia estaria fragilizada se, em qualquer circunstância, mas particularmente após quinze de governo por um único partido, não houvesse partidos ou coligação de partidos que oferecessem a possibilidade de uma alternância credível do poder.
Quinze anos é muito tempo e naturalmente que a governação por uma única formação política durante três legislaturas seguidas tende a condicionar as instituições, a constranger opiniões e a criar clientelas próximas. Notam-se em maior ou menor grau fenómenos do género em qualquer sociedade mesmo em democracias avançadas como o Reino Unido após 15 anos do partido conservador ou do partido trabalhista e também em Portugal na sequência de duas maiorias absolutas seguidas. Com mais razão se evidenciam nas jovens democracias onde a sociedade civil é incipiente e a dependência do Estado é prevalecente. No caso de Cabo Verde os efeitos são mais pronunciados devido às notórias políticas assistencialistas, ao facto da propaganda se ter tornado num instrumento central da acção do governo e também se constatar a vontade explícita dos poderes públicos em cercear a autonomia de indivíduos, associações e municípios.
Não se ter chegado ao fim dos quinze com um partido hegemónico acompanhado de um conjunto de pequenos partidos satélites demonstra que a sociedade cabo-verdiana já deu provas de uma grande resiliência democrática.  Maiorias absolutas como não precisam da contribuição de outras forças para fazer leis e aprovar orçamentos do Estado tendem a minimizar a necessidade de compromisso e de negociações com outras forças políticas. Podem até a chegar ao ponto de querer apresentar a oposição com algo dispensável se não mesmo prejudicial para os interesses do país. O Parlamento nestas condições torna-se alvo a abater e na instituição a desprestigiar porque é a sede do contraditório e é a tribuna de onde se exige que contas sejam prestadas e responsabilidades assumidas. Sente-se que caminham para aí quando se ouvem acusações de que para a oposição quanto pior, melhor, ou que ela se se comporta como profeta da desgraça e que é antipatriótica. O que mais terrível pode acontecer ao sistema político é se por causa de desânimo, sentimento de impotência e derrotas sucessivas os partidos sucumbam à pressão e deixem de ser alternativa, enfraquecendo a democracia por não oferecer a possibilidade de alternância. 
Samuel Huntington, o cientista política autor da Terceira Vaga da Democracia, estabeleceu a dupla alternância no poder como teste de verificação se a democracia nos países que fizeram a transição democrática está de facto consolidada. Em Cabo Verde ainda não se verificou a dupla alternância. Contrariamente ao que alguns pensam, seguindo a teoria de Huntington, no 13 de Janeiro de 1991, só houve a transição de regime político e não uma alternância de poder dentro do sistema democrático. Enquanto isso não acontecer e enquanto não se normalizar que qualquer dos partidos pode estar no governo e depois ir para a oposição dificilmente vão desenvolver entre si os hábitos de compromisso e de negociações. Nem tão pouco vão sentir a necessidade de chegar a acordos tácitos no que tange ao comportamento enquanto actores políticos que contribua para valorizar as instituições e diminuir a crispação política.
Não se estranhe por isso que em vez de uma evolução que valorize o sistema de partidos haja de facto muita pressão para o pôr em causa pelas razões mais estapafúrdias. Explora-se bastante e por mais variadas razões o sentimento anti-partido.  Em Cabo Verde esse sentimento vem de longe. Desde logo, do salazarismo e depois foi refinado  nos quinze anos do regime de partido único. O facto de os dois grandes partidos conseguirem mobilizar multidões e serem vistos como agentes alternativos de poder em Cabo Verde revela o quanto, apesar de tudo, os partidos não foram realmente afectados pela hostilidade anti-partido.
A campanha para as eleições de Março deixa claro que para o eleitorado cabo-verdiano os partidos têm um papel central no processo de definição do futuro. Não faltam críticas à actuação dos partidos, mas a realidade é que ninguém se mostra na disposição de os dispensar e procurar conforto em políticas populistas e demagógicas. A percepção, de que nos sistemas parlamentares a responsabilidade para o melhor ou para pior pode e deve ser assacada aos partidos políticos, independentemente das lideranças conjunturais, conseguiu vingar. Por outro lado, reconhece-se que as relações de lealdade e também de confiança com o partido mantêm-se para além das mudanças na liderança e das vicissitudes eleitorais. A garantia de persistência do pluralismo na sociedade e no sistema político é fundamental para que se possa visionar o futuro com entusiamo e optimismo. Para isso a participação de todos os cabo-verdianos através do  voto no dia 20 de Março é de maior importância.
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 16 de Março de 2016

sábado, março 12, 2016

Privatização dos portos



O Primeiro-ministro José Maria Neves, em declarações à rádio nacional, na segunda-feira, reagiu à notícia do jornal Expresso das Ilhas de que o acordo de privatizações dos portos com a Bolloré prejudica Cabo Verde. A afirmação citada pelo jornal é do presidente do Conselho de Administração da Enapor, a empresa que em representação do Estado de Cabo Verde deveria assinar a subconcessão dos portos com a empresa francesa. O PM na sua resposta preferiu ignorar as razões apresentadas pelo PCA na carta dirigida precisamente a ele na qualidade de ministro das Infra-estruturas e Economia Marítima que actualmente acumula e, muito no estilo a que habituou este país nos últimos quinze anos, lançou-se logo numa ofensiva para ofuscar a opinião pública: primeiro, fez uma incursão na década de noventa para se auto-congratular com a ética do seu governo supostamente superior à dos outros; depois, ignorou todas as questões levantadas. Nada disse sobre os malefícios do monopólio privado dos portos num país insular, da ainda deficiente regulação, dos efeitos nefastos da falta de concorrência, da possível atrofia do Porto Grande de S.Vicente  enquanto investimentos são feitos no Porto da Praia e se espera anos para rentabilizá-los e das perdas em competitividade. Simplesmente garantiu que o acordo serve perfeitamente o país. Por fim, quis atingir pessoalmente o PCA da Enapor, insinuando que ele provavelmente não conhece bem as questões porque assumiu o cargo em Junho do ano passado. Foi uma resposta típica do que se convencionou chamar de política em Cabo Verde: mostra-se falta de rigor em relação aos factos, ignoram-se as questões a favor de fabricações que se vão fazendo conforme as circunstâncias e deixa-se sempre em aberto a possibilidade de ataque ad homines  a quem contesta ou simplesmente opina de forma não conveniente. Só a não preocupação com os factos é que pode levar o PM a esquecer-se de que foi precisamente nas vésperas (dia 20) das eleições de 22 Janeiro de 2006 que foi assinado o contrato com a Sociedade Lusa de Negócios, caracterizado meses depois como um contrato leonino pela ministra Cristina Duarte e que posteriormente levaria à saída do governo do então ministro João Pereira Silva. Imaginem-se, parafraseando a coladeira do Bana, os pontos acrescentados aos contos dos anos noventa sempre que por lá vão buscar justificações pelas suas falhas e omissões quando mesmo do passado recente têm uma memória tão convenientemente selectiva. Por outro lado, a falta de preocupação em encarar as questões apresentadas pelo PCA da Enapor apoiadas por pareceres técnicos de consultores e especialistas no exercício da actividade portuária e mesmo por técnicos do próprio ministério (MIEM) mostra como no processo de decisão do governo por demasiadas vezes a vontade de se segurar no poder facilmente se sobrepõe ao interesse público. Espantoso é que nem a possibilidade de atrofia do Porto Grande trazida à baila por Carlitos Fortes, servindo-se da analogia da transferência dos voos da TAP de Lisboa para o Porto na lógica de rentabilização financeira das operações, parece ter despertado o Sr. Primeiro-ministro para a necessidade de se rever um modelo em que nenhum dos especialistas contactados pela ENAPOR vislumbrou vantagens para Cabo Verde. Surpreendido pelas revelações vindas a público, simplesmente “chutou” o problema para o governo que sairá das eleições de 20 de Março.

quinta-feira, março 10, 2016

O drama da TACV

É notável a falta de rigor que o PM demonstra ao apresentar e justificar os problemas da TACV. Segundo a Inforpress, ele disse “Logo, em 2001, aprovamos o decreto-lei de privatização da TACV. Acontece que surge o 11 de Setembro e, por causa disso, não conseguimos mobilizar parceiros e desde essa altura que a transportadora aérea tem custos elevados, por causa das linhas internacionais que foram abertas sem uma preparação”. Na realidade, o decreto-lei de privatização da TACV é de 19 de Dezembro de 2002 e é aprovado pelo seu governo mais de um ano depois do ataque de 11 de Setembro de 2001 às Torres Gémeas de Nova Iorque e não antes. Já então se sabia que o mercado da aviação civil era de recessão a nível mundial como aliás a própria lei reconhecia no seu preâmbulo. As dificuldades posteriores da TACV, que se estendem até agora, não podem ser imputadas a rotas internacionais alegadamente abertas pelo governo anterior. No decreto de privatização ficou logo previsto que a TACV ficaria protegida da concorrência nas rotas internacionais durante sete anos, para além de manter os benefícios fiscais (isenção do imposto de selo, do IUR, e isenção de pagamentos de direitos de importação e emolumentos de variadíssimos produtos entres os quais equipamentos diversos, veículos motorizados e combustível) que vinha da governação dos anos noventa. A responsabilidade pelo descalabro da empresa só pode estar em quem tinha obrigação de ter uma visão para os transportes aéreos do país, de ser capaz de transmitir uma orientação estratégia à companhia de bandeira no quadro dessa visão e de garantir que a empresa fosse dotada de uma direcção com competência executiva. E a falta de ética estará talvez em não a assumir. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 745 de 09 de Março de 2016.

quarta-feira, março 09, 2016

Transferência de dinheiro via telemóvel

A WARI, uma empresa de origem senegalesa mas já com presença em vários países africanos, fez a sua apresentação pública no dia 26 de Fevereiro. A empresa promete fornecer um conjunto de serviços financeiros e não financeiros e desde já vai começar pelo serviço de transferência de dinheiro a partir de telemóveis. Como outras empresas do género no mundo, o mercado privilegiado é o das pessoas sem conta bancária e dos imigrantes que querem enviar remessas para os países de origem. Em Cabo Verde vai querer captar não só o potencial representado pelos imigrantes africanos como também explorar o filão que a diáspora cabo-verdiana pode representar. Os emigrantes certamente terão interesse em encontrar uma via segura, mais barata e mais rápida de transferir pequenas quantias para os familiares. O que pode deixar qualquer pessoa perplexa é por que só agora, em 2016, é que se arranca com um serviço de transferência de dinheiro com base nos telemóveis e por que tem que ser por iniciativa de uma empresa estrangeira. Serviços do género são conhecidos pelo menos desde 2007. O M-Pesa no Quénia e GCASH nas Filipinas são sucessos que vêm desde esse tempo e que têm sido replicados em vários países. A WARI vem na esteira dessas inovações e apareceu em 2008. Cabo Verde aparentemente deveria ter todas as condições para também ser um inovador neste sector. Tinha, em 2007, uma população com mais de 120 mil assinantes de telemóveis, já com hábitos de utilização da plataforma designadamente para enviar SMS, transferir saldos e navegar em menus para multifunções. Pode-se considerar que existia um mercado potencial para utilização dos telemóveis para pagamentos e transferência de dinheiro. Acrescenta-se a isso o potencial de atrair remessas dos emigrantes como já fazia o GCASH das Filipinas. Pergunta-se porque não se avançou. Oficialmente, fala-se muita em inovação, mas na prática ou o Estado domina, como faz nas TIC, ou omite-se, deixando os inovadores privados sem um ambiente legal institucional ou de suporte financeiro para avançar as suas criações e iniciativas. No caso de empresas de transferência de dinheiro via telemóvel, as autoridades, em particular o Banco de Cabo Verde, como autoridade de supervisão financeira, omitiram-se e deixaram arrastar várias iniciativas de cabo-verdianos apesar de já terem conhecimento de experiências similares com sucesso noutros países. Aliás, este jornal, nos últimos cinco anos, deu cobertura a casos de sucesso neste sector em vários países africanos e pôs em relevo o potencial de negócio como forma de se inverter a inércia institucional e de políticas. O Estado ficou mudo e quedo. O desnorte do BCV nesta matéria ainda se notou no comunicado de 8 de Agosto de 2015 a proibir a WARI de operar quando a empresa desde Junho vinha anunciando os seus serviços nos postos de venda da Shell. Pelo que foi dito, vê-se que transferência de dinheiro via telemóvel é mais um potencial negócio que se deixou escapar por falta de visão e por inércia institucional. A continuar com a mesma atitude muitos outros vão continuar a se perder. O mundo, porém, não espera por nós.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 745 de 09 de Março de 2016.

sexta-feira, março 04, 2016

Dívidas do sector empresarial do Estado

Num diagnóstico de Cabo Verde, de Fevereiro de 2016, o Banco Mundial considerou o sector empresarial do Estado uma grande ameaça às possibilidades de crescimento sustentado do país. Há anos que a média dos resultados líquidos das empresas estatais têm sido negativos não obstante beneficiarem de subsídios implícitos e subsídios explícitos, de não pagarem dividendos nem impostos e servirem-se de avales do Estado para resolver problemas de financiamento e de tesouraria. O resultado de funcionarem anos seguidos nessa situação,  segundo o estudo, é o facto de hoje constituírem uma carga  e um risco enorme para o Estado. O risco aparentemente estaria apenas nos avales dados às empresas em várias operações financeiras. A realidade, de acordo com os consultores, é que essas empresas não estão em condições de pagar a dívida que já acumularam. E toda ela já soma quase 40% do PIB (dados de 2014) com a TACV com 21% do total, a IFH com 31%, ELECTRA 21%, ASA 17%, ENAPOR 8% e a Emprofac com 2%. Do conjunto da dívida consideram que os casos mais arriscados são da TACV em 5% do PIB e IFH em 7% do PIB. Este retrato das empresas estatais mostra em como as políticas do governo em relação a sectores-chave da economia nacional têm resultado em ineficiências que muito já prejudicaram o país e ainda em dívidas acumuladas que poderão servir de um poderoso travão a políticas futuras de carácter económico ou social. Partidarização, falta de orientação estratégica e não responsabilização dos gestores têm servido para perpetuar situações que transformam empresas públicas prestadoras de serviços cruciais para o país e pra a economia nacional numa carga diária a suportar pelos utentes e a prazo pelo Estado, ou seja, por todos os contribuintes.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 744 de 02 de Março de 2016.

Campanha para discutir e decidir o futuro

A campanha das eleições legislativas de 2016 vai iniciar-se no próximo dia 3 de Março. Será a sexta vez que num ambiente livre e plural os cabo-verdianos irão ao voto para decidir quem deve governar o país nos próximos cinco anos. Em antecipação ao acto eleitoral de 20 de Março teremos praticamente duas semanas em que a atenção geral estará virada para as propostas de governação dos partidos políticos e para o perfil dos seus candidatos a primeiro- ministro. Esta eleição, depois de quinzes anos sem alternância de governo, reveste-se de uma importância muito especial até porque acontece num momento já caracterizado por vários observadores e também pelo próprio Presidente da República como sendo de encruzilhada para o país.
Todas as forças políticas parecem concordar com essa asserção. Nas suas comunicações deixam transparecer uma necessidade de mudança e a urgência em se passar de uma situação de estagnação económica para uma outra realidade de maior dinamismo com criação rápida de empregos. As promessas eleitorais vão nesse sentido e as propostas em termos de políticas e de medidas dão conta do caminho a percorrer para se chegar até lá. Não se mostram tão claros porém os obstáculos no caminho para se atingir os objectivos e metas pretendidos, nem como vencê-los. E esse é o aspecto fulcral: há que ter consciência que eles existem para que se crie vontade, se desenvolvam estratégias e se mobilizem energias para os ultrapassar. Sem os identificar e os contornar, os resultados acabam por ficar sempre aquém do previsto. A experiência de vários países, entre os quais Portugal, é elucidativa. Apesar dos enormes sacrifícios consentidos, as reformas não foram suficientemente profundas e os resultados em crescimento e competitividade continuam modestos. Aparentemente algo ficou por fazer.
Nos últimos anos o governo nos orçamentos do Estado vem anualmente projectando crescimento económico de 3,5, 4 e até 5% do PIB.  Na realidade, o país ficou por uma média nos últimos 5 anos de 1,4%. Os investimentos de mais de 600 milhões de contos não conseguiram dinamizar a economia nacional nem torná-la competitiva nem fazer dela uma criadora de emprego. O rendimento per capita vem diminuindo desde 2012. O desemprego mantém-se elevado, particularmente entre os jovens, e os classificados nas estatísticas oficiais como inactivos, aumentam. As razões por que os resultados estão a ficar sistematicamente abaixo das previsões não são devidamente inventariadas e muito menos reconhecidas. Pelo contrário, sai-se à procura de justificações em factores externos como a crise financeira internacional ou em agentes nacionais, que supostamente não estariam a fazer  a sua parte, designadamente, os bancos, empresários, e os próprios trabalhadores. Mesmo quando o banco central alerta que constrangimentos internos diversos não permitem que o país aproveite em maior grau da recuperação das economias europeias, o governo continua a cantar loas à sua agenda de transformação, a considerar a dívida contraída como “virtuosa“ e a congratular-se com rankings internacionais que põem as ilhas de Cabo Verde em melhor posição do que a generalidade dos países do continente africano.
Sobressaltos repetidos, porém, têm chamado a atenção para falhas graves em sectores-chave para a vida do país. O último foi o arresto na Holanda do Boeing da TACV. Outros sobressaltos como a erupção na ilha do Fogo, o afundamento de navio Vicente e atentados homicidas dirigidas directa ou indirectamente contra entidades públicas deram conta de fragilidades e mesmo de incompetência que se deixa perpetuar em várias áreas sob tutela de entidades públicas. O caso da TACV é paradigmático. A empresa há meses que está a viver dificuldades visíveis de gestão e o governo dá a impressão que se bloqueou e não age: não substitui a direcção, não reorienta estrategicamente a empresa e passa a imagem de que salta de um plano de privatização para outro, sendo provavelmente o mais recente aquele em que o Sr. Primeiro-ministro terá trazido da Guiné Equatorial onde esteve em visita com a privatização da TACV na agenda.
Cabo Verde deve saber por que está na actual situação de baixo crescimento, de fraca criação de empregos e de aumento da pobreza. Já há documentos do Banco Mundial a questionar se não se trata de mais um exemplo de um país apanhado na armadilha dos países de rendimento médio. A contraposição de visões dos diferentes partidos durante a campanha eleitoral que começa no dia 3 de Março deverá servir para elucidar os cabo-verdianos país sobre o que lhes impede a caminhada e o que terão que fazer para garantir um futuro de dignidade, de liberdade e de prosperidade para si e para os seus.  
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 2 de Março de 2016

quinta-feira, março 03, 2016

O debate televisivo

Os debates televisivos ganharam relevância nos pleitos eleitorais nas democracias desde o célebre debate nos Estados Unidos, em 1960, entre John Kennedy e Richard  Nixon. Saiu vitorioso Kennedy e a partir daí ficou claro para toda a gente que sucesso nos debates depende de vários factores entre os quais a chamada telegenia, a capacidade de cativar os telespectadores e de os fascinar por gestos, expressões e formas discursivas. A competência em tratar as questões em debate é importante mas não é tudo. Na sequência do primeiro debate entre os líderes políticos na televisão nacional na passada sexta-feira as opiniões dividiram-se quanto ao formato, às perguntas colocadas e a actuação de cada participante, em particular, dos líderes dos dois maiores partidos. Para a generalidade das pessoas, JHA surpreendeu pelo seu desembaraço apesar do seu discurso redondo e UCS ficou aquém do esperado não obstante ser mais concreto nas respostas. Compreende-se provavelmente a reacção das pessoas se se considerar quais as suas expectativas em relação ao debate. Os dos partidos têm-se apresentado ao eleitorado com estratégias bem diferentes. Enquanto o MpD tem colocado o foco na pessoa de UCS fazendo-o portador de soluções e líder de um partido que é Cabo Verde, o PAICV com um líder mais jovem tem apostado no legado do partido e na governação dos últimos quinze anos. Em consequência, o eleitorado tem expectativas diferentes em relação aos dois líderes: de UCS esperam um superior domínio das matérias em debate, em particular, em matéria económica. Quando a sua superioridade não se evidencia como esperado, nem JHA parece desprovida, há algum desorientamento seguido de euforia no campo do PAICV e de algum desapontamento no campo do MpD.  Outros debates certamente ajudarão a calibrar melhor a percepção que o público terá dos dois líderes e a moderar as expectativas em relação a qualquer um deles. Os debates continuarão porém a ser marcados pela diferença do discurso produzido. O discurso do PAICV em qualquer circunstância, seja no parlamento, em pronunciamentos de governantes ou em debates na comunicação social, é profundamente ideológico. Os oradores seguem um guião bem claro na sua exposição em que os elementos referenciais da sua visão do mundo são expostos e confirmados, as acções desenvolvidas pelo governo são justificadas  e apresentadas como as únicas possíveis, dada a circunstância, e os adversários são apontados como inimigos do bem que se propõem em fazer. Este discurso que recria realidades à medida que é feito, aproveitando-se de toda a informação que vai surgindo seja o ranking de Mo Ibrahim ou o fundo Afroverde acabado de apresentar em Luxemburgo dificilmente se pode combater com argumentos de natureza tecnocrática fora de uma roupagem ideologia distinta que rivaliza com a do adversário. Tanto assim é que para a gente que não é do PAICV o discurso da líder parece coisa memorizada e repetida sem pensar. Já para outras pessoas sem quadro ideológico definido o impacto é outro e a percepção da pessoa que faz esse discurso pode ser completamente diferente e vista como demonstração de capacidade intelectual e disciplina mental. Cada estratégia tem os seus riscos. A estratégia do foco no líder faz dele o grande alvo de tácticas dirigidas especialmente para o deitar abaixo do pedestal. Por outro, a estratégia de proximidade do partido tende a passar a imagem de que se é uma espécie de apêndice do partido, cheia de frases feitas e falta de espontaneidade. Naturalmente que nos debates seguintes e em particular o de 10 de Março ir-se-á verificar estes aspectos e ver como foram afectados na sua estratégia em relação ao partido e ao país. Mas primeiro terão que enfrentar a UCID que como ainda um pequeno partido à cata de mobilizar algum voto de protesto poderá no debate colocar-se na posição de  advogado do diabo no questionamento das propostas, objectivos e metas apresentados.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 744 de 02 de Março de 2016.

quarta-feira, março 02, 2016

CNE e campanha eleitoral

Nestas eleições interpretações diversas do Código Eleitoral quanto ao papel da comunicação social já teve efeitos inéditos mas também positivos de motivar o presidente da república a pedir a fiscalização abstracta e sucessiva de normas dos artigos 105 e 106 do referido código. O incidente à volta do comício do PAICV na semana passada focou outra vez sobre o que parece ser incongruências na lei. Indo ao fulcro da questão dificilmente se pode tirar a conclusão que é vontade do legislador que nenhum partido faça comícios fora do período de campanha eleitoral. Parece evidente que a todo o momento os cidadãos como os partidos gozam da liberdade de expressão e têm direito à reunião e manifestação. Eleições são marcadas e a elas só podem apresentar candidatos partidos políticos no caso das legislativas, partidos e grupos de cidadãos no caso das autárquicas e só grupos de cidadãos nas presidenciais. Em todos esses casos prevê-se um período de campanha. O objectivo maior nesses quinze dias é assegurar que todas as forças políticas tenham igualdade de oportunidades na interacção com o eleitorado. Claro que se sabe à partida que os recursos dos partidos não os mesmos para os grandes e pequenos partidos, nem se comparam com os novos partidos e muito menos com os dos grupos cidadãos criados ad hoc. Cria-se portanto a igualdade de oportunidades essencialmente no acesso a recursos públicos, por exemplo, à radio e televisão públicas, aos lugares para colocar cartazes e outdoors, lugares para comícios, segurança durante a campanha, dispensa de trabalho etc. Pode-se controlar o financiamento que os partidos podem receber de indivíduos ou empresas e ainda, como é o caso dos comícios durante a campanha, determinar o nível dos agrupamentos musicais e artistas que podem ser contractados para animação antes da actividade política. Que tudo isso seja controlado durante o período de campanha e que por isso o exercício da actividade política seja condicionado para não pôr em causa a igualdade de oportunidades é aceitável. Estender essa restrição para um período fora de campanha já não é. Em Cabo Verde em nome da igualdade parte-se facilmente para restrições que penalizem liberdades fundamentais. Olhando para outras experiências democráticas desde os excessos da campanha eleitoral nos Estados Unidos ou mais recentemente as eleições em Portugal não se vê quem queira resumir a actividade dos partidos ao período da campanha. Mesmo em Cabo Verde, já vamos na sexta campanha eleitoral em ambiente livre e plural e nunca antes houve restrições semelhantes. Naturalmente que, mesmo não concordando, há que respeitar as decisões de um órgão central da administração do processo eleitoral como é a CNE. A legitimação a olhos de todos do processo eleitoral passa por respeitar o órgão que o supervisiona. Quando não se concorda, há sempre a possibilidade de recursos para outras instâncias. De qualquer forma, o próximo Parlamento terá oportunidade de rever o código e, se achar necessário, fazer as emendas para que não haja dúvidas quanto à sua conformidade com a Constituição da República.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 744 de 02 de Março de 2016.

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Crioulo - que gramática?



Por ocasião de mais um Dia da Língua Materna voltam à baila questões como a oficialização do crioulo, o ensino bilingue, a problemática das variantes e o modo de escrita seguindo o ALUPEC, ou outra grafia mais próxima da raiz etimológica das palavras utilizadas. Não se ouve falar muito é da questão da gramática do crioulo, não obstante já estarem a verificar no país, desde o ano lectivo anterior, experiências de ensino bilingue que hoje já perfazem 8 turmas em vários pontos de Santiago e em S. Vicente. Se em relação à origem do léxico do crioulo já não muitas dúvidas que quase todo ele é de origem portuguesa e latina, constatação que já tinha levado o Dr. Baltasar Lopes da Silva a classificar o nosso crioulo como língua neolatina, já em relação à gramática, aparentemente, continua aberta a discussão. Há quem atribua a sua origem a alguma língua falada nesta região ocidental da África, talvez seguindo o raciocínio que se os vocábulos têm origem europeia e sendo o crioulo resultante de cruzamento de culturas então a sintaxe deve vir da África. O Dr. Baltasar no seu livro “O Dialecto Crioulo de Cabo Verde” referiu-se a uma estrutura gramatical simplificada do português adoptada inicialmente que teria servido de base para uma vitalidade do crioulo que depois tornou impossível a sua erradicação e deu-lhe viabilidade literária. Interessante como as observações de Baltasar parecem convergir com as de Derek Bickerton, um linguista inglês, especialista do crioulo do Havaii. Estudando o crioulo do Havaii, Bickerton nota que do contacto inicial entre os trabalhadores de diferentes origens desenvolve-se um pidgin, uma espécie de língua franca, cuja estrutura gramatical não é fixa: varia dependendo da origem dos seus falantes e não é suficientemente expressiva. Algo porém extraordinário acontece quando as crianças nascidas nesse meio se apropriam da língua falada na comunidade. Completam-na com uma gramática e um potencial de expressão que inclui poesia como constata Steven Pinker no seu livro “Instinto de Linguagem” quando conta a história das escolas de surdos-mudos na Nicarágua sandinista dos anos 80. Segundo ele, a primeira geração de alunos criou um sistema de sinais com estrutura e limitações próprias de pidgins. As segundas gerações, formadas por crianças mais novas, apropriaram-se dos sinais e apuseram uma gramática que segundo Pinker é a gramática comum aos crioulos, independentemente da sua base lexical. As observações de Bickerton e de Pinker dão substância à ideia de uma gramática universal, ou de um modelo gramatical inato, e aparentemente resolvem o mistério da origem das línguas crioulas. Ela é localmente criada pelas crianças quando com essa estrutura gramatical absorvem e modelam os vocábulos já disponíveis no pidgin e produzem, citando Baltasar Lopes, uma língua impossível de erradicar e com viabilidade literária. Um outro lado desta teoria de modelo gramatical inato é o de tornar mais difícil para as crianças que têm o crioulo como língua materna aprenderem outras línguas. Verificar se essas dificuldades são reais e como se manifestam devia ser objecto de estudos científicos apropriados conducentes às melhores decisões em matéria de ensino do crioulo, do português e de outras línguas nas nossas escolas, como aliás bem aconselhou a doutora Amália Lopes na entrevista à TCV no Dia da Língua Materna.
 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 743 de 24 de Fevereiro de 2016.

Turismo e Saúde

Na semana passada a ministra da Saúde disse numa reunião de avaliação do pacto nacional para a saúde que o sector precisa de mais um milhão de contos para assegurar a cobertura simétrica em todos as ilhas. A taxa sobre o tabaco e o álcool poderá contribuir com uma parte mas também espera que a taxa do turismo financie o Centro de Saúde do Sal e que do Fundo do Ambiente saiam verbas para ajudar a batalhar os vectores de doenças como a dengue e o zika. Mesmo com estes expedientes mais ou menos criativos é evidente que a saúde vai ressentir-se de falta de financiamento. Principalmente se se considerar que a tendência é para aumentarem os gastos à medida que a esperança de vida aumenta, que as doenças crónicas com o envelhecimento da população se tornem mais frequentes e consomam mais recursos e que se tornem maiores as expectativas da população quanto à qualidade dos cuidados de saúde que esperam receber.
A importância do sector da saúde não se restringe simplesmente à natureza e qualidade dos serviços que pode prestar à população num dado momento e numa determinada localidade. A saúde, por exemplo,  ganha valor estratégico para o turismo quando este se posiciona como o sector económico com maior potencial no próximo futuro. Mas para que isso aconteça é fundamental que o país tenha capacidade para receber mais de um milhão de turistas e garantir-lhes segurança a todos os níveis, designadamente em termos de acidentes, traumas e ataques súbitos que podem provocar a morte na ausência de cuidados especializados. Depreende-se do que foi dito que a qualidade da saúde que se venha alcançar no futuro depende muito da capacidade em fazer convergir as necessidades dos sectores do turismo e da saúde por forma a garantir a sua expansão permanente e o seu  financiamento com receitas geradas pela nova dinâmica do turismo.
 A região económica com a qual Cabo Verde tem relação comercial mais próxima é a Europa. Com países europeus é que se faz o grosso do comércio internacional, de lá é que vem grande parte da ajuda externa, dos empréstimos e doações assim como boa parte das remessas dos emigrantes e do capital estrangeiro que tem sido investido em Cabo Verde. Também da Europa é que se originam os fluxos turísticos que nos últimos anos têm dado alguma sustentabilidade à economia cabo-verdiana. Ora, a Europa tem um grande problema. A população está a envelhecer e os custos com a saúde são cada vez maiores. Precisa garantir qualidade e cuidados à sua população na terceira idade mas sem pôr em causa a sua competitividade com custos excessivos impostos a indivíduos e empresas. Tudo leva a crer que Cabo Verde podia posicionar-se para ser de maior valia nesta matéria.
A relativa pouca distância da Europa, o clima ameno e a proximidade cultural são factores que poderiam envolver Cabo Verde, investidores e operadores estrangeiros numa parceria proveitosa para ambas as partes. A vinda de um número significativa de pessoas da terceira idade obrigaria a investimentos importantes nos domínios da saúde. A população cabo-verdiana, além dos ganhos redobrados devidos a mais postos de trabalho e à dinâmica económica criada pela presença mais prolongada de visitantes num modelo de turismo residencial, beneficiaria de um nível mais elevado de cuidados de saúde. Os gastos com a saúde não seriam mais simples despesas, mas sim parte do investimento estratégico para aumentar e qualificar o fluxo turístico para o país.
Desde os anos noventa que com a lei 19/V/96 se abriu a porta para estrangeiros reformados terem autorização de residência permanente no país. Não é pois de hoje a percepção do potencial que poderá estar aí. O problema é ser consequente e estratégico na acção. Associar, por exemplo, a possibilidade de residência ao acesso a cuidados de saúde especializados virados para as necessidades da velhice poderá revelar-se uma fórmula ganhadora. Implicaria um trabalho sistemático de formação profissional no domínio dos cuidados de saúde virados para a terceira idade com níveis internacionais de exigência. Naturalmente que tal formação beneficiaria bastante os nossos jovens e podia abrir-lhes o caminho para bons salários tanto no país como no estrangeiro onde essas profissões têm grande procura. Só falta agora pôr mãos à obra.   
    Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 24 de Fevereiro de 2016

quinta-feira, fevereiro 25, 2016

Photo ops

Desde 13 de Fevereiro que o Primeiro-ministro está fora do país. Primeiro para uma digressão pela Europa e logo a seguir por São Tomé e Príncipe, onde deve ficar até o dia 24. O pretexto para ir à Europa foi apresentar o Afroverde, um fundo criado para captar financiamentos para projectos nas ilhas do Norte do país. Boa parte da viagem porém foi usada em encontros com as comunidades cabo-verdianas em Luxemburgo, França e Portugal. O que mais desperta a atenção porém são as múltiplas oportunidades de fotos com entidades e personalidades estrangeiras que foram criadas ao longo de toda a viagem. O Facebook do PM a abarrotar de fotos da viagem está lá para comprovar. Até parece que o principal móbil da viagem foi essa. Aqui no país os ouvintes da rádio e os telespectadores foram servidos também com um prato forte de notícias, reportagens e entrevistas ao longo de todo o périplo do PM pela Europa. A impressão forte que se fica da viagem do PM, e de toda a agitação por ela provocada nos media e nas redes sociais, é que se trata de uma forte acção de campanha eleitoral em sintonia com a pré-campanha que o PAICV faz pelas ilhas. De facto, é como se o partido fizesse campanha em duas frentes: uma comandada pela nova líder e outra dirigida pelo ex-líder, mas que é ainda Primeiro-ministro. Uma financiada com os recursos do partido e outra com os recursos do Estado. Uma dirigida para mostrar as vantagens nas opções do partido e outra para, mais uma vez, relembrar aos cabo-verdianos a impossibilidade de viver sem ajuda externa e também quem são os únicos capazes de gerir impossibilidades neste país. Ninguém põe em causa que o governo deve poder governar até ao fim do seu mandato. Mas governar não é fazer campanha como se viu ao longo de todo o ano de 2015 desde que o PAICV mudou de liderança e o primeiro-ministro deixou de ter a direcção política efectiva do governo. Nem tão pouco governar é incluir essas visitas políticas às comunidades nas deslocações ao exterior. Como justificar a viagem a São Tomé e Príncipe neste preciso momento senão por razões eleitoralistas, talvez numa tentativa de arrebatar dois deputados no círculo de  África. O PM de São Tomé já tinha visitado Cabo Verde em Dezembro. O JMN passou por lá em Novembro e várias delegações de ministros circularam entre os dois arquipélagos. Que matéria urgente justificaria uma outra visita de Estado?

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

Promessas de descentralização

O PAICV em campanha em S. Vicente prometeu desconcentrar atribuições e competências para os serviços do Estado para que tenham autonomia na tomada decisões e sirvam prontamente os cidadãos e as empresas. Com estas medidas o PAICV garante que o desenvolvimento almejado irá verificar-se. O curioso nesta promessa é o facto de o PAICV aparentemente estar a assumir que a ilha não cresceu porque houve centralização de poderes. Com esta assunção quer juntar-se a todas as outras vozes que clamam por mais poderes para S. Vicente. E naturalmente que vai dizer que irá cumprir e os outros não. No braço de ferro que se criará com todos a clamar que são os verdadeiros descentralizadores, o PAICV espera que se esqueça que foram as suas políticas que têm o país, e em particular S. Vicente, nesta situação. Há dias, na Ilha da Madeira, alguém disse que a ilha só teve sucesso quando se virou para o exterior, quando se virou para o mundo. Acrescentou ainda que todos os ciclos de desenvolvimento da Madeira só ocorreram quando a região se virou para o exterior. Quando se virou pra dentro entrou em entropia, por falta de dimensão de mercado, por falta de massa crítica. O que é verdade para Madeira é também verdade para Cabo verde e para S. Vicente. As opções políticas do PAIGC/PAICV em 1975 foram virar o país para dentro. Quando nas Maurícias e nos chamados Tigres da Ásia se tirava proveito do acesso preferencial aos mercados da Europa, América e Japão para exportar têxteis, confecções, calçado e muitos outros produtos, o governo de então optou por financiar fábricas do tipo da Morabeza e Socal, viradas para o mercado interno. A mesma atitude de fecho não deixou a pesca desenvolver-se e não deixou que oportunidades no turismo fossem aproveitadas como as Canárias e as Seicheles estavam a fazer. Eram opções de política em sintonia com opções de poder. São essas mesmas opções que depois de 2001 quebraram o ímpeto de crescimento de indústrias em S. Vicente e noutros pontos do país que estavam a criar milhares de postos de trabalho e prometiam muitos outros. Para quem tem dúvidas da força que a indústria para a exportação pode ter na criação de empregos é só ver a evolução da Frescomar nos últimos anos. É de se perguntar quantos empregos não foram criados, quanta riqueza não foi criada, quantas oportunidades foram desperdiçadas porque as opções do PAICV no governo nunca foram de abrir o país para o exterior, de conseguir mercados e de atrair capital essencial para se modernizar a economia, inovar e aumentar a produtividade. A centralização é consequência directa de políticas viradas para dentro, que roubam iniciativa a pessoas e empresas e não olham a meios para colocar tudo e todos sob a dependência do Estado. Por isso, falar em descentralizar e desconcentrar sem mudar as políticas e a forma de exercício do poder em Cabo Verde só pode ser promessa vazia.  
 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 743 de 24 de Fevereiro de 2016.

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

Falta vontade

Nestes últimos dias tem feito eco por todos os órgãos da comunicação social a ideia de trazer reformados da Europa para Cabo Verde para beneficiarem do bom clima, da boa convivência e dos prazeres do sol, das praias, montanhas e vales exóticos das diferentes ilhas. A ideia teria saltado para a comunicação social no acto de lançamento em Luxemburgo do fundo de investimento dirigido para empreendimentos turísticos em várias ilhas do Norte do país que contou com a presença do Primeiro-ministro José Maria Neves. Tomada como original e ter provavelmente maravilhado alguns pelo alcance e possível impacto, a ideia irá certamente correr o seu curso por vários circuitos e condimentar várias intervenções políticas. Aliás, já começou. Só se espera é que a “onda” não vá morrer na “praia” sem deixar marcas permanentes.
A ideia não é nem nova nem original. Este jornal, em vários editoriais e reportagens desde há mais de cinco anos, tem vindo a chamar a atenção para as vantagens de uma outra abordagem em relação ao turismo, associando imobiliária residencial e prestação de serviços de saúde virada para a terceira idade. No mesmo sentido tem-se pronunciado colunistas deste mesmo jornal em sucessivos artigos ao longo dos anos. Certamente muitos outros em outros fóruns também terão chamado a atenção para o obvio: Cabo Verde está a poucas horas da Europa e deveria poder oferecer a um continente rico com uma população a envelhecer e com custos crescentes de saúde uma alternativa de repouso, bem-estar e entretenimento em ambiente de segurança e de tranquila interacção cultural.
O problema com as ideias ou visões desta natureza é que em Cabo Verde não têm muito futuro. Podem até entusiasmar a princípio, aparecer em discursos de políticos ou em momentos de debate. Depois desaparecerem e não poucas vezes reaparecem, nem sempre recauchutados mas sempre com um ar de originalidade que só envaidece quem as proclama. Em vez do destino costumeiro que se dá a muitas ideias válidas, devia-se é explorá-las para ver até que ponto podem ser inovadoras, podem potenciar a criação de novos mercados e criar novos postos de trabalho. Os hábitos adquiridos com o modelo de desenvolvimento baseado na ajuda externa inibem outras posturas do Estado que não seja a de arrecador/distribuidor de recursos externos. Ideias e oportunidade passam sem que sejam agarradas por quem antes de acabar o último projecto já está a pensar no próximo e em quem vai sacar o financiamento necessário para isso. Não estranha que o país não avance significativamente mesmo com financiamento de muitos milhões ao longo dos anos. Muitos destes investimentos são exercícios fechados em si próprios sem resultados comensuráveis e sustentáveis e são concebidos normalmente sem grande preocupação com os resultados.
As pessoas não parecem preocupar-se realmente com facto de, depois de centenas de milhões de dólares gastas em infraestruturas, o desemprego continuar tão elevado. Nem tão pouco parecem estar desconfortáveis com o facto de, depois dos grandes investimentos públicos terem sido feitos o país caiu para níveis de crescimento demasiado baixos com um sector privado em colapso e um sector laboral frustrado com o desemprego existente. Ideias para sair desta situação pululam por aí mas não há acção consequente. Diz-se que se está a apostar no turismo mas não se vê a vontade forte para reinar sobre a insegurança, regular o mercado de oferta de serviços, resolver o problema da habitação, de saneamento básico e dos cuidados de saúde nem de formar trabalhadores e criar uma cultura de serviço a nível das exigências do mundo. Fala-se em clusters do ar e do mar e ainda em praças financeiras e não se descortina o esforço necessário para fazer de Cabo Verde um país realmente competitivo e com um bom ambiente de negócios. 
A atitude perante dois programas americanos distintos, o MCA e AGOA, deixa transparecer o que está por detrás desta aparente contradição entre o pensar e o fazer. O MCA é um programa de ajuda directa e é adorado pelas autoridades cabo-verdianas. AGOA é um programa de ajuda indirecta, “Aid for trade” pela via de acesso preferencial ao mercado americano; vem desde o ano 2000 e é basicamente ignorado. Mas no Lesotho até 2014 esteve na origem de mais de 35 mil novos postos de trabalho. O governo cabo-verdiano faz o discurso convencional de se comprometer com o programa de incentivar o sector privado e promover as exportações mas na prática parece preferir o modelo de ajuda que mais confortavelmente lhe assiste nos seus desígnios de poder.
Concluindo, pode-se afirmar que ideias e visões de desenvolvimento não faltam. Toda a gente sabe o que há a fazer. O que falta é a vontade de mudar as coisas.  
     Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 17 de Fevereiro de 2016

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Dissimulação e truculência

O governo representado pelo ministro com a tutela da comunicação social decidiu dar o nome de Corsino Fortes ao novo estúdio da Televisão Pública. Na placa descerrada vê-se que a homenagem não é dirigida ao poeta enquanto símbolo da liberdade criativa, da afirmação do indivíduo e de profunda identidade com Cabo Verde. É feita ao ex-Secretário de Estado da Comunicação Social entre 1983-1985, dos tempos da ditadura do partido único. A questão que se coloca é como conjugar a homenagem ao governante pela televisão que então se criou com os valores que hoje se exige à televisão pública. Nos anos idos da década de oitenta a televisão como a rádio pública e o jornal do Estado eram tidos como órgãos de propaganda do regime vigente. O secretário de estado da comunicação social conjuntamente com o ministro da educação, directores do Voz di Povo, da rádio nacional e da tvec fazia parte de um conselho nacional de informação que tinha por missão promover o reforço de divulgação da ideologia e da política do partido em todos os órgãos de informação.  Quanto aos jornalistas, o então presidente da república Aristides Pereira era peremptório em dizer que “na luta pela afirmação da personalidade nacional temos que agir com base no princípio de que não há especialistas em informaçãoHá, sim, militantes que coordenam em diversos escalões o trabalho de levar a cada cidadão por todos os meios possíveis o conhecimento de como se desenrola o processo em que é chamado a participar, de construção dos alicerces do país”. Essas referências são hoje completamente deslocadas. Agora exige-se dos jornalistas da televisão pública que sejam independentes do poder político, do poder  económico e do poder administrativo. O director da televisão só é nomeado ou demitido mediante parecer prévio e favorável da Autoridade Reguladora da Comunicação Social. A TCV já não é a única televisão permitida no país. Operadores privados de televisão podem conseguir licenças para emitir e produções independentes de conteúdos são estimuladas ao contrário do que aconteceu nos anos oitenta em que iniciativas de cidadãos como o Vídeo Clube do Mindelo foram suprimidas para que a TVEC reinasse sozinha. É evidente que a homenagem ao Secretário de Estado é de facto uma homenagem ao governo de outrora. Este governo do Paicv não perde oportunidade em branquear o regime do partido único e em contrapor as práticas do partido único aos princípios e valores da Constituição liberal e democrática. Provavelmente estará a alimentar velhas cumplicidades que ainda se mostram politicamente úteis nos tempos actuais.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 742 de 17 de Fevereiro de 2016.

terça-feira, fevereiro 16, 2016

Reguladoras ricas

As agências de regulação são criadas na ideia de serem os baluartes do interesse público, protegendo os consumidores, preservando a concorrência e promovendo a inovação. Para isso devem garantir que a prestação do serviço público é feita com qualidade, segurança e cobrado um preço justo. Também que nenhum privado ou grupo consiga mover-se para uma posição de monopólio e determinar preços e que suficiente espaço deve existir para soluções ou iniciativas inovadoras favoráveis aos consumidores e à competitividade do país. Ninguém espera que se tornem abastadas ou dêem sinais de riqueza as entidades públicas envolvidas na prestação deste serviço. Por uma razão muito simples: se têm excedentes na gestão o mais provável é que estejam a tirá-los dos consumidores. Podem imputá-los aos operadores, mas certamente que estes os farão repercutir sobre os consumidores. O que acabam por cobrar não são taxas pagas por serviços prestados, mas sim uma espécie de imposto que sobrecarrega a todos e é ilegal e injustamente aplicado. O governo, perante situações de excedentes apreciáveis na gestão das agências reguladoras, devia proceder à revisão das taxas aplicadas não só para proteger os consumidores como também para evitar deformações em todo o processo de formação de preços. Não deve é cair na tentação de criar eventuais sacos azuis passíveis de serem utilizados em situações de transparência duvidosa.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 741 de 09 de Fevereiro de 2016.

domingo, fevereiro 14, 2016

Auto-complacência

A agência de rating Fitch põe a dívida pública de Cabo Verde em 2015 a 120% do PIB. A economia continua anémica e o mais provável é que não passe de uma taxa de crescimento de 1% no ano de 2015, abaixo da taxa de crescimento de Portugal e da zona euro com quem Cabo Verde tem um acordo cambial. O desemprego mantém-se acima dos 15% e é muito mais elevado entre os jovens e o rendimento per capita desde 2013 vem diminuindo. As consequências já se notam nas manchas de pobreza que se espalham pelo país. Apesar desses índices que em qualquer país teria toda a gente a pensar em medidas urgentes para reverter a situação o que se vê é um governo a regozijar-se com relatórios internacionais que mostram  Cabo Verde em aparente boa posição relativamente a países do continente africano. Tirando a dificuldade de se comparar realidades tão díspares, estar à frente em relação a certos países não devia servir de consolação. Mas aparentemente serve: o aluno suficiente, considerado bom em relação aos medíocres e maus na gestão da ajuda externa, é premiado com mais ajuda. O único problema com este modelo de negócios é que, de facto, adia-se o desenvolvimento mesmo que se vejam alguns sinais de progresso em painéis solares, estradas asfaltadas e terminais modernos de passageiros. De facto, a economia estagna. Cabo Verde passou de 2008 para 20015 de uma dívida pública de 51% para 120% do PIB, ou seja, mais do que a duplicou. Mesmo sendo  concessional terá  sempre que ser paga. Só será paga porém se o país crescer a níveis muito superiores aos que se têm verificado nos últimos 5 anos. E isso não tem acontecido porque desenvolver não pode resumir-se a aproveitar a ajuda externa em recursos financeiros tal qual é apresentada e aplicá-la de forma que melhor sirva a vontade de se manter no poder mesmo deixando passar de lado oportunidades de crescer a taxas muito mais elevadas. O esforço de propaganda para obscurecer a realidade é cada vez maior. Tudo se presta a isso: anteontem foi o índice de pobreza e ontem já foi o relatório de resiliência. Exemplo são as previsões do governo e os fornecidos ao FMI, designadamente de previsão de crescimento para 2015, que acabam por divergir bastante dos dados reais. Aconteceu nos anos anteriores e voltou a acontecer este ano. Um outro caso estranho também foi o relatório da missão do FMI que, segundo declaração pública de Março de 2015, devia ser revisto pelo conselho de administração do FMI em Maio e que acabou por não acontecer. Não há qualquer registo nos arquivos online do FMI de que se tenha reunido para apreciar o relatório. É de se perguntar se, com tantos desencontros e omissões, o próximo governo não terá a surpresa de ver chegar uma equipa do FMI assim que tomar posse para se inteirar da situação real do país para além da propaganda.

sábado, fevereiro 13, 2016



Todos anos por altura do debate sobre o estado da Justiça e também na abertura do ano judicial colocam-se problemas de morosidade, de produtividade, de eficácia e da qualidade da justiça. Para além do tratamento que essas questões têm em sede do contraditório na Assembleia Nacional e também nos pronunciamentos anuais do presidente da república e de outros representantes de entidades ligadas à justiça, no dia-a-dia, devem ser preocupação permanente do Conselho Superior de Magistratura, o órgão de gestão da magistratura judicial. Para isso é fundamental o serviço de Inspecção Judicial. Com esse serviço pode-se verificar o estado de todos os serviços do tribunal e obter informações sobre o desempenho e o mérito dos juízes. Como se pode imaginar, a gestão que o CSM faz do sistema de justiça depende muito grau de efectividade da inspecção judicial. Aparentemente, porém, esse tem sido um dos calcanhares de Aquiles do sistema. Pelo que foi relatado na última edição do jornal “ASemana” há críticas sérias sobre o actual serviço. Fala-se designadamente de subjectivismo e de critérios desiguais na avaliação dos juízes. Independentemente da validade ou não das críticas, é facto que ao longo dos anos tem sido difícil erigir um serviço de inspecção judicial à altura. A própria lei de inspecção judicial só foi aprovada em Fevereiro de 2015 quase cinco anos depois da revisão constitucional de 2010 ter ampliado extraordinariamente os poderes do CSM. Parte das dificuldades advém provavelmente da própria pequenez do meio e do número reduzido de magistrados. Inspecção ao trabalho dos tribunais e ao mérito dos magistrados compreende a avaliação por colegas de profissão que muitas vezes se vêem constrangidos pela proximidade, amizade e familiaridade. Não é por acaso que o serviço durante anos foi praticamente inexistente ou trabalhou com um mínimo de pessoal. Muitos recusaram o convite feito para o integrar. O facto porém é que o trabalho dos juízes exige competência técnica e precisa ser monotorizado e avaliado também com competência para que o sistema no seu conjunte melhore, para que a meritocracia prevaleça nos processos de selecção e de promoção e para que o país e os cidadãos beneficiem de uma justiça efectiva e célere. Onde encontrar os recursos humanos para isso é o busílis da questão considerando que não é só reunir competências como também nesta fase inicial do Estado de Direito e da democracia ultrapassar os constrangimentos da pequenez e da proximidade. Países novos como Timor têm recorrido a magistrados de outros países entre os quais vários magistrados cabo-verdianos para preencher as insuficiências do seu sistema judicial. Hoje no mundo global mesmo países como o Reino Unido recorrem a nacionais de outros países para o exercício de cargos de algum grau de exigência técnica no domínio de políticas públicas. É o caso do canadiano Mark Carney que é actualmente governador do Banco de Inglaterra ou de Stanley Fischer que de governador do Banco de Israel passou para vice-governador do Federal Reserve Bank dos Estados Unidos. Não parece pois descabida a possibilidade de se recorrer por algum a tempo a magistrados experientes de outros países para ajudar a construir um corpo de magistratura altamente competente e produtiva que, de facto, fizesse o sistema judicial cabo-verdiano servir com celeridade o desejo de justiça dos cidadãos e ser mais um factor de competitividade do país. Funcionando como até agora dificilmente deixaremos de ouvir as mesmas queixas repetidas todos os anos nos momentos rituais de avaliação do estado da Justiça.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 741 de 09 de Fevereiro de 2016.