Ouvindo as declarações do Sr. Primeiro-ministro sobre a privatização dos portos e logo de seguida sobre a situação cada vez mais complicada da TACV a primeira pergunta que nos ocorre, é: estará o governo ainda em “estado de graça”? Só pode ser, considerando que ainda culpa o governo anterior e não se sente compelido a assumir que errou ou que as suas políticas falharam em produzir o resultado pretendido. Ninguém acreditaria que quem fala assim encontra-se no fim de mandato do seu terceiro governo consecutivo.
É consenso geral nas democracias que aos governos recém-empossados se dá um máximo de seis meses de graça. Passado esse tempo torna-se progressivamente mais difícil e aceitável que continue a recorrer ao governo anterior para se justificar. Insistir nesse caminho inevitavelmente tem consequências na integridade e funcionalidade do sistema político. Negar que quem governa tem concomitantemente responsabilidade plena pelos actos de governação e por tudo o que respeita à colectividade nacional significa quebrar o vínculo fundamental entre os cidadãos e o governo que nas democracias legitima o exercício do poder: o princípio do livre consentimento dos governados.
Quando se entra no caminho de esquivas ou mesmo de fuga à responsabilidade começa-se logo a agir de forma a que os cidadãos não tenham toda a informação, ou os meios para se expressarem livremente ou se sintam livres para se organizarem e questionarem políticas, prioridades, resultados e impacto dos actos do governo. Quer isso dizer que os recursos do Estado começam a ser utilizados para constranger os indivíduos no exercício dos seus direitos, mesmo que não tenha sido esse o plano original. Para evitar assumir responsabilidade, faz-se propaganda e, pelo caminho, coarcta-se a liberdade de expressão, a liberdade de informar e de ser informado. Acaba-se sempre por condicionar a liberdade de imprensa e a liberdade de reunião e de manifestação e também por esvaziar as pessoas da autonomia em relação ao Estado e torná-las mais dependentes e mais submissas. Viu-se tudo isso nos últimos quinze anos.
A funcionalidade de um sistema que se guia pelo princípio do contraditório perde-se se a responsabilidade não é assumida e se culpabiliza sistematicamente o governo anterior por resultados menos bons da governação. Confundem-se os papéis e a oposição que já foi poder é obrigada a defender-se em vez de se manter activa a questionar a acção governamental. O parlamento como instituição sofre com os papéis invertidos dos seus protagonistas e com a frustração provocada pela atitude das bancadas rivais e do próprio governo. A imagem externa da instituição fica negativamente afectada quando os debates não trazem nada de positivo, bloqueios em matérias chaves se mantêm por muito tempo e frustrações individuais ou de grupo são ventiladas em plenário.
Sem um processo permanente de responsabilização, as promessas eleitorais não têm qualquer significado. Se o governo armado com a sua maioria parlamentar e com todos os recursos do Estado pode deturpar a realidade e substituir resultados por ilusões não vai se sentir amarrado às promessas que fez durante a campanha. A percepção que assim é tende a alienar as pessoas da política, aumenta o cinismo em relação aos políticos e pode fazer do eleitorado uma presa fácil para o populismo e a demagogia.
Um outro custo das constantes fugas à responsabilização pelos actos da governação é a perda paulatina de eficiência e eficácia em tudo o que se faz. Como se recusa o contraditório também não se reconhecem as falhas, não se absorvem as sugestões para mudar de procedimentos ou de rumo e o mundo dos governantes reduz-se cada vez mais ao grupo de fiéis ficando de fora os críticos, os inovadores e os ousados. Não estranha pois que a retoma de crescimento todos os anos anunciada tarde em acontecer, assim como o desemprego custe a diminuir. A gestão das empresas públicas torna-se cada vez mais complicada com os custos a serem assumidos pelo Tesouro Público e os serviços esperados pelos utentes pecam em qualidade, fiabilidade e preço. Uma distância maior começa a separar o país de ilusões todos os dias reproduzidos pelos governantes das dificuldades vividas no país real. Não estranha que de repente se oiça do fundo desse país real o grito de mudança.
Em período de campanha para as eleições legislativas é fundamental que a par com as promessas eleitorais seja afirmada a vontade de governar com honestidade seguindo uma ética de responsabilidade. Não é de aceitar governo que queira ficar em estado de graça por cinco, dez ou quinze anos de graça.
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 9 de Março de 2016
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