A vinda a público dos já internacionalmente conhecidos Panama Papers revelou, mais uma vez, a importância de um jornalismo de investigação caracterizado pelo rigor e independência. Nos mais 11 milhões de documentos analisados e disponibilizados ao público pelo Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação (CIJI) foram postos a nu inúmeros interesses duvidoso vindos não só de todas as esferas da vida política, económica, empresarial, social e cultural como também do submundo do tráfico e das redes de terror. Com a ajuda de uma empresa de advogados, Mossack Fonseca, conseguiam colocar-se a salvo de autoridades fiscais e policiais e fora do controlo da justiça.
O trabalho exigiu o esforço de centenas de jornalistas e as revelações trazidas a público já provocaram demissão do Primeiro-ministro da Islândia. Outras tornaram-se objecto de inquéritos vários e já causaram embaraços diversos a personalidades conhecidas. De todo o mundo vêm palavras de agradecimento por se ter conseguido a façanha de trazer à luz do dia actos de fuga ao fisco que normalmente deixariam os ricos a gozar com os resultados dos seus esquivos a pagamento de impostos enquanto pessoas com menos rendimento não conseguem escapar ao crivo da administração tributária. Para muitos a prestação da comunicação social nesta matéria demonstra como uma cidadania atenta, próxima de uma imprensa com critérios sérios de jornalismo, pode fazer a diferença tanto a nível nacional como a nível global.
Nesta época de globalização transacções podem ser feitas entre quaisquer pontos do globo e a qualquer momento. Redes de produção e distribuição são capazes de ligar uns a outros em poucas horas. Poupanças ou riquezas de diversas origens podem ser mobilizadas e reinvestidas em qualquer altura. Naturalmente que existem condições, derivadas em grande parte da natureza dos negócios, para se contornar as exigências feitas na abertura de contas, na movimentação de fundos de financiamento e nas transferências entre diferentes interesses. Na ausência de autoridades ao nível nacional e global devidamente preparadas para o combate a esse tipo de atropelos cabe à comunicação social um papel importante na identificação e rastreio de interesses escondidos.
As democracias nos últimos anos têm estado sobre pressão, nalguns casos devido a uma crise de representação, noutros casos derivado de relações conflituantes entre os órgãos de poder político e ainda há casos criados pela percepção do que causou a actual situação caracterizada pela crescente desigualdade social. A crise financeira internacional veio confirmar aos olhos de muitos que o estado se entreteve de tal forma no salvamento dos bancos que descurou as dificuldades do cidadão comum e o deixou completamente à mercê dos capitalistas sem escrúpulos. Depois da crise, com as pessoas ainda a sofrer com os muitas vezes brutais cortes em salários e pensões, o espectáculo do sistema financeiro saído incólume e com ar de prosperidade tem deixado as pessoas furiosas. Quando denúncias são feitas de que realmente há pessoas a abusar do resto, acontecem manifestações como as da Islândia neste fim-de-semana, que efectivamente levaram o primeiro-ministro à demissão. E esse conhecimento só pode ser levado ao público se houver uma imprensa livre e com meios para proceder a uma investigação jornalista que vá até ao âmago das coisas.
Há quem vaticine que as redes sociais poderão substituir os media tradicionais em manter a pressão sobre os poderes instituídos na sociedade. A força das redes sociais já foi verificada em movimentações como as da Primavera Árabe e outras como, por exemplo, de campanha eleitoral, como se viu nas últimas eleições legislativas. Mas ainda cabe aos media tradicionais, com o seu grupo de profissionais, o desempenho do papel de controlo sistemático das acções de poderes e interesses na sociedade.
Em Cabo Verde pode ainda não se ter devidamente desenvolvido um jornalismo de investigação, mas já há sinais de que se caminha firmemente para aí. Com mais frequência já aparecem pessoas a colaborar enquanto fontes de informação sem que a motivação seja alguma vingança pessoal mas sim preocupação com algum bem comum ou na tentativa de evitar um desastre ou mal maior que afectaria todos. Também os jornais já estão a dar os primeiros passos no fact-checking, como se viu nas recentes eleições. Revelador do poder desta abordagem foi o desmentido que este jornal conseguiu da União Europeia em relação à afirmação de um candidato a deputado em S. Vicente a propósito do financiamento de um porto de águas profundas nessa ilha.
Com tudo isto em mente, o Expresso das Ilhas saúda o esforço do CIJI na preparação dos Panama Papers como um exemplo de jornalismo de investigação e da liberdade de imprensa, indispensável para a democracia neste mundo globalizado.
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 6 de Abril de 2016
Há duas semanas o governo de José Maria Neves enviou ao Presidente da República um decreto-lei que autorizava a Electra a contrair uma dívida de 1 milhão e 375 mil euros junto à Caixa Económica para comprar acções do Grupo Bucan na empresa Águas e Energia da Bahia (AEB). O PR devolveu o diploma porque considerou que a matéria cabia dentro da competência administrativa do governo e que a questão deveria ser resolvida com uma resolução do governo como veio a verificar-se no BO de 17 de Março último. É de se perguntar porém se o governo desconhecia isso ou se simplesmente usou um expediente que bem-sucedido faria o PR compartilhar a responsabilidade na autorização do aval do empréstimo da Electra à Caixa Económica e do negócio de compra de metade das acções detidas pelo Grupo Bucan pelo valor de 1 milhão de euros. Facto é que a devolução do documento não serviu para uma reponderação da questão pois logo de seguida o governo enviou-o para a publicação na forma de resolução. A questão da AEB e a ELECTRA na Boa Vista já tinha sido matéria de um post de Agosto de 2010 neste jornal sob o título “Ossos para Electra?” e continuava: O governou já concretizou a entrega da produção e distribuição de energia e água da Boa Vista a uma empresa privada até 2035. As razões para isso não são claras. O acordo com a empresa Águas e Energia da Boa Vista SA é de 2008, quando estava em vias de entrar em funcionamento o hotel Riu Karamboa, um grande consumidor de energia e um pagador certo. Dá-se mais um passo no acordo, no momento em que já se iniciou a construção de um hotel com mais de 2000 camas na zona de Santa Mónica, que também vai ser um grande cliente de energia e água. A questão que deixa a todos intrigados é porque é o governo impede a Electra de aproveitar o mercado de electricidade e água da Boa Vista, em franca expansão, a favor de uma outra empresa. Qual a lógica do governo em sobrecarregar a Electra com a electrificação rural, politicamente motivada e que pouco consumo e retorno gera, e não permite à empresa aproveitar-se de um “bife de lombo” quando tal se proporciona? Como é que a Electra poderá manter uma tarifa nacional de energia e água se é retirada dos mercados de forte expansão do consumo, ao mesmo tempo que é obrigada a suportar as zonas de baixo consumo? Cinco anos depois há uma inversão da marcha. O governo no preâmbulo da resolução reconhece que “verificou-se uma deficiente qualidade de serviço de electricidade e água prestada à população da ilha da Boa Vista, com clara violação dos objectivos propostos com a celebração do contrato de subconcessão”. Também o governo constata que “não se realizaram investimentos necessários e contratualizados nas redes de electricidade e água, tendo a AEB realizado apenas pequenos investimentos de socorro resultando disso cortes frequentes e permanentes bem como o não fornecimento de electricidade e água a algumas localidades”. Apesar destas constatações o governo, via Electra e Sociedade de Desenvolvimento da Boa Vista, está disposto a dar dois milhões de euros pelas acções do Grupo Bucan. Não ficando-se por aí, ainda vai amortizar o crédito do Bucan sobre a AEB no valor 6 milhões de euros que se supõe tenha sido contraído quando o Bucan tinha a gestão da AEB em regime de exclusividade. Para isso a Electra vai já avançar com 375 mil dólares e como não tem dinheiro terá que contrair uma dívida com o aval do Estado junto à Caixa Económica num total de 1 milhão e 375 mil euros. Pelo documento não se fica a saber se houve algum estudo prévio e quem realmente vai beneficiar nestas transacções. Só se sabe que a Boa Vista e a suas gentes até agora pouco beneficiaram desses arranjos dos últimos cinco anos.