sexta-feira, abril 08, 2016

Importância do jornalismo de investigação

A vinda a público dos já internacionalmente conhecidos Panama Papers revelou, mais uma vez, a importância de um jornalismo de investigação caracterizado pelo rigor e independência. Nos mais 11 milhões de documentos analisados e disponibilizados ao público pelo Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação (CIJI) foram postos a nu inúmeros interesses duvidoso vindos não só de todas as esferas da vida política, económica, empresarial, social e cultural como também do submundo do tráfico e das redes de terror. Com a ajuda de uma empresa de advogados, Mossack Fonseca, conseguiam colocar-se a salvo de autoridades fiscais e policiais e fora do controlo da justiça.   
O trabalho exigiu o esforço de centenas de jornalistas e as revelações trazidas a público já provocaram demissão do Primeiro-ministro da Islândia. Outras tornaram-se objecto de inquéritos vários e já causaram embaraços diversos a personalidades conhecidas. De todo o mundo vêm palavras de agradecimento por se ter conseguido a façanha de trazer à luz do dia actos de fuga ao fisco que normalmente deixariam os ricos a gozar com os resultados dos seus esquivos a pagamento de impostos enquanto pessoas com menos rendimento não conseguem escapar ao crivo da administração tributária. Para muitos a prestação da comunicação social nesta matéria demonstra como uma cidadania atenta, próxima de uma imprensa com critérios sérios de jornalismo, pode fazer a diferença tanto a nível nacional como a nível global. 
Nesta época de globalização transacções podem ser feitas entre quaisquer pontos do globo e a qualquer momento. Redes de produção e distribuição são capazes de ligar uns a outros em poucas horas. Poupanças ou riquezas de diversas origens podem ser mobilizadas e reinvestidas em qualquer altura. Naturalmente que existem condições, derivadas em grande parte da natureza dos negócios, para se contornar as exigências feitas na abertura de contas, na movimentação de fundos de financiamento e nas transferências entre diferentes interesses. Na ausência de autoridades ao nível nacional e global devidamente preparadas para o combate a esse tipo de atropelos cabe à comunicação social um papel importante na identificação e rastreio de interesses escondidos. 
As democracias nos últimos anos têm estado sobre pressão, nalguns casos devido a uma crise de representação, noutros casos derivado de relações conflituantes entre os órgãos de poder político e ainda há casos criados pela percepção do que causou a actual situação caracterizada pela crescente desigualdade social. A crise financeira internacional veio confirmar aos olhos de muitos que o estado se entreteve de tal forma no salvamento dos bancos que descurou as dificuldades do cidadão comum e o deixou completamente à mercê dos capitalistas sem escrúpulos. Depois da crise, com as pessoas ainda a sofrer com os muitas vezes brutais cortes em salários e pensões, o espectáculo do sistema financeiro saído incólume e com ar de prosperidade tem deixado as pessoas furiosas. Quando denúncias são feitas de que realmente há pessoas a abusar do resto, acontecem manifestações como as da Islândia neste fim-de-semana, que efectivamente levaram o primeiro-ministro à demissão. E esse conhecimento só pode ser levado ao público se houver uma imprensa livre e com meios para proceder a uma investigação jornalista que vá até ao âmago das coisas. 
Há quem vaticine que as redes sociais poderão substituir os media tradicionais em manter a pressão sobre os poderes instituídos na sociedade. A força das redes sociais já foi verificada em movimentações como as da Primavera Árabe e outras como, por exemplo, de campanha eleitoral, como se viu nas últimas eleições legislativas. Mas ainda cabe aos media tradicionais, com o seu grupo de profissionais, o desempenho do papel de controlo sistemático das acções de poderes e interesses na sociedade. 
Em Cabo Verde pode ainda não se ter devidamente desenvolvido um jornalismo de investigação, mas já há sinais de que se caminha firmemente para aí. Com mais frequência já aparecem pessoas a colaborar enquanto fontes de informação sem que a motivação seja alguma vingança pessoal mas sim preocupação com algum bem comum ou na tentativa de evitar um desastre ou mal maior que afectaria todos. Também os jornais já estão a dar os primeiros passos no fact-checking, como se viu nas recentes eleições. Revelador do poder desta abordagem foi o desmentido que este jornal conseguiu da União Europeia em relação à afirmação de um candidato a deputado em S. Vicente a propósito do financiamento de um porto de águas profundas nessa ilha. 
Com tudo isto em mente, o Expresso das Ilhas saúda o esforço do CIJI na preparação dos Panama Papers como um exemplo de jornalismo de investigação e da liberdade de imprensa,  indispensável para a democracia neste mundo globalizado.

       Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 6 de Abril de 2016

quinta-feira, abril 07, 2016

Segurança. Polícias. Partilha de informações

Um dos aspectos que mais chamou a atenção nos ataques terroristas na Bélgica foi que provavelmente eram evitáveis se houvesse maior partilha de informações entre as polícias e maior coordenação das forças de segurança. A natureza das ameaças com que as democracias se deparam hoje exige uma actuação superior, mais inteligente, mais compreensiva e mais eficaz dos vários componentes do sistema de segurança. Deve-se, porém, ter sempre em atenção que se é verdade que não há exercício de liberdade sem segurança, também não é com derivas securitárias que alienam as comunidades e alimentam uma cultura de ressentimento e de vitimização que se devolve às pessoas a possibilidade de se sentirem livres e seguras no seu dia-a-dia. Em Cabo Verde também o sentimento de insegurança traduzido nos tristemente célebres “caçubodies”, que já vêm de muitos anos, trouxe à tona a inevitável tensão entre a liberdade e a segurança. A reacção das autoridades, seguindo a abordagem chamada de tolerância zero adoptada em vários países, não teve os resultados esperados ou prometidos. A insegurança persiste. Tem-se, entretanto, uma polícia mais militarizada, mas não necessariamente mais eficaz. O policiamento de proximidade que supostamente devia acompanhar a implementação da política de tolerância zero e ser instrumental na ligação com as comunidades não aconteceu. São falhas bastante debatidas no parlamento e na imprensa e reconhecidas mesmo em documentos oficiais, designadamente no Plano Estratégico de Segurança de 2014. Dentro da instituição policial e em vários sectores de segurança reconhece-se o problema, mas até agora não houve acção consequente capaz de restaurar ao cidadão comum a tranquilidade que almeja ter quando faz o seu footing, sai para a noite ou chega à porta da sua casa. Num “post” no Facebook o comandante da Polícia Nacional em S. Vicente, Alcides da Luz, deixa claro as suas apreensões: “A prevenção e o combate à criminalidade não se fazem priorizando em absoluto acções repressivas/reactivas, vigilância física através de patrulhamento auto e apeado (passear do auto e de farda)”. E faz sugestões: “A implementação plena do Policiamento de Proximidade vem, entre outras coisas, aproximar cada vez mais o polícia e o cidadão através do contacto, diálogo e interacção permanentes. Vem permitir que os cidadãos participem na Ordem e Segurança dos seus Bairros, nas zonas distantes dos centros urbanos.” Tal como já se conhece de outras críticas ao funcionamento do sistema e segurança, ainda chama a atenção para “a insistência em não trabalhar, partilhar e articular informações entre os serviços policiais”. Esta última preocupação tem implicações que vão para além da resposta à pequena criminalidade ou à necessidade de se garantir ordem e tranquilidade em todas as cidades e vilas de Cabo Verde. As ameaças que podem vir dos diferentes tráficos, do crime organizado e do terrorismo só podem ser confrontadas tendo as forças nacionais e os serviços de inteligências articulados entre si e com organizações congéneres estrangeiras. Se para países como a Bélgica é urgente ultrapassar empecilhos ao funcionamento eficaz das forças de segurança, com mais razão aqui, com os parcos recursos, há que ser efectivo em tudo o que respeita à segurança, seja na guarda dos nossos mares e recursos marinhos, no combate ao crime ou em assegurar tranquilidade às pessoas. Para isso o novo governo terá que agir decididamente para ultrapassar dificuldades e resistências institucionais diversas entre as quais as há muito identificadas e relembradas agora. É preciso nunca esquecer que Segurança é de importância estratégica fundamental para o desenvolvimento do país.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 749 de 06 de Abril de 2016.

quarta-feira, abril 06, 2016

“Due process”


Num artigo no jornal A Nação, o advogado Dr. Mário Jorge Menezes justificou a intervenção do Presidente da República logo após as eleições legislativas, primeiro, na audição dos líderes partidários e subsequentemente nos dois encontros da semana passada com o Dr. Ulisses Correia e Silva, como forma de contribuir para a redução do processo preliminar para a formação do governo. Bom, para além do facto de todo o país ficar a saber quem são as personalidades que UCS, no momento próprio, vai propor ao PR para serem nomeadas membros do seu governo, não é claro que se tenha ganho mais alguma vantagem. Se não vejamos: os resultados das eleições foram publicados no dia 31 de Março. A partir daí os prazos constitucionais para o início da legislatura e para a constituição do governo activaram-se. No dia 20 de Abril reúne-se a nova Assembleia Nacional com os deputados eleitos. Na sequência, o actual governo demite-se e entra em gestão até que o Presidente da República exonere o primeiro-ministro cessante e de seguida nomeie um novo PM e um novo Governo. Depois, para o novo Governo assumir plenos poderes deverá apresentar o seu programa ao Parlamento e conseguir dele a aprovação de uma moção de confiança por uma maioria absoluta dos deputados. Terá quinze dias para isso e a Assembleia Nacional outros quinze para o apreciar e votar a moção de confiança. Encurtar estes prazos numa perspectiva de celeridade não é fácil e talvez não seja nem útil nem conveniente para o normal funcionamento das instituições como se constatou em 2001 quando o governo do MpD pediu demissão logo após ter perdido as eleições. Por outro lado, as eleições deram maioria absoluta ao MpD e não há dúvidas de quem deve formar governo. Não havendo necessidade de coligações pós-eleitorais para garantir estabilidade governativa não são precisas negociações demoradas entre as forças políticas que poderiam justificar uma intervenção mais apressada do PR para as acautelar. Nem se põe o problema de o país estar a realizar eleições após uma crise política com demissão do governo e dissolução do parlamento, como amiúde acontece noutras democracias, porque as realizadas a 20 de Março são de fim de legislatura. Recorrendo ao constitucionalista Gomes Canotilho, citado pelo Dr. Menezes, que diz “antes da nomeação do PM há o convite presidencial para o cargo e a sua indigitação para formar governo, sendo nessa qualidade que ele efectua as diligências necessárias, as quais decorrem com o Governo demitido em funções de gestão”, vê-se que fica problemática uma intervenção do PR enquanto a Legislatura não terminar e o governo ainda formalmente se encontrar em pleno uso dos seus poderes. Não é por acaso que da Presidência da República não tenha vindo qualquer comunicação oficial dos resultados dos encontros entre o PR e Ulisses Correia e Silva. Por outro lado, é de reconhecer que os prazos parecem longos e também que o facto de o partido no governo ter perdido as eleições e continuar a exercer como se nada  tivesse passado pode criar alguma tensão que importa dissipar. Mas que se faça isso de forma efectiva e sem criar ruídos no sistema.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 751 de 06 de Abril de 2016.

sexta-feira, abril 01, 2016

Herança escorregadia

José Maria Neves ao felicitar Ulisses Coreia e Silva pela vitória do MpD fez questão de fixar qual a herança que deixava ao próximo governo. Citado pela Inforpress, disse que nos quinze anos foram lançadas “as bases e os alicerces para uma economia inovadora e competitiva, geradora de crescimento, de empregos e de trabalho decente, enfim de desenvolvimento sustentável”. Mas será que é assim mesmo? Compreende-se que quisesse já preparar o quadro para a oposição futura do seu partido exigir ao governo de UCS resultados expressivos no curtíssimo prazo. A realidade porém é que as opções de governação do Paicv já demonstraram falhar em produzir resultados. Ano após ano, na lei do Orçamento do Estado, faziam-se previsões de crescimento económico de 3,5, 4 e até 5% do PIB. Nos últimos sete anos o que se constatou foi uma taxa média de 1,3% do PIB. Dos dados do emprego publicados apenas se registou uma queda de 1% de desemprego em dois anos (2012-2014) acompanhado de aumento significativo de inactivos. O crescimento do rendimento per capita passou a negativo com a economia a crescer 0,8% e 1% do PIB. É de se perguntar: “Onde está a herança que JMN quer legar à posteridade”? Os resultados das eleições de 20 de Março foram o que já se sabe porque certamente uma boa parte do eleitorado deixou de acreditar que os resultados estavam ao virar da esquina como lhes garantia o governo do Paicv. A retoma mais uma vez de promessas de portos de águas profundas e de economias verde ou azul só piorou a situação. De facto, não é por se ter investido neste ou naquele projecto ou construído algumas infraestruturas que se põe o país no caminho do desenvolvimento sustentável. Se são medidas muitas vezes avulsas e custosas com prioridades trocadas e que não se articulam como peças de um plano estratégico, não se pode esperar que do trabalho feito resulte uma economia competitiva, com um bom ambiente de negócios, capaz de atrair investimento privado nacional e estrangeiro e de criar empregos em sectores dinâmicos de exportação de bens e serviços. Quem perdeu as eleições devia ser capaz de reconhecer que a actual estagnação da economia deve-se a políticas erradas e a opções de governação que não tiveram em devida perspectiva nem a realidade do país nem a situação actual do mundo. Quando é evidente  que o país se encontra numa encruzilhada difícil, faz parte do papel de uma oposição leal contribuir com as suas críticas para a compreensão da situação real que o país vive, deixando de lado truques de ilusionismo na política. Cabo Verde já se endividou, já perdeu oportunidades e já está atrasado na adopção da atitude certa para fazer o desenvolvimento sustentável. Por demasiado tempo deixou-se levar pelo canto de sereia dos que, parafraseando o político americano Mario Cuomo, fazem campanha em poesia e esquecem que a governação faz-se em prosa com resultados directamente nas pessoas, nos seus rendimentos, na sua qualidade de vida e nas suas expectativas de futuro.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 748 de 30 de Março de 2016.

quinta-feira, março 31, 2016

Encruzilhadas

Não é só Cabo Verde que precisa mudar a forma de fazer as coisas e de mover a sua economia. Como aqui, um pouco por toda a parte, se sente a necessidade de uma reorientação para responder aos desafios de hoje, de fazer as reformas tantas vezes adiadas e de ir para além de visões já gastas e ser capaz de agarrar novas oportunidades. Saber como e quando mudar é fundamental. Muitas dificuldades que o Brasil vive actualmente é porque, segundo muitos observadores, não aproveitou o tempo das vacas gordas para fazer as reformas que hoje daria sustentabilidade à nova classe média que o governo de Lula ajudou a criar há poucos anos atrás. O crescimento da China caiu dos dois dígitos para 6% ao ano enquanto procura reestruturar a sua economia, dinamizar a procura interna e ficar menos dependente das exportações. A quebra na procura global que isso já provocou ajudou na queda do petróleo com todas as consequências ao nível económico e da geopolítica. Países como a Nigéria, Angola, Rússia,  Turquia, Irão, Arábia Saudita, Venezuela têm de se reorientar, procurar diversificar a economia e eliminar muita da ineficiência que lhes rouba dinâmica interna, os torna pouco competitivos e os expõe facilmente a choques externos. O mesmo acontece com vários países que prosperaram com a subida de preços das commodities e agora vêem-se aflitos com pesada dívida pública e privada. No caso de Cabo Verde, as dificuldades vêem de longe, mas os avisos de partidos da oposição e de vários sectores da opinião pública não foram levados em devida conta pelo governo do PAICV. Quem também avisou foi o Dr. Carlos Burgo, ex-Governador do Banco Central. Em artigos de opinião neste jornal, chamou a atenção um para um conjunto de questões, nomeadamente: a diminuição do potencial de crescimento, a falta de eficiência e diversificação da economia cabo-verdiana, a falta de arrojo e de conhecimento em lidar com o turismo, o avolumar da dívida pública que já degradou o quadro macroeconómico e o fraco crescimento que põe em causa a sustentabilidade da dívida. Alertou também entre muitas outras coisas para não ficarmos entretidos com a narrativa que os nossos problemas se devem à crise na zona euro e ´foi peremptório em dizer que “é claramente um equívoco pensar-se que esses obstáculos (por detrás da estagnação do crédito) podem ser ultrapassados pela via da política monetária”. O resultado das eleições legislativas sugere que na generalidade do eleitorado há percepção de que o país, de facto, está numa encruzilhada e tem que mudar de rumo. Não pode continuar a se deixar ofuscar nem iludir com narrativas de blindagem, da crise que é causa dos nossos males e com bazofarias que Cabo Verde tem uma boa governação que faz inveja. O sucesso da nova governação vai depender em muito da capacidade em manter mobilizada a vontade nacional para mudança. Para isso é fundamental que seja trazido a debate público os reais problemas do país e se ponha na devida perspectiva as reformas que terão que ser feitas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 748 de 30 de Março de 2016.

Pela dignidade da mulher

A dimensão do espaço de realização pessoal que a mulher tem numa determinada sociedade é quase universalmente considerado um indicador do nível civilizacional. Cada vez mais vêem-se mulheres nas mais diferentes posições em todas as esferas da vida designadamente política, económica, social, intelectual e cultural e até militar em teatro de guerra. Progressivamente nada parece ficar fora e antigos espaços ciosamente reservados aos homens  acabam por ceder não obstante resistências localizadas.
Em Cabo Verde aparentemente não há qualquer espaço restrito. Ninguém torce o nariz à partida perante a possibilidade de uma mulher ocupar qualquer cargo público ou privado. Também não se sente qualquer urgência em se atingir cotas na presença feminina em órgãos colectivos. Revelador neste aspecto é o facto que mesmo com uma mulher na liderança de um partido político não se alterou grandemente a presença de mulheres na Assembleia Nacional. Ficou-se pelos 23,6% do total dos deputados. No governo a ocupação de cargos começou em 1991 e mais de vinte anos depois chegou a atingir os 50% dos ministros. No poder judicial, têm lugar destacado em todas as instâncias e desde de 2015 é uma magistrada que preside o Supremo Tribunal de Justiça.
A mobilidade das mulheres e a praticamente nula resistência à sua ascensão e ocupação de qualquer posição pública ou privada não significa que desapareceram as tensões  e violências físicas e psicológicas que infelizmente muitas vezes acompanham as relações entre homens e mulheres. A implementação da legislação sobre a violência de base no género trouxe à consciência pública muita da violência e da humilhação que não poucas vezes familiares, vizinhos e a sociedade em geral fingiam ignorar com consequências trágicas para os envolvidos e para os filhos. E como este jornal já teve oportunidade de documentar não é uma violência que fica pelos casais de adultos com uma vida em comum mas se manifesta também nas relações de namoro entre adolescentes e jovens adultos. O sentido de posse e os ciúmes que o acompanham são os ingredientes comuns, mas potentes, de desavenças que no ambiente pequeno das ilhas e na vida precária da uma boa parte da população urbana e rural  podem facilmente evoluir para situações extremas de agressão.
A pobreza é, de facto, o maior inimigo da mulher. A precariedade da existência põe um especial peso sobre o dia-a-dia da mulher e é extremamente limitativo do que pode almejar conseguir para escapar a um destino de uma vida de pobreza. Principal provedor dos cuidados para toda a família, é obrigada a sacrificar-se em tarefas domésticas e na busca de rendimentos para compensar a falta de recursos. E nesta luta pela sobrevivência não poucas vezes carregada de filhos vê fugir-lhe os sonhos e a saúde. A grande compensação é quando perante o sucesso do filho ou da filha sente que o esforço se justificou. Pelo contrário, imagine-se o desespero que a invade quando percebe que foram atraídos pela vida dos gangs ou outros marginais e um dia chega a notícia que foram presos, feridos ou assassinados.
A luta pela dignidade da mulher passa pela luta contra a pobreza que efectivamente diminui a dependência das pessoas e a coloca no caminho da inclusão social e económica. É também uma luta que a deve libertar da condição de propriedade de alguém seja do pai, do irmão ou do marido. Muita tragédia vivida por mulheres em certos países é justificada com a necessidade de recuperação da honra perdida por familiares e maridos.
Em várias zonas de fractura no mundo, que hoje por causa das viagens e das migrações já não só dividem estados ou regiões mas também comunidades e até ruas e vizinhos, disputas à volta da condição da mulher são motivo de violência extremada, intolerância e de resistência à modernidade. A resposta a tudo isso deve ser a continuação do esforço colectivo de reafirmar no dia-a-dia a nossa humanidade comum e a vontade inquebrantável de garantir a todos o seu direito à felicidade. Ao governo exige-se que focalize as suas acções de luta contra a pobreza e inclusão da mulher como forma de conseguir maior eficácia na utilização dos recursos públicos e de a libertar dos constrangimentos que limitam a sua realização pessoal em todos os domínios. Toda a sociedade ganhará com isso. 
       Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 30 de Março de 2016

quarta-feira, março 30, 2016

UCID precisa ser grupo parlamentar


A UCID regressa outra vez à Assembleia Nacional mas ainda não pode constituir um grupo parlamentar. Só conseguiu fazer eleger três deputados e a Constituição da República impõe um mínimo de cinco. Na revisão constitucional de 2010 perdeu-se uma oportunidade de rever uma norma que claramente põe em desvantagem no parlamento um partido político que nas recentes eleições conseguiu angariar 15.530 votos. O facto de não se constituir em grupo parlamentar retira vários poderes à UCID, entre os quais, a possibilidade de requerer comissões de inquérito, apresentar moção de censura ao governo, propor debates parlamentares e ser informado directamente pelo governo sobre o andamento de assuntos de interesse público. Vários constitucionalistas são de opinião que não faz muito sentido a exigência de um certo número de deputados para a constituição de um grupo parlamentar. Segundo eles, o grupo parlamentar é a expressão parlamentar dos partidos com representação parlamentar. Como só partidos podem apresentar candidaturas à Assembleia Nacional os eleitos independentemente do seu número devem poder integrar um grupo parlamentar que represente o seu partido. Isso hoje parece evidente para todos. Em 2010, no meu projecto de de revisão constitucional, abri a possibilidade de revisão da actual norma que impõe o número de cinco. O outro projecto de revisão, também de deputados do MpD, foi na mesma linha mas os deputados do PAICV não viabilizaram a alteração. Espera-se que na próxima revisão se consiga o consenso geral para ultrapassar um constrangimento constitucional que, de facto, faz da UCID um partido menor na Assembleia Nacional. Não é justo e não é democrático.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 748 de 30 de Março de 2016.

sábado, março 26, 2016

Electra, AEB SA, Boa Vista

Há duas semanas o governo de José Maria Neves enviou ao Presidente da República um decreto-lei que autorizava a Electra a contrair uma dívida de 1 milhão e 375 mil euros junto à Caixa Económica para comprar acções do Grupo Bucan na empresa Águas e Energia da Bahia (AEB). O PR devolveu o diploma porque considerou que a matéria cabia dentro da competência administrativa do governo e que a questão deveria ser resolvida com uma resolução do governo como veio a verificar-se no BO de 17 de Março último. É de se perguntar porém se o governo desconhecia isso ou se simplesmente usou um expediente que bem-sucedido faria o PR compartilhar a responsabilidade na autorização do aval do empréstimo da Electra à Caixa Económica e do negócio de compra de metade das acções detidas pelo Grupo Bucan pelo valor de 1 milhão de euros. Facto é que a devolução do documento não serviu para uma reponderação da questão pois logo de seguida o governo enviou-o para a publicação na forma de resolução. A questão da AEB e a ELECTRA na Boa Vista já tinha sido matéria de um post de Agosto de 2010 neste jornal sob o título “Ossos para Electra?” e continuava: O governou já concretizou a entrega da produção e distribuição de energia e água da Boa Vista a uma empresa privada até 2035. As razões para isso não são claras. O acordo com a empresa Águas e Energia da Boa Vista SA é de 2008, quando estava em vias de entrar em funcionamento o hotel Riu Karamboa, um grande consumidor de energia e um pagador certo. Dá-se mais um passo no acordo, no momento em que já se iniciou a construção de um hotel com mais de 2000 camas na zona de Santa Mónica, que também vai ser um grande cliente de energia e água. A questão que deixa a todos intrigados é porque é o governo impede a Electra de aproveitar o mercado de electricidade e água da Boa Vista, em franca expansão, a favor de uma outra empresa. Qual a lógica do governo em sobrecarregar a Electra com a electrificação rural, politicamente motivada e que pouco consumo e retorno gera, e não permite à empresa aproveitar-se de um “bife de lombo” quando tal se proporciona? Como é que a Electra poderá manter uma tarifa nacional de energia e água se é retirada dos mercados de forte expansão do consumo, ao mesmo tempo que é obrigada a suportar as zonas de baixo consumo? Cinco anos depois há uma inversão da marcha. O governo no preâmbulo da resolução reconhece que “verificou-se uma deficiente qualidade de serviço de electricidade e água prestada à população da ilha da Boa Vista, com clara violação dos objectivos propostos com a celebração do contrato de subconcessão”. Também o governo constata que “não se realizaram investimentos necessários e contratualizados nas redes de electricidade e água, tendo a AEB realizado apenas pequenos investimentos de socorro resultando disso cortes frequentes e permanentes bem como o não fornecimento de electricidade e água a algumas localidades”. Apesar destas constatações o governo, via Electra e Sociedade de Desenvolvimento da Boa Vista, está disposto a dar dois milhões de euros pelas acções do Grupo Bucan. Não ficando-se por aí, ainda vai amortizar o crédito do Bucan sobre a AEB no valor 6 milhões de euros que se supõe tenha sido contraído quando o Bucan tinha a gestão da AEB em regime de exclusividade. Para isso a Electra vai já avançar com 375 mil dólares e como não tem dinheiro terá que contrair uma dívida com o aval do Estado junto à Caixa Económica num total de 1 milhão e 375 mil euros. Pelo documento não se fica a saber se houve algum estudo prévio e quem realmente vai beneficiar nestas transacções. Só se sabe que a Boa Vista e a suas gentes até agora pouco beneficiaram desses arranjos dos últimos cinco anos.  

sexta-feira, março 25, 2016

Exportações

Os dados do comércio externo do INE dão pistas de como rapidamente se pode criar emprego. É clarinha a relação entre o aumento das exportações de conservas de peixe e o crescimento do número de postos de trabalho na Frescomar. O mesmo fenómeno de criação rápida e numerosa de postos de trabalho nota-se na Boa Vista e no Sal com o turismo que também é uma forma de resposta a uma procura externa. Já limitativo em termos de dinâmica de criação de postos de trabalho é a via de satisfação de uma procura interna em expansão no estilo ultimamente muito na “moda” do “pastel e canja” e outras actividades informais. Mesmo romantizadas por sectores elitistas da sociedade cabo-verdiana, sabe-se logo à partida que são de baixa produtividade, não conseguem beneficiar de economias de escala e o mercado nacional para os seus produtos é por si próprio microscópico, fragmentado e pouco elástico. Quanto ainda às exportações não deixa de chamar a atenção o facto do grosso das exportações serem de um produto, conservas de peixe, para um único país, a Espanha, e por uma única empresa, a Frescomar Ubago. Inquieta ainda saber que o acesso ao mercado espanhol beneficia de isenções de direitos do programa  GSP+ e que esse quadro preferencial que torna os produtivos mais competitivos pode não durar. Talvez para aliciar os empresários espanhóis o governo facilitou-lhes o controlo dos dois centros de frio e armazenagem de peixe em S.Vicente e um outro no Sal. O problema é se com isso não abriram o caminho para se ter uma empresa dominante no sector importante das pescas capaz de impor as suas regras aos outros operadores e controlar preços.

Novos valores, novo modelo, nova largada

É consenso geral que com a vitória do MpD nas legislativas de 20 Março se fechou um ciclo político em Cabo Verde. A percepção de que se estava em fim do ciclo generalizou-se com uma rapidez estonteante nos últimos meses, em particular nas duas semanas de campanha eleitoral. As problemáticas do emprego, do baixo crescimento da economia e da insegurança dominaram os discursos dos políticos e queixas dos cidadãos.
A confiança no governo do PAICV deteriorou-se rapidamente com a vinda a público de casos de gestão deficiente da coisa pública. Chamaram particularmente a atenção a persistência na má-gestão da situação das pessoas deslocadas de Chã das Caldeiras e também da transportadora aérea nacional, a TACV. Apesar das queixas, denúncias e reclamações, os respectivos gestores continuavam de pedra e cal e os decisores políticos mostravam-se completamente impotentes, enquanto como no caso da TACV vinham a público revelações que punham a nu a situação quase catastrófica vivida na empresa. Também teve impacto na confiança o pronto desmentido da União Europeia noticiado por este jornal quanto ao financiamento do porto de águas profundas feito na campanha eleitoral do Paicv em S.Vicente. As pessoas podem muitas vezes deixar-se levar por euforias e promessas, mas reagem negativa e vigorosamente a falsidades comprovadas.
A vontade de mudança do povo pôde exprimir-se nas eleições de domingo passado com consequência, ou seja, resultando num governo de outro partido porque a sociedade soube produzir e manter ao longo de todos estes anos uma alternativa de governo não obstante as três maiorias absolutas desde de 2001. E quando insistem na alternância do poder não significa que queiram simplesmente entregar o poder a outras personalidades para fazer mais do mesmo. Vivemos em sociedades plurais e o pluralismo na sociedade  manifesta-se nos entendimentos diferentes dos problemas e prioridades do país, nas soluções e estratégias distintas para se atingir os objectivos preconizados e na atitude mais adequada aos desafios da sociedade e da modernidade. E foram com esses pressupostos que as eleições foram decididas. 
O eleitorado chegou no fim destas eleições com expectativas altas quanto à capacidade da nova liderança do país em resolver os problemas graves vividos por todos os cabo-verdianos particularmente os mais pobres. Infelizmente a consciência das dificuldades a ultrapassar já não é tão forte e profunda. Tensões terão que ser ultrapassadas e um esforço dirigido terá que ser feito para se mudar o paradigma de viver das transferências do estrangeiro, de emigrantes e da ajuda externa. O modelo já deu tudo o que tinha a  dar. Não é à toa que nos últimos anos, mesmo após milhões de contos de investimento público, o crescimento económico continua raso e não se criam suficientes postos de trabalho para debelar o desemprego.
Cabo Verde precisa ultrapassar o modelo de gestão de ajudas que tende a induzir comportamentos contrários aos necessários para o desenvolvimento. Quando se vive da renda, há sempre uns no topo da pirâmide que tomam mais, a cooperação entre as pessoas não tem ambiente para se desenvolver e frutificar, confiança entre as pessoas  custa a criar e a manter e a tendência é todos procurarem um lugar de conforto junto ao Estado. Mas a história dos processos de desenvolvimento mostra que as riquezas das nações não são criadas directamente pelos governos. Gera-se riqueza com trabalho, ambição e espírito empreendedor dos homens e mulheres quando encontram o ambiente próprio para darem vazas aos seus sonhos e lançarem-se na tarefa de construírem a prosperidade para si próprios e para as suas famílias.
O que se precisa é de um governo que crie o ambiente certo para se realizarem. Um governo que aposte em dar autonomia às pessoas, que promova a meritocracia na sociedade, ponha o estado ao serviço dos cidadãos e ajude a construir a confiança necessária para as pessoas se sentirem seguras e livres para construírem a sua felicidade. Depois de anos sob a batuta de um Estado visto como arrecador/distribuídor e cujos resultados são medíocres é tempo para liberdade, para empreender, para criar e viver com dignidade. Que o novo ciclo político seja de uma nova largada para Cabo Verde e para todos os caboverdianos.
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 23 de Março de 2016

quinta-feira, março 24, 2016

Défice, dívida, emprego

Um relatório provisório do Ministério das Finanças põe a dívida pública em 121,5% do PIB, sendo 92,9% dívida externa e 28,2% dívida interna. O Estado pagou em 2015 o valor de 110 milhões de euros em juros e amortização do capital para servir a dívida externa. 22 milhões de euros  foram pagos no serviço da dívida interna. Entretanto o país não cresce, os riscos macroeconómicos aumentam porque a sustentabilidade da dívida é progressivamente posta em causa e o financiamento da economia pela via do investimento privado fica mais difícil. A nível nacional os bancos mostram-se relutantes em conceder crédito e quanto ao investimento directo estrangeiro escasseia perante a persistente falta de competitividade da economia nacional e o aprofundamento do risco soberano. Afinal a dívida não é virtuosa como vinham propalando os governantes. Não fez crescer o país, não criou emprego e é cada vez mais um fardo para todos os cabo-verdianos. Os resultados obtidos ficaram aquém do prometido entre outras razões porque ouve não preocupação suficiente com a relação custo/benefício das obras, os investimentos não foram encadeados seguindo um plano estratégico e prioridades político-eleitoralistas sobrepuseram-se a questões práticas como oportunidade, efeito de arrastamento sobre o resto da economia e criação de emprego. Assim apesar das obras nos portos, aeroportos e das muitas estradas asfaltadas mantêm-se a fragilidade e a imprevisibilidade e os custos elevados das ligações inter-ilhas. Nas ilhas, salvo raras excepções, não houve ganhos significativos em termos de segurança, rapidez e facilidade de tráfego apesar dos muitos milhões gastos nas redes de estradas porque se optou por seguir o traçado existente desde há décadas. Mesmo em sectores como educação e formação profissional sente-se o desperdício de recursos públicos e do rendimento das famílias sem falar nas expectativas goradas de quem vai à escola e à universidade. Realmente a existência de um número elevado de jovens com escolaridade ao nível do secundário, treino profissional e formação superior sem trabalho evidencia alguma inadequação do sistema em propiciar-lhes competências competitivas no mercado de trabalho e em ser um factor de atracção do investimento privado. Da mesma forma a ineficiência dos investimentos nos sistemas de energia e água é por todos paga em tarifas altíssimas que desincentivam investimentos e constituem um custo excessivo para as empresas existentes e um peso no bolso das famílias. Por tudo isso o optimismo em relação ao futuro de criação de emprego recentemente manifestado pelo primeiro-ministro em declarações à imprensa não passa de mera ilusão. Já se sabe que continuar a fazer o mesmo não vai dar em nada de significativamente diferente. E não é uma questão de gestão mais ou menos competente do que actualmente existe. Não há mais por onde ir ou por esticar neste modelo de gestão da economia de Cabo Verde que se procurou mudar nos anos noventa mas que o governo de José Maria Neves resgatou e repôs com uma “vingança” como diriam os americanos. Não é por acaso que outra vez após quinze anos de governo do PAICV a economia está praticamente estagnada. Aconteceu o mesmo nos fins dos anos oitenta.

Salários dos políticos

Em tempos eleitorais um ingrediente que não falta é a pulsão populista e demagógica. A exemplo do que se passa em muitos outras democracias também em Cabo Verde os alvos preferidos são os partidos e os políticos. Só que aqui a tradição de alguns se posicionarem contra os partidos e acima dos políticos vem de muito longe. Já no regime de Salazar/Caetano era assim e foi aprofundado no regime do PAIGC/PAICV. Partidos únicos não vêem utilidade na existência de outros partidos e os seus dirigentes consideram-se parte de uma “pequena burguesia que se suicidou como classe”. Tomam os outros políticos como gente interesseira e eles próprios como impoluta. A revisão do estatuto dos políticos, em especial do estatuto remuneratório que data de 1997, foi uma oportunidade a não desperdiçar. E pelo que se ouviu no debate entre os líderes do MpD e do PAICV há ainda quem pense que o assunto possa mobilizar mais paixões e exaltar ainda mais a figura do político “com uma missão”. Para esses, a questão fundamental da coerência do sistema remuneratório do Estado passa completamente ao lado e não se confronta com a realidade de que há dirigentes da administração pública do grupo VI com vencimento inferior em menos de mil escudos ao vencimento do Primeiro-ministro e do presidente da Assembleia Nacional. Outros dirigentes do grupo V têm vencimentos superiores a ministros, deputados e presidentes das câmaras municipais. Com o passar dos anos o problema tende a agravar-se à medida que se fazem actualizações.  Em 2006 o governo do PAICV propôs um ajuste de 20% sobre as remunerações dos políticos para o ultrapassar mas o MpD votou contra. O impasse actual do bloqueio dos estatutos em 2015 não pode, porém, continuar. Quem não quiser fazer os ajustamentos que se impõem, deve pelo menos procurar ser coerente e arcar com as consequências políticas de cumprir o que JMN prometeu: ninguém na administração pública deve ter salários superiores ao primeiro-ministro. Em 1975 o governo de então decretou um vencimento máximo de quinze mil escudos para o presidente da república. Todos os outros salários foram reajustados por essa bitola. Coerência e coragem política precisam-se.

quarta-feira, março 23, 2016

Democracia é também procedimental

Um dos momentos marcantes dos regimes democráticos é o da alternância de poder. Relembra que o poder não é eterno e sendo precedido de eleições livres, justas e plurais vinca o princípio segundo o qual o exercício do poder só se legitima porque resulta do consentimento dos governados. Compreende-se, por exemplo, porque a investidura de um novo presidente dos Estados Unidos de quatro em quatro anos é um acontecimento de maior importância. O ritual de mais de 200 anos é seguido à risca na presença e com a participação de todos os poderes legislativo e judicial e da sociedade civil americana. Em outras democracias, talvez sem a mesma pompa, a passagem do poder é também um marco fechando e abrindo ciclos políticos. Em Cabo Verde ainda parece qua não assentamos completamente em como levar sem falhas, dúvidas ou precipitações o processo de transferência de poder. As eleições legislativas aconteceram no domingo, dia de 20 Março, e já o presidente da república em nota no Facebook anuncia : “Na quarta-feira de manhã contactarei todas as forças políticas com assento na Assembleia Nacional para, nos termos constitucionais (art.ºs 135.º, n.º1, i) e 194.º, n.º1), vir a proceder à nomeação do Primeiro Ministro, seguindo-se a nomeação dos restantes membros do Governo, sob proposta do Primeiro Ministro”. Qual é a pressa? Parece claro, à luz da Constituição,  como se deve proceder após as eleições: depois dos resultados eleitorais confirmados, há um edital da Comissão Nacional de Eleições publicado no Boletim Oficial com os dados de todos os círculos e os nomes dos deputados eleitos. No vigésimo dia subsequente a nova Assembleia Nacional reúne-se na sua sessão constitutiva (art.153º) e nesse dia termina a legislatura e começa uma nova. Segue-se a demissão do governo (art.202º) que passa a governo de gestão (art.193º) até a tomada de posse do novo governo nomeado pelo PR. Depois da posse, o novo executivo, entretanto a funcionar como governo de gestão, tem 15 dias para apresentar o seu programa à Assembleia Nacional acompanhado de uma moção de confiança (art.197º). Aprovada a moção pela maioria absoluta dos deputados, o governo inicia o mandato com plenos poderes. Salvo melhor interpretação, este parece o mapa a ser sempre seguido após eleições legislativas, o início da uma nova legislatura e a tomada de posse de um novo governo. Quando há alternância o processo de transferência de poder não deve deixar margem para dúvidas. Infelizmente não foi o que aconteceu na 1ª alternância em 2001. Tivemos o insólito de um governo do MpD demitido dia 30 de Janeiro, 13 dias antes do fim da legislatura que seria a 12 de Fevereiro, o dia da sua demissão automática. Ao mesmo tempo fez-se o absurdo de nomear um novo chefe do governo do PAICV no dia 1 de Fevereiro, 12 dias antes do início da nova legislatura, ficando-lhe após isso três dias dos quinze do prazo que, sob pena de demissão, deveria apresentar o programa ao novo parlamento (art. 202º n.1 d). Os desencontros ou atropelos neste processo vieram a revelar-se de maior gravidade porque se verificaram a meio das eleições presidenciais de 2001 que deram vitória a Pedro Pires e que ficaram manchadas por crimes de fraude eleitoral punidos por prisão efectiva dos responsáveis. No momento da segunda alternância é de maior importância que a normalidade no  processo de transferência de poder fique institucionalizada de uma vez para sempre. Em todas as democracias é um sinal de maturidade atingida.  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 747 de 23 de Março de 2016.

segunda-feira, março 21, 2016

Comércio externo

A publicação do INE sobre os dados do comércio externo de Cabo Verde no ano 2015 mostra um panorama da economia de Cabo Verde a todos os títulos preocupante. O primeiro facto a constatar é que houve diminuição tanto das importações como das exportações, um índice que corrobora outros dados que levam a crer que a taxa de crescimento da economia nacional ainda vai ser mais baixa do que os 1,8% do PIB em 2014. Provavelmente vai ficar por 1% do PIB. Um outro aspecto é o défice comercial traduzido na percentagem das importações que são cobertas pelas exportações. Continua extremamente alto e revela o quanto tem falhado políticas de promoção das exportações, como se tem sido incapaz de atrair investimento externo para os sectores de bens transaccionáveis e como oportunidades de acesso preferencial a mercados designadamente o AGOA têm sido desperdiçadas. Também o facto de só 1,8% das importações virem da África e de 4,0% das exportações terem como destino países africanos dá conta do nível incipiente das relações comerciais regionais mesmo quando o país tem no governo durante quinze anos um intitulado partido africano (PAICV). Não obstante o magro resultado até agora da relação africana, todos os partidos parecem acreditar que com a dinamização da relação económica com a África serão criados muitos dos empregos prometidos. Ninguém explica o que agora se vai fazer de diferente.

sábado, março 19, 2016

Responsabilidade na governação

Ouvindo as declarações do Sr. Primeiro-ministro sobre a privatização dos portos e logo de seguida sobre a situação cada vez mais complicada da TACV a primeira pergunta que nos ocorre, é: estará o governo ainda em “estado de graça”? Só pode ser, considerando que ainda culpa o governo anterior e não se sente compelido a assumir que errou ou que as suas políticas falharam em produzir o resultado pretendido. Ninguém acreditaria que quem fala assim encontra-se no fim de mandato do seu terceiro governo consecutivo.
É consenso geral nas democracias que aos governos recém-empossados se dá um máximo de seis meses de graça. Passado esse tempo torna-se progressivamente mais difícil e aceitável que continue a recorrer ao governo anterior para se justificar. Insistir  nesse caminho inevitavelmente tem consequências na integridade e funcionalidade do sistema político. Negar que quem governa tem concomitantemente responsabilidade plena pelos actos de governação e por tudo o que respeita à colectividade nacional significa quebrar o vínculo fundamental entre os cidadãos e o governo que nas democracias legitima o exercício do poder: o princípio do livre consentimento dos governados.
Quando se entra no caminho de esquivas ou mesmo de fuga à responsabilidade começa-se logo  a agir de forma a que os cidadãos não tenham toda a informação, ou os meios para se expressarem livremente ou se sintam livres para se organizarem e questionarem políticas, prioridades, resultados e impacto dos actos do governo. Quer isso dizer que os recursos do Estado começam a ser utilizados para constranger os indivíduos no exercício dos seus direitos, mesmo que não tenha sido esse o plano original. Para evitar assumir responsabilidade, faz-se propaganda e, pelo caminho, coarcta-se a liberdade de expressão, a liberdade de informar e de ser informado. Acaba-se sempre por condicionar a liberdade de imprensa e a liberdade de reunião e de manifestação e também por esvaziar as pessoas da autonomia em relação ao Estado e torná-las mais dependentes e mais submissas. Viu-se tudo isso nos últimos quinze anos.
A funcionalidade de um sistema que se guia pelo princípio do contraditório perde-se se a responsabilidade não é assumida e se culpabiliza sistematicamente o governo anterior por resultados menos bons da governação. Confundem-se os papéis e a oposição que já foi poder é obrigada a defender-se em vez de se manter activa a questionar a acção governamental. O parlamento como instituição sofre com os papéis invertidos dos seus protagonistas e com a frustração provocada pela atitude das bancadas rivais e do próprio governo. A imagem externa da instituição fica negativamente afectada quando os debates não trazem nada de positivo, bloqueios em matérias chaves se mantêm por muito tempo e frustrações individuais ou de grupo são ventiladas em plenário.
Sem um processo permanente de responsabilização, as promessas eleitorais não têm qualquer significado. Se o governo armado com a sua maioria parlamentar e com todos os recursos do Estado pode deturpar a realidade e substituir resultados por ilusões não vai se sentir amarrado às promessas que fez durante a campanha. A percepção que assim é tende a alienar as pessoas da política, aumenta o cinismo em relação aos políticos e pode fazer do eleitorado uma presa fácil para o populismo e a demagogia.
Um outro custo das constantes fugas à responsabilização pelos actos da governação é a perda paulatina de eficiência e eficácia em tudo o que se faz. Como se recusa o contraditório também não se reconhecem as falhas, não se absorvem as sugestões para mudar de procedimentos ou de rumo e o mundo dos governantes reduz-se cada vez mais ao grupo de fiéis ficando de fora os críticos, os inovadores e os ousados. Não estranha pois que a retoma de crescimento todos os anos anunciada tarde em acontecer, assim como o desemprego custe a diminuir. A gestão das empresas públicas torna-se cada vez mais complicada com os custos a serem assumidos pelo Tesouro Público e os serviços esperados pelos utentes pecam em qualidade, fiabilidade e preço. Uma distância maior começa a separar o país de ilusões todos os dias reproduzidos pelos governantes das dificuldades vividas no país real. Não estranha que de repente se oiça do fundo desse país real o grito de mudança.
Em período de campanha para as eleições legislativas é fundamental que a par com as promessas eleitorais seja afirmada a vontade de governar com honestidade seguindo uma ética de responsabilidade. Não é de aceitar governo que queira ficar em estado de graça por cinco, dez ou quinze anos de graça.
            Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 9 de Março de 2016

sexta-feira, março 18, 2016

Alternância de Poder

Cabo Verde vai a eleições para a escolha do novo governo no dia 20 de Março. Vários partidos disputam os votos para a eleição de deputados à Assembleia Nacional. Felizmente que de entre eles há partidos que podem constituir alternativas de governo. A democracia estaria fragilizada se, em qualquer circunstância, mas particularmente após quinze de governo por um único partido, não houvesse partidos ou coligação de partidos que oferecessem a possibilidade de uma alternância credível do poder.
Quinze anos é muito tempo e naturalmente que a governação por uma única formação política durante três legislaturas seguidas tende a condicionar as instituições, a constranger opiniões e a criar clientelas próximas. Notam-se em maior ou menor grau fenómenos do género em qualquer sociedade mesmo em democracias avançadas como o Reino Unido após 15 anos do partido conservador ou do partido trabalhista e também em Portugal na sequência de duas maiorias absolutas seguidas. Com mais razão se evidenciam nas jovens democracias onde a sociedade civil é incipiente e a dependência do Estado é prevalecente. No caso de Cabo Verde os efeitos são mais pronunciados devido às notórias políticas assistencialistas, ao facto da propaganda se ter tornado num instrumento central da acção do governo e também se constatar a vontade explícita dos poderes públicos em cercear a autonomia de indivíduos, associações e municípios.
Não se ter chegado ao fim dos quinze com um partido hegemónico acompanhado de um conjunto de pequenos partidos satélites demonstra que a sociedade cabo-verdiana já deu provas de uma grande resiliência democrática.  Maiorias absolutas como não precisam da contribuição de outras forças para fazer leis e aprovar orçamentos do Estado tendem a minimizar a necessidade de compromisso e de negociações com outras forças políticas. Podem até a chegar ao ponto de querer apresentar a oposição com algo dispensável se não mesmo prejudicial para os interesses do país. O Parlamento nestas condições torna-se alvo a abater e na instituição a desprestigiar porque é a sede do contraditório e é a tribuna de onde se exige que contas sejam prestadas e responsabilidades assumidas. Sente-se que caminham para aí quando se ouvem acusações de que para a oposição quanto pior, melhor, ou que ela se se comporta como profeta da desgraça e que é antipatriótica. O que mais terrível pode acontecer ao sistema político é se por causa de desânimo, sentimento de impotência e derrotas sucessivas os partidos sucumbam à pressão e deixem de ser alternativa, enfraquecendo a democracia por não oferecer a possibilidade de alternância. 
Samuel Huntington, o cientista política autor da Terceira Vaga da Democracia, estabeleceu a dupla alternância no poder como teste de verificação se a democracia nos países que fizeram a transição democrática está de facto consolidada. Em Cabo Verde ainda não se verificou a dupla alternância. Contrariamente ao que alguns pensam, seguindo a teoria de Huntington, no 13 de Janeiro de 1991, só houve a transição de regime político e não uma alternância de poder dentro do sistema democrático. Enquanto isso não acontecer e enquanto não se normalizar que qualquer dos partidos pode estar no governo e depois ir para a oposição dificilmente vão desenvolver entre si os hábitos de compromisso e de negociações. Nem tão pouco vão sentir a necessidade de chegar a acordos tácitos no que tange ao comportamento enquanto actores políticos que contribua para valorizar as instituições e diminuir a crispação política.
Não se estranhe por isso que em vez de uma evolução que valorize o sistema de partidos haja de facto muita pressão para o pôr em causa pelas razões mais estapafúrdias. Explora-se bastante e por mais variadas razões o sentimento anti-partido.  Em Cabo Verde esse sentimento vem de longe. Desde logo, do salazarismo e depois foi refinado  nos quinze anos do regime de partido único. O facto de os dois grandes partidos conseguirem mobilizar multidões e serem vistos como agentes alternativos de poder em Cabo Verde revela o quanto, apesar de tudo, os partidos não foram realmente afectados pela hostilidade anti-partido.
A campanha para as eleições de Março deixa claro que para o eleitorado cabo-verdiano os partidos têm um papel central no processo de definição do futuro. Não faltam críticas à actuação dos partidos, mas a realidade é que ninguém se mostra na disposição de os dispensar e procurar conforto em políticas populistas e demagógicas. A percepção, de que nos sistemas parlamentares a responsabilidade para o melhor ou para pior pode e deve ser assacada aos partidos políticos, independentemente das lideranças conjunturais, conseguiu vingar. Por outro lado, reconhece-se que as relações de lealdade e também de confiança com o partido mantêm-se para além das mudanças na liderança e das vicissitudes eleitorais. A garantia de persistência do pluralismo na sociedade e no sistema político é fundamental para que se possa visionar o futuro com entusiamo e optimismo. Para isso a participação de todos os cabo-verdianos através do  voto no dia 20 de Março é de maior importância.
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 16 de Março de 2016