Em citações de várias personalidades há um convite par se ir para além das manifestações da crise e ver as oportunidades que se abrem no novo ambiente criado. Para o economista americano Paul Romer a “crise é uma coisa terrível de se desperdiçar”. Para John Kennedy “numa crise há que ter cuidado nos perigos mas também há que reconhecer a oportunidade”. A situação nas Forças Armadas, que na sequência do assassinato dos oito militares e três civis no Monte Tchota, levou à demissão do chefe de estado-maior qualifica-se como sendo de crise com profundas implicações no futuro das FA, mas também como uma oportunidade para melhor as posicionar no sistema de defesa e segurança de Cabo Verde.
No programa apresentado ao Parlamento, o novo Governo propõe organizar “as forças de defesa à volta da unidade de fuzileiros, uma unidade de engenharia militar e uma guarda nacional paramilitar dotada de acesso a meios marítimos e aéreos”. O problema com esta proposta é que tem sido na essência feita desde os anos 90 e nunca se concretizou. Alguma resistência institucional impediu que a Guarda Costeira ou a unidade aeronaval ocupasse a centralidade pretendida. As funções que a Guarda Costeira poderia ter no domínio da busca e salvamento nunca foram cabalmente assumidas. O policiamento das águas e das costas não se verificou com a eficácia desejável por falta de meios, mas também por não ter o estatuto de uma força de segurança e ser parte das Forças Armadas. O mesmo aconteceu no controlo das pescas nas águas de Cabo Verde.
Entretanto, o país tornou-se um ponto procurado por traficantes porque tem as costas desguarnecidas. Pescadores e população em geral preocupam-se com a depredação dos nossos mares, pesca excessiva do tubarão e falta de controlo geral dos acordos de pesca. Todos puderam constatar com dor a falta que faz ao país não ter um sistema eficaz de busca e salvamento que consiga chegar com rapidez a qualquer ilha em caso de acidentes no mar ou de qualquer emergência. Por outro lado, viu-se como a dispersão das competências da Autoridade Marítima por várias instituições que nem sempre sabem dialogar entre si e em tempo útil contribuiu para uma situação difícil na navegação marítima com consequências graves como o afundamento de navios e perdas de vida humana.
Impunha-se uma mudança de fundo que não se verificou. A Guarda Costeira continuou a ser filha do deus menor dentro das FA. A Polícia Marítima e a Polícia Fiscal passaram a integrar a Polícia Nacional num processo em que relatórios de segurança nacional publicados nos quais se constata falta de coordenação e de eficácia na acção das forças. Na Protecção Civil viram-se as dificuldades com que se debate na forma como funcionou na sequência da erupção do vulcão da Ilha do Fogo. A própria cooperação internacional é prejudicada porque não encontra interlocutores com estatutos, prioridades e objectivos bem definidos. É só ver as Forças Armadas a receber no mês de Fevereiro equipamento anti-tumulto da cooperação brasileira, quando o mais lógico seria ir para a polícia, até porque, de facto, precisavam de rádios para as comunicações como se veio a constatar no caso do massacre do Monte Tchota.
A crise actual deve ser analisada para se ter a compreensão dos problemas e suas origens e na sequência disso aproveitar para fazer as mudanças necessárias. Parece evidente que para termos uma Guarda Costeira adequada para o país ela deve ser retirada das Forças Armadas e poder crescer como instituição autónoma e cumprir as missões que o país dela espera. Os seus principais interlocutores em termos de cooperação, a Guardia Civil espanhola e a Guarda Costeira americana nenhuma delas pertence às Forças Armadas dos seus países. São forças de segurança com poderes de polícia. Certamente que facilitaria muito a cooperação se tivessem o mesmo estatuto.
A autoridade marítima do país poderia ser consolidada numa única instituição integrando a Guarda Costeira, Polícia Marítima, Capitania dos Portos, Instituto Marítimo e Portuário e até a futura escola do mar. Com isso talvez os nossos mares fiquem mais seguros, os nossos portos mais regulados, os navios melhor inspeccionados, os nossos oficiais e marinheiros melhor preparados, e os nossos mares e costas mais eficazmente policiadas. É preciso fazer da crise nas FA uma oportunidade para agir. O que se tem agora já provou tragicamente que não funciona.
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 8 de Junho de 2016