A eleição de Sadiq Khan para o cargo de presidente da câmara de Londres é dos tais acontecimentos que nos autoriza a invocar com Abraham Lincoln “os melhores anjos da nossa natureza” para manter viva a esperança num mundo melhor mesmo quando ultranacionalismos, guerras religiosas e terrorismo ameaçam a todos.
Um britânico de origem paquistanesa e assumidamente muçulmano foi eleito por mais de um milhão de londrinos para dirigir a sua cidade. De nada serviram as insinuações de que teria ligações a grupos islamitas e que a sua condição de filho de imigrante podia ser um factor de rejeição pela maioria da população de origem anglo-saxónica.
Ouviu-se ao longo da campanha o discurso demagógico e populista que se vem repetindo em vários pontos da Europa e tem feito crescer os partidos extremistas. Mas esse discurso do medo, da xenofobia e da intolerância que nesta época de crises – crise do euro, crise dos refugiados e terrorismo do Estado Islâmico - até parecia imparável, mas não teve o eco esperado. Prevaleceu o sentido de comunidade, a política como diálogo indispensável para a realização do bem comum e a democracia como expressão e suporte de autodeterminação.
O que aconteceu em Londres deve servir de referência a todos neste mundo globalizado. Prova que pessoas com origem, raça, cultura e religião diferentes podem conviver em comunidade desde que os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, a começar pelo primado da lei e a igualdade perante à lei, sejam aceites por todos. Não é um caminho fácil porque há ameaças sempre presentes, mas é o ó único que, preservando a liberdade, abre a todos a possibilidade de uma vida digna sem o medo constante de sucumbir perante ódios, os mais diversos.
A eleição de Sadiq Khan contrasta com os sinais negativos que vêm de outros lados. Do Brasil vêem-se tentativas de desconstrução da democracia no esforço de derrubar a Presidente Dilma Rousseff. Na Turquia aprofunda-se o autoritarismo de Erdogan, aparentemente querendo seguir as pegadas de Putin na Rússia e de Xi Jinping na China. Nos Estados Unidos o candidato Donald Trump põe a nu as contradições da nação que por duas vezes elegeu Barack Obama como seu presidente. Em todos estes casos um aspecto que salta à vista é a negação do diálogo, a negação da política como forma de chegar a compromissos e a instrumentalização do medo e do nacionalismo para isolar e neutralizar os adversários políticos.
Tem contribuído para a desvalorização da democracia a percepção generalizada que os tradicionais partidos políticos se mostram incapazes de responder satisfatoriamente às exigências de participação, de responsabilização, e de transparência feitas pelos cidadãos. Estes, por sua vez, sentem-se cada vez mais capacitados através das múltiplas plataformas disponibilizadas pela internet em aceder à informação, em comunicar-se facilmente com muitos outros e em participar em acções que partindo do mundo virtual das redes sociais pode resultar em acções de rua que até já levaram à queda de regimes como no caso da Primavera Árabe e das revoluções coloridas na Ucrânia e na Geórgia.
Infelizmente o novo protagonismo dos cidadãos via internet e o poder das redes sociais até agora não revelaram o mesmo potencial como veículos de contribuição na consolidação das novas instituições que tinham demonstrado na demolição das estruturas antigas. Não espanta por isso que haja retrocessos. No caso do Egipto, por exemplo, houve golpe militar na sequência de grandes movimentações de pessoas para repor a antiga ordem. Nas democracias avançadas é visível a erosão das estruturas tradicionais partidárias confrontadas com o cada vez maior ativismo de indivíduos e grupos. O problema que se põe é se em todos estes desajustes não se abrem espaços para germinar sementes de demagogia populista que, encontrando ambiente favorável, venha a se constituir em ameaça contra a democracia.
A experiência demonstra que medos colectivos, ódios e insegurança são dos ingredientes que mais tendem a despoletar situações incontroláveis. A história do século XX ensina-nos que esse risco é real e que instabilidade governativa persistente traz ditadura. A eleição de Sadiq Khan dá mais uma demonstração o quão resiliente pode ser a democracia quando respeita os valores e segue os procedimentos: produz resultados que revelam o melhor do regime em cada conjuntura. Para que isso aconteça, porém, importa sobremaneira manter o diálogo, valorizar a política como arte compromissória e fortalecer a lealdade das instituições à ordem constitucional vigente.
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 11 de Maio de 2016
Sem comentários:
Enviar um comentário