sexta-feira, dezembro 23, 2016

Modismos custosos

Discriminação positiva nos últimos tempos tornou-se a expressão preferida dos políticos e de grupos de interesses para justificar o encaminhamento de fundos públicos para as suas causas de momento. Pede-se ou promete-se discriminação positiva para ilhas, para municípios, para o turismo que não é “sol e mar” e até para o carnaval. Bem podia-se estar a falar de investimentos que se devia estar a fazer em sectores, em actividades ou certos pontos do território nacional na perspectiva de, entre outros objectivos, melhorar a produtividade e competitividade do país. Ou então da solidariedade que deve existir entre o Estado e o município e entre municípios de uma mesma região para colocar os mais pobres ou com maiores fragilidades num outro patamar na luta pelo desenvolvimento. Mas prefere-se falar de discriminação positiva porque tem provavelmente uma outra ressonância.
Por isso mesmo não vai tardar muito em que toda a gente desate a reivindicá-la para os seus projectos ou a torne numa exigência-chave da acção política. Já deu os primeiros sinais nas discussões do Orçamento do Estado e na determinação dos critérios de distribuição das receitas do fundo do ambiente e da taxa ecológica. Muitos não ficaram contentes com os resultados e abriu-se caminho para ressentimentos.
Compreende-se o rápido agarrar da expressão “discriminação positiva” se se tiver em conta que vai ao encontro de uma noção prevalecente na sociedade do igualitarismo de  nivelar por baixo e também de um modelo de desenvolvimento que põe a redistribuição à frente da produção. Se juntar-se a isso a tendência em recorrer à vitimização para reclamar direitos, justificar reivindicações e ganhar influência em embates políticos e eleitorais o quadro fica completo. O grande problema é que, seguindo por aí, o mais provável é que não se consiga diminuir as desigualdades, mas entretanto aumente o fosso entre as várias comunidades, populações ou ilhas. É tanta a preocupação em procurar recursos em forma de ajuda que não sobra muito tempo e motivação para implementar uma estratégia própria de crescimento e emprego suportada numa estrutura produtiva endógena.
A história económica de vários países demonstra que viver de rendas, sejam elas derivadas de vendas de recursos naturais como o petróleo ou da ajuda externa posta à disposição, não resolve os problemas das desigualdades ou das assimetrias regionais. A prazo acaba mesmo por agravá-las porque, à medida que se tornam mais escassos, tendem a concentrar-se numa elite política e administrativa à volta do Estado e na capital do país enquanto cinturões de pobreza se instalam nas periferias das cidades e o mundo rural progressivamente colapsa. Os ganhos conseguidos inicialmente não se mostram sustentáveis porque os recursos ou dádivas utilizados numa lógica redistributiva dificilmente são incorporados numa estrutura produtiva capaz de gerar retornos permanentes. Por outro lado, ao criar relações de dependência e de rivalidade entre pessoas e comunidades no acesso a recursos acaba-se por diminuir consideravelmente a confiança e espírito de cooperação essenciais nas sociedades produtivas.
A enfase na redistribuição tende a ver o país numa perspectiva estática. Quer-se resolver os problemas das pessoas lá onde se encontram, melhorando mas reproduzindo a vida económica existente. O empobrecimento progressivo das zonas rurais e a perda de população de ilhas como Santo Antão, S. Nicolau, Fogo e Brava e também do interior da ilha de Santiago demonstram que é uma tarefa raramente bem-sucedida não obstante os muitos milhões investidos em infraestruturas e em apoio a iniciativas que dificilmente sobrevivem ao fim dos projectos que lhes deram o impulso inicial. Com o argumento da discriminação positiva está-se a contribuir para aprofundar a ideia de que a situação actual é fruto de atitudes discriminatórias no passado que agora têm que ser combatidas com acções afirmativas. Para além de dar azo à procura de razões para a discriminação, algo complicado numa população homogénea em termos étnico-linguísticos, religiosos e culturais mas espalhada por nove ilhas diferentes, desincentiva ainda a busca de uma nova economia propiciadora de mais rendimentos e maior qualidade de vida. Ficando por manobras tácticas para ganhar localmente mais uns tostões, perde-se visão estratégica de como fazer o país crescer e prosperar.
Cabo Verde, um arquipélago de nove ilhas com potencial e vocação diferentes, não pode dar-se ao luxo de tratar igual o que é diferente. Já tem custos enormes em reproduzir as mesmas infraestruturas em todas as ilhas. Não tem que os aumentar obrigando-se a uma rigidez de tratamento no investimento em nome da discriminação positiva que limita a capacidade do país no seu todo de ganhar com as vantagens oferecidas por uma ou outra ilha em agarrar oportunidades de negócios. Como a história bem demonstra, a prosperidade sustentada do país depende da relação dinâmica e vantajosa com o mundo. Nove ilhas são nove possíveis interfaces de relação, mas nem sempre todas vão em simultâneo funcionar como motor principal.
Ao governo compete arbitrar sobre os recursos existentes e manter claras as prioridades de modo a que o país cresça e enriqueça e ofereça emprego à sua gente onde, dentro do território nacional, há que concentrar mão-de-obra para que as oportunidades e a maximização dos investimentos sejam os mais profícuos para todos. Não se deve deixar  enredar em malhas de exigências e ressentimentos que depois tolham os movimentos com prejuízos globais para o país. Muito menos deve activamente criá-las, abrindo a corrida  para a busca de exemplos de discriminação. Isso iria apenas aumentar a rivalidade entre as ilhas e regiões, produzir reivindicações irrazoáveis e contribuir para manter as pessoas na postura de dependência e frustração que já mostrou ser prejudicial ao país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 786 de 21 de Dezembro de 2016.

sexta-feira, dezembro 16, 2016

Atitude ou método?

Volta e meia a questão linguística cria controvérsia em Cabo Verde. Às vezes é por causa do crioulo que se quer promover como língua oficial e/ou língua de ensino. Outras vezes é porque se ficou com a impressão que o português está a ser diminuído ou a perder importância. As reacções acaloradas aos posicionamentos nestas matérias não deixam de provocar alguma perplexidade. De facto, devia ser pacífico que tudo se fizesse para promover a língua portuguesa. Afinal ela é a língua oficial do país e logicamente o exercício pleno da cidadania por todos os caboverdianos exige o conhecimento suficiente da língua tanto escrito como falado. Quanto ao crioulo ele é indisputavelmente a língua materna dos caboverdianos. Supostas ameaças à sua existência apenas vislumbradas por aqueles que ainda se revêem em lutas identitárias e em actos de “resistência cultural” não deviam ser objecto de ansiedade.
A realidade nua e crua do sistema de ensino como diz a Ministra de Educação é que 44% dos alunos que iniciam o ensino básico não terminam o liceu. E uma das razões apontadas pela ministra são as insuficiências a português. Em resposta a isso propõe-se mudar a metodologia do ensino no sentido que mais se ajuste ao processo de aprendizagem de uma língua segunda ou de uma língua estrangeira. A última controvérsia surgiu aparentemente do facto de se ter aventado a hipótese de ensinar o português como língua estrangeira. Tomou-se isso como uma forma de diminuição do português e concomitantemente como mais um expediente para a promoção do crioulo no ensino. Mais uma vez a questão da eficácia no ensino da língua e de melhores resultados em todas as outras disciplinas ficou em segundo plano ofuscada por essas questiúnculas recorrentes. 
A escola pública obrigatória é uma criação das repúblicas. Desde os primórdios da revolução americana, os pais fundadores, em particular, Thomas Jefferson viu na escola pública o veículo fundamental para a criação de igualdade de oportunidades e para o aparecimento de cidadãos consciente dos seus direitos, capazes, com autonomia suficiente, de fazer bom uso da leitura, escrita e aritmética básica para tratar os seus assuntos pessoais e para evoluírem como indivíduos  e cidadãos e ainda de seguirem com devida atenção a acção do governo e evitar que a tirania e a irresponsabilidade se instalassem na esfera pública. A escola pública falha em Cabo Verde quando não é eficaz em dotar um número tão elevado de crianças da adequada competência linguística na língua oficial da República necessária para o exercício de uma cidadania plena.
Recentemente o ex-ministro António Correia e Silva reconheceu num texto publicado no jornal “A Nação” de 23 de Junho que “só sendo bem-sucedida no ensino da língua portuguesa a escola pública será inclusiva, deixando de ser reprodutora de desigualdades”. Num outro ponto do texto foi peremptório em afirmar que “um português acessível a todos é a via de emancipação”. É pena que não tenha convencido o governo a que pertenceu da importância central do domínio da língua portuguesa no sucesso na escola, na mobilidade social e na afirmação da cidadania. Durante estes últimos dez anos sentiu-se mais pressão em fazer avançar o crioulo como língua oficial e de ensino do que em encontrar uma resposta adequada à absurda situação de países, Portugal e Brasil, também com o português como língua oficial, a exigir aos estudantes caboverdianos provas de proficiência na língua portuguesa para admissão nas suas universidades. Lutas identitárias de há muito fracturantes da sociedade cabo-verdiana impediam a focalização no problema real que o sistema de ensino tem - défice de conhecimento do português – e a procura da estratégia certa para o resolver.
O mais natural é que na busca de maior eficácia no ensino do português se esforce por encontrar a melhor metodologia e a mais consentânea como a nossa realidade. Não se pode perder de vista que o espaço que muitas vezes o aluno tem para praticar a língua restringe-se à escola e que o seu principal, se não único interlocutor, é o professor. Por isso para o sucesso desse desiderato conta muito a atitude dos alunos, dos pais e da própria sociedade. Se todos tomam o estudo da língua como central na vida académica do aluno, as probabilidades de sucesso aumentam extraordinariamente. Mas se pelo contrário a relação com a língua é conflituosa, é vista como impositiva ou até como uma espécie de violência, dificilmente vai-se ter sucesso em ensinar a língua mesmo que se use o melhor método do mundo. Sabe-se, por exemplo, que em matemática se um aluno embirra com a matéria por causa de um professor ou de algum revés traumatizante sujeita-se a anos de insucesso se não se libertar da atitude preconceituosa em relação à disciplina. 
O problema com o português em Cabo Verde é também um problema de atitude com origem nas disputas fracturantes à volta da identidade cabo-verdiana que infelizmente o Estado, a comunicação social pública e as escolas têm alimentado ao longo dos anos. O esforço oficialmente desenvolvido de “reafricanização dos espíritos” retirou aos caboverdianos a tranquilidade quanto à sua posição no mundo que a geração da Claridade já tinha estabelecida. Oitenta anos depois é evidente que estavam certos. Recuperada a tranquilidade sobre quem somos e alargado o ensino português para o pré-escolar seguramente que uma outra atitude dos alunos e da sociedade fará do domínio do português o instrumental vital para o sucesso e a afirmação de todos como indivíduos e como cidadãos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 785 de 14 de Dezembro de 2016.

sexta-feira, dezembro 09, 2016

Poder e responsabilidade

A relação do Estado com os municípios mudou. O Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva, no discurso da semana passada na abertura do VIII Congresso Autárquico, mostrou-se pronto para cumprir as promessas de descentralização e de reforço da autonomia dos municípios. Antes, já eram conhecidas as normas do Orçamento do Estado que davam corpo à discriminação positiva dos municípios mais pobres e frágeis. Também já se sabia das novas regras que iriam determinar as transferências de receitas provenientes da taxa turística, da taxa ecológica e da taxa rodoviária. No BO do dia 2 de Dezembro, através de decretos-leis do governo, ficaram estabelecidas as várias formas como os diferentes municípios poderão aceder aos Fundos do Turismo e do Ambiente para investimentos em infra-estruturas e servir- se deles para financiar projectos, requalificar o espaço urbano e promover o turismo. Ainda na mesma linha, através do porta-voz do Conselho de Ministros, o governo manifestou a vontade de envolver os municípios na consecução dos grandes objectivos do ODS designadamente nos domínios de redução da pobreza, do acesso água, à saúde, ao saneamento e á energia, educação de qualidade, crescimento económico e redução das desigualdades.
Com tantos recursos transferidos e outras tantas competências ampliadas não é de estranhar o regozijo dos autarcas. Vêem a possibilidade de fazer mais e a oportunidade de ter um impacto maior na vida das pessoas. Uma enorme responsabilidade porém acompanha esses novos poderes e recursos, tanto da parte de quem os delega como também de quem os recebe. O governo, ao optar por envolver administração local na prossecução de um conjunto de objectivos, tem certamente em mira maior eficácia na prestação de serviços aos utentes e na implementação de políticas públicas e uma eficiência superior nos meios utilizados. O sucesso vai depender certamente da capacidade da administração local em responder com uma nova atitude e uma nova cultura de prestação de serviço aos desafios colocados. Afinal, em ultima análise, o que se pretende é que, como diz o governo, as pessoas sejam livres e autónomas, vivam com dignidade e sejam capazes de ascender social e economicamente.
Assume-se que o Poder Local tem o conhecimento e a proximidade das populações que o faz automaticamente menos burocrático, menos autista e mais pró activo em apoiar a iniciativa, a criatividade e a vontade de fazer. Mas assim como a proximidade pode ser de grande ajuda, quando há atitude certa, também pode constituir um empecilho se interesses outros surgem que põem em causa a isenção, imparcialidade e não discriminação partidária que se espera de qualquer serviço público. Os problemas que todos reconhecem existir na administração pública, com impacto directo na qualidade de serviços prestados e no ambiente de negócios, não estão apenas na administração central. Muitos dos mesmo vícios encontram-se na administração local, com resultados não poucas vezes mais perversos precisamente por causa da maior proximidade.  
O desenvolvimento do poder local a partir da II República trouxe benefícios inegáveis para todo o país. Logo à partida, pôde resgatar uma tradição de séculos das câmaras municipais nas ilhas no seu esforço de ordenamento do território, do saneamento básico e de construção das pedras basilares de uma cultura cívica. O nível de infra-estruturas conseguido e a qualidade de vida das populações atingido nos vinte e dois municípios são o exemplo eloquente do que se pôde realizar com transferências do Estado, com uma fiscalidade local mais dinâmica e com algumas iniciativas na cooperação internacional ao nível municipal. Salta, porém, à vista, para além dos sucessos conseguidos, também a tendência para a centralização do poder no município e a tentação de caciquismo. Órgãos que deviam ser de controlo da actuação do executivo, designadamente a assembleia municipal e a própria câmara, não poucas vezes se submetem aos ditames do seu presidente. Maior eficiência e eficácia ao nível local terá que passar necessariamente por contrariar essas tendências e conseguir maior accountability, ou seja maior responsabilização e melhor prestação de contas. A perspectiva de infusão de novos recursos e o alargamento de competências tornam este objectivo fundamental para se conseguir “soltar as energias das pessoas, libertar os operadores económicos de custos desnecessários e pôr a administração pública a prestar serviços públicos de qualidade”.
A massiva transferência de recursos já iniciada, com o claro objectivo de estimular a economia local, criar emprego e aumentar o rendimento das pessoas através de novos investimentos públicos, financiamento de projectos, compras locais de bens e serviços pelo Estado, deve ser vista como uma oportunidade para a estrutura produtiva nas ilhas e não numa lógica redistributiva pura. Essa lógica, sabemos, resultou de décadas de políticas de reciclagem de ajuda externa e é extremamente resiliente. Várias vezes foi posta em causa, mas acabou sempre por prevalecer. Tantas vezes já sobreviveu que não se sabe, à partida, se o novo esquema para o ultrapassar estará a matá-lo ou a alimentá-lo. O pior é quando deixa de ser solidariedade e se torna no veículo de influência eleitoral no país levando os políticos a utilizar os meios postos à sua disposição para conseguir votos e perpetuar-se no poder.
O relatório de competitividade do World Economic Fórum coloca Cabo Verde entre os países onde o que mais conta para o crescimento da economia é a eficiência com que se usam todos os recursos sejam eles humanos, de infra-estrutura, naturais, etc. A competitividade externa do país e a produtividade dependem muito do que se conseguir nesse domínio. Insistir no estímulo do mercado interno minúsculo e fragmentado pela via da redistribuição sem um cuidado especial pelos seus eventuais efeitos no aumento da ineficiência geral pode simplesmente ter efeito contrário ao pretendido. E o sonho da autonomia, do crescimento e de mais emprego, possível com uma capacidade produtiva endógena, pode continuar a ser simples miragem de um país que não consegue dar o salto para se soltar da chamada “armadilha dos países de crescimento médio”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 784 de 07 de Dezembro de 2016.

sexta-feira, dezembro 02, 2016

Out of order

O orçamento do Estado para o ano 2017 era para ser o grande acontecimento da sessão do par­lamento em Novembro. Infeliz­mente, a apresentação do verda­deiro primeiro orçamento do novo governo foi obscurecido por um conjunto de incidentes e situações anormais ao longo do debate na plenária que deixou patente, pe­rante todos, a fragilidade da ins­tituição parlamentar. Além das já habituais, e muitas vezes sem sentido, interrupções de trabalho com interpelações à Mesa, veio-se a constatar que a Assembleia Na­cional esteve a trabalhar out of or­der, ou seja, sem que as exigências formais para o seu funcionamento estivessem a ser integralmente cumpridas. A Ordem do Dia não tinha sido de facto aprovada e o presidente da AN, a partir de um certo momento já suspenso do seu mandato de deputado por razões de ausência do país do presidente da república (artigo 131º da Cons­tituição), continuou a dirigir os trabalhos. No domingo seguinte, a televisão pública, TCV, não se coi­biu de apresentar trechos do deba­te do Orçamento do Estado com o trilho sonoro que acompanha a ac­tuação de palhaços no circo.
Nunca é demais salientar a gravidade do que ali se passou. A proposta de orçamento do Estado para 2017 estava agendada para ser discutida e aprovada. Para isso devia constar da ordem do dia aprovada por maioria absolu­ta dos deputados em efectividade de funções, ou seja, pelo menos por 37 deputados. O Presidente da mesa proclamou a Ordem do Dia aprovada com 36 deputados a favor, 26 contra e 3 abstenções, como se pode comprovar no vídeo da AN de 21 de Novembro, período da manhã (1:08:00). Deu por aber­to o período da ordem do dia, que é, segundo o regimento, o período durante o qual o parlamento exer­ce as suas funções constitucionais, sem que realmente tivesse sido aprovado. A questão que se coloca é se são válidos os actos seguintes, como sejam a votação e aprovação de leis, particularmente quando a dirigir os trabalhos esteve, durante algum tempo, um presidente em situação irregular porque estava suspenso das suas funções de de­putado.
O facto do parlamento e dos sujeitos parlamentares não con­testarem a validade dos actos pra­ticados durante a sessão pode não fazer com que o problema desapa­reça. Como diz o constitucionalista Jorge Miranda “o Presidente da República pode impugnar a cons­titucionalidade de diplomas, por preterição de requisitos formais”. Tratando-se do Orçamento do Es­tado, que deve vigorar logo a par­tir de 1 de Janeiro de 2017, há que evitar quaisquer contratempos ou dúvidas no processo da sua apro­vação e posterior promulgação pelo PR. Muito menos ainda per­mitir que o contribuinte alimente alguma desconfiança quanto ao processo em que se criam impos­tos e mecanismos de cobrança e liquidação dos mesmos.
O formalismo, ou o respeito pe­los procedimentos, é fundamental em democracia. Não é à toa que sempre que se procura minar as instituições democráticas, ou se quer impor a tirania de uma maio­ria, ou a vontade de um chefe, criam-se atalhos para não se se­guir escrupulosamente as normas, fazem-se apelos para não se perder tempo em debates e formalidades, aponta-se a conveniência de não cumprir com certos requisitos e cortam-se a meio deliberações com declarações de confiança na futura decisão de um pequeno comité, ou do chefe. A democracia entra em crise quando práticas semelhantes começam a verificar-se dentro dos parlamentos e no interior dos par­tidos. Essa acção corrosiva, muitas vezes provocadas por pressão de movimentos populistas tanto den­tro como fora, aumenta a disfun­cionalidade dessas mesmas insti­tuições num crescendo que conduz a ainda maior descrédito das mes­mas e maior adesão aos impulsos populistas.
O sucesso de movimentos po­pulistas em vários países, acom­panhado de subsequente degra­dação da democracia e das suas instituições, tem lançado dúvidas sobre a capacidade de resiliência da democracia. Com o que se pas­sa actualmente, por exemplo, na Hungria, na Polónia e na Turquia ninguém já diz que o processo de consolidação da democracia é ir­reversível. Também ninguém ga­rante que a América com Donald Trump, ou a França com Marine Le Pen, vão manter a mesma face democrática que hoje apresentam. O mundo actual da globalização, de fácil comunicação e alta conec­tividade e de mudanças disrupti­vas no mercado de trabalho devido ao passo acelerado de inovações tecnológicas cria muitas oportu­nidades, mas também frustrações, ressentimentos e ansiedades. As pessoas tornam-se mais facilmen­te permeáveis a fenómenos como xenofobia, racismo e misoginia e iludem-se rapidamente com ape­los anti-partidos e anti-política vindos de um auto intitulado chefe. A complexidade da vida, da econo­mia e da democracia é reduzida a uma visão simplista dos problemas para os quais há soluções a encon­trar, de preferência sem demasia­dos procedimentos e sem delibera­ções numa base plural.
Cabo Verde também não deve tomar a democracia como algo se­guro e garantido. As dificuldades demonstradas no funcionamento do parlamento, os efeitos visíveis de atitudes populistas no seio dos partidos e a prevalência em certos sectores de discursos anti-política e anti-partido não podem ser toma­das com ligeireza. Como também noutros países disfarça-se o ata­que populista contra a democracia representativa com propostas de democracia plebiscitária que põem uns contras outros, acabam com o pluralismo e promovem o apare­cimento de chefes e cultos de per­sonalidade. Um aviso do que pode trazer o futuro é o espectáculo que se assistiu do parlamento “out of order” e de uma TCV pública os­tensivamente a denegrir a imagem do órgão de soberania representa­tivo de todos os cidadãos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 783 de 30 de Novembro de 2016.

sexta-feira, novembro 25, 2016

Exige-se nova atitude dos partidos


Seguindo pela rádio ou vídeo streaming a discussão da proposta de lei do Orçamento do Estado podia-se ficar com a ideia de que o Governo e a Oposição, o PAICV, estariam a discutir a partir de posições absolutamente antagónicas sem qualquer possibilidade de encontrar terreno comum. Estaria um a propor um modelo de desenvolvimento económico com base no mercado e na dinâmica do sector privado e o outro a defender a continuidade da reciclagem da ajuda externa. Indo além da fachada e das posições extremadas manifestadas ao longo do debate constata-se com alguma surpresa que as coisas não são como parecem: os dois partidos, MpD e PAICV, dizem apostar no sector privado como motor da economia nacional. Mostram reiteradamente a preferência por um Estado isento e imparcial, eficiente e eficaz e também despartidarizado. Todos afirmam querer crescimento com criação de emprego. Diferenças aparentes surgem na enfase posta nos discursos em relação a matérias como inclusão, desigualdade social, autonomia dos indivíduos e dependência de pessoas e comunidades em relação ao Estado.
Coloca-se a questão de saber porque o fosso que os separa é tão grande. As razões certamente deverão ser encontradas na história do país. O PAICV durante os quarenta anos de Cabo Verde independente governou trinta anos, quinze anos iniciais no regime de partido único e quinze anos após os primeiros dez anos de democracia e de experimentação com a economia de mercado e de base privada. Durante grande parte desse tempo foi dominante o modelo de reciclagem de ajuda externa. Só em 2015, em período pré-eleitoral e eleitoral, é que os partidos convergiram em considerar que o país se encontrava numa encruzilhada e que se devia deixar definitivamente para trás o modelo. Mas dependendo de quem ganhasse as eleições, a luta política para se ir além da reciclagem de ajuda poderia ser mais acelerada ou mais arrastada. No processo, a postura de quem ficasse na oposição também contaria.
Ganhou o MpD e não tardou muito que o aparente consenso pré eleições quanto à adopção do novo modelo de desenvolvimento se desvanecesse. De facto, o PAICV pelo seu tempo de governação, história e ideologia confundia-se mais com o modelo anterior. Mesmo quando se põe em posição crítica em relação a ele, porque a ajuda ao desenvolvimento praticamente chegou ao fim e os últimos cinco anos de política económica representaram cinco anos de estagnação, dificilmente consegue dissociar-se de pessoas, grupos de interesses, atitudes e instituições que ascenderam durante a vigência do modelo. Na oposição iria existir sempre o perigo da sua actuação auto limitar-se a pôr resistência a mudanças que mexem com certos interesses e privilégios.
 Nota-se isso, por exemplo, na reacção às mudanças na administração pública e no sector empresarial do Estado. Tem menos a ver com uma genuína preocupação com a despartidarização e mais com a protecção de interesses já instalados. Na pressa em demonstrar que o governo não cumpre as promessas de mais crescimento e emprego pode também não estar a ajudar as pessoas e a sociedade em geral a pôr na perspectiva certa as dificuldades do país (dívida pública, falta de competitividade)com origem em opções de política que provadamente só já trazem estagnação e a promessa de manter mais de um terço da população na pobreza. Quando é assim estabelece-se um círculo vicioso de desconfiança, violência verbal e ataques às instituições que a ninguém traz vantagem e faz recuar ainda mais as possibilidades de mudança. Como se viu no debate do Orçamento do Estado, O MpD e o PAICV fixam-se na posição em que há décadas se vêem um ao outro. No jogo parlamentar esquecem que afinal têm matérias convergentes e que há base para trabalhar juntos, salvaguardando sempre o contraditório e a possibilidade de alternância no governo. 
A experiência de desenvolvimento de vários países demonstra que em momentos cruciais foi fundamental alguma convergência de objectivos entre os principais partidos. Políticas do chamado “bloco central” foram extremamente importantes em vários países como a Alemanha, Holanda e também Portugal, quando reformas profundas deviam ser feitas com urgência. Também outros países mais próximos em termos de desafios, como as Maurícias e as Seychelles, souberam beneficiar da convergência de objectivos de várias forças políticas para fazer a opção certa no processo de desenvolvimento. 
Cabo Verde é que até agora não conseguiu realizar esse feito que o exemplo dos outros demonstra ser de grande importância para se dar o salto necessário. Ao governo, que tem a responsabilidade primeira de conduzir os destinos do país, cabe um papel especial em não deixar que a oposição se acantone e que uma dinâmica de posições extremadas desvie a atenção dos reais problemas do país e da urgência em os confrontar e resolver. Também, neste momento em que nas democracias os partidos estão sob particular escrutínio dos cidadãos e as instituições estão sob ataque de movimentos populistas diversos, o MpD e o PAICV devem evitar cair nos papéis já tradicionais que diminuem a sua imagem aos olhos de todos. 
Em 2015 desenhou-se um entendimento de que o país deve procurar outros caminhos para poder desenvolver  e prosperar. Há que trabalhar sobre os aspectos centrais desse consenso de forma a garantir a tranquilidade e a confiança necessárias para que na liberdade e no pluralismo se assuma um novo paradigma e se faça subir o país para um outro patamar.
 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 782 de 23 de Novembro de 2016.

sexta-feira, novembro 18, 2016

Nacionalismo responsável

Recentemente passou na comunicação social a notícia da saída da Ecobus da carreira Assomada/Praia. As razões para isso teriam sido medidas tomadas pelas autoridades locais que efectivamente impediram a empresa de cumprir com os horários fixos de saída da Assomada e de chegada à Praia dos autocarros (hiaces) inviabilizando assim o negócio. Voltou-se ao modelo habitual de negócios em que os hiaces andam à procura de passageiros e não têm horário de saída e nem tão pouco de chegada porque paragens ao longo do caminho dependem de conveniências várias. Já se sabe que os grandes perdedores são todos aqueles que querem usar o seu tempo de forma produtiva nas suas deslocações e esperam que transportes públicos regulados dêem as garantias necessárias para isso em termos de tempo, frequência, segurança e conforto. Não se compreende é a atitude das autoridades que em vez de regular a actividade económica em benefício de uma melhor e mais segura circulação de pessoas e bens acabam por deixar o sector dos transportes interurbanos numa informalidade que prejudica toda a gente.
O exemplo da Ecobus vem particularmente a propósito no momento em que se discute o papel crucial do sector privado na economia, a necessidade de combater a informalidade, a urgência em fazer um uso mais eficiente das infra-estruturas e de outros investimentos públicos e a importância de se ter um empresariado nacional apostado na criação de riqueza. Mostra como a tendência geral é para tudo funcionar à revelia do que é propalado em discursos e posições oficiais. Hoje, décadas passadas, vê-se o Estado ainda preponderante na economia nacional, a actividade informal sempre a crescer, o desperdício e a gestão inadequada de meios e serviços públicos e o empresariado nacional em retirada em quase todos os sectores designadamente, construção civil, comércio, indústria e serviços.
Neste sentido, paradigmático é o que se passa nas ilhas do Sal e da Boavista em que, a par do investimento turístico, cresce a actividade informal e assiste-se ao espectáculo de empresários nacionais a ficar para trás porque não há regulação e não há estratégia dirigida para fazer a procura turística engajar com a economia nacional. Aparentemente o Estado dá-se por contente com as receitas em impostos e taxas que cobra aos turistas, aos operadores e às importações. E a cultura rentista continua a prevalecer sobre o que devia ser uma cultura de criação de riqueza, de criação de emprego e de exportações, não obstante todo o discurso de valorização do empreendedorismo, da competitividade e da inovação.
O novo governo do MpD prometeu fazer diferente. As propostas na lei do Orçamento do Estado de 2017 visam criar uma nova relação das empresas com o fisco que, por um lado, as deixe respirar e, por outro, incentive o investimento ao mesmo tempo que alarga a base tributária, promovendo a formalização de micro e pequenas empresas. Uma outra ajuda para a actividade empresarial será o pretendido estímulo à procura interna através do redireccionamento de partes do Fundo de Ambiente e do Fundo do Turismo para os municípios, as novas politicas de aprovisionamento de bens e serviços do Estado dirigidas às empresas locais, a activação de fundos de garantia e a diminuição de custos de segurança social.
O ressurgir de questões essenciais como os custos de energia e água, que recentemente tiveram aumentos significativos, e também de putativos aumentos de tarifas de transportes marítimos, que já se projectavam para cima de 50%, vieram relembrar que os problemas das empresas e do empresariado caboverdiano não são apenas de natureza fiscal e de financiamento. Até porque nesses domínios o que o governo consegue oferecer não é o que se esperaria no âmbito de um choque fiscal de estímulo ao investimento e às empresas. A pesada dívida pública, de mais 126% do PIB, e o risco orçamental representado pelas empresas públicas como a TACV, IFH e Electra não lhe dão qualquer folga para reduções significativas de carga fiscal. De qualquer forma a reacção tépida dos empresários às propostas do governo deixa transparecer que precisam de algo mais compreensivo. Algo que, por exemplo, faça diminuir os custos dos factores, os custos de contexto, os custos de transporte e de comunicação. Uma estratégia que inverta o processo de retirada do empresariado nacional de vários sectores da economia e activamente promova a sua dinamização através da satisfação de parte significativa da procura gerada pelo turismo e também via a identificação de oportunidades externas de fornecimento de bens e serviços.
Lawrence Summers, da Universidade de Harvard, num artigo de Julho deste ano no Financial Times aconselha aos governos que assumam um nacionalismo responsável no sentido que o bem-estar económico dos seus cidadãos deve ser o principal objectivo e que os acordos internacionais devem ser avaliados não por quantas barreiras deitam a baixo mas sim se com eles os cidadãos nacionais ficam melhor posicionados. O contrário, que ele chama de internacionalismo reflexivo, acaba por marginalizar os que se vêem espoliados da sua actividade e do seu emprego por causa de facilidades dadas a outros e que depois vão engrossar o número de apoiantes de eventuais demagogos como se viu no Brexit e na eleição presidencial americana de 8 de Novembro. Com a adopção de uma estratégia nacional dirigida para a afirmação de um empresariado nacional mesmo no quadro de uma economia aberta evitam-se situações em que a falta de regulação mate a iniciativa empresarial, como parece ter sido o caso da Ecobus e outras situações em que a omissão em matéria de políticas para os sectores deixa em sistemática desvantagem os empresários nacionais. Quando não se tem uma estratégia própria fica-se sujeito à estratégia dos outros.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 781 de 16 de Novembro de 2016.

sexta-feira, novembro 11, 2016

Narrativa e foco

Seis meses após o início do mandato, o governo parece estar “sitiado”, pressionado por exigências de cumprimento de promessas, por especulações sobre possíveis remodelações ministeriais e por acusações de favoritismo e clientelismo. Também alvo de críticas é a aparente omissão em questões importantes como alterações de tarifas de água e energia e eventualmente dos transportes marítimos e outras cruciais como o futuro da TACV e do Programa Casa para Todos. Por outro lado, a persistente sensação de insegurança não ajuda. No global sente-se um desconforto que a se generalizar pode minar a confiança e o entusiamo logo no início do mandato.
Para o governo, contrariar isso tudo não é fácil especialmente quando a situação do país coloca particulares desafios. Com a dívida pública nos 121% do PIB e o crescimento económico só agora, neste ano, a ganhar alguma dinâmica depois de cinco anos de uma economia praticamente estagnada, não se vê com muito espaço orçamental para acomodar certas situações e contornar outras. Muito menos para investir de forma inovadora para abrir caminho e libertar-se da armadilha do fraco desempenho da economia acompanhado do alto desemprego em que o país tinha caído. Apesar desses constrangimentos de partida, o facto é que o governo ainda está no início. Seis meses correspondem simplesmente a um décimo do tempo do mandato de cinco anos. Muita coisa vai acontecer, muita obra poderá ser realizada e muitos dos objectivos prometidos serão certamente atingidos. Para isso porém é preciso uma comunicação permanente com o país e com a sociedade cabo-verdiana, que mantenha a confiança, que permita às pessoas gerirem as suas expectativas e que incentive à mudança de atitude sem a qual dificilmente se poderá garantir a sustentabilidade do desenvolvimento do país.
É um facto já constatado por muitos outros que as eleições não são só sobre o candidato, mas fundamentalmente sobre a visão que se tem do presente e futuro do país, a diferente perspectiva de como abordar a realidade complexa que foi legada e as escolhas dos caminhos a serem trilhados para atingir os objectivos prometidos. O sucesso de quem recebeu o mandato para governar certamente que irá depender bastante da capacidade em ter sempre presente na comunicação com a sociedade a narrativa que inspirou o eleitorado e que lhe permite compreender a cada passo a actuação do governo.  Mas não só: terá que agir com coerência e foco de forma a confirmar a narrativa que mobiliza as vontades e permite a gestão sem grandes sobressaltos das expectativas da população no curto, médio e longo prazo, tanto ao nível pessoal como dos grupos sociais. A opção por uma postura tecnocrática ou que minimiza a abordagem política não deixaria de causar dificuldades acrescidas com quebras de eficácia na governação, perda de capital político necessário para as grandes reformas e impotência progressiva no combate aos interesses que se opõem a mudanças de políticas.
Os últimos quinze anos de governo do PAICV ilustram bem a importância das narrativas. Foram marcados pela grande narrativa da Agenda de Transformação que incluía entre os seus elementos a criação dos Clusters, o programa das infraestruturas, o ressurgimento do mundo rural com as barragens e o programa Casa para Todos. Hoje todos sabem no que isso resultou: os clusters ainda estão por emergir, o programa de infraestruturas não resolveu os problemas de comunicação nem melhorou a competitividade do país, o mundo rural não diminuiu a sua vulnerabilidade e o programa Casa para Todos deixou dívida pesada e pôs de rastos o sector nacional de construção civil e de imobiliária.
Durante todos esses os anos, a narrativa da Agenda de Transformação deu coerência à governação, permitiu fixar e mobilizar apoio político e combater os adversários políticos. Querendo ou não reconhecer acabou por moldar o país designadamente no que respeita à atitude das pessoas, à postura das instituições e à natureza das expectativas. Eventualmente, o insucesso acabou por forçar uma mudança, não significando isso, porém, que simplesmente se desintegrou. Se não for efectivamente contrariada e substituída por uma nova narrativa, a sua persistência na sociedade e nas instituições pode constituir um entrave sério à implementação de novas políticas e à criação de condições para se colocar o país num outro patamar de desenvolvimento.
Um dos obstáculos à afirmação da nova narrativa é a timidez que se nota em fazê-la passar. Contrasta fortemente com a forma sistemática e até com truques de ilusionismo com que anteriormente se sustentou a chamada Agenda de Transformação. À timidez existente veio aliar-se, nos tempos actuais, uma certa relutância em assumir uma ideologia e defender princípios, valores e opções com coerência, decência política e respeito pelas regras. Como se vê no caso de Trump na América e de outros populistas na Europa isso deve-se em boa parte à pressão anti-política e anti-partido que nos dias de hoje o activismo nas redes sociais, e vários movimentos populistas nas democracias, vem colocando sobre os partidos políticos deixando-os á mercê do carisma do chefe “que tudo pode e tudo resolve”.
Há que ultrapassar este mau momento, que ameaça despir os partidos de uma identidade própria, do seu legado e os impede de manter narrativas coerentes, mas diferenciadas, tão fundamentais ao pluralismo e à democracia. Sem falar na fragilidade existencial que em caso de derrota e perda de poder pode revelar-se repentinamente, como está a acontecer actualmente no PAICV, e que enfraquece ainda mais a democracia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 780 de 09 de Novembro de 2016.

sexta-feira, novembro 04, 2016

Votem Hillary Clinton

As eleições presidenciais americanas vão ser já na próxima terça-feira, dia 8 de Novembro. O mundo inteiro aguarda com ansiedade o que poderá ser o resultado do embate entre Hillary Clinton e Donald Trump. É evidente que para a generalidade das pessoas fora dos Estados Unidos uma vitória de Trump teria consequências imprevisíveis e globalmente negativas. Entre os americanos as opiniões dividem-se a tal ponto que a eventual vitória de Hillary pode estar por um fio, não obstante o apoio editorial dos principais jornais, o engajamento na campanha de celebridades das artes e do mundo empresarial e as declarações de suporte de académicos, colunistas e de personalidades tradicionalmente ligadas ao partido republicano. Pelo que está em causa nesta eleição, e considerando os tempos de particular tensão militar em certas regiões do globo, de ameaça do terrorismo e dos desafios que a fragilidade do crescimento económico está a colocar às democracias, parece justificar-se, o que a miúde se diz, meio a brincar, que todos no mundo deveriam poder votar na eleição do presidente americano.
A vitória provável de Hillary Clinton não será porém suficiente para aquietar muito do desassossego entre os defensores da democracia provocado pela emergência e afirmação do fenómeno Trump na política americana. Outras democracias já têm movimentos políticos que, como o de Donald Trump, apostam no medo, na xenofobia e no ressentimento. Podem não ter o mesmo peso, mas servem-se dos mesmos meios. Usam a mentira, a violência verbal e a manipulação de paixões primárias para hostilizar partidos políticos tradicionais, questionar instituições democráticas e esvaziar os princípios e valores de tolerância religiosa, da livre expressão, do pluralismo e do Estado de Direito. Nos Estados Unidos os estragos para a democracia já são evidentes: fala-se no colapso ou implosão do partido republicano; Trump já deixou entender que pode não aceitar os resultados eleitorais em caso de derrota; e tem-se como certo que o nível de obstrução dos trabalhos do Congresso irá atingir novos limiares se os republicanos conservarem a maioria na Casa dos Representantes e no Senado. Com os últimos desenvolvimentos despropositados sobre os emails de Hillary apercebe-se que nem o FBI consegue estar acima da pressão raivosa dos partidários de Trump.
 Diz-se que actualmente a democracia está em crise, que os partidos políticos não são mais representativos e que a política como arte do possível ou “arte de tomar decisões em contextos condicionados” nas palavras do académico Daniel Innerarity, já não consegue enfrentar os desafios do mundo moderno. Para alguns a alternativa para a crise surge então em se encontrar figuras como Trump e outros tantos que se assumem acima da política, acima dos partidos e que vão deixando avisos que poderão não se deixar emaranhar pelas leis e valores existentes para “erguer muros contra estrangeiros, registar pessoas com certas religiões, normalizar o uso da tortura e até prender adversários políticos”.
Tais figuras encontram normalmente respaldo entre aqueles que não acreditam na retoma da economia e na diminuição das desigualdades e entre os que se deixaram frustrar pelas dificuldades em mudar a agenda política apesar da ilusão de empoderamento criada pelas redes sociais. Curioso que, não obstante a retórica anti-partido, é só com a conquista da liderança dos partidos que conseguem dar o salto para o plano nacional e daí para o governo. Mesmo chegados lá não abdicam de se apresentar acima do partido, de expor os seus defeitos de falta de representatividade, de elitismo e de clientelismo e de insistir na imagem do líder como outsider e como puro e autêntico até se chegar ao ponto de culto de personalidade sem precedentes na democracia.
Os partidos põem-se a jeito para serem praticamente assaltados quando, na ânsia de responder às críticas de falta de abertura à sociedade, adoptam processos de escolha da liderança através designadamente de primárias e outras formas descentralizadas de selecção de dirigentes, consideradas mais democráticas. A propósito desta opção o cientista político Ian Shapiro diz que “é uma ideia muita errada de democracia, segundo a qual as escolhas por participação directa a fazem mais democrática quando na realidade o que consegue é dar o poder a minorias mais radicais que dentro dos partidos políticos conseguem fazer vencer os seus candidatos”. Quem assim procede até pode ter no início vantagem com a mobilização de paixões e ressentimentos mas a prazo, conquistando ou não o poder, as consequências para o partido podem vir a revelar-se terríveis. Com a candidatura de Donald Trump o partido republicano já está imerso numa crise profunda e há quem preveja que não irá sobreviver mesmo se ganhar a presidência. E não seria nada de novo. A América no século dezanove já assistiu ao fim de um partido, o partido Whig, após a eleição de um seu candidato Zachary Taylor que era tido como um “outsider” e posicionava-se como anti-partido.
Os partidos tradicionais que durante décadas na Europa e em outros países têm sido  baluartes da estabilidade democrática estão hoje sob a pressão para darem sinais de maior abertura à participação das pessoas e de mais transparência e honestidade na condução dos assuntos públicos. No esforço de adaptação aos novos tempos o pior que lhes pode acontecer é deixarem-se levar por derivas demagógicas e populistas. A crise actual de muitos deles tem a ver com a forma como lidam com as pressões populistas à esquerda e à direita e dentro da sua própria organização. Subordinar-se ao líder sacrificando o partido, a sua identidade, o seu pluralismo interno e a sua organização no processo pode revelar-se fatal.
Nas democracias a responsabilidade política última é sempre partidária e não do líder. Esta é a realidade que também os partidos caboverdianos, PAICV e MpD, deverão ter em devida conta enquanto preparam os respectivos congresso e convenção nacional. Todos já mostraram terem sido influenciados por movimentações populistas. A fragilidade evidente do parlamento nesta legislatura é uma das consequências. Espera-se que a derrota de Donald Trump no dia 8 de Novembro tenha o efeito de travão em toda esta deriva populista e demagógica que ameaça velhas e novas democracias. O Expresso das Ilhas não vota mas recomenda que todos os caboverdianos eleitores nos Estados Unidos votem Hillary Clinton.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 779 de 02 de Novembro de 2016.

sexta-feira, outubro 14, 2016

Desarmar a população

A notícia dos 120 homicídios num ano trazida a público pelo Procurador Geral da República em Setembro último finalmente despertou a sociedade cabo-verdiana para os excessos de violência que ocorrem no país. A informação veio confirmar o sentimento generalizado de insegurança que se renova no dia-a-dia com os relatos de assaltos à mão armada, troca de tiros entre elementos de gangs e ajustes de contas que se saldam em mortes em vários pontos da capital. Piora a situação a percepção de que cada vez mais também a Polícia vem-se tornando o alvo de ataques. Neste panorama preocupante é notório o papel crescente das armas de fogo, seja das fabricadas localmente, as chamadas “boka bedju”, como das armas importadas. A questão na mente de todos é porque não se está a resolver definitiva e eficazmente a questão das armas de fogo nas mãos das pessoas. 
Dados da polícia apontam que nos últimos três anos, 2013, 2014 e 2015 houve respectivamente 21, 22 e 11 homicídios por armas de fogo e, no mesmo período, casos de ofensas corporais também com armas de fogo em número 131, 181 e 76. 80% a 90% dos casos de homicídio e ofensas corporais aconteceram na cidade da Praia, onde também na mesma percentagem se verificaram os casos de ataques a polícias com essas armas em número respectivamente de 17, 9 e 7 nos anos referidos. Curiosamente, em relação à posse ilegal de armas foram nos últimos três anos de 83, 79 e 62 e já não é a Praia onde há o maior número de casos mas sim em Santa Catarina, Santa Cruz e S. Filipe na ilha do Fogo.
Em 2013, o governo fez aprovar na Assembleia Nacional a lei de armas de pequeno calibre e lançou uma campanha de recolha voluntária que falhou. Segundo o actual Ministro da Interna, Paulo Rocha, em declarações à imprensa em Julho último, “a campanha não funcionou”. O problema teria sido de “comunicação”. Quando hoje se espera que a matéria seja retomada, constata-se, na declaração, da passada quinta-feira, dia 6 de Outubro, sobre “o conjunto de medidas de intervenção imediata para a contenção de insegurança” que a questão das armas nas mãos das pessoas não foi contemplada. Uma estranha omissão considerando que um estudo anterior da Afrosondagem datado de 2008 e citado por oficiais da PN situava o número de armas em circulação em Cabo Verde entre 6 mil e 8 mil e que também é hoje mais do que evidente o papel crescente das armas de fogo em homicídios e assaltos. Mesmo a medida que em 2010 o então governo terá idealizado para travar o “abastecimento de determinados tipos de munições” com o objectivo de  conter a produção de armas artesanais não terá resultado. Os “boka béju” continuam a aparecer em cenas de crimes violentos.
O pesquisador Júlio Jacob, autor do Mapa de Violência no Brasil, é peremptório em afirmar  que “não há estudo sério no mundo que não comprove a relação entre posse de arma de fogo e o número de assassinatos num país”. Este facto foi espectacularmente provado há duas décadas no Reino Unido e na Austrália. Na sequência de massacres de dezenas pessoas por atiradores armados, os governos desses países fizeram passar leis que praticamente proibiram as armas de fogo. As taxas de homicídio mas também de suicídio diminuíram consideravelmente com essas medidas de retirar à população o acesso a armas. O mesmo aconteceu no Brasil durante algum tempo depois da entrada em vigor do Estatuto de Desarmamento. Diminuíram casos de mortes por brigas conjugais, conflitos entre vizinhos e por acidentes na manipulação da arma.
Mas como o Brasil também demonstra – a violência voltou depois a aumentar - não se pode ficar só pelo desarmamento para manter baixo o nível de homicídios e de crimes em geral. Há que desenvolver outras políticas tanto no combate ao crime como na sua prevenção. Fundamentalmente há que reafirmar o contrato social e renovar a crença no destino comum com políticas de inclusão, com igualdade de oportunidades e com crescimento e emprego de qualidade. E tudo isso num ambiente em que a justiça funciona, vive-se em segurança e o Estado não é consumido pela corrupção que privilegia uns e trata desigualmente muitos outros.
Grandes desafios se colocam a Cabo Verde em termos de segurança. O índice Mo Ibrahim veio relembrar como a segurança é vital para o país assegurar a competitividade externa necessária ao desenvolvimento da sua economia, a começar pelo turismo. A degradação dos índices de crimes nos últimos anos deve ser um incentivo para se rever profundamente todo o sistema de Segurança. É evidente que com o que se tem, não se está a obter os resultados prometidos e que o país urgentemente precisa. E certamente que não é a despejar meios por cima de problemas que se vai resolvê-los. Foi tentado no passado e não resultou. Há que mudar. Desarmar efectivamente a população pode também ser parte de um bom começo.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 776 de 12 de Outubro de 2016.