sexta-feira, março 17, 2017

Castelos no ar

Governar servindo-se do ilusionismo para gerir expectativas, mobilizar apoio político e conter adversários acaba sempre por terminar mal. Quando a realidade vem bater à porta são finalmente conhecidas as facturas por pagar acumuladas nos anos de construção de castelos no ar. Também fica-se a saber que o futuro poderá não ser o imaginado. O fim da ilusão não acontece porém sem que na sua esteira surjam sinais inequívocos de pobreza, desorientamento e frustração dos que foram apanhados pelo seu fulgor enquanto os promotores prosseguem a sua vida envoltos numa espécie de véu de intocabilidade. A sociedade, por sua vez, ressente-se da aparente impunidade do processo e nota-se a insatisfação nas quebras nos níveis de confiança, nas perdas em civismo e no descrédito das instituições. Após um exercício do ilusionismo como método de governação o saldo é francamente negativo para todos.
 O fim do Novo Banco é o mais recente exemplo do desmoronar de um dos vários castelos no ar que o governo anterior se entreteve a construir no âmbito da sua Agenda de Transformação. Não há muito tempo o país já tinha assistido em choque ao arresto do avião da TACV na Holanda e com particular intranquilidade às dificuldades do Programa Casa para Todos que não proporcionou todas as casas prometidas e deixou uma dívida pesada. Os problemas, porém, não ficaram por aí. Enquanto estes castelos no ar caiam com fragor outros tantos como os diferentes clusters supostamente criados para impulsionar o crescimento desapareciam sem um pio audível deixando para trás uma economia estagnada. Também o sonho das barragens mobilizadoras da água indispensável para o agronegócio que ia salvar as zonas rurais acabou por ficar encalhado em múltiplos problemas de construção, de falta de políticas para o sector agrícola e pecuário, de organização e regulação do mercado e de acesso aos mercados turísticos. Todos estes casos demonstram que deixar-se levar pelo ilusionismo, em detrimento de abordagens realistas e pragmáticas, não é o caminho que deve ser seguido. A curto prazo pode até trazer benefícios políticos mas, a médio e longo prazo, os custos serão enormes.
O processo da criação do Novo Banco é paradigmático quanto ao que acontece na construção desses castelos no ar resultantes do ilusionismo na governação. O aparecimento do Novo Banco coincide com o do lançar do Programa Casa para Todos, no ano de 2010, o ano em que o partido no governo preparava-se para disputar um terceiro mandato. A evidente conveniência política conjugou-se com a aparente necessidade de, por um lado, responder aos problemas de financiamento encontrados pelas micro e pequenas empresas e, por outro, facilitar crédito para habitação social que resultaria da concretização do Programa Casa para Todos. No parecer do BCV, citado por este jornal, as razões para a criação do Novo Banco careciam de base sólida. Não se demonstrava com estudos que certos segmentos não bancarizados da população tinham necessidade de uma instituição como o NB. Não se fundamentava que o problema estava do lado da oferta. E não se provava que os problemas de financiamento só podiam ser resolvidos por um banco, mesmo de cariz social.
Apesar de todas essas ressalvas que também foram colocadas por outras entidades o governo avançou com a criação do Novo Banco. Foi uma decisão política clara e como outras do género desde do início acumulam custos sem que se vislumbrem benefícios significativos. Interessante como nesses casos o que é definido como objectivo maior ou benefício a ser conseguido é o que menos lucra com todo o esquema montado. No caso do Novo Banco o crédito para o sector alvo das pequenas e médias empresas não chega a 5%. Não há demonstração mais clara do fracasso de todo o projecto. Também os problemas com a venda de apartamentos B e C do Programa de Casa para Todos que depois se veio a verificar  acabou por revelar que até nesse objectivo de apoiar a habitação social não esteve à altura.
Se os benefícios foram mínimos, os custos não pararam de crescer. Aos custos exagerados da estrutura empresarial juntou-se o custo resultante da pressão do Estado, por um lado, a pressionar empresas públicas em dificuldades financeiras a serem accionistas e, por outro, a forçar o INPS a avançar com capital inicial e reforços do capital sempre que os rácios de solvabilidade se mostravam abaixo dos exigidos pelo BCV. As perdas de cerca de 900 milhões de contos suportados pelo INPS na relação com o INPS não se justificam à luz dos critérios de investimento que uma entidade como o INPS deve seguir estritamente. Outras perdas institucionais designadamente de entidades públicas que para apoiar, aconselhar e supervisionar na implementação de certas políticas devem ser independentes, são muitas vezes enormes. Ficam diminuídas na sua estatura público-institucional ao se sujeitarem ou se calarem publicamente perante a evidência de que são manifestações de interesses de natureza política partidária que estão por detrás da posição do governo e não o interesse público.
A manifesta vontade de vários protagonistas em ganhar logo à cabeça com iniciativas públicas sem consideração com eventuais benéficos práticos, mas sempre muitos atentos aos ganhos políticos, tem sido o suporte para a construção do ilusionismo de castelos no ar. Mas com a dívida pública a 128,5 % do PIB e o país só a crescer a 3,6%, como na terça-feira estimou o Ministro de Finanças, depois de mais de cinco anos com uma média de crescimento de 1,2% do PIB, não há absolutamente nenhuma margem para insistir em projectos ilusórios. Num pequeno país arquipélago como Cabo Verde, realismo, flexibilidade e pragmatismo deviam guiar a acção estratégia do governo. Só com uma abordagem despida de ilusões se pode avançar, de facto, na identificação dos potenciais motores de crescimento, no desenvolvimento e melhor alocação do capital humano, na atracção do investimento privado nacional e estrangeiro, no acesso aos mercados e na melhoria da competitividade externa do país, imprescindíveis para criar emprego, produzir riqueza e prosperar. 
                           Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 15 de Março de 2017  

sexta-feira, março 10, 2017

Combater a violência policial

Onde há exercício de poder, há possibilidade de abuso. Combatem-se os abusos e limitam-se as impunidades com salvaguardas legais e institucionais que funcionam como contrapesos ao poder e também com uma consciência cívica apurada, suportada por uma imprensa livre. A democracia é o melhor dos sistemas políticos não porque as suas regras não são susceptíveis de abuso mas por que nela o Poder é de facto vários poderes que se equilibram em tensão permanente. O ambiente que daí resulta é o em que a igualdade dos indivíduos perante a lei e a defesa da dignidade humana e da liberdade estão devidamente asseguradas. Para que assim seja é fundamental que as forças de repressão na democracia que detêm o monopólio da violência sejam clara e eficazmente controladas. E em caso de abuso os efeitos devem ser identificados e reparados, os agentes responsabilizados e a força policial corrigida nos seus procedimentos e filosofia de actuação. 
Violência policial em Cabo Verde é uma realidade que não escapa a ninguém. Relatos que aparecem na comunicação social em particular na televisão são demasiado frequentes para não deixar indiferente qualquer cidadão. As justificações das autoridades em resposta às denúncias são em geral de uma fragilidade confrangedora especialmente quando procuram pôr a polícia em posição de vítima. São tomadas muitas vezes com cepticismo considerando a desproporção de força a favor da polícia e a dúvida popular tende a subsistir quanto ao que realmente se passou porque, em geral, fica-se por saber se foram cumpridas as promessas de esclarecimento cabal do assunto. Os resultados dos inquéritos quase nunca chegam a público. Não estranha pois que a percepção geral é que há violência policial nas esquadras e que suspeitas de mortes por causa dessa violência têm algum fundamento. 
Reforçam ainda mais essa percepção  casos como o de Pensamento da semana passada em que um infractor depois de alegadamente espancado por um policial e deixado ficar numa esquadra durantes mais de 12 horas morre, como consta na certidão de óbito, de “choque hipoglicémico e de politraumatismos”. A polícia, em conferência de imprensa, com imprecisões e contradições passou a imagem de estar a fugir à assunção plena das suas responsabilidades. E obviamente que repetir mais uma vez que iria instaurar inquérito interno para apurar  responsabilidades dificilmente poderia trazer algum conforto aos familiares e aos cidadãos que estivessem a seguir o caso. Um facto novo porém foram as declarações do Ministro de Administração Interna a garantir sindicâncias externas à actuação da polícia e a pedir a intervenção do Ministério Público para dirigir investigações ao caso. 
O relatório do Departamento de Estado americano sobre os direitos humanos do dia 3 de Março comunga da mesma percepção que parece existir entre o público a propósito de certas actuações da polícia. Há referências a brutalidade policial para com detidos, fala-se de casos em que não são responsabilizados os agentes e recordam-se situações em que o governo parece não ter mãos sobre as forças de segurança. O facto de ao longo dos anos esses relatórios terem repetido as mesmas preocupações deixa entender que não se está a fazer o suficiente para pôr cobro a uma prática que, sabe-se de outras experiências de abuso de poder, não encontra cura por si própria e só tende a agravar-se. A descrença na justiça que é gerada apenas retroalimenta a desconfiança entre a população e as forças policiais o que torna mais difícil o combate contra a criminalidade, põe em perigo os agentes da ordem pública e deixa indefesos os cidadãos apanhados no fogo cruzado entre polícias e bandidos. 
O aumento significativo da eficácia de todo o sistema de justiça é fundamental para recuperar a confiança na sociedade cabo-verdiana e os níveis de civilidade essenciais para uma baixa permanente do nível da criminalidade no país. Polícias, procuradores, juízes, directores de cadeia e agentes de reinserção social devem perceber que só se terá justiça efectiva com demostrações de brio e profissionalismo por parte de todos os elementos do sistema e com viva consciência de todos da importância do respeito escrupuloso pela lei e pelo processo devido (due process) em todas as situações. Corre-se em sentido contrário quando em vez de se verem como partes de um sistema, derivam para posturas de culpar uns e outros desarticulando-se e desresponsabilizando-se no processo. Pior ainda, é quando se cai na tentação de fazer justiça por conta própria porque se tem a percepção de que parte do sistema não está a fazer o seu papel e presumíveis criminosos são soltos e ficam incólumes. 
Impõe-se mudar este estado das coisas. Reequilíbrios têm que ser impostos e os órgãos de fiscalização interna e externa devem funcionar seja nas polícias, seja nas magistraturas de forma a ultrapassar a cultura corporativista que tende sempre a instalar-se e fazer valer-se para cima do interesse público nos corpos profissionais. Do Ministério Público em particular, que, como diz o Presidente da República, no discurso de tomada de posse do actual PGR, “está colocado no vértice da pirâmide de fiscalização da legalidade”,espera-se “coragem de poder desagradar e causar incómodos, (…) mesmo em relação àqueles que pensam estar acima dela, julgando que as suas acções não estão submetidas à sindicância”.  
O comunicado do Ministério Público sobre a “Morte de indivíduo detido na esquadra policial” e a conferência de imprensa do Ministro de Administração Interna sobre a mesma matéria de ontem, dia 7 de Março, marcam uma mudança de atitude no sentido que o PR apontou e que todos os cidadãos esperam. É fundamental que se avance para coarctar quaisquer tipos de abusos de poder, complacência com certas práticas e espírito corporativista para que todo o sistema judicial se ponha à altura de eficazmente e em tempo útil proteger os direitos de todos e satisfazer o desejo colectivo de justiça essencial para uma convivência na paz e na liberdade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 797 de 08 de Março de 2017.

sexta-feira, março 03, 2017

Imprensa em crise

Nas últimas semanas a problemática da crise na comunicação social reapareceu de repente na consciência das pessoas, da sociedade e do próprio Estado. Perante casos notáveis de desaparecimento de órgãos de imprensa, surgiram vozes de vários sectores de opinião a expressar preocupação com a sustentabilidade dos jornais privados e das rádios comerciais. Face ao problema, a sugestão da parte do governo de um eventual posicionamento no sentido de reforço dos órgãos públicos de comunicação social não se mostrou encorajador. Provavelmente só iria diminuir mais a base de sustentação da imprensa privada. E a verdade é que a crise na comunicação social privada não é ultrapassável com maior protagonismo do sector público. Também sabe-se que a democracia fica necessariamente diminuída e em situação de risco num ambiente em que jornais, rádios e televisões privadas não encontram autonomamente meios suficientes para se viabilizarem.
O problema de fundo com os jornais privados começa com o mercado publicitário. Depois de anos de estagnação da economia esse mercado continua exíguo e sente-se cada vez mais o peso da concorrência da rádio e televisão públicas. Os jornais aqui em Cabo Verde assim em como em toda a parte do mundo ressentiram-se bastante da quase omnipresença da televisão 24 horas/sete dias na transmissão de notícias. A isso veio juntar-se em tempos mais recentes a tendência das pessoas em se servirem de informações disponibilizadas gratuitamente na internet para se manterem a par dos acontecimentos no país e no estrangeiro. Ultimamente com a expansão rápida das redes sociais mudaram-se completamente as regras do jogo. Foi criada a possibilidade dos utilizadores de reagiram directamente e de forma imediata a acontecimentos e posicionamentos de outras pessoas sem necessidade de intermediação.
Esvaziada em boa medida da sua capacidade de mediação, a comunicação social tradicional viu-se limitada e preterida no papel de facultar aos cidadãos os meios para exercerem o seu direito de se informar, de informar e de acesso às fontes de informação. Não espanta que a crise actual seja profunda e abrangente. Encontrar soluções para a ultrapassar é de importância crucial para as democracias. A urgência nesta matéria é tanto mais quando crescentemente se perfilam no mundo forças políticas e outras que apostam na descredibilização da imprensa tradicional.
Paradigmático neste aspecto foi a acusação de “inimigo do povo” feita pelo presidente Donald Trump aos media americanos. Para mostrar que não é uma acusação para esquecer ou ser tomada como algo sem consequência é que nos dias de hoje o Washington Post mantem no cimo da primeira página a expressão Democracy Dies in Darkness, a democracia morre na escuridão. Com essa inscrição quer alertar para os perigos da ofensiva violenta que está a se verificar sob várias formas contra factos, contra a verdade e contra o pluralismo. A História mostra que tiranias de toda espécie começam por apagar a luz que a imprensa livre e plural tende a projectar sobre os actos de poder.
Com diferentes variantes e intensidade o fenómeno está a passar-se em várias democracias espalhadas pelo mundo. À medida que muitos vão ficando dependentes das redes sociais para se informarem e se posicionarem, mais vulneráveis se mostram as manipulações demagógicas, teorias de conspiração e a notícias falsas. É evidente hoje que todas as derivas populistas apontam invariavelmente o alvo para as instituições fundamentais do pluralismo: o parlamento e a imprensa privada de referência. Neste sentido, lutar contra tentações populistas também significa apoiar a imprensa privada, resistir a tentativas de governamentalização da comunicação social e tudo fazer para manter uma sociedade livre e plural onde ninguém tenha a presunção de ser detentor da verdade, possuir em exclusivo as soluções possíveis e falar pela Nação como se ela tivesse uma única voz.
 Na condição actual de Cabo Verde não é fácil manter uma imprensa livre e plural em particular na imprensa escrita. Mas sendo essencial para o funcionamento do sistema democrático é da maior importância que se encontre o devido equilíbrio entre o sector público e o sector privado da comunicação social. A Constituição da República (CR) é clara por um lado a declarar livre a criação de jornais e por outro a estabelecer um serviço público da rádio e televisão. Rádio e televisão privadas podem conseguir licenças de emissão depois de se submeterem a concursos públicos. Reconhecendo o carácter excepcional do serviço público da rádio e televisão, a própria CR impõe um pluralismo interno no funcionamento dos órgãos públicos e submete-os a um escrutínio externo estrito de uma entidade reguladora com competência para emitir perecer vinculativo no processo de nomeação dos respectivos directores.
Para se garantir porém o pluralismo externo dos vários órgãos privados há que assegurar a sustentabilidade autónoma para os mesmos sem dispensar eventuais incentivos do Estado. Devia ser evidente que nestas circunstâncias o Estado procurasse evitar que os órgãos públicos que já recebem taxas e transferências públicas também beneficiassem do mercado publicitário que todos reconhecem ser diminuto. Muito menos que acções de verdadeiro dumping se verificasse na corrida pelos escassos recursos da publicidade quando se sabe que quem está a ser subsidiado por fundos públicos melhor preço poderá fazer para aumentar quota de mercado e até eliminar o concorrente. Já o Estado ajudaria e muito com o investimento numa agência noticiosa que fornecesse a partir de todas as ilhas despachos nos diferentes formatos para uso de todos os órgãos. Fica a sugestão. Há que ultrapassar a crise de sustentabilidade da imprensa em Cabo Verde para  se evitar uma crise ainda maior no regime democrático.  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 796 de 28 de Fevereiro de 2017.

sexta-feira, fevereiro 24, 2017

Elevar o debate: verdade e factos

A propósito do Programa de Casa para Todos e da auditoria à IFH que põe a empresa em situação de falência o porta-voz do grupo parlamentar do PAICV deixou saber que o programa tinha sido concebido pelo seu partido, então no governo, para uma franja da população que por não ter posses só pode ser servida numa base social e não na base económica e financeira. O problema é que os meios para implementar o programa não resultaram de uma solidariedade social e nacional mobilizada para o efeito. Vieram de meios financeiros postos à disposição através de uma linha de crédito da Caixa Geral de Depósitos avalizada pelo Estado português que se comprometeu a bonificar os juros. Do arranjo feito podia-se prever custos acrescidos porque exigia-se que os consórcios fossem liderados por empresas portuguesas e que grande parte dos bens e serviços tivessem origem portuguesa. Também sabia-se, logo à partida, que as vendas de casas não iam cobrir as despesas porque como diz o deputado o público-alvo não tem posses. O resultado só podia ser um.
A auditoria recente confirmou a falência anunciada do programa Casa para Todos mas desde o seu início, em 2010, vinham-se somando críticas ao programa por parte da oposição e de outros sectores da sociedade, designadamente de operadores nacionais da construção civil, e do próprio FMI. O governo ignorou todos os avisos porque o que tinha em mira eram principalmente ganhos políticos com impacto eleitoral. A vitória nas legislativas de 2011 demonstraram que por aí o governo foi rigoroso nos seus cálculos. O país depois arcou com as consequências com a dívida pública a ultrapassar os 125% do PIB, a economia a estagnar-se e o sector de construção civil em ruína mas estes problemas não são os que perturbam o sono de quem vê a governação primariamente como reciclagem de recursos externos mantendo o Estado no centro do processo. A realidade é que quando se tem tal perspectiva priorizam-se ganhos políticos e eleitorais sobre quaisquer outras considerações de custo e benefício dos projectos. Para a sociedade, porém, diz-se que os objectivos são sociais e deixa-se entender que quanto às dívidas não há razão para preocupação porque no “final do dia” ou serão perdoadas, ou serão adiadas e reestruturadas.
Não é pois de estranhar as propostas de perdão ou de renegociação dos quase 200 milhões de euros do Programa apresentadas pelo actual governo ao governo português no âmbito da Cimeira Luso-Cabo-verdiana. Situam-se dentro do que já era expectável que viesse a acontecer considerando as discrepâncias já conhecidas no Programa Casa para Todos em termos de custo-benefício e retorno sobre investimento. Tinha-se criado com esse tipo de situações algo que pode configurar um “moral hasard”. Ou seja, tinha passado a ser hábito contrair dívidas com base em estudos que dão como viáveis os projectos, mas sabendo de antemão que cumplicidades diversas vão aumentar consideravelmente os custos e alguém os terá que pagar. A factura por uma via ou outra acabaria sempre suportada pelo povo enquanto quem concebeu a jogada somaria vitórias políticas e ficaria alcandorado em posição de poder.
Os estragos porém não ficam por aí. O impacto desse modus operandi do governo e do Estado sente-se transversalmente na sociedade, no Estado e na forma de fazer política. A preocupação com ganhos convenientes e “à cabeça” para além de qualquer razoabilidade económica financeira não é certamente a melhor atitude que se quer ver implantada numa sociedade. Retira previsibilidade quanto aos resultados, mina a cooperação entre as pessoas e legitima o ilusionismo oficial que despreza factos, trafica em meias verdades e valoriza o cinismo na condução dos assuntos públicos. O cultivar da imagem de “bom aluno” ou da boa governação como forma de manter os fluxos da ajuda externa e ir empurrando com a barriga os problemas tem os seus limites como veio a demonstrar a repentina queda de Cabo Verde de 57 para a posição 116 no índice da liberdade económica da Fundação Heritage. De facto, dificilmente podia-se continuar a manter a camuflagem sobre a gestão da dívida pública que ultrapassa os 125% insistindo que eram empréstimos concessionais quando a economia estagna e aumenta o risco orçamental com a má gestão acumulada de vários anos de grandes empresas públicas como a TACV, a IFH e a EECTRA.
Hábitos com décadas de existência custam muito a ultrapassar, mas para produzir riqueza nacional e alimentar expectativas de prosperidade futura tem que se ter os pés bem firmes na realidade. Não se pode programar redes de estrada, construir barragens, portos e aeroportos, investir na água e energia, canalizar enormes recursos para educação e formação profissional e depois ficar muito aquém dos resultados prometidos. Com diz Justin Yifu Lin, ex-economista do Banco Mundial e autor de várias obras sobre o desenvolvimento económico, para se conseguir resultados as intervenções ao nível de infraestruturas, de logística e de apoio às empresas devem ir no sentido do reforço das vantagens comparativas do país. De outra forma fica-se com a imagem já conhecida de estradas sem carros, portos sem navios e aeroportos sem tráfego e não se conseguem os investimentos privados que deveriam crowding in, como prometido no início do processo de endividamento que praticamente duplicou a dívida do país.
Infelizmente, escutando as discussões no parlamento sobre “esquerda e direita” nesta sessão de Fevereiro, sente-se que os desafios que se colocam ao país depois de anos seguidos de estagnação económica ainda não estão a ter a ponderação devida. O jogo político ainda quer se situar na disputa de quem melhor distribui benesses, descurando de onde vêm os recursos, mesmo sabendo que a esquerda tradicional há muito que promove modelos de produção de riqueza sem pôr de lado a sua preocupação com a igualdade. Já se impõe que as forças políticas em Cabo Verde passem o debate político para outro patamar e façam um esforço conjunto, naturalmente com as nuances que as diferenciam, para que o país e toda a sociedade e principalmente o Estado mude de paradigma e passe a trilhar o caminho baseado em factos e na procura da verdade que leve ao crescimento económico e ao desenvolvimento.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 795 de 22 de Fevereiro de 2017.

sexta-feira, fevereiro 17, 2017

Despartidarizar não chega

Várias são as razões por que o Estado é hoje foco de tanta atenção. Entre elas está o facto de depois das falhas dos clusters em fazer o take-offprometido e o quase colapso de sectores da economia como a construção civil não se ter por onde escolher para  assegurar rendimento estável e seguro. Os hotéis e o turismo praticamente ainda só absorvem mão-de-obra pouca qualificada não deixando aos mais qualificados e os com ensino superior uma outra solução que não um lugar no Estado. Outrossim, a actual conjuntura de passagem de um governo para outro de partido diferente ao fim de 15 anos abre novas oportunidades de acesso a posições no Estado à medida que os vencedores substituem os vencidos em posições-chave de orientação política do país.
A dança das cadeiras que propicia é motivo de fascínio mas também de frustração e ressentimento. Na competição por lugares esgrimem-se argumentos de partidarização e da despartidarização como se o principal problema da administração pública fosse essa e não as queixas de falta de profissionalismo, as deficiências no serviço aos utentes e a postura de sobranceria da administração pública que particularmente prejudica o ambiente de negócios. Aliás, a questão da partidarização só toma a dimensão já conhecida devido ao papel que o Estado se atribui de gestor dos recursos do país e de dinamizador principal em todos os sectores. Sabe-se que é abusando dessa posição que cai em favoritismos, na criação de clientelas e em tentativas de controlo da população mais vulnerável numa perspectiva claramente partidária.
Os efeitos do controlo da administração pela força política vencedora das eleições teria menos impacto num contexto outro em que houvesse uma estrutura produtiva nacional expressiva, uma classe empresarial mais assertiva, menos desemprego e pobreza e uma sociedade civil autónoma. São esses os factores que, de facto, em todas as democracias, independentemente do modelo adoptado na relação entre o poder político e a administração pública, impede o Estado de ser sequestrado por interesses puramente partidários. Em Cabo Verde, é evidente a centralidade do papel do Estado em todos os aspectos da vida económica, social e cultural. Inicialmente tal centralidade foi consequência da opção inicial pós-independência de estatização da economia no quadro de um modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa. A incapacidade de decisivamente se afastar do modelo de reciclagem nas décadas seguintes, de diversificar a economia e de ganhar capacidade de exportação de bens e serviços permitiu que o Estado conservasse essa centralidade e se mantivesse numa posição cimeira no topo da proverbial cadeia alimentar com todos os sectores da economia e franjas importantes da população na sua dependência.
Mudar o Estado para deixar de promover activamente o assistencialismo e a dependência e encontrar-lhe um novo papel no processo de dinamização da economia que seja de incentivo à iniciativa privada e não de bloqueador ou condicionante do desenvolvimento é o grande desafio que se coloca hoje. Pelas tentativas de reformas fracassadas no passado sabe-se que não será tarefa fácil. A inércia é grande e os interesses no status quo são muitos. É só perguntar quais das 100 medidas propostas com pompa e circunstância pelo governo anterior foram implementadas e quantas tiveram um efeito real e durável nos utentes em termos de custo e tempo e contribuíram para a melhoria do ambiente de negócios como prometido.
O cidadão comum, pela comunicação social, constata no dia-a-dia o frenesim dos anúncios de estudos, de investimentos, de ajuda externa seguidos de encontros de socialização, workshops, mesas redondas e fóruns. A impressão porém é que são eventos que muitas vezes não resultam da estratégia do Estado, mas sim de impulsos vindos de outras entidades ou partes da agenda das mesmas já com financiamento assegurado. Por isso é que parecem esgotar-se em si próprios sem ter continuidade ficando por realizar iniciativas realmente prioritárias por falta de fundos. A aparente dificuldade do Estado em alocar fundos próprios no tempo certo retira muita da eficiência e eficácia que podia ter na implementação das suas políticas. Custa, por exemplo, compreender que as forças armadas tenham sido prejudicadas no cumprimento da sua missão por causa de meios de comunicação VHF que afinal custam cerca de vinte mil contos e recentemente foram doados pelo AFRICOM americano.
A falta de efectividade do Estado em muito do que faz, soma-se ainda à dificuldade em ver-se como agente económico de grande importância enquanto comprador de bens e serviços no mercado local. Os industriais entrevistados por este jornal na semana passada dão conta dessa omissão e dos prejuízos que incorrem por causa disso. O mesmo dizem outros privados, por exemplo, no domínio das tecnologias de informação e comunicação que lamentam a ausência de uma estratégia de compra de serviços dinamizadora de empresas nacionais no sector. A assinalar uma mudança de política nesta matéria foi a decisão muito positiva do actual governo em promover o aprovisionamento de bens e serviços nas ilhas onde estão sediados serviços do Estado e em privilegiar operadores locais para obras municipais. Realmente, para ter maior impacto na economia nacional deve-se constituir toda essa compra de bens e serviços na “procura sofisticada” de que fala Michael Porter.
Em conclusão, há que ir além da problemática de partidarização. O Estado precisa de ser retirado do papel dominador que teve no modelo de reciclagem de ajuda. Há que adequá-lo para um outro papel que é o de promotor da autonomia e da iniciativa das pessoas com vista a aumentar a produtividade e a competitividade do país e criar as condições para a prosperidade e a felicidade de todos.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 794 de 15 de Fevereiro de 2017.

sexta-feira, fevereiro 10, 2017

Não há tempo a perder

Na semana passada o Governo organizou uma mesa redonda sobre o turismo na Boa Vista. Outros dois eventos similares com temática de turismo de montanha e de turismo urbano vão ser realizados respec­tivamente nas ilhas da S. Antão e S. Vicente nos fins de Fevereiro e Março. O debate com operadores do sector e entidades públicas e pri­vadas visa encontrar vias e soluções para os múltiplos entraves a uma dinâmica do turismo nessas ilhas e no resto país. O problema, como bem o caracterizou o actual presi­dente da Câmara Municipal da Boa Vista, em entrevista a este jornal, é se a mesa redonda não vai ser mais um dos muitos encontros, fóruns e workshops que se realizaram ao longo dos anos e que poucos benefí­cios trouxeram ao turismo nas ilhas. Também é de saber se, na sequência de tais reuniões, pode-se esperar um turismo com maior impacto na economia nacional, no rendimento e na qualidade de vida das pessoas.
É um facto que nos últimos cin­co anos foram feitos grandes inves­timentos no turismo, o que aumen­tou significativamente o número de turistas que chegam a Cabo Verde. A crise com que se debatem os paí­ses do Norte de África, designada­mente a Tunísia e o Egipto, e que agora chegou à Turquia, afectou profundamente a indústria turís­tica dirigida para a bacia mediter­rânea. Com a crise, abriu-se uma janela de oportunidades para Cabo Verde que se encontra a poucas horas dos centros emissores da Eu­ropa. O aproveitamento feito pelo governo anterior pode não ter sido dos melhores mas não se pode dei­xar de notar que apesar do turismo ter crescido e aumentado a sua con­tribuição no PIB para mais de 21%, a economia estagnou-se. Depois do ano eleitoral de 2011 em que atingiu os 4%, a taxa de crescimento do PIB foi, segundo dados do INE, de 1,1% em 2012, 0,8% em 2013, 0,6% em 2014, 1,1 em 2015 e, outra vez em ano eleitoral, a apontar para pouco mais de 4% em 2016. E em todos esses anos houve grandes investi­mentos em infraestruturas: estra­das, portos, aeroportos, barragens, habitação, escolas, liceus e outros edifícios públicos que deixaram o país com uma dívida pública de mais 125% do PIB. É de se pergun­tar o que aconteceu.
Responder a esta questão é cen­tral neste novo ciclo político em que se pretende deixar para trás os anos de estagnação económica e relançar o país no caminho do crescimento económico e do emprego. Há que procurar compreender porque, apesar das obras feitas, do inves­timento na educação de milhares de jovens e também dos milhões investidos pelos privados no sector do turismo, o crescimento foi raso e o desemprego manteve-se dema­siado elevado com ligeiras descidas em 2012, 2013, e 2014, e com uma queda de 3,4 em 2015 mas acompa­nhada de aumento do subemprego e do número de inactivos. Deve­-se procurar identificar o que está mal, quando depois de muitos mi­lhões investidos e o alargamento do mercado potencial com os muitos milhares de turistas o tecido em­presarial não se densifica, não se diversifica e não se especializa. Pelo contrário cai em falência, insiste na informalidade e simplesmen­te abandona largos segmentos do mercado interno face à concorrên­cia de operadores de origem estran­geira.
O que se pode, logo à partida, constatar é que, por um lado, os anunciados clusters que deviam ter dinamizado e diversificado a economia com contribuição para o PIB nos domínios da agricultura, da indústria e dos serviços nunca se constituíram. Também o inves­timento privado particularmente o capital estrangeiro só se interessou pela mão-de-obra pouca especiali­zada a qual deu uso na construção civil, nas fábricas e nos hotéis. Por outro lado, os investimentos públi­cos realizados não favoreceram as empresas nacionais levando prati­camente à falência o sector nacio­nal da construção civil. Os hotéis, apesar de movimentarem muitos milhões, pouco serviram para ala­vancar a actividade empresarial nacional não propiciando a possi­bilidade de criação de riqueza que resultaria da satisfação em bens e serviços da procura gerada pelos milhares de turistas.
É interessante notar como os governantes e o Estado em geral pareciam contentes com toda esta evolução não obstante os evidentes sinais perturbadores na vida das pessoas, nas dificuldades das em­presas e no ambiente social tanto nas cidades como no meio rural. Inauguravam-se obras quase todos dias, o discurso político celebrava os ganhos futuros dos clusters e as finanças públicas exibiam o seu perfil de eficiência no pagamento dos funcionários mesmo que no processo de conseguir receitas sufo­casse as empresas, não restituísse o IUR devido às pessoas e pusesse a obtenção de receitas alfandegárias e outras derivadas do movimento de turistas acima de qualquer conside­ração de política económica. Mudar esta atitude do Estado e dos gover­nantes é fundamental para que, de­pois de ultrapassado o ilusionismo, se confronte a realidade das dificul­dades da economia nacional em se estruturar para atrair capitais e para ganhar com os investimentos feitos.
No inquérito da conjuntura do INE divulgado na semana passada os operadores de todos os sectores apontam como um dos obstáculos à sua actividade o “excesso de buro­cracia e de regulamentações esta­tais”. Esta mensagem enviada pelos empresários e pelos utentes em ge­ral tem que ser compreendida pelo novo governo de como o aparelho do Estado, no sentido lato, tem sido um obstáculo para a actividade económica do país. Também para compreender que despartidarizar a administração pública (AP) não chega para mudar as coisas. Des­partidarizar pode fazer a AP mais profissional mas não muda neces­sariamente a sua actuação no sen­tido pretendido de ter um Estado promotor, facilitador e regulador.
Concluindo, para que as mesas redondas ou outro tipo de encon­tros não repitam o que foi feito no passado há que identificar de forma compreensiva os empecilhos múlti­plos que tem impedido que se erga no país uma estrutura produtiva capaz de gerar prosperidade e em­prego de qualidade para todos. Já se vai tarde na procura das respos­tas certas e o mundo não espera por ninguém.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 793 de 8 de Fevereiro de 2017.

sexta-feira, fevereiro 03, 2017

Necessidade de alternativas viáveis

A centralidade do poder do povo de, em eleições livres e plurais, escolher os seus governantes, de optar por uma nova via e também de fazer a transferência pacífica de um governo para outro é celebrada com grande solenidade em todos os países democráticos. Muito do cansaço, frustração e ressentimento que se vem acumulando nas sociedades modernas resulta da percepção crescente do público que esse acto fundamental da democracia já não tem a importância que teve outrora. Muda o governo e fica-se com a impressão que, de facto, o país não altera o rumo, fica, pelo contrário, sujeito aos mesmos constrangimentos, pontificam os mesmos actores de sempre ou os seus “clones” e retoma-se o discurso antigo mas retocado com aparentes novidades, porque, parafraseando Margaret Thatcher, diz-se que hoje vive-se nos tempos da TINA – There Is No Alternative.
Nas democracias modernas o povo não governa directamente. Escolhe os seus representantes e governantes e dá-lhes um mandato fixo para cumprir o programa prometido. Mas como não há cheques em branco em democracia, quer, primeiro, certificar-se que a governação acontece num quadro constitucional e legal de respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos, pelo pluralismo, pelo primado da Lei e pela independência dos Tribunais. Segundo, faz questão de ver as promessas cumpridas e os objectivos atingidos. Um mecanismo central de avaliação dos resultados do mandato é o poder de livremente escolher quem deve ser o próximo governo. Com isso garante-se que ninguém fica eternamente no poder e assegura-se que haverá sempre possibilidade de correcção em caso de abusos, desvio de objectivos ou simples incompetência.
Quando, porém, como aconteceu em vários países nos anos após a crise financeira de 2008, vota-se a mudança de governo e a transformação desejada não se verifica, designadamente na economia, no rendimentos das pessoas e na qualidade de vida, aparecem logo sinais de desencanto seguidos de frustração e até de raiva. Os alvos preferidos do ressentimento social são os partidos políticos, o parlamento, a imprensa, as elites, os ricos e os cosmopolitas mas também “os outros” designadamente os ciganos, os imigrantes, os africanos, os muçulmanos e todas as minorias que estiverem a jeito. Em simultâneo culpa-se a globalização, o comércio internacional, as instituições internacionais e, no caso da Europa, as instituições supranacionais. O Brexit, a eleição de Donald Trump e muito do que aconteceu nos últimos anos no sistema de partidos e no interior de vários deles são consequência do sentimento anti-partido e anti-política em crescimento há algum tempo e que foi amplificado extraordinariamente pelas redes sociais nos últimos cinco anos.
Comprovada a falta de utilidade do sistema de alternância de partidos, não estranha que o sentimento de desprezo pela política tivesse sido canalizado para soluções populistas no interior de estruturas partidárias já existentes ou que fossem alimentar forças políticas novas fortemente identificadas com os seus líderes. De facto, tanto numa situação como noutra nota-se a ascensão de um novo tipo de líder propenso a projectar uma imagem de outsiders e de personalidades com “força de carácter, autênticos, sinceros e não comprometidos” com as elites existentes. No actual ambiente em que os factos contam pouco, todas as opiniões parecem valer o mesmo e narrativas substituem a procura da verdade, a personalidade dos líderes populistas passou a ser razão suficiente para validar as promessas e opções políticas apresentadas. Os factos, porém, têm demonstrado que nos partidos tradicionais a adopção de uma agenda e estilo de liderança populista não traz ganhos a prazo. Tendem a falhar na corrida ao poder como testemunham os exemplos de partidos socialistas na Europa e depois passam vários anos a recompor-se. Quando conseguem triunfar nas eleições não tarda muito que todo o partido sinta os efeitos dos excessos e das inconsistências da liderança como aconteceu com Berlusconi na Itália e irá certamente acontecer com Trump nos Estados Unidos.
A democracia cabo-verdiana apesar de recente não deixa de ser afectada por fenómenos similares. No ano passado substituiu um governo de quinze anos por um outro do partido que nos anos de oposição soube manter-se como alternativa de poder. O flirt com o populismo foi perfeitamente visível nos dois partidos tanto no período pré-eleitoral como durante as eleições. Não estranha por isso que sequelas da proximidade de práticas populistas estejam a revelar-se na unanimidade à volta dos líderes, todos eleitos com números quase a atingir os 100% dos votantes, e também na animosidade dirigida a qualquer sinal de dissenso nas fileiras dos militantes. A quase total ausência de listas concorrenciais para delegados aos órgãos máximos dos respectivos partidos veio comprovar a falta de dinâmica de vida interna e pode estar a revelar um défice no debate de ideias que, a verificar-se, deixa qualquer partido em sérias dificuldades de se constituir como real alternativa de poder.
 A credibilidade do sistema democrático depende muito da sua capacidade em produzir governos alternativos que demonstram de forma inequívoca que o voto popular tem efeitos práticos na escolha de governantes e de novas políticas para o país. Não ter uma força política à altura de produzir políticas distintas e governantes competentes para o país pode criar descrença no sistema de partidos pondo em perigo a democracia e abrindo caminho a soluções populistas e a líderes autocráticos. Por isso, nas vésperas da realização dos órgãos máximos do MpD e do PAICV o apelo deve ser de arejar as fileiras com debate sério e plural cientes de que só dessa forma vão justificar o sistema de partidos e ajudar a preservar a democracia representativa fundamental para a liberdade e a prosperidade de Cabo Verde.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 792 de 01 de Fevereiro de 2017.

sexta-feira, janeiro 27, 2017

Qualidade. Debate sempre adiado

Educação foi mais uma vez tema de debate no Parlamento. Desta feita foi no âmbito da interpelação ao governo visando confrontá-lo com as suas promessas eleitorais. A opção do governo pelo estudo das línguas, das ciências, das tecnologias e da matemática como via de se chegar a uma economia de conhecimento foi aflorada durante a interpelação, mas rapidamente deixada para trás. Matérias com maior impacto político designadamente carreira e contractos dos professores, bolsas de estudo para os jovens, isenção de propinas e problemas salariais das cozinheiras das cantinas acabaram por monopolizar as atenções e exacerbar as opiniões. Depois disso não ficou muito espaço para se discutir a educação que realmente o país precisa para construir um futuro de desenvolvimento.
É hoje ponto assente a importância central da educação em qualquer estratégia de desenvolvimento, particularmente quando o ponto de partida é o de um país pequeno insular e com uma economia ainda dependente da generosidade internacional. Países pequenos e/ou insulares que se têm distinguido na corrida para o desenvolvimento posicionam-se todos como países de top nos rankings internacionais no domínio da língua, das ciências e da matemática. Nos testes do PISA, Singapura, Macau, Irlanda, Finlândia e Estónia estão entre os que mais brilham. O caso de Singapura, que com somente dez anos mais de independência do que Cabo Verde conseguiu erguer-se para os primeiros lugares, apesar das enormes dificuldades, entre as quais ser uma sociedade constituída por três grupos étnico-linguísticos, devia interpelar a todos.
Em Cabo Verde, ao longo de décadas investimentos importantes foram feitos na educação pelo Estado e pelas famílias, mas os resultados ficaram muito aquém do desejado e do prometido. Quando os lugares no Estado começaram a escassear e a economia não se mostrou capaz de absorver os que das escolas saíam para o mercado de trabalho devia-se ter concluído que o país tinha ido pelo caminho errado. Em vez de focar na educação, como fez a Singapura, para desenvolver a economia e elevar a qualidade de vida e os rendimentos das pessoas, só se viu na educação um meio para mobilidade social via preenchimento de lugares no Estado. O país não ficou mais competitivo, os postos de trabalho que obteve a partir do capital externo são em geral dos mais básicos nos hotéis e nas fábricas e não conseguiu criar nem acumular capacidade intelectual, criativa e empresarial satisfatória. Em consequência, o desemprego manteve-se alto e a mobilidade social diminuiu, aumentando as desigualdades sociais.
Na implementação de políticas de educação a preocupação maior tem sido na massificação do ensino. Nos primeiros 15 anos o foco manteve-se no ensino primário. Nos anos noventa passou para o secundário e proliferaram liceus por todo o país. Na última década o país passou a gabar-se de ter dez universidades. E não se quer ficar por aí. De todas as ilhas vêm revindicações de  autarcas e políticos locais para se criar escolas superiores. Aparentemente a democratização do ensino continua a trazer ganhos políticos. A luta pela qualidade do ensino é que nunca conseguiu granjear apoio sustentado. 
Intermitentemente há declarações públicas a chamar a atenção para a qualidade mas, em geral, não passa disso. Enquanto noutros países no fim do ano lectivo a sociedade e a comunicação social engajam-se na avaliação dos resultados aqui dificilmente consegue-se acesso aos dados e a apreciação final normalmente deixada para o início do novo ano escolar é quase sempre superficial e sem consequências. Privilegiam-se as inaugurações, entregas de kits e iniciativas controversas como o ensino bilingue e estudos de empreendedorismo. Qualidade como Singapura demonstrou depende muito de se ter um bom e motivado professor. Daí o grande investimento da Cidade-Estado na qualificação dos seus professores e o esforço dirigido para elevar o prestígio e o estatuto social da profissão de forma a atrair os melhores.
Em Cabo Verde discutir a qualidade de ensino pode facilmente levar a acusações de que se está a atacar os professores. Não é por acaso que qualquer debate sobre educação acaba por exclusivamente incidir sobre questões sindicais e de carreira dos professores ficando de lado a questão da qualidade. Ninguém quer perder no jogo de arremesso político que pode surgir da discussão. Todos porém acabam por perder porque nada de substancial se altera, ficando a percepção geral aquela já manifestada pelo presidente da república da “qualidade insatisfatória global do nosso sistema de ensino”.   
A par da falta da qualidade no ensino, também se constata a sua inadequação em relação às necessidades do mercado. O número crescente de licenciados desempregados que se juntam aos jovens saídos do secundário e que não encontram ocupação é prova disso. Não poucas vezes criam-se cursos por expedientismo, pelo prestígio ou porque é lucrativo. Envereda-se por exemplo pelo curso caro de medicina quando cursos de enfermagem e em geral de serviços auxiliares de saúde são de grande procura mundial e de possível articulação com uma estratégia de turismo de saúde. Dispersam-se os estudantes por disciplinas de valor prático duvidoso quando menos horas são dispensadas nas ciências e matemática e não se promove o ensino de programação, o “code” que é universalmente reconhecido como base de várias profissões com futuro. Deixam-se perder competências e capacidade em formação designadamente no domínio do mar que depois fazem falta e não potenciam vantagens competitivas que o país angariou ao longo dos tempos e que continuam relevantes hoje.
Articular educação, economia e desenvolvimento revela-se cada dia mais crucial na vida das nações. Também em Cabo Verde devia ser a via privilegiada para um futuro de prosperidade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 791 de 25 de Janeiro de 2016.

terça-feira, janeiro 24, 2017

Incompatibilidades

Uma das bandeiras da liderança de Ulisses Correia e Silva são as incompatibilidades que inclui na proposta de revisão dos estatutos do MpD que vai levar à Convenção de 3 e 4 de Fevereiro. Propõe no artigo 66º  que sejam incompatíveis o exercício designadamente de cargos públicos nas empresas públicas e na pública com cargos partidários executivos a todos os níveis. A mesma incompatibilidade deverá existir para quem é dirigente de organizações não-governamentais ou das que recebem fundos públicos. Quanto aos que exercem um cargo na pública, de direcção nos serviços desconcentrados, fundos sociais e serviços autónomos impede-se que integrem listas de candidatos às eleições autárquicas e legislativas. Há ainda outras incompatibilidades aplicadas aos militantes bloqueando-os a possibilidade de serem dirigentes locais e nacionais e também aos presidentes de câmaras e vereadores de serem dirigentes do partido no município. Uma primeira impressão que se tem da proposta é que é claramente excessiva. Limitam-se os direitos de participação política dos militantes do partido com uma facilidade espantosa. Ao proibir participação nas listas, criam-se inelegibilidades que não existem na Constituição senão para os juízes e para os militares. Noutros casos há restrições de direitos para agentes da pública que não aqueles que o artigo 242º da Constituição permite que a lei possa estabelecer deveres especiais. Quanto às incompatibilidades entre o exercício de cargos públicos e outras actividades que a proposta de estatutos prevê, de acordo com o artigo 241º nº7 da CRCV, só podem existir as que forem determinadas por lei.
Os partidos políticos por força do seu papel constitucional são obrigados a respeitar os direitos, liberdades e garantias e a regerem-se por princípios de organização democráticos. Compreende-se que, devido aos abusos que todos assistiram nos últimos anos derivados da excessiva partidarização da pública e de outros sectores do Estado, se procure pôr um travão efectivo a isso. Mas isso faz-se é pela lei aprovada na Assembleia Nacional e aplicável a todos e não pela via dos estatutos dos partidos.  Os partidos têm vocação de poder e como tal têm entre uma das suas funções preparar pessoas para ocuparem posições-chave no Estado sempre que receberem o mandato do eleitorado para governar. Não significa que o partido não possa contratar ou cooptar quadros de profissões liberais, da academia, do mundo empresarial e da própria pública para servir em cargos seniores. Mas é evidente que tendo o partido uma filosofia política, um legado histórico e um programa sufragado, o núcleo da sua acção no governo deve ser conduzido por quem institucionalmente se preparou para isso. Não contribui em nada para se ter uma pública a funcionar de forma isenta e imparcial coarctar os direitos dos militantes do partido. Deve-se é encontrar um modelo adequado de relação entre o poder político e a aplicável a todos que salvaguarde esses valores e permita que a AP seja eficiente e eficaz na sua actuação. Limitar os direitos dos militantes além de ferir a constituição abre o caminho para manobras perversas em sentido contrário ao pretendido. A oferta de cargos no Estado, por exemplo, pode tornar-se um instrumento de luta política dentro do partido. Para se ver livre de alguém numa comissão política ou outro órgão do partido nomeia-se-lhe para um cargo numa empresa, num instituto ou na . São estas distorções, muitas vezes com consequências gravosas para a democracia e o Estado de direito, que se criam quando os partidos, em vez de se diferenciarem com base nas políticas e na acção política, procuram pôr-se acima dos outros, proclamando uma ética superior. É um caminho que historicamente já demonstrou que não favorece o pluralismo nem o pluripartidarismo e é inimiga do parlamentarismo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 790 de 18 de Janeiro de 2016.

sexta-feira, janeiro 20, 2017

Despartidarizar

Donald Trump toma hoje posse com 45º presidente dos Estados Unidos. Desde há mais de um mês que se conhecem os mais de 4 mil lugares na administração pública americana ocupados actualmente por gente próxima de Obama e que vão ser substituídos por pessoas próximas de Trump e do partido republicano. A outra parte da administração pública americana é profissional e não é afectada por essas mudanças, mantendo-se os funcionários imperturbáveis no seu posto, governo após governo. Assim acontece nas democracias em que a relação do poder político com a administração pública foi devidamente clarificada. Em Cabo Verde, pelo contrário, as acusações mútuas de partidarização da administração pública foram retomadas pelos partidos logo a seguir às eleições legislativas de Março de 2016.
O aparente consenso quanto à necessidade de despartidarização que existiu antes das eleições desapareceu por completo. Nos últimos anos, o ex-primeiro-ministro em várias ocasiões confirmou o que de há muito vinha dizendo a Oposição sobre o estado da administração pública. Em Junho de 2015, por exemplo, José Maria Neves foi peremptório em dizer na abertura da conferência a propósito dos 40 anos da AP que ela precisava ser, “mais imparcial, mais universal e menos partidarizada”. Quando devido à convergência de posições tudo parecia indicar que finalmente haveria condições para se encarar de forma compreensiva a problemática da relação do poder político com a administração pública vários expedientes políticos voltaram a baralhar as coisas.
Em Julho de 2015, o então governo avançou com uma proposta de lei no parlamento instituindo o concurso público como meio de selecção de dirigentes para cargos da administração pública. A oposição viu a iniciativa como forma de tornar permanente as vantagens já ganhas por alguns funcionários e dirigentes ao longo dos quinze anos de partidarização da função pública e não a aprovou. Já como nova maioria saída das eleições de 2016 revogou-a na primeira oportunidade.A partir daí o PAICV passou a rotular de partidarização qualquer mudança nos cargos públicos e o MpD a defender-se que estaria a despartidarizar o que todos sabiam ter estado partidarizado durantes todos esses anos. No puxa-puxa que se seguiu e a que se assiste actualmente, não muito diferente do já visto no passado, o mais normal é que a AP continue no mesmo registo de antes, sem que se verifique o salto que a faria, parafraseando JMN, mais voltada para o bem comum e mais amiga das empresas, dos cidadãos e do desenvolvimento global de Cabo Verde.
Não melhora a situação a opção do governo por uma comunicação menos política e mais tecnocrática aliada ao facto de mostrar preferência nas nomeações por personalidades que no ambiente bipolarizado de Cabo Verde distinguem-se por “ficar em cima do muro”, em detrimento de militantes e dirigentes. A falta do necessário comprometimento político em posições-chave poderá dificultar a tarefa de mover a AP para o papel que dela se espera em relação aos cidadãos, às empresas, à sociedade e ao poder político legitimado nas urnas. Por outro lado, a relação tensa com o partido que virá de prosseguir a opção de deixar dirigentes de fora ou de os forçar a abandonar posições nos órgãos do partido se forem nomeados para cargos públicos não deixará de ter consequências. Com isso arrisca-se a perder de duas maneiras:1- Não ser eficaz na implementação de políticas; 2- Alienar o partido quando nos sistemas parlamentares o governo precisa do seu suporte para cumprir com sucesso a sua agenda. Cabo Verde também perde se, mais uma vez, deixar escapar a oportunidade de ter uma administração pública moderna e profissional que como se vê nos relatórios do Doing Business  é indispensável para se ter um bom ambiente de negócios.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 790 de 18 de Janeiro de 2016.