segunda-feira, dezembro 11, 2017

Vejamos se nos entendemos

A TACV continua a marcar agenda política. Na semana passada foi trazida à baila na discussão da proposta do Orçamento do Estado e logo de seguida foi objecto de interpelação parlamentar. A comissão de inquérito ainda está a ouvir antigos gestores e dirigentes políticos e na segunda-feira os Ministros da Economia e das Finanças foram chamados à comissão parlamentar de finanças para prestar declarações sobre os negócios realizados com a Binter e a Icelandair.  Entretanto, a par das incertezas à volta dos despedimentos na empresa, da criação do hub na ilha s Sal e consequente transferência de vários trabalhadores surgem questionamentos sobre essa relocalização e aparente perda de importância do aeroporto da Praia com supostos prejuízo de muitos passageiros com destino para o exterior e em particular para as comunidades emigradas.
Entre os muitos males da TACV fala-se da dívida, da má gestão, dos custos exagerados de estrutura e do pessoal em excesso. As culpas pelo que aconteceu à empresa são atiradas por todos os lados, atingindo governantes e gestores. Mesmo na situação crítica em que se encontra não se notam sinais de algum consenso sobre como chegou ao actual estado de falência e muito menos de como agir para evitar a liquidação e procurar salvar os activos acumulados e potenciá-los a bem do país. Prefere-se fazer das extraordinárias dificuldades da empresa matéria de arremesso político, campo para o jogo das culpas e pretexto para o levantamento de suspeições de corrupção que nunca chegam a confirmar-se mas denigrem a imagem do país e deixam a população mais cínica em relação aos políticos e à política. O que importava agora era criar uma vontade nacional capaz de encontrar e apoiar uma solução que oferecesse ao país a possibilidade de não se submeter às pressões dos parceiros internacionais mais inclinados à liquidação total da TACV como forma de recuperar a ajuda orçamental suspensa. Infelizmente não é o que se vê.
Já devia ser claro que uma das razões pelos problemas da TACV é o facto de realmente não se separar a gestão da transportadora aérea da condução da política de transportes aéreos do país. Num país arquipélago e relativamente remoto, as ligações inter-ilhas e entre as ilhas e o resto do mundo são cruciais para o desenvolvimento. Acrescentando a isso à existência de comunidades expressivas nos vários continentes cuja ligação afectiva com o país convém manter entre outras razões pelo impacto económico das remessas e das visitas periódicas, vê-se como é de suma importância ter uma política de transportes que responda às necessidades de circulação de pessoas, ao turismo e às actividades económicas viradas para a exportação de bens e serviços. Se durante algum tempo foi necessária manter-se a transportadora nacional como instrumento central dessa política tanto no serviço doméstico como nas ligações às comunidades, é evidente que não era uma situação a perdurar por muito tempo, considerando os custos que era obrigada a suportar com as alterações que se verificam no mercado dos transportes aéreos ao nível global. Num novo quadro a transportadora nacional deveria com transparência ser ressarcida dos custos incorridos nas rotas não rentáveis no âmbito do que fosse considerado serviço público e também uma política de transportes visando aumentar a conectividade do país com o mundo deveria ser implementada de forma autónoma sem se deixar limitar pelas estratégias de rentabilização da empresa pública. Ao se insistir em confundir as duas, só se podia ter como resultado o aumento de ineficiências, o crescimento dos custos e o acumular de dívidas.
O novo governo instalado em 2016, confrontado com a clara falência da TACV e posto perante a urgência de a liquidar para limitar riscos orçamentais, optou pelo caminho que há muito se devia ter seguido. Separou os dois serviços de transporte aéreo e de seguida optou por ceder o tráfego doméstico a uma empresa privada e por reorientar o serviço internacional para o negócio de hub aéreo na circulação de passageiros entre América do Sul, Europa, África, Estados Unidos e Canadá. Para aumentar as chances de sucesso chegou a acordo com a Icelandair – que vários anos atrás foi bem-sucedida em criar um hub no Atlântico Norte com base na Islândia – para gerir a TACV e repetir a façanha no Atlântico Médio, a partir da ilha do Sal. Naturalmente que ao longo do processo forças políticas e outras entidades manifestaram discordâncias ou preocupações em relação às negociações havidas seja com a Binter nos voos domésticos seja com a Icelandair para a criação do hub. A própria GAO, no seu comunicado de 1 de Dezembro, alerta para a necessidade de, no âmbito das privatizações, se assegurar que as transacções individuais respeitem os princípios da competitividade, abertura e optimização na afectação de recursos.
Um facto, porém, é que se tinha de agir e se agiu mesmo que não haja consenso quanto à forma, que insuficiências ainda se mostram no serviço inter-ilhas particularmente quando se trata de cobrir as necessidades de carga de operadores económicos e quando aparentemente a actual operadora não está melhor preparada para desempenhar certos papéis em momentos críticos, em situações de urgência e nas evacuações. As controversas ligadas à relocalização da TACV na ilha do Sal para a criação do Hub ainda tem como base o não reconhecimento que a TACV tem de mudar de modelo de negócios para poder sobreviver e ainda capitalizar os activos acumulados. E o modelo de negócios implicando uma capacidade de processamento em simultâneo de vários aviões, a possibilidade stopover de vários dias, atractivos diversos com base em facilidades fiscais nas compras em zonas francas, etc., identifica a ilha do Sal como tendo as melhores condições para isso. A economia nacional ganhará com todos os negócios aí engendrados.
 A preocupação com os chamados voos “étnicos” deve ser resolvida no âmbito de uma política de transportes que torne mais fácil, mais barato e mais conveniente voar para Cabo Verde e para suas diferentes ilhas. É uma questão estratégica de fundo que importa assumir. Ao emigrante cabo-verdiano interessa-lhe fundamentalmente viajar para Cabo Verde no momento que lhe aprouver, a custo mais baixo e com melhores regalias no transporte de bagagem. Não lhe importa que a viagem seja ou não feita num avião da TACV. Mas certamente que ficará satisfeito se TACV conseguir ser bem-sucedida com a mudança de seu core business e poder ver aviões identificados como a marca Cabo Verde Airlines a transportar milhares de passageiros de um continente para o outro. Assim deveremos ficar todos.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 836 de 06 de Dezembro de 2017. 

terça-feira, dezembro 05, 2017

Convicções ou ligeireza?

O Ministro das Finanças Olavo Correia há dias num encontro com empresários portugueses na cidade do Porto anunciou uma nova Lei Cambial que depois de entrar em vigor em 2018 “vai liberalizar todos os movimentos de capitais de Cabo Verde com o exterior”. Tirando o facto de que a lei ainda não existe – não se sabe oficialmente se a proposta da nova lei cambial foi aprovada no Conselho de Ministros e muitos menos agendada para a discussão e eventual alteração no parlamento – suscitam muitas dúvidas se o simples anúncio de livre movimento de capitais constitui efectivamente um forte atractivo para o investimento directo estrangeiro no contexto de uma economia pequena e frágil. O ministro vê benefícios na possibilidade de transacções de e para Cabo Verde serem feitas “sem qualquer restrição burocrática” ao mesmo tempo que relembra que o escudo cabo-verdiano tem uma paridade fixa com o euro.
O perigo inerente na associação de políticas de livre movimentação de capitais com a existência de paridade fixa, ainda por mais na forma de um peg unilateral não parece ter despertado atenção especial. Não se registou qualquer eco do assunto na comunicação social e do parlamento nada se ouviu porque ainda não chegou lá. São conhecidas porém o papel que tais políticas tiveram designadamente na origem da crise financeira dos países do sudeste asiático em 1997, no Brasil, Rússia e Argentina em 1998-1999 e também em vários outros países noutros momentos. Como reacção, alguns países acabaram por adoptar meios de controlo do chamado “hot money”, os capitais que entram à procura de oportunidades lucrativas e que podem sair em debandada ao mínimo sinal deixando para trás graves perturbações monetárias, reservas delapidadas e dívida externa complicada, particularmente a do sector privado.  
A forma como o governo de Ulisses Correia e Silva vem comunicando políticas muitas delas de fundo e com implicações fortes na vida das pessoas e do país tem deixado as pessoas, a sociedade e até entidades como o Presidente da República de alguma forma perplexas, algo  confusas ou pelo menos com a ideia de que haveria mais coisas a acrescentar. Um exemplo recente está na proposta de lei de orçamento onde se foi ressuscitar o que tanto o primeiro ministro como o ministro das finanças assumiram como sendo políticas de substituição de importações. As alterações aduaneiras previstas no artigo 26 da proposta de lei do orçamento visam proteger a indústria nacional nos domínios do leite e derivados, sumos e água engarrafada. Supõe-se com esse tipo de política que o consumidor perante o preço mais elevado do produto importado passe a consumir o produto nacional e por essa via se viabilize e se rentabilize o investimento nacional.
A experiência de aplicação desse modelo de desenvolvimento em vários países demonstrou que realmente não funciona. Toda a gente fica a perder: os consumidores acabam sempre por pagar mais caro porque a tendência é de o preço do produto nacional com o tempo aproximar-se do importado; a prazo, a indústria nacional no seu conjunto não beneficia porque os produtores perdem a motivação para se tornarem competitivos no preço e na qualidade e serem capazes de conquistar mercado tanto a nível nacional como internacional; também o país não ganha porque com essas politicas a tendência é para as autoridades adiarem as medidas para melhorar a competitividade incluindo as que deviam priorizar a diminuição de custos de factores, a criação de sistemas de transportes terrestres, marítimos e aéreos mais eficientes, o abaixamento dos custos de contexto e a melhoria do ambiente de concorrência com o combate a monopólios e a outras formas de controlo do mercado.
O caminho para proteger o empresariado nacional deve ser outro. O país precisa realmente de um sector privado focalizado em ser competitivo, em contribuir para o aumento da produtividade nacional e em conquistar mercados para exportação de bens e serviços. Não ajuda muito que durante décadas a ênfase nos investimentos públicos, num quadro em que o modelo económico foi por demasiado tempo de reciclagem da ajuda externa deixou o sector privado fragilizado, dependente muitas vezes dos favores do estado e pouco capacitado para aproveitar as oportunidades criadas pelo investimento directo estrangeiro em particular no domínio do turismo. Reverter a situação não pode ser simplesmente pela via das medidas simples administrativas que ignoram a complexidade da situação encontrada, fingem não ver os interesses instalados e subestimam os incentivos existentes que vão no sentido contrário ao pretendido numa economia dinâmica de promover a iniciativa individual e de premiar o gosto pelo risco e a vontade de criar e inovar. A história económica de vários países e também de Cabo Verde demonstra que quem ficou por essas medidas simplistas falhou redondamente e acaba praticamente preso numa economia com fraca capacidade de exportar, com elevado grau de informalidade e baixa produtividade.
Enquadra-se provavelmente nessa busca por algo facilmente identificável e relativamente fácil de implementar a importância dada pelo governo à questão do financiamento no global dos problemas enfrentados pela empresas e potenciais empreendedores. O resultado é o grande esforço que o governo tem posto em criar linhas de crédito, bonificar taxas de juro e instituir fundos de garantia para minimizar o risco dos investimentos. São medidas importantes mas podem não ser as que as empresas mais precisam se tiver em conta que o sistema bancário não tem problemas de liquidez e só não estende crédito a juros mais baixos devido a riscos macrofinanceiros e o risco-país que percepciona não obstante os estímulos vindos do banco central designadamente no que toca a relaxamento das taxas directoras. Muito mais tem que ser feito na criação de um ambiente de negócios que realmente favoreça e compense o indivíduo pela sua iniciativa e pelo seu esforço e disponibilidade em correr riscos  
Como alguém notou recentemente, “se a comunicação falha repetidamente é porque falha aquilo que há a comunicar”. Ou seja, quem não reflecte aprofundadamente sobre a complexidade da situação herdada e procura formular estratégias e medidas de política para a ultrapassar, dificilmente vai poder comunicar eficazmente. No fim do dia as medidas vão dar a impressão de terem sido tomadas com ligeireza mesmo que tenham por de trás a firme convicção de que são as mais adequadas e as mais justas.  E os resultados certamente que ficarão muito aquém do que foi prometido, o que nos dias de hoje de avanço do populismo, constitui um desfecho a evitar a todo o custo porque pode deixar as pessoas mais descrentes e cínicas em relação à política, aos políticos e à própria democracia.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 835 de 29 de Novembro de 2017. 

segunda-feira, novembro 27, 2017

Mais coerência s.f.f

A comunicação social esteve em debate ontem num fórum presidido pelo Primeiro-Ministro Ulisses Correia e Silva. O tema era Serviço Público da Rádio e Televisão mas, como seria de esperar, a questão do papel e da sustentabilidade dos órgãos privados da comunicação social foi trazido à baila. Logo nas intervenções iniciais o Governo apressou-se a anunciar a sua nova lei de incentivos e os 15 mil contos orçamentados para a imprensa escrita e órgãos digitais ao mesmo tempo que deixava no ar promessas de futuras progressões nesse montante e também de benefícios em noutros domínios como a formação. Quanto à questão crucial da publicidade para a sustentabilidade de uma imprensa privada com expressão a nível nacional, o PM remeteu para o próximo ano a definição dos limites à publicidade angariada pelos órgãos públicos.
A realidade da comunicação social em Cabo Verde é ainda marcada pela preeminência dos órgãos estatais vinte sete anos após o 13 de Janeiro e 25 anos de vigência da Constituição de 92 que consagrou o princípio do pluralismo e as liberdades de expressão, de informação e de imprensa. Os avanços da sociedade cabo-verdiana, tanto na instalação e consolidação das suas instituições democráticas como na reestruturação da sua economia deixando de lado os velhos monopólios estatais e promovendo a concorrência nos diferentes sectores, não tiveram correspondência no sector da comunicação social. O monopólio anterior do Estado, em particular na rádio e na televisão, manteve-se praticamente intacto como é apregoado todos os dia nos canais públicos em declarações que é a maior rádio e a maior televisão de Cabo Verde. Outra coisa não podia ser considerando a sua história desde a independência em que, expropriadas todas as rádios privadas, a rádio estatal e posteriormente a televisão passaram a beneficiar do financiamento público via orçamento do Estado, da taxa de televisão e da maior fatia da publicidade comercial e institucional. O que estranha é a manutenção desta situação mais de duas décadas de democracia pois sabe-se qual é em geral as consequências desse estado de coisas, designadamente no que toca ao excesso de pessoal, ao sobredimensionamento dos meios acompanhado de ineficiências diversas, à falta de estímulo para uma gestão que faculte autonomia financeira e diminua a dependência do Estado, à tentação de viver das receitas publicitárias sem falar no que alguém já chamou do peso genético simbólico de décadas de serviço ao Estado.
A suspeita que poderá ter persistido uma cultura de prestar serviço a quem manda é a fonte principal de um conflito que normalmente envolve todas as forças políticas prontas todas elas para acusarem os órgãos e os jornalistas de parcialidade, de discriminação e de serem objecto de pressão. Paradoxalmente, tais acusações acontecem quando estão no governo e quando estão na oposição. A excessiva capacidade de influenciação dos órgãos públicos comparada com a dos privados faz da rádio e da televisão públicas um campo de batalha particularmente virulento onde não se sabe onde termina a tentação de quem governa em fazer uso da sua posição privilegiada para passar a sua mensagem e começa a desconfiança dos opositores de que alguma manipulação está a acontecer. Em tal ambiente muito dificilmente se pode esperar que apareça e se desenvolva o jornalismo de referência que todos consideram ser fundamental  neste mundo de fake news, de pós verdade, em que as redes sociais parecem já estar a assumir o papel de mediação, até agora detido pela comunicação social e que é essencial para o funcionamento e consolidação da democracia. Que os órgãos públicos não conseguirão ser porta-estandarte do jornalismo de excelência e de referência que todos almejam é um facto que reconhecem e deixam transparecer nas suspeitas trazidas a público e nas acusações de auto-censura. Que a batalha pelo seu controlo é um dos factores de continuada crispação política no país é um facto também indesmentível. Por isso, continuar a alimentar a “criatura” através de fluxos financeiros de três ou mais fontes de recursos não parece ser muito inteligente, particularmente quando se sufoca outras vias e se impede que um novo paradigma de comunicação social se erga e se consolide em Cabo Verde, um paradigma mais consentâneo com o que se encontra nas democracias modernas.
 A Constituição da República determina que haja sempre um serviço público de rádio e televisão. Não estabelece porém qual deve ser a sua dimensão. Provavelmente dependerá da orientação ideológica do governo dimensionar  os canais públicos  simplesmente para suprir as imperfeições do “mercado de comunicação social” em termos de pluralismo e de universalidade ou alternativamente colocá-los em posição de maior peso vis-à-vis aos órgãos privados. A opção por uma maior fatia no “mercado” da comunicação social contraria de algum modo políticas que tendem a uma maior autonomia da sociedade civil, a dar um papel decisivo ao sector privado na dinamização da vida socio-económico e cultural do país e a promover uma cultura de transparência e “accountability” essencial num Estado de Direito. Não é por acaso que a experiencia de várias democracias designadamente Portugal, Espanha e França dá conta da dinâmica verificada na comunicação social e na quantidade e qualidade de informação disponível para as pessoas na sequência de licenciamento de rádios e televisões privadas acompanhado de limitações ou mesmo proibição de publicidade nos órgãos de serviço público.
O governo de Ulisses Correia e Silva prometeu 15 mil contos em incentivos para contribuir para a sustentabilidade da comunicação social privada. É manifestamente insuficiente. O Expresso das Ilhas paga mais do que essa quantia anualmente à gráfica local só para impressão enquanto em regra recebe por ano mais ou menos 2 mil contos do Estado para compensar os seus múltiplos gastos. Alargar a distribuição de incentivos anteriormente dirigidos para a imprensa escrita também para os online que não têm despesas de impressão e de distribuição nem precisam que o leitor contribua com cem escudos para ter acesso ao conteúdo não contribui para minorar as dificuldades com que os jornais se confrontam na actualidade. Dificuldades essas tornadas piores com a concorrência dos órgãos públicos que com o acesso privilegiado a publicidade institucional e financiados por outras vias em certos momentos podem praticar preços que até sugerem operações de dumping. É evidente que continuando assim dificilmente se poderá inverter a herança recebida do partido único da hegemonia dos órgãos públicos com todas as consequências já conhecidas, designadamente na qualidade da comunicação social e da própria democracia.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 834 de 22 de Novembro de 2017. 

terça-feira, novembro 21, 2017

As estiagens já não deviam meter medo

2017 já está a perfilar-se como um dos anos terríveis de seca. De acordo com as declarações à imprensa do ministro Gilberto Silva  pluviosidade neste ano ficou pelos 109 mm quando a média das precipitações no país é inferior a 300 mm. Calcula-se em mais 17.000 as famílias afectadas pela crise gerada pela falta de chuvas que directamente prejudica tanto a agricultura como a criação de gado. Devido à escassez geral, culturas tradicionais de sequeiro não foram feitas, os regadios estão a sofrer com a diminuição drástica de água disponível e o gado sem o precioso líquido fica em risco de sucumbir e não tem pasto para se sustentar. O rendimento de muita gente no mundo rural, que normalmente depende do que pode extrair da terra e da criação de animais para completar outros benefícios que recebe designadamente as remessas de familiares, de repente ficou sem um dos seus pilares. Todo o país se alarmou. O governo promete avançar com programas de emergência e diligências já foram feitas para mobilizar ajuda internacional. O que ficou claro mais uma vez foi que, 42 anos após a independência nacional, a vida continua tão precária como antes para muita gente em Cabo Verde. 
Anos de seca não são novidade no país. Séculos de existência pontuados por crises periódicas, que em vários momentos resultaram em fomes mortíferas, dão conta da fragilidade das ilhas. A irregularidade das chuvas contribuiu para manter a população pequena e nunca deixou que uma economia agrária realmente se viabilizasse. Com a independência a ajuda internacional passou a contribuir decisivamente para que as secas não se transformassem em momentos de calamidade para as populações. Já na edificação de uma economia rural que diminuísse a precariedade da existência das pessoas, a ajuda não foi tão bem sucedida, não obstante os muitos milhões gastos na construção de estradas de desencravamento, de diques e barragens e ainda nos mil e um projectos dirigidos às populações ao longos dos anos cujos resultados muitas vezes não se viam depois de terminado o financiamento. Vários factores contribuíram para que dos enormes investimentos feitos se obtivessem os magros resultados hoje constatados e que aparecem nas estatísticas oficiais como, por exemplo, as que põem o interior de Santiago com o menor rendimento per capita do país. 
O principal factor seguramente foram as políticas públicas que se revelaram incapazes de criar uma outra base de sustentabilidade que permitisse ao país crescer e criar empregos fora do mundo rural. Aparentemente a história das sucessivas secas ao longo dos séculos não serviu muito para desencorajar tentativas de reviver o mundo rural quase nos mesmos moldes de sempre. As opções de política desde o início focalizaram-se nas populações lá onde viviam com intervenções e projectos ostensivamente anunciadas para aumentar a autonomia e melhorar a base de existência das pessoas mas que na prática serviram essencialmente para tornar as pessoas dependentes do Estado. Explicitamente com essas políticas procurava-se evitar o êxodo rural mas empregos suficientes para reter as pessoas dificilmente podiam ser criados. A estrutura da propriedade não se alterou significativamente, persistindo as pequenas explorações familiares, as culturas continuaram basicamente as mesmas salvo algumas inovações e os constrangimentos de transportes, distribuição e de acesso a mercados mais alargados não foram ultrapassados. A produção agrícola do país continuou a ser essencialmente de subsistência. Por isso que qualquer quebra nas precipitações expõe tão abertamente a precariedade dos rendimentos das pessoas que dela vivem.
A opção pelo desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa alimentou-se durante anos dessa precariedade, tanto induzida como reproduzida, mobilizando a generosidade internacional para responder às situações de emergência que ciclicamente surgiam. Embalados nessa via os governantes não procuraram durante largos anos criar alternativas efectivas de emprego na indústria e nos serviços. Constrangimentos ideológicos e outros impediram que se adoptassem políticas de atracção de investimento directo estrangeiro, que se fomentasse o turismo e se desenvolvessem indústrias viradas para a exportação como aconteceu nas Maurícias e em vários outros países que originariamente tinham uma economia predominantemente agrária. Pagou-se essa “negligência” com o chamado desemprego estrutural que andou sempre nos dois dígitos e entre os jovens à volta dos 40% e com a persistência da vulnerabilidade da população que segundo o Ministro de Finanças ainda alberga no seu seio 170 mil pobres e 50 mil pessoas em estado de pobreza absoluta.  
A facilidade com que recentemente muitos se deixaram levar pelo ilusionismo das barragens que mobilizavam toneladas e mais toneladas de água para suportar clusters de agronegócios e criar emprego no mundo rural mostra o quanto é arreigado o sonho em certos círculos que se Cabo Verde chovesse, acabavam os problemas e seriamos todos felizes. Muita política faz-se explorando esses sentimentos. O resultado é que muitos recursos que podiam ser aplicados em sectores da economia capazes de criar emprego, aumentar a produtividade e contribuir mais para a produção da riqueza nacional,  são investidos nos mesmos projectos que já provaram não ter retorno significativo. Não é à toa que após muitos milhões de contos aplicados no mundo rural em Cabo Verde grande parte da agricultura não passa de uma agricultura de subsistência incapaz de se suster sem subsídio do Estado e muito pouco resiliente face a quebras na pluviosidade. 
Devia-se esperar que esta crise, ao revelar de forma dramática a fragilidade da abordagem que se tem feitos dos problemas do país, servisse de alerta e de convite à uma mudança de atitude. É um facto que crises similares no passado não tiveram esse efeito. Espera-se que desta vez, em que claramente o país está numa encruzilhada, se veja a luz. É urgente uma nova atitude que finalmente ponha o país no caminho da modernização em que, a exemplo de outros países que souberam abandonar a postura nostálgica em relação a um passado muitas vezes fictício, o foco seja colocado nos sectores de mais peso na economia e com maior potencial de crescimento. A agricultura deverá ter sempre um papel importante mas há que ultrapassar os constrangimentos da distribuição, transporte e acesso a mercados, focalizar em produtos de maior valor acrescentado e inovar para a tornar mais produtiva, a fim de libertar mão-de-obra para sectores mais dinâmicos. Talvez assim se construa uma nação em que, com o poeta, se pode dizer: “…as estiagens já não nos metem medo”. 


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 15 de Novembro de 2017.

segunda-feira, novembro 13, 2017

Nós e a Revolução de Outubro

Ontem dia 7 de Novembro, 25 de Outubro no calendário juliano, completaram-se cem anos da revolução russa que, parafraseando o escritor americano John Reed, em dez dias abalou o mundo. De facto depois da tomada de poder em S. Petersburgo pelos bolcheviques comandados por Lenine nunca mais o mundo foi o mesmo. A luta de ideias a que deu origem, opondo o comunismo à democracia liberal e constitucional e a economia estatal à economia de mercado, marcou todo o século 20. Surgiram rivalidades geopolíticas em todos os continentes à medida que revoluções similares eram tentadas e a partir da segunda guerra mundial materializou-se a divisão do mundo em dois blocos político-militares com capacidade nuclear de destruição de toda a humanidade. O ciclo de antagonismo ideológico aberto pela revolução russa só viria a fechar-se em 1991 com o desmoronar da União Soviética após acontecimentos como a Queda do Muro de Berlim em 1989 e libertação de toda a Europa de Leste do jugo soviético.
As promessas da revolução de uma sociedade sem classes, sem exploração do homem pelo homem e com garantia que todos receberiam segundo as suas necessidades seduziram muitos não só na Rússia como em todo o mundo designadamente intelectuais, artistas e jovens. Também provocaram reacções que depois viriam a revelar-se de grande impacto na forma de organização da sociedade e na relação entre os povos. Nas democracias mais frágeis, a resposta ao desafio comunista levou em alguns casos ao fascismo e noutros a derivas autoritárias de toda a espécie com custos humanos e de liberdade sem precedentes, como foi o caso da Alemanha Nazi. Nas democracias consolidadas, o desafio comunista foi respondido com dinâmica económica que alargou a classe média e com a edificação do Estado social que procurou acautelar os interesses dos trabalhadores e estendeu a todos os serviços sociais de saúde, da educação e da protecção da infância e da velhice. Já o confronto com os países detentores de impérios coloniais contribuiu para fazer do comunismo a grande referência ideológica de muitos nacionalistas na África, Ásia e na América Latina na luta pela independência e posterior utilização das suas soluções na condução da economia e na organização da sociedade.
O falhanço do comunismo em trazer a prometida prosperidade económica acrescido dos extraordinários sacrifícios impostos com a perda da liberdade, a perseguição política dos opositores, os milhões enviados para trabalhos forçados e outros milhões condenados à morte em fomes artificialmente criadas precipitou o seu desmoronamento em todo o mundo nos últimos anos da década de oitenta e início dos anos noventa. O fenómeno da queda em cadeia de regimes totalitários em todo o mundo foi chamado de grande extinção leninista por alguns autores. Lembrou a desaparição rápida dos dinossauros no Jurássico. Para autores como Fukuyama o fim do combate ideológico com a vitória da democracia liberal e da economia de mercado sobre o comunismo na época configurava simultaneamente o fim da história em que já não haveria alternativa aos princípios e valores da dignidade humana, da liberdade individual, do pluralismo e do primado da Lei. Os factos porém vieram posteriormente confirmar que, como há dias escreveu Anne Applebaum no Washington Post, as ideologias totalitárias nunca morrem e nem acaba a sua capacidade de seduzir.
Cabo Verde também viu o regime de partido único soçobrar e desaparecer nessa grande extinção leninista. Quinze anos antes o país tinha ganho a independência ficando sob a direcção do PAIGC, um movimento de libertação que como vários outros se inspirou na ideologia e nos métodos organizativos do partido de Lenine. Como seria de esperar, o regime cerceou as liberdades, hostilizou o sector privado e consolidou o poder único do partido numa perspectiva  totalitária. Como partido de inspiração leninista via-se como intérprete do devir histórico do país, único conhecedor dos reais interesses dos caboverdianos e um demiurgo criador de nações à maneira como foram criados o povo soviético e o povo ioguslavo: a luta de libertação é, como não deixava de repetir, um acto de cultura. Ainda predispunha-se a criar um chamado homem novo ideologicamente educado, livre de complexos burgueses ligados à propriedade e à família e sem nenhum interesse pela democracia representativa com as suas eleições livres e plurais e seu Estado de Direito. Curiosamente o fim do regime, como aconteceu noutras paragens, acelerou com o fracasso repetido em ultrapassar as dificuldades económicas seguida de estagnação no fim dos anos oitenta. Quando se quis reestruturar para ganhar espaço político, perdeu ostensivamente.
O centenário da revolução russa é um dos tais momentos para relembrar o quanto prejudicial e mesmo catastrófico foi o facto das pessoas se deixarem levar por uma ideologia que prometeu tudo e só, de facto, matou a liberdade, substituiu a verdade pela mentira e na sua ânsia de poder orientou-se pelo princípio segundo o qual os fins justificam os meios, abrindo caminho para regimes cruéis e responsáveis pelas maiores mortandades na História. Como diz Anne Applebaum no artigo citado há sempre que explicar às novas gerações as consequências do desvio iliberal e assegurar-se que saberão reconhecer as tácticas de  quantos denigrem a democracia representativa e procuram nas várias estratégias de reprodução do actual modelo de desenvolvimento manter a dependência das pessoas, fragilizar as instituições e minar a confiança nos procedimentos democráticos.   


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 832 de 08 de Novembro de 2017. 

segunda-feira, novembro 06, 2017

Banco Mundial surpreso?

Na semana passada uma equipa do Banco Mundial apresentou no quadro do Diagnóstico Sistemático do País (SCD) uma apreciação sombria sobre o percurso de Cabo Verde nos últimos anos. Ouviram-se frases como “a qualidade das infraestruturas está abaixo de países semelhantes”, “o maior crescimento vem do sector público e o sector privado não um papel significativo”, “a eficiência da administração pública está a declinar”, e “educação e formação inadequada da força laboral”. Também os técnicos do Banco Mundial não deixaram de apontar que, em relação à problemática da redução da pobreza, “depois de tantos anos a gastar dinheiro em programas sociais não sabemos quão efectivos foram porque há muito poucos dados” e ainda de constatar que “a dívida pública disparou, situando-se acima dos 120% do PIB”, facto que está a impedir o país de se tornar “resiliente aos choques externos”. 
As frases só surpreenderam porque vinham de quem as proferiu. Há anos que as forças políticas da oposição, observadores de vários quadrantes e operadores económicos privados chamavam a atenção para a dívida crescente, infra-estruturas de valor duvidoso, educação de fraca qualidade e o efeito negativo da administração pública sobre o ambiente de negócios e a competitividade do país, sem encontrar muito eco nos documentos e declarações finais das sucessivas missões do FMI e do Banco Mundial. Pelo contrário, não poucas vezes ficavam na posição de corroborar as posições do governo e de suportar expectativas de crescimento que viriam a revelar-se muito abaixo do real. Em 2014 a previsão de crescimento situou-se oficialmente no intervalo 3,5% - 4% do PIB, mas na realidade foi de 0,6%. Em anos anteriores a disparidade entre a previsão e a realidade não foi muito diferente mas isso não impediu que nos documentos oficiais dessas instituições não subsistissem muitas dúvidas, por exemplo, em relação à dívida pública que o governo de então insistia que era perfeitamente sustentável porque concessional. Compreende-se que não é próprio dessas instituições fazer o papel dos partidos da oposição ou de porta-voz das críticas da sociedade civil e das preocupações dos agentes económicos, assim como não deve certamente ser seu papel dar respaldo ao que oficialmente se diz para fugir à responsabilidade e não tomar as medidas que as circunstâncias impõem.
O facto porém é que com o passar do tempo o problema torna-se mais complexo, a situação se agrava e não há muito por onde ir. Ninguém sabe o que fazer quando o recurso à ajuda externa e ao crédito diminui consideravelmente e no meio termo o país não conseguiu pôr de pé sectores da economia que pudessem funcionar como motores do crescimento e da criação de emprego. Entrementes as empresas públicas ameaçam soçobrar sob o peso da dívida acumulada e, no ambiente de incerteza e riscos macrofinanceiros, o investimento privado nacional e estrangeiro não consegue substituir o investimento público no ritmo desejado. O resultado é o fraco crescimento, as dificuldades de criar emprego e a dependência crescente de sectores que, embora dinâmicos por impulso do exterior como é o caso do turismo, na prática não conseguem arrastar suficientemente o resto de economia.
Nesses momentos – o encontro da semana passada com Banco Mundial é um exemplo - depois de anos de aparente complacência com resultados medíocres, eis que essas instituições como que reaparecem e exigem medidas draconianas sem demonstrar grande preocupação com as consequências para além de limitar o défice orçamental, conter a dívida pública e assegurar os pagamentos externos. Com se viu no caso da TACV, insistem com a reestruturação/liquidação da empresa e não têm rebuços em usar a suspensão da ajuda orçamental como instrumento de pressão ao governo. No mesmo sentido vão outras medidas de reestruturação propostas, incluindo privatizações, dirigidas primariamente para colocar esses índices em valores mais geríveis mas que a prazo podem revelar-se pouco adequadas para garantir crescimento rápido e o desenvolvimento sustentável da economia. O facto de não se sentirem co-responsáveis pelo que possa vir a acontecer ao país apesar das periódicas missões de monitorização e aconselhamento devia servir para lembrar aos legítimos governantes que está nas suas mãos a responsabilidade pelo desenvolvimento do país.
Essas organizações internacionais têm a sua própria agenda que nunca é idêntica à agenda nacional apesar de eventualmente partilharem elementos comuns ou convergirem em atingir os mesmos objectivos e metas. As doações, empréstimos ou investimentos no âmbito de ajuda externa seguem uma lógica que pode ter pontos de contacto com aspectos da estratégia nacional mas não são coincidentes. Nenhum país do mundo se desenvolveu com base simplesmente nas prescrições das instituições de Bretton Woods. Todos tiveram que encontrar a sua via, traçar a sua estratégia e ser capaz de negociar com as instituições estrangeiras multilaterais de forma a potenciar ao máximo os recursos disponibilizados em benefício de um crescimento rápido e inclusivo. 
Pôr definitivamente de lado o modelo de reciclagem de ajuda e abraçar a via que colocará o país na posição de criar riqueza deve passar também por rever toda a relação com essas instituições de forma a que não seja marcada pela submissão, facilitismo e ausência de uma estratégia própria. Depois de décadas de condicionamento do comportamento do Estado e dos seus agentes devido à ajuda externa há que construir o caracter e a competência esperados de um povo independente.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 831 de 31 de Outubro de 2017.

segunda-feira, outubro 30, 2017

Ir além do corporativismo

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em 2016, num discurso proferido no início do ano judicial em Portugal disse que desde os fins dos anos noventa a Justiça está sob um escrutínio mais apertado dos portugueses. Clamam por uma justiça menos lenta e mais acessível e o país, por sua vez, precisa de uma justiça mais eficaz no dirimir de conflitos, na defesa dos direitos e em fazer cumprir obrigações legalmente estabelecidas para ser mais competitivo e atrair mais investimento privado nacional e estrangeiro. A atenção recente sobre a justiça seguiu-se a períodos em que o foco sobre os problemas do regime democrático inaugurado com o 25 de Abril recaía algures: nos primeiros tempos era ultrapassar a relação com os militares de Abril, depois foi abrir a Constituição para suportar uma economia de mercado e por último a necessidade de integração na Europa. Com as energias concentradas nos centros políticos de decisão deixou-se evoluir por si próprio o poder judicial sem o acompanhamento que os tribunais como órgão de soberania e fundamentais para o sistema democrático e para o Estado direito mereciam. O resultado, como notado no último Painel sobre a Justiça na União Europeia (2017), Portugal está entre os países com a justiça mais lenta: “A Justiça portuguesa demora, em média, 710 dias para resolver processos cíveis, comerciais e administrativos nos tribunais da primeira instância, sendo apenas ultrapassada pela do Chipre, que ascende aos 1085 dias”
Situação análoga terá acontecido em Cabo Verde, uma democracia ainda mais jovem em que a edificação das instituições democráticas revelou-se algo mais complexa porque realizada num ambiente pressionado para fazer a mudança na continuidade tendo como “parceiro” no papel de força política de oposição o partido que durante 15 anos encarnou o regime anterior. A actividade política necessária para garantir a estabilidade política e ao mesmo tempo realizar as reformas profundas que se impunham no processo de transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado concentrou grande parte da atenção dos sujeitos políticos e da sociedade em geral. Como em Portugal, o poder judicial em Cabo Verde, que todos agora em democracia queriam que fosse independente e sem estar sujeito a interferências estranhas, pôde durante muitos anos navegar “abaixo do radar” do escrutínio público. Nesse quadro persistiu a lentidão da justiça conhecida por todos e aproveitada por muitos para conseguir a impunidade em muitas situações com prescrições de casos e com impossibilidade prática de execuções, de despejos e de cobranças de dívidas. Quantas vezes cidadãos e operadores económicos prejudicados nos seus interesses na relação com o Estado também não ficaram com forte impressão que agentes ou entidades públicos aproveitaram-se da esperada lentidão da justiça para não os ressarcir nos seus direitos.
Hoje, depois de anos de estabilidade democrática e de alternâncias dos partidos no governo, há mais tempo para um olhar mais profundo e escrutinador sobre o sector da justiça particularmente porque insiste em não responder com resultados às expectativas das pessoas. Depois de anos a pedir meios e recursos diversos, a sua eficácia não se alterou significativamente com perdas para as pessoas, para as empresas e para o país que se vê sem competitividade e sem atractividade para o capital estrangeiro tão fundamental para o crescimento económico e para a criação de empregos e para a expansão das exportações de bens e serviços. O empoderamento das magistraturas com alargamento das suas competências na gestão e disciplina dos magistrados e das secretarias judiciais e as transferências de meios correspondentes não teve os resultados esperados. A percepção que faltava um esforço consequente e comprometido ganhou força quando todos se aperceberam que não conseguiam pôr de pé um serviço de inspecção dos juízes e das secretarias judicias essencial para efectiva gestão dos mesmos. Parece que os conselhos se acomodaram durante anos à falta de vontade dos magistrados em servirem como inspectores por razões de natureza pessoal, de amizade, familiaridade ou proximidade mas que naturalmente são tomadas por qualquer outra pessoa como sinal de desresponsabilização em relação ao serviço público a que são obrigados. Vinda a público, esta falha grave quanto à inspecção judicial foi a pedra no charco que deitou tudo a perder e atraiu críticas de vários quadrantes, algumas justas e outras nem tanto. As pessoas apercebiam que, se os magistrados enquanto corpo não se sentiam pressionados para se avaliarem, como iriam mostrar uma atitude diferente quando fosse de melhorar a produtividade e de aprimorar o comprometimento na prestação de serviço público.
Nos anos que se seguiram à revisão constitucional de 2010 assistiu-se ao reforço do espírito corporativo na magistratura judicial em sintonia com as alterações constitucionais no sentido de maior autonomia e independência do poder judicial. De facto, o STJ passou a ser constituído só por magistrados judiciais, o CSM ganhou maioria absoluta de magistrados e já podiam ser remunerados por funções de docência prestados a outrem. Foi alterada significativamente a relação com o governo através do Ministério de Justiça com a autonomia administrativa e financeira dos conselhos de magistratura que passaram a ter orçamento próprio que já atinge no orçamento de 2018 o valor de várias centenas de milhares de contos. Apesar do afã em transferir poderes e recursos não se verificaram os progressos na administração da Justiça que era esperada.
Neste particular, também os outros componentes do sistema, a polícia, o ministério público e a ordem dos advogados não se têm mostrado muito diferentes. Todos muito ciosos das suas prerrogativas, em geral, não têm ou são incipientes os mecanismos internos de inspecção com capacidade para avaliação de mérito ou de reavaliação de métodos ou técnicas ou planos de acção. Respondem com tiques corporativos às críticas ou exigências de melhor prestação e não poucas vezes defendem-se passando a culpa de uns para os outros ou queixando-se da falta crónica de meios. Ultrapassar este estádio em que a relação com o poder mostra-se mais no sentido de usufruto e menos de exercício é fundamental para que haja convergência de forças e de vontades que podem fazer tudo acontecer com profissionalismo e com responsabilidade. É isso que o país e as pessoas esperam de quem mesmo não sendo eleito exerce funções vitais para a salvaguarda da democracia e do Estado de Direito. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 830 de 25 de Outubro de 2017.

segunda-feira, outubro 23, 2017

À procura de economias de escala

Cabo Verde tem um problema central de escala. O relatório da Competitividade 2017 põe o país na posição 137 em 138 países quanto à dimensão do seu mercado, tanto interno como o externo. É um facto que a dimensão do país, a pequenez da sua população e a sua posição geográfica afastada dos grandes centros dinâmicos da economia mundial tornam extremamente complexa encontrar uma via rápida para o desenvolvimento. Tal constrangimento nem sempre foi tido em devida conta pelos governantes ao longo dos anos. Perdeu-se tempo com modelos de desenvolvimento com base na substituição de importações, não foram aproveitadas no tempo certo as oportunidades de exportação que existiam no quadro do Sistema Geral de Preferências e evitou-se como se praga fosse o turismo que poderia trazer procura externa necessária para a dinâmica da economia. Há mais de 25 anos que se assumiu que o caminho deve ser outro, que o país tem que se focar na produção de bens e serviços, expandir os mercados e tornar-se competitivo para poder desenvolver e prosperar.

Saber que é assim, não significa porém que se queira fazer para que aconteça. A via aparentemente mais fácil da reciclagem da ajuda externa foi a miragem que não deixou que a orientação do país fosse mais consequente em contornar o problema estrutural de mercado exíguo. Não se insistiu com políticas de atracção de investimentos externos que além de capital e tecnologia trouxesse mercados, nem se procurou no quadro de uma perspectiva estratégica mobilizar um fluxo externo forte de pessoas na condição de turistas, de visitantes, ou de pensionistas. Não estranha que cresça cada vez mais a sensação de que se esticou a corda demais e que hoje com a dívida pública pesadíssima, reformas estruturais por fazer, custos elevados de factores, um capital humano aquém do exigível e sérias dificuldades em certas empresas estatais a economia não avance com a rapidez que seria de esperar. As sucessivas quebras de eficácia em sectores-chave da vida do país designadamente nos transportes aéreos, segurança, justiça, saúde, educação, transportes marítimos, passam a impressão de que se atingiu um limiar preocupante que para não ser ultrapassado irá exigir outra atitude e outro comprometimento para se ter uma inflexão positiva no rumo que as coisas parecem estar a tomar.
Caso paradigmático do que está a passar é a questão à volta dos transportes marítimos inter-ilhas que tem dominado as conversações entre os armadores e governo. A realidade actual é que as ilhas padecem de um sistema de transporte marítimo que com regularidade, custos justos e segurança as liguem por forma a que o país deixe de ter o mercado fragmentado, imprevisível e dominado por ciclos de carências e abundâncias que na prática inviabilizam muita actividade económica ou deixam-na basicamente na condição de actividade de subsistência. De facto, sem um mercado interno unificado pelas verdadeiras auto-estradas ligando as ilhas que seria ter uma carreira regular a baixo custo não é possível potenciar para além da subsistência básica o pouco que ainda o país consegue produzir e movimentar para o mercado. Muito menos pensar em aproveitar-se da procura gerada pelo turismo em particular nas ilhas orientais para dar o salto para actividades económicas que realmente tragam rendimento significativo às famílias e sejam capaz de criar e garantir empregos em número suficiente para debelar o desemprego, há muito estrutural em Cabo Verde.
Como se pode constatar das queixas dos armadores e também dos utentes, é claro que uma primeira e grande dificuldade em ter transportes frequentes a custos razoáveis entre as ilhas está relacionado com o volume de mercadorias e de passageiros que o país consegue movimentar nas actuais circunstâncias. O mercado pequeno faz com que as ligações sejam infrequentes e caras. A falta de regularidade inibe a produção de mercadorias e prejudica o estabelecimento da relação de compra e venda que poderia hipoteticamente justificar maior frequência e custos mais baixos. Romper este círculo vicioso com subsídios, concessões de linha e eventualmente outros mecanismos, designadamente taxas e facilidades portuárias mais ajustadas devia há muito ser uma prioridade das políticas do país. Particularmente quando se está em presença de mercados potenciais em expansão rápida nas ilhas do Sal e da Boa Vista que bem podiam ser explorados se dado o empurrão inicial com sentido estratégico. O país precisa urgente que o turismo tenha cada vez maior capacidade de arrastar o resto da economia viabilizando mais iniciativas económicas, criando mais emprego e aumentando o rendimento disponível.

A consciência de que é preciso criar escala em termos de mercado, de volume de carga e de movimentação de passageiros, deve guiar a actuação das autoridades no seu esforço de aumentar rapidamente o impacto que o turismo tem sobre o resto da economia e também de diminuir as assimetrias regionais pela via da potenciação da capacidade produtiva de cada ilha. Dificilmente, porém, se conseguirá fazer isso se se continuar com o que é aparentemente a tendência actual de abrir completamente os portos da ilha do Sal e da Boa Vista ao tráfego internacional. A diminuição de carga na cabotagem que implicará com a chegada de contentores directamente do exterior certamente que não irá contribuir para o abaixamento do preço e aumento da regularidade do tráfego inter-ilhas. Os produtores nacionais terão sérias dificuldades em competir com fornecedores designadamente das Canárias que chegam directamente aos mercados turísticos dessas duas ilhas. Para o Estado, a consequência será manter indefinidamente subsídios para a cabotagem sob pena de ver aumentar ainda mais as assimetrias. Globalmente para a economia nacional significará menor participação da produção nacional, menos crescimento, mais migrações internas e desemprego persistente.
A realidade histórica do desenvolvimento económico não postula sucesso no desenvolvimento nos países que abriram completamente o seu mercado interno aos operadores estrangeiros deixando vulnerável o empresariado nacional. Em países com mercados pequenos a situação é mais complexa porque há situações em que há mercados imperfeitos e outras onde há falha completa do mercado e o Estado tem que intervir. No caso de Cabo Verde, a actuação do Estado devia pautar-se por uma actuação flexível e inteligente no sentido de ultrapassar as imperfeições do mercado, de ajudar na superação da fraqueza do empresariado local e de criar condições para o melhor aproveitamento das oportunidades. Infelizmente, não tem sido assim como bem testemunha o programa Casa para Todos e projectos similares. Às estratégias dos outros há que responder com uma estratégia própria que garanta a realização e sucesso do empresariado nacional nas condições restritivas do mercado existente no país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 829 de 18 de Outubro de 2017. 

segunda-feira, outubro 16, 2017

Inquietações

O início do novo ano político ficou marcado pelo caso dos manuais escolares que dominou o debate público tanto nos órgãos de comunicação social como nas redes sociais e em outros espaços informais. Os erros flagrantes, as dificuldades do ministério da Educação em se explicar e o protorganismo do primeiro-ministro ao longo do episódio garantiram que a atenção do país nele se fixasse até o momento em que as autoridades cederam e retiraram os manuais com promessa de uma nova edição revista. O incidente, na sequência de outros que têm deixado as pessoas algumas vezes perplexas e outras vezes apreensivas, acabou por criar uma certa inquietação. A alternância de governo em 2016 tinha alimentado a esperança que se ia fazer diferente, pôr fim ao ilusionismo e focalizar-se na criação de riqueza e prosperidade geral. Um caminho que exigiria mais eficiência na utilização dos recursos e maior eficácia em obter resultados. A inquietação vem da percepção de que se estará a perder tempo, recursos e oportunidades quando o país, por todas as razões já sobejamente conhecidas, pouco espaço tem para manobra.
Martin Wolf, o economista chefe do jornal Financial Times, num artigo recente, deixou claro que economias que não crescem são as em que a liderança se caracteriza em  insistir num  pensamento mágico, falha em criar incentivos que motivam as pessoas a criar riqueza, menospreza a importância das instituições em garantir esses incentivos e não reconhece a importância central do investimento privado nacional e estrangeiro na dinamização da economia. Ora, em Cabo Verde nos últimos anos viveu-se muito à custa do discurso mágico, os incentivos visaram mais aumentar a dependência do Estado, a segurança jurídica e institucional ficou muito aquém do desejável e ninguém procurou traçar uma estratégia de atracção de investimento externo, deixando-se levar pelo que era oferecido pelos operadores como aconteceu em sectores como o turismo, indústrias e transportes. Os resultados não podiam ser os melhores e depois de mais de cinco anos de crescimento médio à volta de 1% é que aparecem sinais de que poderá subir patamares superiores como o já verificado no crescimento do PIB em 2016 de 3,8% e a previsão do FMI para 2017 em 4%.
 Uma nota de aviso está porém presente nas projecções nos anos seguintes até 2022. Só se projecta que o crescimento passe para 4,1% do PIB em 2018 e aí se mantenha até 2022. Compreende-se que para as instituições de Bretton Woods não haja grandes expectativas de crescimento se se tiver em conta que o ambiente de negócios e a competitividade actual do país assim como foi avaliado pelo Forum Económico Mundial o situa no grupo dos piores entre os 138 países do relatório. Romper com este estado de coisas não é fácil, mas é o que se espera do actual governo para que o país atinja os níveis de crescimento económico necessários para realmente debelar o desemprego, combater a pobreza e manter viva a esperança da mobilidade social e prosperidade futura. Aliás, a promessa do crescimento de 7% para se poder criar os 45 mil postos de trabalho foi feita com essa convicção. Por isso que a reacção nem sempre satisfatória do governo em termos comunicacionais e mesmo de oportunidade perante percalços diversos tem trazido alguma inquietação. Há nas pessoas uma percepção profunda de que o país está numa encruzilhada e que para poder ultrapassá-la é fundamental uma liderança com visão e determinação e com capacidade para congregar vontades na consecução dos objectivos propostos. 
Mais do que nunca as pessoas querem ver eficácia na acção governativa mesmo quando não concordem totalmente com as políticas ou tenham uma perspectiva política partidária diferente. Por isso é que as críticas ou pontos de vista diferentes não devem ser considerados “barulho” por quem governa e que ninguém deve reclamar que seu partido é Cabo Verde como se os outros também não o fossem nesta república democrática e plural. É num ambiente de pluralismo em que os direitos da oposição são respeitados e que diferentes instituições do Estado cumprem na plenitude com as respectivas competências  que se tem maior probabilidade de acertar com o caminho certo. Parafraseando Martin Wolf, evita-se o pensamento mágico, os incentivos não são contaminados por interesses particulares e dão garantia de estabilidade e de previsibilidade e ainda constrói-se a confiança necessária para que nacionais e estrangeiros queiram investir e por essa via contribuir para a criação da riqueza.
A crise que atravessa as democracias modernas tem servido de munição para certos sectores de opinião que sempre tiraram grande satisfação em apontar falhas ao que chamam democracia formal. Os alvos preferidos são os partidos, o parlamentarismo, o sistema eleitoral proporcional e faz-se apologia dos mecanismos da democracia directa e de formas presidencialistas de governo. O apelo ao populismo e ao “sistema do homem forte” e do “chefe” não limitado por instituições e normas está sempre aí presente. Até se reclama que seria mais eficaz por não obrigar aos procedimentos constitucionais tidos como perda de tempo e limitativos de acções de governação. A realidade histórica porém demonstra que tais derivas desembocam invariavelmente em tirania, maior desigualdade social e mais pobreza.
 Os partidos podem ter muitos defeitos, mas são eles que cristalizam as alternativas dentro do sistema, quem no presente ou no futuro os eleitores podem exigir responsabilidade e quem pode fornecer referência ideológica, recursos organizacionais e suporte político activo a governantes e forças de oposição no jogo democrático essencial para levar o país para o melhor caminho. O caso já paradigmático de Donald Trump nos Estados Unidos demonstra como a eficácia da governação é negativamente afectada quando se governa sem o respaldo do partido e se procura refugiar ou em pretensas soluções tecnocráticas ou em esquemas de quero, posso e mando. Dá para pensar o que não vai bem em Cabo Verde e que leva a uma inquietação generalizada e à preocupação com alguma falta de eficácia do governo.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 828 de 11 de Outubro de 2017. 

segunda-feira, outubro 09, 2017

Tirar as palas

Saiu mais um relatório de competitividade publicado pelo Fórum Económico Mundial e Cabo Verde continua entre o grupo dos países menos competitivos do mundo. No ano passado a posição era de 110/137 países e este ano continua no número 110 entre 138 países sendo ultrapassado por países da África subsaariana como o Senegal, o Quénia, as Maurícias e Ruanda. O índice de competitividade de 3.8 registado em 2016 manteve-se em 2017 sugerindo que não houve alterações de fundo nos factores que podiam ter tornado a economia mais competitiva. O maior constrangimento aos negócios continua a ser o acesso ao crédito, mas de 2016 para 2017 a ineficiência da burocracia do Estado passou para o segundo lugar e a inadequação da educação e formação da mão-de-obra começou a pesar mais, enquanto factores como taxas e regulamentos de imposto tornavam-se menos impeditivos à actividade empresarial. A caminhada prometida pelo Governo para colocar Cabo Verde entre os primeiros cinquenta países mais competitivos do mundo não parece que tenha começado com a dinâmica que seria de esperar.
Os relatórios do Fórum Económico Mundial colocam Cabo verde entre os países intermédios em matéria de desenvolvimento cujo crescimento depende cada vez mais da eficiência com que se souber gerir os recursos naturais e humanos, as suas infraestruturas, os investimentos e as oportunidades. Segundo a sua avaliação, a dinâmica económica já não provém simplesmente da injecção de recursos como acontece nos países menos desenvolvidos nem ainda está em posição de fazer da inovação o grande motor do crescimento como fazem os países mais desenvolvidos. A fase actual é de luta pela eficiência a todos os níveis, num combate permanente contra o desperdício de recursos e má utilização de meios disponíveis e a favor de uma maior produtividade e eficácia em tudo. É evidente que isso, para ser possível, exige uma outra postura do Estado, da administração pública, das câmaras municipais e de outras entidades públicas   orientadas para os resultados, avessa à apropriação indevida de bens públ icos, facilitadora de iniciativas geradoras de riqueza e contrária ao tráfico de influência  e a práticas assistencialistas e indutoras de dependência.
Para se avançar nesse caminho há que primeiro confrontar a realidade do país tal qual ela é. Há que ir para além dos ilusionismos que práticas políticas estabelecidas insistem em reproduzir. Há que ir além da forma de governar que, dependente da ajuda externa, fica sem margem de manobra e adopta as soluções dos financiadores em detrimento de uma estratégia própria. Há que ir além da prática já enraizada nas instituições do país de se auto-servirem em nome de políticas de redistribuição em vez de servir o processo que leva à criação de riqueza e à prosperidade. Há que ir além da prática de varrer os problemas para debaixo do tapete esperando que se resolvam por si só ou que miraculosamente desapareçam. Há que confrontar interesses corporativos e outros instalados em vários sectores que beneficiam do status quo e resistem às mudanças em detrimento dos muitos que continuam excluídos de uma economia que não consegue criar postos de trabalho suficiente e de qualidade. Há ainda que romper com o eleitoralismo que ameaça condicionar todos os actos das autoridades do país e que não deixa planear para o médio e longo prazo como se os governantes não tivessem recebido mandatos de quatro e cinco anos ao fim dos quais seriam avaliados pelo povo.
Um país frágil e dependente como Cabo Verde devia exigir posturas realistas e pragmáticas dos seus governantes. Infelizmente, diferentemente do que se passou noutros espaços com constrangimentos similares aos de Cabo Verde como as Seicheles, Singapura e Maurícias, os governantes cabo-verdianos insistiram em ser avaliados pela sua capacidade de trazer recursos via ajuda externa ao país e não pela direcção do país num caminho que o faria menos dependente, mais próspero e com desenvolvimento sustentável. O exercício do poder nestas circunstâncias e a sua sustentabilidade dependem da reprodução do modelo de dependência. Para disfarçar que realmente querem isso, alimentam a sociedade com visões de desenvolvimento em que aparecem clusters, hubs, praças financeiras, plataformas digitais e em que se repete mais uma vez a importância geoeconómia e geoestratégica do país como o grande recurso que pode pôr tudo em marcha. Anos passam, as mesmas balelas voltam com outras roupagens, sem que se veja medidas essenciais para se caminhar na concretização serem tomadas de forma compreensiva. Entretanto, o que se esperaria que fosse essencial, é descurado como acontece em particular com a segurança, com as ligações entre as ilhas e com a educação que devia a ser a grande aposta do país.
O que aparentemente se passou os novos manuais escolares é típico do que demasiadas vezes acontece. Há um financiamento estrangeiro, muitas vezes com condicionalismos na sua aplicação, e no afã de o aproveitar não se dá a devida atenção aos custos escondidos que depois paga-se caro. Já aconteceu várias vezes nos últimos tempos com o programa “Casa para Todos” e com as muitas obras públicas feitas com crédito português supostamente concessional. Conhecem-se alguns custos dessa aventura: a dívida pública muito acima dos 100% do PIB, o sector empresarial nacional destroçado e os custos de manter estruturas de viabilidade bastante duvidosa, sem falar nas expectativas frustradas. Como agora a reacção perante a evidência é de se desvalorizar as críticas, seguido de contrapô-las aos erros similares cometidos no passado para as neutralizar e ainda de questionar os motivos de quem as faz. Como se pode imaginar, persistindo num caminho semelhante, não há como obter num diálogo aberto e sem tabus uma perspectiva real do país dos extraordinários constrangimentos que dificultam as reformas nem mobilizar e traçar um rumo que poderá tornar o país mais eficiente, mais competitivo e mais produtivo. Sem isso, porém, ficaremos a vegetar entre os países menos competitivos do mundo com dificuldades imensas em atrair o investimento externo indispensável e em prestar os serviços com qualidade que a economia particularmente ligada ao turismo tanto necessita. Sair do círculo vicioso das culpas que paralisam o país e libertar-se das que encobrem a realidade é fundamental para se dar às pessoas o que mais querem: liberdade, segurança e educação.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 827 de 04 de Outubro de 2017. 

segunda-feira, outubro 02, 2017

Dever de memória

No passado dia 25 de Setembro assinalou-se o vigésimo quinto aniversário da Constituição de 1992. Nesse dia, 25 anos atrás Cabo Verde consagrou com uma nova ordem constitucional a vontade expressa nas eleições de 13 de Janeiro de 1991 de viver em liberdade e em democracia. No novo quadro jurídico político o país tem vindo a construir e a consolidar as suas instituições democráticas merecendo de vários observadores avaliação positiva. Os anos da Constituição têm sido de estabilidade governativa, sem crises institucionais graves e já se verificaram as duas alternâncias no poder que na opinião do cientista político Samuel Huntington dão um sinal inequívoco do grau de consolidação democrática já atingido.
Evidentemente que ainda não se pode dizer que é uma democracia madura. As instituições denotam fragilidades várias designadamente no exercício efectivo das suas competências e na assunção das responsabilidades. A sociedade civil sob o impacto de uma cultura de dependência do Estado não mostra a autonomia necessária. A comunicação social privada ainda está por se afirmar e sem capacidade para competir com os órgãos estatais que além de beneficiarem de transferências múltiplas do Estado ainda abocanham parte considerável do pequeno e fragmentado mercado publicitário. A completar o quadro, a persistência de espaços de actuação sem a devida fiscalização democrática em que o exercício do poder se mostra caprichoso, imprevisível e mesmo perverso retira alguma confiabilidade e eficácia à acção política e faz dos cidadãos uns descrentes nos procedimentos democráticos, tornando-os presa fácil de populismos diversos.
O facto de, para além da conferência sobre Democracia e Constituição proferida pelo constitucionalista Jorge Miranda, a convite do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais (ICJS), não haver qualquer iniciativa das instituições da república, nem dos partidos políticos ou de associações e universidades para comemorar o vigésimo quinto aniversário da Constituição pode ser visto como mais um sinal de que nem tudo está realmente bem. O esquecimento selectivo de um marco tão importante num país em que quase todos os dias se referenciam datas internacionais disto e daquilo e em que se fazem programas de comemoração da independência que perduram meses seguidos não é normal. Noutras democracias é o contrário que acontece. Procura-se cumprir o que alguns chamam de dever da memória em relação aos eventos fundadores. Em Portugal, Espanha e Brasil as instituições e a sociedade fazem questão de comemorar a constituição democrática num exercício de “memória crítica e reflexiva” que põe em devida perspectiva o percurso histórico feito, propicia a renovação dos princípios e valores e reforça o sentimento de pertença.
A crise que afecta hoje tanto as democracias antigas como as mais recentes tende a pôr em causa o pacto sociopolítico subjacente às constituições democráticas. Já havia sinais antes, mas foi com a crise financeira de 2008, seguida subsequentemente de crise económica, crise social e crise da dívida soberana, que acabou por instalar-se nas sociedades democráticas um sentimento generalizado de precariedade e de ansiedade quanto ao futuro. Um sentimento posteriormente agravado pela crença generalizada de que a globalização tinha conduzido ao desaparecimento de inúmeros postos de trabalho e que favorecia o aumento das desigualdades sociais. A aparente conivência das autoridades em relação aos culpados pela crise e a visível impotência dos governos nacionais em travar a concentração da riqueza numa pequena minoria minaram a confiança de muitos quanto à possibilidade de se inverter a situação. E sem a solidariedade expectável para garantir a harmonia na sociedade e os consensos em relação à ordem constitucional não é possível manter as pessoas comprometidas com o sistema político vigente. Populismos vivem desses estragos feitos no tecido social e todos eles independentemente da sua origem fazem mira na ordem constitucional reinante e nas suas instituições. Inevitavelmente, o inesperado prenhe de consequências acaba por acontecer como foram os casos do Brexit e da eleição de Donald Trump. No domingo passado assistiu-se à entrada da extrema-direita no parlamento alemão.   
O professor doutor Jorge Miranda na conferência do vigésimo quinto aniversário da Constituição chamou a atenção para a necessidade de efectivação dos direitos sociais no mundo de hoje. A expectativa das pessoas em ver garantido o seu bem-estar social pressupõe que se ponha realmente de pé um Estado social e que se assegurem os direitos sociais. De facto, já não se mostra suficiente garantir o exercício dos direitos civis e dos direitos políticos e adiar para um futuro indefinido os direitos sociais que para alguns teriam só função programática na Constituição. Neste mundo em mudanças devido, entre várias razões, à globalização, à conectividade instantânea através da Internet e das redes sociais, a mudanças tecnológicas rápidas nos vários domínios e à automação de processos produtivos que eliminam empregos tradicionais, as pessoas querem mesmo acreditar que podem viver numa sociedade livre, justa e solidária. As soluções de governo produzidas pelo sistema político têm que ser capaz de a realizar, sob pena de descrédito e consequente instabilidade, incertezas e eventuais derivas perigosas que outras soluções, em particular as do populismo, poderiam gerar.
No 25º aniversário da Constituição torna-se imprescindível renovar a vontade da sua efectivação total como forma de manter o consenso a todo o momento sobre o papel das instituições e sobre a necessidade de cumprimento estrito dos procedimentos nela previstos. O aprofundamento institucional deve poder conter as tentações de pessoalização da política que as redes sociais facilitam ao mesmo tempo que abrem o caminho  ao descrédito dos cargos, ao descrédito da política e do próprio acto de entrega ao serviço público. Para fazer tudo isso há porém que manter vivo o dever da memória do que realmente nos une, nos garante a liberdade e nos abre o caminho à prosperidade e à realização pessoal.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 826 de 27 de Setembro de 2017. 

segunda-feira, setembro 25, 2017

Qualidade requer nova atitude

Arrancou um novo ano lectivo e os votos de uma nova largada na Educação em Cabo Verde são mais uma vez renovados pelas entidades oficiais em várias cerimónias públicas. A enfase este ano é posta na qualidade do ensino acompanhado de apelos à excelência e à inclusão. O ministério da Educação, como de costume, aproveitou para apresentar as suas inovações nos curricula. No ano passado, as novidades foram o alargamento do ensino bilingue e a introdução de cursos de empreendedorismo no ensino secundário. Este ano, para além de se integrar formalmente o pré-escolar no sistema, procura-se focalizar no ensino das ciências e da matemática, desenvolver competências no domínio do inglês e do francês e introduzir o mandarim e ainda alargar o ensino obrigatório ao sétimo ano de escolaridade. Como nos anos anteriores, levantam-se mais uma vez grandes expectativas de ganhos para as pessoas, para as famílias, para a economia e para o país em razão do esforço de investimento na educação por parte do Estado, mas também das famílias e dos próprios educandos que acreditam que é essa a principal via para mobilidade social e para o sucesso e prosperidade. A realidade em termos de resultados porém não tem sido precisamente essa, e para muitos que se vêem sem emprego  e sem outra opção de vida tem-se revelado como uma grande decepção e uma fonte de frustração.
Cabo Verde é um pequeno país sem recursos naturais apreciáveis. O seu único recurso real são as pessoas e a aposta óbvia deve passar pelo investimento no capital humano  e fazer do nível de educação das suas gentes um factor importante da atracção do investimento externo, da competitividade do país e da produtividade da economia. Se países maiores e com recursos muito superiores assim o fizeram, mais razões para ir por esse caminho têm os países pequenos e desprovidos de riquezas naturais. Sabem que a verdadeira riqueza das nações não está no que facilmente se pode extrair e vender, mas sim na capacidade de se organizar para a produção de bens e serviços com qualidade e eficiência e de manter-se capaz de inovar nos produtos e nos processos  por forma a garantir competitividade externa. É o que se nota sempre que se publicam indicadores internacionais de excelência na educação onde imediatamente se pontificam nos primeiros lugares países como Singapura, Taiwan, Finlândia, Estónia, Dinamarca, Irlanda etc….Ora, Cabo Verde na posição 123 no Index de Educação das Nações Unidas claramente que fica muito aquém do que seria de esperar. Já um outro pequeno país, as Maurícias, ocupam a posição 63 e são visíveis os avanços: passou do índice 0.574 no ano 2000 para 0.718 em 2013 enquanto Cabo Verde no mesmo período evolui de 0.442 para 0.483, ou seja, praticamente estagnou, particularmente em 2011, 2012 e 2013. 
 O Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) num estudo recente estima em 20% do orçamento anual do Estado os gastos que consistentemente Cabo Verde tem feito desde 1975 no sector da educação. E isso sem contar com os sacrifícios enormes suportados pelas famílias para manter os filhos na escola. Mas, como se pode ver pelos resultados, o retorno do extraordinário investimento que é realizado não tem sido o melhor, nem o desejado. É verdade que se conseguiu quase que erradicar o analfabetismo, levar o ensino secundário a todos os concelhos e conseguir a duvidosa proeza de, em cinco anos, se ter 10 universidades a funcionar. Preferiu-se massificar e não prestar a devida atenção à qualidade do ensino. Quando o aparelho do Estado - com todas as suas ramificações na administração pública, nos institutos e empresas públicas - deixou de poder absorver pessoal saído das escolas, não havia economia, tornada competitiva entre outros factores, pela existência de mão-de-obra especializada ou bem formada, para os ocupar. A partir de um certo momento deixou de ser possível manter os jovens no sistema de ensino transitando-os do ensino básico para o secundário e por fim para as universidades e o resultado foi o acumular de pessoas classificadas que, segundo o INE, já constituem 36,3% dos desempregados.
É fundamental procurar saber por que, apesar dos enormes investimentos do Estado e dos particulares no ensino não se tem os resultados pretendidos nem ao nível de capacitação da mão-de-obra, nem tão pouco da acumulação de conhecimento, de experiência técnica e de capacidade tecnológica que poderia levar à emergência de uma verdadeira sociedade de conhecimento e ao estabelecimento das bases para a inovação. Não faltando escolas nem professores, a falha deverá residir algures no que se podia chamar de ecossistema da educação. Como dizia Hillary Clinton: “It takes a village”. De alguma forma o esforço dos vários intervenientes, professores, alunos e pais não deverá estar a ser potenciado porque não encontra o ambiente propício a isso, nomeadamente um ambiente que valorize o conhecimento, reconheça o mérito, fomente a liberdade intelectual e compense devidamente o espírito de iniciativa, os arrojos de criatividade e o gosto pelo risco. Ninguém deve esperar que os alunos tenham o gosto pela leitura e sejam abertos a ideias novas se nas escolas há gerações de professores e alunos que estudaram com base em apontamentos enquanto os manuais eram sistematicamente evitados tanto por uns como por outros. Ou então que o ensino e a proficiência dos alunos a português dê sinais de melhoria quando a língua portuguesa é hostilizada, porque considerada empecilho na relação entre o professor e o aluno e bem no fundo algo perturbador da identidade do cabo-verdiano.
A verdade é que o sistema de ensino tarda em perder muitos dos tiques do aparelho ideológico que assumiu nos primeiros quinze anos da independência e em que primou pela massificação e pelo igualitarismo sacrificando a qualidade e a excelência. Neste aspecto não tem ajudado o facto de a classe dos professores se ter constituído num campo de batalha para os interesses político-partidários onde todos querem ser hegemónicos e que em boa medida se sintam isentos de pressão para uma real mudança no sector. Por outro lado, o facto de a competência técnica ser em geral subordinado a factores entre os quais políticos e clientelares em matéria de nomeações para alto cargos, desde que no acesso inicial se cumpra o requisito inicial do diploma, tem efeito inibidor do impulso pelo saber, da vontade de superação permanente e até de as pessoas se destacarem pelas ideias, iniciativas e posicionamentos críticos.
É evidente que com estes constrangimentos dificilmente se pode construir uma sociedade que vá ganhar dinamismo como base na troca livre de ideias suportada por um ecossistema aberto ao novo, constantemente a contestar as suas premissas e pronta a valorizar formas criativas de abordagem dos problemas. Mas esse é o caminho que se terá que fazer para que haja retornos adequados ao investimento na educação e para que o país tenha a possibilidade de valorizar o único recurso que realmente possui e fazer dele o verdadeiro motor da sua prosperidade e sustentabilidade futura.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 825 de 20 de Setembro de 2017.

segunda-feira, setembro 18, 2017

A ficar para trás

A decisão da semana passada da Autoridade Reguladora para as Comunicações (ANAC) em suspender o produto “D´Kel Bom” da CVMóvel suscitou reacções negativas a começar pela própria operadora de telecomunicações que estranhou em comunicado as acusações que estaria a praticar preços abaixo do preço mínimo. Da generalidade dos clientes que já se viam com um pacote apetecível incluindo voz e dados na internet, a reacção veio com particular azedume quando se viram impedidos de aceder ao novo serviço. A ANAC justificou-se realçando o seu papel na defesa do princípio da concorrência e nesse quadro com a preocupação em proteger o equilíbrio económico-financeiro dos prestadores de serviços regulados. Ao que os outros contrapõem onde é que ficam salvaguardados o direito dos consumidores a terem produtos com melhor preço e qualidade e a motivação para a inovação, factor essencial para se continuar a manter uma economia dinâmica, moderna e produtiva. 
Interrogações sobre o papel das reguladoras normalmente surgem sempre que os consumidores parecem ficar a perder e um ou mais operadores aparentam ficar em vantagem. O argumento de que se está a proteger o ambiente de concorrência não colhe completamente quando paira a dúvida se, com a medida específica tomada, não se está a prejudicar os consumidores e a pôr em causa a inovação. Garantir a concorrência justifica-se enquanto mecanismo essencial para se ter produtos conseguidos de forma eficiente, para dinamizar a economia e para propiciar ao consumidor o direito de escolha. Não é um fim em si mesmo. É mais um instrumento do progresso e de dinâmica dos mercados assim como analogamente a selecção natural é o mecanismo que possibilita a sobrevivência e a evolução da espécie. E é vendo pelos resultados que se pode avaliar se está ou não a resultar. 
É verdade que num mercado com as características de Cabo Verde foi um grande feito ter conseguido romper com o monopólio anterior da CVTelecom e abrir o espaço para a concorrência entre pelo menos dois grande operadores a Unitel T+ e a CVMóvel.  Os consumidores, a economia e o país globalmente ganharam com isso. A acção da agência reguladora ANAC foi fulcral no processo. Hoje, como bem reconhece a CVMóvel no seu comunicado, há equilíbrio de mercado com a CVMóvel detendo uma quota à volta dos 56% e a Unitel T+ à volta dos 43. Para chegar a esse ponto houve a preocupação em manter a todo o momento o equilíbrio económico- financeiro das empresas. O estabelecimento de preços mínimos serviu para isso. Com a concorrência assegurada, o problema que se coloca actualmente é como manter o sector das telecomunicações vitalizado e a contribuir para mais crescimento e maior produtividade e competitividade da economia nacional. 
Os dados do INE dos últimos dois anos têm mostrado uma queda tendencial na contribuição das telecomunicações na formação do PIB nacional. Os resultados anuais das duas operadoras têm revelado quebras significativas. Tudo aponta que as perdas no volume de negócios deriva de, entre outros factores, do facto de o negócio da voz ter diminuído consideravelmente à medida que as pessoas usam os serviços over the top (OTT) como Viber, Messenger e Whatsapp para chamadas e envio de mensagens. Nos dados estatísticos da ANAC vê-se claramente essa tendência na diminuição do serviço de voz e não se nota que tenha sido compensada com outros negócios designadamente de televisão por assinatura ou de disponibilização de conteúdos via streaming. Pelo contrário, constata-se a quase estagnação de um negócio que noutras paragens tem ganho um dinamismo extraordinário propiciando às telecoms uma outra via para rentabilizar os investimentos indispensáveis para estarem à altura de satisfazer os desejos cada vez mais exigentes e mais sofisticados dos seus clientes. Com a falta de regulação e a insensibilidade das autoridades, a pirataria digital, as transmissões ilegais e outros negócios ilícitos têm impedido que serviços legítimos de fornecimento de conteúdo consigam singrar. Todos perdem como isso, a começar pelos consumidores que ficam limitados por serviços medíocres e sem garantia, mas também empresas do sector que nunca conseguem angariar procura suficiente e o país que fica para atrás, porque sem possibilidade de retorno não há investimentos para continuar a modernizar-se. 
Há mais de uma década que se fala de economia digital, das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e de fazer de Cabo Verde uma Cyber Island como as Maurícias. Como muitas   promessas de clusters, hubs, praças financeiras e centros de transbordo, tudo ficou no mundo da fantasia dos governantes. O sector das telecomunicações em declínio é um sinal forte de como mais uma vez uma oportunidade - a possibilidade de desenvolver uma economia digital capaz de exportar serviços através designadamente de call centers e outros BPOs, business processing operations - foi desperdiçada. E aconteceu porque ou se ficou pelos discursos, ou se definiu mal as prioridades ou não se investiu estrategicamente para educar as novas gerações e criar o ambiente necessário para desenvolver o tipo de economia que se tem revelado mais promissor em fornecer empregos de qualidade. 
Sem uma economia vibrante a fazer uso das estruturas das telecomunicações não é de estranhar as dificuldades já visíveis nas empresas do sector. E certamente que não será a agência reguladora que as vai proteger disso em nome da concorrência mas com prejuízo para os consumidores e para as inovações necessárias à modernização do país. Nas deliberações regulatórias há que haver uma ponderação adequada dos vários factores em jogo para que todos saiam a ganhar. Também impõe-se uma política mais clarividente das autoridades para que Cabo Verde não fique pelas ofertas da ZAP enquanto o mundo é conquistado pelo modelo de negócios da Netflix ou que se continue com o 3G enquanto ou outros preparam-se para o 5G em 2020 e que por causa de obstáculos diversos só recentemente se enveredou por fazer chegar a internet de grande velocidade às casas via fibra óptica.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 824 de 13 de Setembro de 2017.

segunda-feira, setembro 11, 2017

Orçamento das “soluções”

O Orçamento do Estado para o ano 2018 há mais de dois meses que é matéria de notícia nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais. O Ministério das Finanças (MF) arrancou com uma iniciativa inédita de pedir a entidades variadas designadamente associações empresariais, partidos políticos, sindicatos e organizações da sociedade civil, contribuições para a elaboração do orçamento. Não ficando por aí, o Ministro das Finanças a partir da primeira semana de Julho e até há poucos dias passou a receber pessoalmente contributos de personalidades diversas incluindo representantes de organizações internacionais, gestores de organizações financeiras, dirigentes comunitários e agentes culturais. Ultimamente o foco mediático sobre o processo de elaboração do OE virou-se para a chamada arbitragem política onde se reúnem o ministro das Finanças e o ministro de cada pasta acompanhados dos respectivos staffs. O objectivo das audições, segundo fontes do MF, é ter um orçamento inclusivo, realista de forma a englobar as sensibilidades e necessidades do país.
O problema com este exercício que parece configurar o que se faz no quadro dos orçamentos participativos é que não está previsto na lei de enquadramento orçamental. A Constituição é clara em matéria de elaboração do Orçamento do Estado. A iniciativa é da competência exclusiva do Governo que é quem tem todos os dados sobre as receitas e as despesas obrigatórias, define políticas de consolidação orçamental, de contenção do défice e de diminuição da dívida pública, estabelece as prioridades de investimento de acordo com o seu programa e os objectivos que prometeu realizar. A Assembleia Nacional através de uma lei de enquadramento orçamental votada por dois terços dos deputados define prazos, procedimentos e competências no processo da elaboração e aprovação do OE. A importância do orçamento como instrumento central da acção governativa e da sua coerência programática é realçada pela exigência de disciplina partidária no processo de votação que o partido que suporta o governo impõe aos seus deputados. E há razão para isso: a não aprovação do OE pode levar à queda do governo e a novas eleições. 
Considerando as limitações impostas pela Constituição e pela lei, abrir o orçamento para a participação alargada de entidades e personalidades públicas e privadas não vai mudar significativamente a sua orientação, as suas prioridades e os seus objectivos. Mesmo que essa fosse a intenção do governo, as receitas limitadas e a rigidez de grande parte das despesas não deixam muito espaço orçamental para acomodar a generalidade das sugestões e contributos a ponto de todos se reverem no orçamento aprovado. Há aqui um risco político a vários títulos que o governo pode estar a incorrer com o levantar de expectativas de instituições, de operadores económicos e de vários sectores da sociedade. Se forem defraudadas particularmente num orçamento que é oficialmente apresentado como o de “soluções definitivas” para vários problemas, as consequências podem ser gravosas, eventualmente afectando a confiança, a disponibilidade em apoiar reformas e mesmo a vontade em identificar e aproveitar novas oportunidades. Aliás, já antecipando o que pode vir a acontecer, já vieram alguns avisos de representares das câmaras de comércio.  
Os múltiplos e complexos constrangimentos do país à partida não aconselham que seja no processo de elaboração do orçamento que se deva procurar a melhor via para reunir consensos, criar vontades e mobilizar a sociedade para consecução de objectivos. No texto inicial da Constituição de 1992 e mesmo após a revisão de 1999 previa-se a possibilidade de a Assembleia Nacional aprovar as Grandes Opções do Plano a partir de proposta do governo. A antecipar o debate parlamentar, além do parecer obrigatório de órgãos como o Conselho para Assuntos Regionais, actualmente incorporado no conselho económico-social, havia espaço para discussões múltiplas com vários sectores da sociedade e audições públicas organizadas tanto pelo governo como pelo parlamento. Foi o que aconteceu com as Grandes Opções do Plano de 1997-2000 e posteriormente em 2002-05. Faz todo o sentido que os consensos e as vontades sejam criados num processo envolvendo o parlamento onde as opções de desenvolvimento são debatidas e aprovadas e depois encontram expressão financeira em orçamentos anuais ou plurianuais porque aí estão legitimamente representados todos os cidadãos no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.
Procurar inovar em matéria de elaboração do Orçamento sem pelo menos alterar a lei de enquadramento orçamental não é certamente a melhor via para o chamado “orçamento inclusivo”. Além de se correr o risco de defraudar expectativas que naturalmente surgem no contacto directo com o titular das finanças pode-se estar a contribuir para alimentar o modelo do Estado distribuidor de recursos, em detrimento do Estado promotor do ambiente propício à criação de riqueza. Também seria de esperar que as arbitragens políticas fossem feitas no âmbito do conselho de ministros e presididas pelo primeiro-ministro. O orçamento é do governo. Fazer diferente leva a interpretações complicadas como a feita na página de Facebook do ministério das infra-estruturas em que num post se diz que o “Ministério das Finanças tem sido um parceiro estratégico do Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação garantindo o financiamento através do Orçamento de Estado para os projectos e programas de todos os sectores deste ministério”.
Nunca é demais relembrar que a democracia é procedimental e que o seu funcionamento equilibrado depende de todos os seus órgãos e instituições a funcionarem no quadro das suas competências próprias. Fazer política é fundamental para se realizar os objectivos da colectividade, motivar as pessoas e criar as condições para a prosperidade de todos mas deve ser feita estritamente no quadro constitucional e legal existente. Inovações que ultrapassam esse quadro só trazem problemas, sem nada resolver.   

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 823 de 06 de Setembro de 2017.