segunda-feira, dezembro 23, 2019

Morna no Expresso das Ilhas

Por ocasião da elevação da Morna a Património Imaterial da Humanidade e para assinalar os 8 anos sem a Cesária Évora, o Expresso das Ilhas reedita os editoriais publicados pelo Dia Nacional da Morna, em 2018, e pela a morte da Cize, em 2011.

A Morna que nos une
A primeira celebração do Dia da Morna a 3 de Dezembro revestiu-se de um simbolismo especial nestes tempos divisivos que se vivem actualmente. Materializou-se a vontade unânime do parlamento de estabelecer por lei a data de nascimento de B.Léza como o dia para exaltar a expressão musical caboverdiana universalmente conhecida por morna e para homenagear os seus compositores e intérpretes. Também serviu para mobilizar a energia da nação para a tarefa ingente de conseguir a consagração da morna como Património Imaterial da Humanidade, uma pretensão de Cabo Verde que já foi entregue à UNESCO, desde Março deste ano. Ao juntar os caboverdianos, a morna, essa criação do povo das ilhas com mais de um século de existência, reafirma mais vez o seu papel identitário de primeira grandeza. A par com a literatura dos pré-claridosos e dos Claridosos e também com a língua crioula na qual se expressa, confirma-se como um dos ingredientes essenciais na emergência da consciência da nação.
Interessante como a reunião à volta da morna é universal no mundo caboverdiano. Aliás, como também é a língua crioula. Abrange todas as ilhas, perpassa todos os extractos sociais, chega a todas as idades e é acarinhada em todas as comunidades emigradas. Neste aspecto difere por exemplo do reggae que há poucos dias foi reconhecida pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade. Segundo a nota da Unesco, o reggae era voz dos marginalizados na ilha de Jamaica que depois foi adoptada por vários outros grupos étnicos e religiosos contribuindo para o discurso internacional em matéria de injustiça, resistência, amor e humanidade. Já a morna não é evidente que tivesse uma origem em algum extracto da sociedade e expressasse algum tipo de resistência. Era cantada e sentida por toda a gente. Reflectia a condição humana nas ilhas com as suas dificuldades e aspirações e também os dilemas postos por uma vivência num ambiente de escassez, de falta de oportunidades e de futuro incerto. Apropriada por todos, conferia uma identidade, uma ideia de pertença que não se afirmava em contraposição a outros próximos ou menos próximos mas que pelo contrário unia a todos num destino comum.
Nestes tempos em que por todo o mundo nações ameaçam fracturar-se na busca incessante por identidades na base étnica, religiosa e racial, género é reconfortante para o caboverdiano perceber que a sua morna é um cimento forte que mantém intacta a ideia de pertença à caboverdianidade, não interessando onde a pessoa se encontra no momento, seja no país, nas comunidades emigradas ou em qualquer parte do mundo. Até tem o conforto de que o que o agarra à sua música não é uma idiossincrasia particular de alguém cuja existência como povo brotou de algumas ilhas no meio do oceano Atlântico. Depois da Cesária nas mornas por ela cantadas ter levado o sentimento do caboverdiano a audiências entusiásticas da França ao Japão, dos Estados Unidos ao Tadjiquistão e do Brasil á China não lhe resta dúvida quanto à universalidade da música criada por B.Léza e outros compositores populares em todas as ilhas. Mais uma razão para se promover a morna com vigor junto às novas gerações, levá-la às escolas, difundi-la na comunicação social ciente de que constitui um factor de unidade nacional fortíssimo que não se pode dispensar nestes tempos em que matérias fracturantes e lógicas de vitimização criam tensões e ressentimentos que com o tempo fragilizam e até ameaçam rasgar o tecido social.
Aliás, às vezes parece que não há uma preocupação muito grande em manter a nação e a consciência nacional protegidas de eventuais forças centrífugas que as podem enfraquecer. E isso pode constituir uma falha prenhe de consequências. É um facto que, por exemplo, nas democracias o dissenso só é possível se houver consenso quanto a questões fundamentais como o pluralismo, a liberdade de expressão, a separação de poderes e a independência dos tribunais. Da mesma forma que a diversidade só é possível numa comunidade nacional se houver a aceitação geral do essencial que une todos os membros. Por analogia, pode-se ver a importância de se reforçar os elementos identitários que ajudam a manter a ideia da nação e a importância do destino comum e compartilhado quando se interage num mundo global com povos, culturas e hábitos diferentes. Ninguém desconhece que a estabilidade política é importante para o país se manter atractivo, mas não se deve perder de vista que é também fundamental não deixar enfraquecer a consciência nacional essencial para que a relação do país como o mundo se estabeleça numa base segura, ousada e com espírito cosmopolita e nunca de vítima, de timidez e baseada no assistencialismo.
A ideia da nação caboverdiana é muito anterior à independência. Não é uma identidade conseguida em oposição ao outro como poderiam sugerir as noções hoje datadas de “nação forjada na luta contra o colonialismo”. Nem é uma identidade que se reforça em resistências intermináveis e patéticas contra a língua portuguesa com as consequências que já são conhecidas de todos. Nem muito menos no resgate de um passado escravocrata que só serve para inverter o percurso já feito há quase um século de emergência da consciência da caboverdianidade tão bem expressa na morna e na literatura dos claridosos. Quem produziu as canções, os livros, contos e poemas e também quem reconheceu toda essa obra como sua e dela se apropriou não quis apresentar-se ao mundo como vítima ou como descendentes de escravos. Quiseram sim, ser vistos como um povo que apesar das agruras da existência nas ilhas nunca perdeu o alento, nem alegria de viver e nem tão pouco a esperança no futuro enfrentando as dificuldades da vida no país e no estrangeiro com o orgulho de ter nascido caboverdiano. Este é o legado que eles nos deixaram e que todos os anos deve ser renovado no Dia Nacional da Morna que nos faz sentir caboverdianos.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Dezembro de 2018
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Cesária: A revelação de Cabo Verde ao mundo

Morreu a Cesária. Cabo Verde está em choque. De todos os continentes e culturas das mais diversas vêm gestos de pesar e de tristeza pelo passamento da cantora.
Compreende-se que assim seja. É um facto que pessoas das mais diferentes vivências, culturas e níveis de exposição ao Mundo sentem-se tocadas profundamente pela voz sublime da Cesária e gratas pela experiência única de a escutar. Em muita gente constate-se que, ao deslumbre nas actuações da Cesária, segue-se uma curiosidade, quase fascínio, por conhecer a cultura e alma do povo Caboverdiano. Querem saber de que húmus emanam as suas canções e de onde retirou a vivência profunda e marcada que a sua voz tão bem transmite.
Com Cesária as pessoas comuns em todo o mundo passaram a saber da existência de Cabo Verde e dos caboverdianos. Através dela e da morna, o seu género musical de eleição, intuíram a experiência humana verificada durante séculos nas ilhas de Cabo Verde. Umas Ilhas periodicamente fustigadas pela fome e não poucas vezes deixadas isoladas no meio do Atlântico a caldear os ingredientes de uma nova Nação. Europeus, asiáticos, americanos japoneses, latinos e africanos no final dos concertos ou após ouvir um CD sentiam-se tocados pela Cesária e pela morna. Com isso os caboverdianos passaram a saber que tinham sido capazes de produzir no seu cadinho de civilização algo universalmente válido.
Em 1987 com o festival da World Music (música do mundo) foi desencadeado um processo que caminhando, a par e passo com a aceleração da globalização, abriu sensibilidades das mais díspares a géneros musicais vindos de todo o planeta.
Instrumental para isso foram os novos produtores. Surgiram para ajudar muitos artistas na realização do sonho de atingir audiências variadas e universais. A Cesária teve a sorte extraordinária de ter o caboverdiano Djô da Silva como seu produtor. No album “Miss Perfumado” a convergência de talentos na Cesária e no Djô já produzia resultados surpreendentes cujo retorno para o país, para os artistas e para a nação caboverdiana se revelariam incalculáveis.
Nos 20 anos de carreira artística internacional, Cesária Évora encheu de orgulho os corações dos caboverdianos. A sua voz fez o mundo inteiro apreender as nuances da vivência caboverdiana, como era testemunhada por homens simples nas décadas 40, 50, 60 e 70 que nas horas de lazer cantavam as alegrias, as tristezas, os amores, a vontade de partir e a sodade da terra, da mãe e da cretcheu. No meio cosmopolita de São Vicente germinaram as mornas de B.Léza, Amândio Cabral e Lela de Maninha e as coladeras de Ti Goi, Frank Cavaquinho e Manuel d’Novas que Cesária levaria a todos os grandes palcos e revelaria Cabo Verde ao mundo.
No momento de tristeza de despedida da Cesária é fundamental lembrar a sua alegria de viver apesar das terríveis provações que teve de passar ao longo da vida. Lembrar que apesar do muito que lhe foi retirado, conservou sempre a capacidade de dar. A sua oferta maior ao mundo é o Cabo Verde de todos nós e de todas as gerações antes de nós.
Com Cesária e Djô da Silva devemos retirar a convicção de que temos algo de novo e valioso a dar desde que potenciemos o talento e a criatividade das nossas gentes. E que o sucesso estará ao nosso alcance se aproveitarmos devidamente as oportunidades que surgem e criarmos o nível de organização com sentido de eficácia para extrair o maior retorno de todas as iniciativas e empreendimentos.
O momento é de celebração da vida da Cesária que hoje sobe ao panteão dos intelectuais, de homens e mulheres simples que contribuíram para a nação caboverdiana se sinta digna, una, dinâmica e com confiança no devir.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 21 de Dezembro de 2011
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 942 de 18 de Dezembro de 2019. 

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segunda-feira, dezembro 16, 2019

Crise nos partidos é crise da democracia

Constata-se facilmente hoje que a crise das democracias tem sido acompanhada, ou às vezes precedida, da crise dos partidos políticos.
De facto, várias são as democracias, umas mais consolidadas (ex. Espanha, Itália, França) outras ainda não tanto (ex. Brasil), em que partidos, anteriormente baluartes do sistema político, em pouco tempo desapareceram ou tornaram-se insignificantes enquanto emergiam novas forças políticas e se projectavam individualidades para posições cimeiras do Estado, sem seguir as vias até aí convencionais de chegada ao poder. Para muitos, a crise de democracia nestes tempos de “recessão democrática”, é tida como resultado de falhas graves na representação política e consequente aumento do distanciamento entre os cidadãos e os governantes. Também se dá como uma das suas causas a percepção de que há opacidade na condução dos assuntos públicos, que favorece certos interesses, frustra a expectativa das pessoas quanto à accountability (transparência e o prestar de contas) do sistema e contribui para o agravamento da desigualdade social. Em todo o caso, o alvo da desconfiança dos cidadãos são os partidos e estes no reagir às pressões e no procurar adaptar-se às novas exigências podem desenvolver dinâmicas potencialmente perigosas para a própria democracia.
Partidos políticos são tidos como essenciais às democracias. É através dos partidos que, legitimamente nos regimes democráticos, se consegue acesso ao poder, se assegura a existência de oposição e a possibilidade de alternância no governo. Este facto faz do partido uma máquina de conquista de poder, mas também uma organização capaz de mobilizar a vontade de largos segmentos do eleitorado, de fazer-se representante dessa vontade e de, em caso de vitória eleitoral, propiciar competência política e executiva para conduzir os assuntos do Estado, a bem de todos. O problema surge quando a vontade de chegar ao poder atropela tudo o resto e aparecem dúvidas se está realmente a representar os eleitores e a governar com vista ao interesse geral. E o problema agrava-se ainda mais quando o partido, em vez de reencontrar o equilíbrio enquanto peça fundamental da democracia representativa, procura cavalgar a seu favor a onda popular de descontentamento, juntando-se aos que se atiram contra as liberdades, o parlamento, os medias e o sistema judicial. Aí todos perdem, como se vê nos países em que já se experimenta com formas de democracia iliberal e onde são notórios os avanços para um maior autoritarismo do Estado com a contracção drástica dos direitos fundamentais.
É evidente que também Cabo Verde não fica imune a esses fenómenos. Uma simples análise da vida partidária, da interacção entre os partidos, do nível do debate político e da credibilidade das instituições democráticas, como o parlamento, demonstram isso. As peripécias à volta da liderança do PAICV vão nesse sentido. Na sexta-feira passada, a candidatura de José Sanches ao cargo de presidente do PAICV desistiu da corrida. Justificou a decisão com o que considerou ser a total falta de condições para a realização de eleições internas no partido. Desde 2004, os grandes partidos caboverdianos , o MpD e o PAICV, adoptaram a via de eleição directa dos seus presidentes para passar uma imagem de maior democracia interna e de menos caciquismo no seu seio. Com a inovação iam de encontro ao que, há algum tempo, vinha acontecendo com outros partidos nos países democráticos, que não só adoptavam eleições directas para os órgãos, como já realizavam primárias para seleccionar candidatos a presidente. Preocupante é quando, aparentemente, fazem marcha atrás e vê-se que, pela segunda vez, individualidades próximas do chamado Grupo de Reflexão no PAICV falham em materializar uma candidatura alternativa e justificam com a falta de garantia de um processo eleitoral justo e equitativo. Ou se constata que a corrida eleitoral competitiva para presidente do partido, no PAICV só aconteceu em 2014 e no MpD, nas três eleições que seguiram à alteração dos estatutos, sempre se optou pela via de candidato único. Pergunta-se onde fica a democracia interna prometida na constituição dos órgãos, o pluralismo de ideias capaz de catalisar o partido e a cultura organizacional dirigida para a criação de futuros governantes com competências múltiplas e espírito de serviço público.
A tentação de responder à insuficiências da democracia representativa com “mais democracia” servindo-se de referendos, primárias e eleições directas nem sempre funcionam. Não poucas vezes tornam a situação muito pior. São processos susceptíveis à demagogia, à intolerância e à exclusão do outro em nome do Povo ou de um bem maior. Introduzi-los nos partidos e não cuidar activamente para se garantir o pluralismo de ideias, o direito à diferença e um ambiente próprio de uma organização de aprendizagem (learning organization) para o serviço público é caminho certo para lealdades fanáticas ao chefe e para se abrir as portas ao oportunismo e carreirismo nas estruturas partidárias e eventual transferência dessas mazelas para as instituições do Estado. Não é por acaso que a Constituição exige que a organização dos partidos se regem pelos princípios de organização e expressão democráticos. Um partido, no governo ou na oposição, que se mostra deficitário na sua democracia interna está efectivamente a prejudicar-se a si próprio e ao país. A sua contribuição para a discussão das grandes questões nacionais é mais fraca, a sua disponibilidade para compromissos é menor e o seu sentido de interesse público facilmente pode ficar comprometido se for sequestrado por interesses pouco claros, sem contrabalanço interno.
Os tempos actuais nas democracias, infelizmente, são propícios a esse enviesamento que ao descredibilizar cada vez mais os partidos aumenta as possibilidades de efectivamente se matar a democracia. E é verdade que já são visíveis sinais de alguma degradação da democracia, tanto no mundo em geral como no próprio país. Nos partidos, os efeitos do desgaste são naturalmente muito maiores e mais difíceis de conter. O foco do partido no poder, seja para o conquistar ou para o manter, conforme se está na oposição ou no governo, serve de pretexto para arregimentar seguidores, calar quem discorda e extremar posições sem preocupação com os efeitos no sistema político. Os apelos à unidade do partido, que na maior parte dos casos não passam de apelos ao unanimismo, servem fundamentalmente para paralisar adversários internos. Já para os cidadãos, seria ideal que os partidos fossem um viveiro de ideias e de talentos para melhor enfrentar os desafios de uma realidade sempre a mudar e cada vez mais complexa. Nesse sentido, impõem-se mudanças urgentes na cultura partidária pouco democrática que vigora por aí. Se se quer preservar a democracia, há que salvar os seus pilares.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 941 de 11 de Dezembro de 2019.

segunda-feira, dezembro 09, 2019

Governar com verdade e responsabilidade

Na semana passada Cabo Verde foi classificado pela Internacional SOS como um dos países mais seguros para turistas. É uma boa notícia, considerando que o turismo tem sido, e tudo leva a crer que vai continuar a ser por algum tempo, o principal motor da economia nacional. A questão que se coloca é se o país continuará a ser seguro no futuro próximo ou mesmo se a sua segurança irá melhorar como seria desejável.
Os surtos de criminalidade na ilha de Santiago e na Cidade da Praia, mas também nas outras ilhas, constituem um mau presságio e já preocupam a todos. São a razão por que ainda se mantém o sentimento de insegurança não obstante todos os investimentos públicos em recursos humanos e materiais no sistema de segurança. Ainda bem que até agora os seus efeitos não se fazem sentir nos turistas como parece confirmar a Internacional SOS. Pergunta-se é até quando, se entretanto não se encontrar formas mais eficazes de lidar com a criminalidade, de a combater nas suas origens e de conter o seu impacto nas comunidades e na vida das pessoas em todos os pontos do país.
As autoridades vêm anunciando baixas na criminalidade como, aliás, quase sempre fizeram. O problema é que praticamente não convencem ninguém. O sentimento de insegurança não desvanece. As pessoas não se sentem seguras a andar nas ruas das cidades e vilas do país a qualquer hora do dia como outrora acontecia. Cabo Verde não está a ser a terra de paz e morabeza que os poetas cantaram e com que todos sonham. Há que dizer um basta a isto. Uma terra de paz não pode ter armas circulando e pessoas armadas a assaltar e atirar contra as outras em ajustes de contas e crimes passionais ou por acidente. Para isso é evidente que não chega mexer mais uma vez na lei das armas. É preciso ir mais longe e desarmar a população como já foi sugerido em editorial deste jornal (12/10/2016) e como já o fizeram vários outros países que se viram perante verdadeiras epidemias de crime.
Também para ser terra de morabeza há que apostar forte na civilidade na relação entre as pessoas e numa cultura cívica que ligue os indivíduos à sua comunidade, crie um ambiente de confiança e constitua a base de crescimento do capital social essencial para que haja cooperação entre as pessoas e a vida não seja um jogo de soma zero. Há que ir mais longe na compreensão das razões de tanta violência nas relações entre as pessoas e o que leva conflitos por motivos aparentemente menores a ganharem dimensão desproporcional e a tornarem-se mortíferas. Nesse sentido, há que identificar condicionantes do comportamento, designadamente códigos de honra, rituais de iniciação e demonstrações de masculinidade que estão por detrás de manifestações excessivas de agressividade. Por outro lado há que reconhecer como muitas vezes o crime e a violência são induzidos e alimentados por uma economia subterrânea que tende dilacerar o tecido social e a esvaziar todas as iniciativas dirigidas para tirar as pessoas e as comunidades do círculo vicioso da pobreza, da insegurança e do desespero em relação ao futuro. Sucesso na diminuição do sentimento de segurança terá que passar não só pelo combate eficaz ao crime como também na transformação do ambiente sócio-económico e cultural que o alimenta e sustenta.
E é isso que aconteceu nas cidades e países onde efectivamente se conseguiu diminuir a criminalidade e restaurar a ordem e a tranquilidade pública. Necessário foi porém que primeiro se construísse um consenso geral a todos os níveis que se devia agir decisivamente para pôr cobro à situação, mas sem pôr em causa os princípios e valores que constituem a base de uma comunidade de paz e justiça. Afinal os que cometem crimes não passam de uma pequena minoria e conhece-se da história os graves atropelos sobre a maioria inocente que podem vir de um Estado dotado de poder quase absoluto em nome da luta contra o crime. O caminho para a construção dos compromissos múltiplos entre as forças políticas e entre o governo e a sociedade, indispensáveis para uma acção compreensiva das autoridades nesse combate, não pode passar pela polarização do discurso político que, quando levado ao extremo, deixa de um lado uns que são tidos a favor dos polícias e, do outro, os que “representam” os criminosos. É o tipo de discurso que se ouviu na última reunião plenária da Assembleia Nacional, mas já que se tinha assistido em outras sessões e com o resultado negativo que se conhece. E a verdade é que não sendo simétricos os papéis do governo e da oposição no sistema político quem politicamente paga mais pelo impasse que se cria com esse tipo de situações é o governo. É ele que tem o mandato, os recursos e o poder sobre as instituições para implementar políticas e atingir objectivos de interesse geral como são a segurança e a ordem pública.
Tanto assim é que da análise das eleições nas democracias nota-se que nas eleições o eleitorado – mais do que escolher entre as propostas programáticas das forças políticas em presença – com o seu voto, geralmente, decide se o incumbente merece ter mais um mandato ou se dá ao lugar ao partido alternativo no sistema. Ou seja, quem governa tem que apresentar resultados que vão ao encontro das aspirações da população ao passo que a oposição praticamente tem é que dar prova de vida confirmando que há possibilidade de alternância. Qualquer governo que queira continuar no poder tem que saber constituir a vontade necessária geral na sociedade e nas instituições para que as medidas de política resultem e os objectivos sejam atingidos. Não pode o governo justificar-se com acusações de obstaculização por parte da oposição e muito menos com lamentos patéticos de que o país não merece a actual oposição, detendo ele o poder e o controlo dos recursos do Estado.
Governar com verdade e sentido de responsabilidade é essencial para se construir essa vontade política, mobilizar energias e assegurar que as instituições cumpram as usas funções. De outra forma interesses corporativos emergem e encontram campo para se entrincheirarem ao se aperceberem que as forças políticas dividem-se na tentativa de os apaziguar e agradar. Sacrifica-se no processo a eficiência na utilização dos recursos públicos e eficácia na dispensa de serviços aos cidadãos. É de se evitar, por exemplo, a situação que se viveu durante quase um mês em que todo o país se sentiu consternado e menos seguro com a informação de que um agente da polícia tinha sido morto por delinquentes e que depois veio revelar-se falsa. Segundo o Director da Polícia Nacional terá sido um acidente. A questão que todos colocam é quando é que se soube a verdade do acontecido e porque se optou por não a revelar sabendo o impacto que estava a ter no público e na imagem do país. Desertar as pessoas e a sociedade em situação crítica como essa não contribui para a construção da confiança que se mostra essencial para fazer de Cabo Verde um país seguro. E a verdade é que o futuro depende precisamente da capacidade de realização do sonho de fazer de Cabo Verde uma terra de paz e morabeza.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 940 de 04 de Dezembro de 2019.

segunda-feira, dezembro 02, 2019

Pressão externa a espevitar o país

Os encontros semi-anuais do governo com o Grupo de Apoio Orçamental (GAO) têm-se revelado momentos interessantes para se confrontar a visão oficial sobre a situação do país com o olhar dos parceiros que financeiramente suportam o Orçamento do Estado.
É claro que o foco da atenção dos parceiros incide fundamentalmente sobre a questão do défice orçamental, do nível de endividamento público e da sustentabilidade da dívida a prazo. Mas acabam por fazer uma análise global sobre o estado da economia nacional, salientando resultados positivos e registando evoluções promissoras na implementação de políticas. Normalmente completam o seu comunicado final com recomendações sobre caminhos a seguir em cuja formulação, muitas vezes, deixam implícitas constatações menos positivas, questionamentos de prioridades e alertas em relação a certos desenvolvimentos. Num ambiente sócio-político em que, para além do confronto entre os partidos com todas as suas limitações e tendência para o sectarismo, não são muitas as oportunidades de debate sistemático sobre a economia, a apreciação que o GAO faz da situação do país influencia e ajuda a condimentar o discurso dos diferentes interlocutores. E como os encontros, em geral, acontecem em Novembro, nas vésperas da apresentação ao parlamento da proposta de Orçamento do Estado, ou então em Junho, um pouco antes do debate parlamentar sobre o estado da Nação, o impacto é ainda maior.
Uma das recomendações que chamaram a atenção da imprensa foi a do eventual impacto de novos incentivos fiscais dirigidos a investidores nas futuras zonas económicas especiais (ZEE). Subjacente está a preocupação em não se ter receitas derivadas das actividades desses operadores que compensem a perda fiscal com os incentivos dados logo à cabeça. Daí que aconselhem a ter em devida conta critérios de custo-benefício na projecção de novos esquemas de incentivos para as ZEEs. Acrescentam ainda que “antes da formulação de políticas é importante entender quais as categorias de investidores que potencialmente se localizariam na Zona e quais os mercados que eles almejariam alcançar”. Com tais alertas procura-se evitar que se repita o que aconteceu no princípio da década quando se endividou o país para financiar os investimentos públicos que iriam dar corpo aos clusters e depois não houve o retorno prometido. O “crowding in” do investimento privado, que viria na sequência do investimento público, não se verificou e Cabo Verde acabou por acumular uma dívida externa que o colocou na posição de um dos países mais endividados do mundo. Agora já não com “clusters” mas com “plataformas” ninguém deseja que aconteça o mesmo.
A verdade é que lendo os parceiros nas entrelinhas do comunicado não há por aí muita confiança que apareça alguma coisa que, pelo menos a médio prazo, se sobreponha ao turismo como motor da economia nacional. Neste aspecto parecem estar em linha com o que diz o Banco Mundial nos seus últimos estudos vindos a público sobre a economia de Cabo Verde. Não obstante, mostram-se optimistas em relação ao crescimento do PIB, que projectam em 5% no médio prazo, estão cientes dos vários factores que o poderão comprometer e também afectar a sustentabilidade da dívida. Vêem uma saída para as incertezas e uma forma de amortecer choques externos em políticas de investimento e uma estrutura de promoção consistente, focada na sustentabilidade, ligada ao desenvolvimento local e à diversificação económica. Apelam a que reformas sejam feitas e conduzam a mais coordenação e maior competitividade do país para que se concretize o objectivo de ter o turismo a impactar positivamente os outros sectores económicos e a contribuir para prosperidade geral.
A preocupação central do GAO com a dívida pública, actualmente no valor correspondente a 120% do PIB, faz com que avalie e siga com especial atenção os possíveis riscos orçamentais que o Estado pode vir a incorrer por causa das dificuldades financeiras do sector empresarial público, de outras participações empresariais ou ainda da eventual má gestão municipal. Nesse sentido há, por um lado, pressão para se prosseguir com as privatizações e as vendas de participação do Estado e a recomendação para fortalecer nos municípios a gestão dos aumentos dos recursos orçamentais. Por outro lado, nota-se alguma apreensão quanto às recentes aquisições do Estado na telecom e na banca e incentiva-se o governo a esclarecer os planos de alienação das acções compradas. Fica por saber é se as razões para isso são de natureza ideológica ou se advêm dos constrangimentos da dívida pública. De qualquer forma, a orientação parece ser a que Estado deve libertar-se de toda e qualquer intervenção em empresas públicas ou participadas. Já está a acontecer na ENACOL e, em princípio, o mesmo vai verificar-se com a venda de 39% das acções da Cabo Verde Airlines e mais tarde com a ELECTRA.
O problema com esta abordagem da gestão económica do país é que se fixa demasiado na questão da dívida e nos riscos de endividamento, subalternizando tudo o resto. O nível de rigidez que tende a impor deixa qualquer governo sem a necessária flexibilidade para responder a desafios e situações que revelem alguma complexidade. Num país pequeno e arquipelágico como Cabo Verde, onde a intervenção estatal se mostra muitas vezes indispensável para responder a mercados imperfeitos, falhas de mercado e dificuldades em conseguir economias de escala, deve haver sempre espaço para a discussão sobre qual deve ser o papel do Estado. Há que poder questionar, sempre, qual deve ser o escopo da sua actuação e inquirir dos níveis de eficiência e eficácia que deverá demonstrar enquanto prestador de serviços aos utentes e promotor da iniciativa individual e empresarial, vital para o país prosperar. Este é um componente do debate político que o país não pode abdicar mesmo quando conjunturalmente está sob forte pressão externa devido aos constrangimentos da dívida.
Deixar-se apanhar por razões ideológicas, ou sujeitar-se a amarras para receber dádiva externa, não é a melhor via para quem, com a realidade difícil e complexa que tem, devia sempre poder orientar-se pelo realismo e o pragmatismo na sua actuação. O facto não o ter feito por demasiado tempo explica muito as dificuldades com que hoje se depara e o nível mais baixo de desenvolvimento, em comparação com realidades insulares similares. Sabe-se que nem sempre será possível contornar as pressões, mas também se conhecem as consequências de capitular perante elas. Todo o país está hoje a pagar por opções de desenvolvimento mais apostadas na sobrevivência do dia a dia do que no investimento no futuro. As recomendações da GAO vêm relembrar com força que é urgente uma mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Para que não seja uma farsa

Na primeira sessão de Novembro da Assembleia Nacional, a matéria da composição do futuro Conselho de Finanças Públicas (CFP) foi dos pontos da ordem do dia que mais celeuma levantou. Em discussão esteve a questão se devia ser o Ministro de Finanças a propor o presidente e dois vogais de entre os cinco membros do conselho ficando os dois restantes por serem indicados pelo governador do banco e pelo presidente do tribunal de contas.
Tratando-se do órgão superior de uma instituição de escrutínio orçamental independente compreende-se que houvesse dúvidas quanto à indicação da maioria dos seus membros pelo ministro de finanças. De facto, o que está em jogo é nomeadamente o avaliar pelo CFP da consistência em termos macroeconómicos das projecções orçamentais e também do cumprimento de regras orçamentais e da dinâmica e sustentabilidade a prazo da dívida pública, todas essas acções sob a responsabilidade directa do ministro de finanças. E o que se quer é que não haja qualquer suspeita no que concerne à sua competência técnica e a independência. Nesse sentido, atribuir competência directa ao ministro na indicação da maioria dos seus membros, mesmo que mediada pelo conselho de ministros, certamente que não ajuda.
Conselhos de finanças públicas foram criados em vários países da União Europeia a partir de 2012 e na sequência da crise do euro e da dívida soberana com o objectivo de monitorização independente das contas públicas. O figurino adoptado para a composição do seu órgão superior foi como aconteceu em Portugal o de fazer o conselho de ministros nomear personalidades indicadas em proposta conjunta pelo presidente do tribunal de contas e pelo governador do Banco central. Pela via de proposta conjunta de duas instituições com altas funções técnicas e uma cultura organizacional de independência procurava-se garantir que os indicados reunissem qualidade técnica e fossem independentes. Associando a isso, entre outros atributos, mandatos relativamente longos e não renováveis, autonomia administrativa e financeira e inamovibilidade dos seus membros assegurava-se que poderiam ser uns verdadeiros watchdogs fiscais. A experiência portuguesa neste aspecto foi rica porquanto não faltaram tensões entre o CFP e outras entidades públicas incomodadas com os seus pareceres, à medida que o país nos anos difíceis da Troika e nos anos seguintes procurava fazer uma gestão orçamental, e em particular do défice e da dívida, em conformidade com as exigências europeias.
A adopção por Cabo Verde de instituições com esse perfil tem razão de ser. Quer-se com isso granjear credibilidade na gestão da contas do Estado, transmitir confiança que as previsões orçamentais de diminuição do défice orçamental vão-se verificar e que se irá trabalhar para que a dívida pública, ainda a níveis demasiados elevados, seja sustentável. E porque atingir tais objectivos é essencial para o país ser atractivo para o investimento externo e assegurar um bom ambiente de negócios, não se pode ficar a meio de caminho na forma como são constituídos os órgãos e alimentar dúvidas futuras quanto à sua competência e independência. Também não é procurando inovar com exigências de 15 anos ou 10 anos de experiência para os cargos de presidentes e vogais do CFP, que mais parecem critérios administrativos de antiguidade, ou estabelecendo que os órgãos fiquem adstritos à Chefia do Governo que se vai garantir capacidade técnica e autonomia.
Em instituições similares no estrangeiro, designadamente em Portugal, por causa do elevado grau de tecnicidade exigido abre-se a possibilidade de nomear vogais do CFP que não sejam nacionais do país, uma ideia que podia revelar-se interessante em Cabo Verde ainda carente de quadros altamente qualificados em domínios chaves. Outrossim, porque quem é fiscalizado e avaliado é o governo que executa o orçamento, afirma-se a autonomia fazendo o CFP tomar posse perante o presidente do parlamento que é um órgão plural e fiscaliza o poder executivo. Um grande desafio de todos estes conselhos fiscais seja nas experiências mais antigas como na Holanda ou nos Estados Unidos e mais recentemente na Suécia, Reino Unido e Hungria é garantir a autonomia e sobreviver ao descontentamento e críticas que num momento ou outro provocam junto de quem governa. Independentemente de algum mal-estar que eventualmente podem provocar, o facto é que os CFP com as suas análises, estimativas e monotorização da execução orçamental, ao trazer dados acima de qualquer suspeita, podem dar um contributo enorme para um debate político mais saudável e útil sobre a situação económica e financeira do país.
A opção por ter um Conselho de Finanças Públicas não deve ser visto como mais uma dessas medidas cujo principal objectivo é passar a imagem do país como de “bom aluno” junto das organizações internacionais e da União Europeia, na perspectiva de conseguir mais ajuda. Fez-se e continua-se a fazer muito disso, des­cur­ando os resultados e possíveis benefícios das medidas adoptadas e fixan­do simplesmente nos efeitos imediatos dos fluxos externos. Seria bom que no acaso actual houvesse um comprometimento para se ter um órgão de escrutínio orçamental realmente inde­pendente. Para isso, seria fundamental que se alterasse o quadro de nomeação dos seus membros porque como popularmente se diz não basta à mulher de César ser séria, tem que parecer ser séria. 
Nesse sentido não bastam as garantias do ministro de finanças quanto à indicação dos três membros do CFP, há que alicerçar a nomeação em bases institucionais sólidas. Um simples olhar pela actual estrutura do governo e pela actuação dos governantes não deixa dúvidas quanto à abrangência das funções do ministro de finanças que também é vice-primeiro-ministro. O poder que acaba por concentrar não deixa de causar desequilíbrios com impacto até na relação com os colegas ministros como visivelmente ficou patente ao público no processo de preparação do orçamento de 2018 e actualmente se nota no que alguns críticos já chamam de subalternização do papel do primeiro-ministro. Num quadro desses dificilmente se mostra credível que as suas indicações para os vários conselhos de administração de entidades públicas e empresariais são efectivamente escrutinadas em sede de conselho de ministros. E como parece, acreditando no que foi dito no parlamento por todas as forças políticas, que ninguém quer um Conselho de Finanças Públicas, que no futuro venha a revelar-se uma farsa, então que se legisle em conformidade para lhe garantir competência técnica e independência efectivas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 938 de 20 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 18, 2019

Resiliência democrática precisa-se

O trigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim aconteceu no sábado passado, dia 9 de Novembro. Por todo o mundo e em especialmente nas democracias o evento foi saudado com especial relevo nos jornais, rádio e televisão e relembrado em conferências, fóruns e artigos de opinião.
Nas universidades, think tanks e centros de estudos políticos e estratégicos foi matéria de apreciação sistemática em múltiplos encontros procurando perspectivar como foi possível regredir da euforia inicial e da aparente imparável vaga de democracia dos primeiros anos da década de noventa para o que agora se configura como uma espécie de recessão democrática. Foi também momento para se interrogar sobre as razões que têm levado multidões anteriormente entusiásticas com a liberdade e a democracia a apoiar populistas e demagogos que abertamente se declaram iliberais e questionam os direitos fundamentais, o primado da lei e a independência dos tribunais. E ainda para se saber porque gente que lutou e sofreu pelos ideais da cidadania plena, do civismo e do pluralismo presentemente se deixa arrastar por demagogos que cavalgam as ondas do medo contra o outro e cultivam o ódio sob a capa de políticas identitárias.
Em Cabo Verde, os trinta anos da queda do Muro de Berlim passaram praticamente despercebidos. Apesar do Cabo Verde moderno e democrático também ser parte vaga da democracia que partindo do desmoronamento do comunismo e do império soviético se propagou pelo mundo inteiro e derrubou regimes autoritários e totalitários, não há uma assunção explícita dessa herança. E isso é particularmente sentido nos órgãos de comunicação social pública que pela sua própria missão de informar e formar deviam ser os primeiros a cultivar os princípios e valores da liberdade e da democracia inscritos na constituição que resultou dessa vaga da democracia. A verdade é que mais facilmente os veremos em menos de um mês a comemorar os 45 anos da tomada da Rádio Barlavento, um acontecimento que efectivamente marcou o fim da liberdade de imprensa no país e da presença de privados na comunicação social durante quinze anos. Assim se tem verificado durante anos seguidos e dificilmente este ano será excepção.
O mesmo se pode dizer da Universidade Pública que se esperaria que fosse o grande centro de debate de ideias e a sede da mais ampla liberdade intelectual e liberdade de expressão e nessa medida relevasse o grande acontecimento da Queda do Muro de Berlim que inaugurou uma nova era no país e no mundo. Estranhamente a preocupação da universidade pública criada em 2006 é, nestes dias de Novembro e Dezembro, de comemorar 40 anos do ensino superior em Cabo Verde que supostamente teria sido iniciado com um curso de formação de professores em 1979. Um curso que o então Primeiro Ministro na abertura solene do mesmo definiu o perfil do professor pretendido como “um professor nacionalista e comprometido com a materialização dos princípios políticos do Partido, o PAIGC”. Não se percebe que tipo de valores se pretende resgatar de uma ligação com tal curso de formação de professores quando da universidade pública se espera que, em oposição aos propósitos que o nortearam, preze e exalte os princípios e valores de liberdade intelectual, da autonomia e da tolerância.
O descaso de entidades e de instituições públicas em matéria de defesa da liberdade e da democracia não é algo que só acontece em Cabo Verde. Queixa-se por esse mundo fora que uma das razões da recessão democrática actualmente vivida advém do facto de já não se ter memória presente do que é viver sem liberdade e sem uma imprensa livre, ser sujeito a prisões arbitrárias e não contar com um sistema judicial que administre justiça e obriga o Estado a cumprir a lei. Por isso que há quem queira testar o sistema estabelecido e submetê-lo a pressões anti-sistemas vindas de demagogos e populistas. Há quem nem queira se responsabilizar pela sua manutenção e cultive o cinismo em relação às instituições e à classe política. Há ainda quem sonhe com democracias de participação perfeita, de transparência absoluta e de corrupção zero. E tudo o que não corresponder, a todo o momento, ao sonho é motivo para indignação, seguido de frustração e posterior apatia ou militantismo violento. Estranhamente ninguém espera que a democracia soçobre por causa dos solavancos e choques a que é submetida. Tomam-se as liberdades e a democracia como garantidas mas a realidade é que não estão mesmo, como se pode constatar da ascensão do autoritarismo em vários países com tradição democrática.
Em Cabo Verde acresce-se a tudo isso o facto de a defesa dos princípios e valores democráticos ser enfraquecida pela presença forte de vários simbolismos dos primeiros anos da independência. As instituições e a própria classe política dividem-se em procurar equilíbrios e convivências de valores que de facto estão nas antípodas um do outro. O resultado é que prejudica a assunção de uma cultura democrática de real tolerância do outro, abre espaços para ambiguidades onde vão refugiar todas as resistências a reformas e à modernização do país, impede efectivamente o exercício da liberdade intelectual e não deixa energia para pensar o futuro e nele investir. A falta de “resiliência” democrática que tudo isso traduz pode revelar-se ainda mais problemática no ambiente actual no mundo em que as democracias estão sob ataque, os efeitos negativos da globalização aumentam com o enfraquecimento da ordem mundial e as expectativas das pessoas tendem a exacerbar-se com o acesso às redes sociais e total exposição ao que o mundo pode oferecer. Acossada a democracia poderá não haver reservas em termos de confiança e convicção que permitam resistir e recuperar-se de estragos causados.
Sinais preocupantes já se notam. As reacções ao surto da criminalidade e à insegurança não têm sido as melhores. Algumas configuram compressão de liberdades para responder a problemas de segurança. Outras querem “colaboração” do sistema de justiça acusando-se de demasiadamente garantístico. Ainda outras clamam para uma espécie de guerra ao crime com envolvimento de militares. O que não se vê é uma efectiva responsabilização pela situação acompanhado de um diagnóstico que vá além da procura de bodes expiatórios e de justificação porque é que depois de tantos meios materiais e humanos disponibilizados não há resultados sustentáveis. Entre os pilares da democracia está a exigência de “acountability” e o respeito pelo primado da lei os dois princípios de um Estado de Direito que os acontecimentos que se seguiram à queda do Muro Berlim tornaram possível. Há que os preservar e manter sempre a memória de como foram conquistados e como seria trágico ter de os perder.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 937 de 13 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 11, 2019

Imperativo diminuir a insegurança

A sensação de insegurança piorou nas últimas semanas na ilha de Santiago, em particular na cidade da Praia. Assaltos, homicídios e o assassinato de um polícia em rápida sequência deixaram toda a gente preocupada e intranquila e exacerbaram o sentimento de insegurança que nunca tinha realmente diminuído apesar dos dados oficiais apresentados que apontavam para a baixa da criminalidade. No meio da confusão que se tem gerado, a tentação para se fazer o aproveitamento político das ocorrências policiais à medida que são dadas a conhecer só tem piorado a situação.
Paralelamente, em surdina ou às claras, sucedem-se acusações dirigidas contra entidades integrantes do sistema de segurança e de justiça amiúde provenientes do seio do sistema e na lógica de “passar culpa”. De todo esse exercício de stress público, procura de bodes expiatórios e aproveitamento político já se sabe que vai acabar por resultar em promessas de mais meios materiais e humanos em particular para a polícia nacional. A exemplo do que se passou em situações similares no passado recente (2014, 2010). O Governo já veio a público comprometer-se em os facultar.
Se a experiência do passado serve como ensinamento, tudo leva a crer que a situação actual até pode vir a melhorar e o número de assaltos diminuir e os assassinatos tornarem-se mais raros, mas é uma questão de tempo até que aconteça a próxima crise. Aí repete-se o que já se viu antes e, como das outras vezes, volta-se a fechar o circuito com mais meios. Entretanto, os problemas ficam por ser identificados, não se desenvolvem estratégias efectivas para os enfrentar e não se fazem os ajustamentos necessários em termos organizacionais, operacionais e de adequação do próprio sistema de forças para os resolver. No fim do dia é de espantar que com isso não haja uma gradual viciação de partes integrantes do sistema porque deixados a si próprios, numa espécie de círculo em que picos de criminalidade são seguidos de mais meios, mais salário e de outras prerrogativas.
Torna pior a situação o posicionamento das forças políticas. Como se viu na semana passada e ao longo do debate sobre a situação da justiça no parlamento, a tentação é emprestar voz a reivindicações de órgãos integrantes do sistema na perspectiva de ter ganhos políticos imediatos. Em intervenções, mas também em decisões tomadas, não se tem o devido cuidado com as consequências em termos de custos directos para o Estado, da perda de uniformidade na estrutura de salários do sistema e no convite implícito a “greves de zelo” de parte de certos agentes. São acções que põem em causa a eficiência e a eficácia do sistema e se tornam num ponto de partida para um novo ciclo de reivindicações. Nos últimos anos viu-se o impacto orçamental das mudanças salariais e outros benefícios dos oficiais de justiça, das polícias, agentes prisionais, dos militares e os efeitos dinâmicos de arrastamento que essas medidas tomadas em tempos distintos tiveram subsequentemente nos próprios funcionários em forma de novas reivindicações e até desembocando em manifestações laborais diversas e em greves inéditas da polícia.
Pela voz de deputados na última reunião plenária da Assembleia Nacional a ler missivas de sindicatos já se sabe que se pode estar na iminência de um período de turbulência na magistratura judicial devido a reivindicações salariais com possibilidade de greve em cima do processo de apresentação de candidaturas para as eleições autárquicas. Tal eventualidade que a acontecer iria mexer com a integridade e a funcionalidade do sistema político e do próprio Estado que não devia deixar qualquer força política indiferente e muito menos numa posição activa de promover dinâmicas complicadas. Há que entender que certas decisões particularmente em sectores que são de soberania ou representativas da autoridade do Estado devem são tomadas de forma compreensiva e não deixaram perceber fragilidades que comprometam o todo. A questão revela-se ainda mais complicada se se tiver em consideração que, no quadro actual de contenção do défice orçamental, ser colocado em posição de deixar disparar as despesas com o pessoal implicará, para compensar, sacrificar o investimento público, actualmente segundo o Banco Mundial correspondente a 4,4% do PIB de um pico de 15% em 2010, com consequências adversas designadamente em serviços essenciais prestados ao público.
É essencial acabar com o sentimento de insegurança que teima em apoderar-se das pessoas. Cabo Verde deve ser a terra segura tranquila que todos os seus filhos sonham e cuja imagem pretende-se projectar para fora de modo a fazer aumentar o turismo e atrair investimentos para o país. Garantir a segurança é a missão primordial de qualquer Estado e para o caso de Cabo Verde é o pilar indispensável para o sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento. A conse­cução de políticas com foco na segurança implicaria a reavaliação e a adequação do sistema de forças no país como aparentemente ficou estabelecido no programa de governo. O problema é que na prática isso até agora não se verificou.
Optou-se por deixar as forças de segurança como estavam e só se procurou resolver os problemas criados na adopção pelo governo anterior da actual configuração de forças e colmatar as deficiências de meios encontrados. Se antes não tinha dado resultados que perdurassem no tempo a ponto de diminuir o sentimento de insegurança da população dificilmente fazendo o mesmo teria resultados diferentes e sustentáveis. As coisas complicam-se se começa a ficar manifesta a incapacidade dos políticos em fazer as mudanças necessárias para uma nova abordagem dos problemas de segurança. Uma incapacidade que a manter-se se traduziria numa erosão de autoridade com as consequências que se pode antever.
A estabilidade das democracias depende em muito da clara subordinação das forças armadas e segurança às autoridades civis legitmamente estabelecidas. Democracias sob tutela ou sob chantagem dessas forças ficam num estado de fragilidade que não lhes permite consolidar as suas instituições nem criar as condições para se desenvolver e prosperar. Guiné-Bissau é um caso paradigmático do tipo de erosão institucional que pode acontecer quando tais relações não são claras. Em Cabo Verde, fruto de histórias passadas, resistências a reformas de fundo tendem a subsistir em instituições que às vezes se veem quase como um estado dentro do estado. Mesmo em Portugal, 45 anos depois do 25 de Abril, há resquícios disso como ficou patente no caso do roubo de armas em Tancos, manifestando as autoridades civis uma fragilidade que o colunista Vasco Pulido Valente caracterizou de “desmaiar perante uma farda”. Em Cabo Verde parece acontecer algo similar e não há a autoridade necessária para fazer as reformas fundamentais. Há que mudar isso e sendo algo vital deveria merecer um consenso das forças políticas. O que está em jogo é conseguir que o sentimento de insegurança da população diminua de forma permanente para a tranquilidade de todos e um futuro melhor para o país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 936 de 06 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 04, 2019

Lose-lose

Os dados recentes dos relatórios do Doing Business e da Competitividade, que colocam Cabo Verde respectivamente na posição 137 entre 190 países e 112 entre 141, mostram o quão difícil tem sido fazer reformas no país. No início da década, o índice do Doing Business estava em 142.
 Depois de algum progresso em que chegou a 119 em 2012, mas que se revelou passageiro, entrou numa trajectória menos positiva que devia interpelar a todos. Aparentemente as resistências à mudança existentes no aparelho do Estado e na estrutura sócio-económica do país têm sido capazes de conter o impacto das reformas mesmo quando vêm de governos ideologicamente diferentes e com abordagens distintas. Caso para notar com inquietação o quanto o confronto dos dois grandes partidos, pretendendo ser protagonistas num jogo de soma nula em que o ganho de um é a perda do outro, tem-se revelado afinal ser um jogo (lose-lose) no qual todos perdem.
Situações similares acontecem em outros países. Um exemplo recente é a Argentina que no domingo passado elegeu um novo governo em plena crise económica e na sequência de um plano de resgate do FMI de 57 bilhões de dólares. O problema é que esse governo é do mesmo partido que tinha lá estado há cinco anos atrás e deixara o país numa situação praticamente de falência. Desde o fim da segunda guerra mundial que os dois partidos têm-se substituído no poder sem conseguir resolver os problemas de desenvolvimento desse país tão promissor, considerando os extraordinários recursos que dispõe. Alternam-se em políticas mais assistencialistas ou mais promotoras de iniciativa individual, mas não se constroem bases seguras de desenvolvimento que permitiriam às populações aumentar significativamente os seus rendimentos e criar coesão social com menos desigualdade. Para além das pessoas que vêem as suas expectativas sistematicamente goradas, desgastam-se também as instituições que perdem credibilidade e efectividade. Muita da agitação que se vive actualmente em vários países da América Latina tem aí a sua origem.
Também em Cabo Verde poder-se-á estar a verificar a fragilização das instituições derivado do impasse que se constata nas reformas e consequente dificuldade das pessoas em descortinar os efeitos das medidas de política no seu quotidiano e nas suas expectativas de futuro. O fenómeno é agravado pela tentação de no jogo político se extrapolar as diferenças, exacerbar as críticas e não deixar espaço para uma análise mais ponderada de possíveis soluções e de como ultrapassar as dificuldades no processo de implementação. A falta de consenso mínimo num conjunto de questões essenciais cria a sensação de insegurança, incentiva a que se resolvam conflitos por vias outras e acaba por promover uma cultura de desenrascanço que valoriza o informal e desencoraja o civismo e o espírito de cooperação. Em tal ambiente reforçam-se as resistências que vão se opor a reformas, venham de onde vierem, deixando o país num círculo vicioso que depois de iniciado dificilmente se escapa como se pode constatar do caso referido da Argentina.
A realidade do mundo de hoje com as oportunidades abertas pela globalização, com acesso à informação como nunca antes se viu e a possibilidade de comunicação numa escala sem precedentes alterou significativamente as expectativas de virtualmente toda a gente. Lidar com a nova realidade não tem sido fácil tanto a nível individual como a nível colectivo. O choque das expectativas com a realidade muitas vezes acaba por desembocar em frustrações pessoais, em raivas contra as elites e em ressentimentos dirigidos a outros grupos identitários. O alvo primeiro da desconfiança e do cinismo no mundo de hoje é a democracia representativa em nome de mais democracia mas também é a verdade dos factos e a universalidade da ciência e do conhecimento. Muito mal fazem os políticos e os seus partidos sempre que na luta pelo poder exploram essa tendência actual de pessoas e grupos de descredibilizar as instituições da democracia, em particular o parlamento, põem em causa os direitos humanos, que são um ganho de civilização, por supostamente servirem aos “bandidos” e incentivam um relativismo que abre às portas à desinformação e à manipulação do sentimento das pessoas. Depois, como se pode constatar de vários casos, mesmo em democracias consolidadas, os políticos e a política acabam por ser vítimas de si próprias quando capitulando a democracia sob o impacto de forças anti-sistemas com ela vão todas as suas instituições, a começar pelos próprios partidos.
Um sinal que o sistema político em Cabo Verde já não está a gozar de boa saúde é o facto de que tudo, do mais insignificante ao mais importante e dramático, é motivo para batalhas campais entre forças políticas onde quase tudo vale. Choques entre os partidos acontecem por tudo e por nada, designadamente por causa da seca, de gafanhotos, lagartixas, planos de salvamento do gado, barragens, preço da água, estradas asfaltadas, vinda de aviões, chegada de barcos, assaltos, mortes, reivindicação salarial, crianças desaparecidas etc. A discussão nunca é serena ou substantiva. Todos procuram ganhar à custa do outro. Nenhuma desgraça é suficiente para se juntarem e desenvolver uma estratégia que poderia romper com resistências construídas e abrir finalmente um caminho para a prosperidade que não deixasse muitos de lado. Com a seca, que vai no terceiro ano consecutivo e revelou a vulnerabilidade da população rural, não aconteceu. Com a insegurança, que é especialmente sentida na Cidade da Praia mas também em outros pontos do país, também não aconteceu. Com as falhas que o sistema educativo dá provas todos os dias e todos fingem ignorar, não se conseguiu elevar o país para um patamar superior. O mesmo acontece com as insuficiências que o sector da saúde já vem demonstrando à medida que os custos aumentam consideravelmente.
Prefere-se com discursos inflamatórios ficar neste jogo de quebrar a confiança do eleitorado num e noutro partido para tirar proveito próprio e não perceber que, com isso a situação, de facto é de lose-lose em que todos saem a perder. Viu-se isso no debate de ontem no parlamento com o Primeiro-ministro em que a barreira entre as forças políticas, de facto, não foi quebrada nem mesmo quando um deputado citando o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, lembrou que assim como não há Terra 2, não há Cabo Verde 2. Fica deveras evidente que o país e as suas gentes mereciam melhor e que é dever de todos facultá-lo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 935 de 30 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 28, 2019

O vale tudo tem custos

Aproxima-se o debate anual no parlamento sobre a situação da justiça e em antecipação já os actores políticos se posicionam com as queixas e as críticas de sempre.
Todos focam na questão da morosidade da justiça, pedem-se mais meios no pressuposto que o problema central é de falta de meios e notam-se as tentativas de encontrar culpados para a situação. Repete-se o jogo que, pela forma como nele se entra e se pratica, tende a simplificar o que é complexo, atiça as achas para mais um “round” da luta político-partidária estéril e convida outros protagonistas do sistema a baixar os braços ou a fazerem-se de desentendidos. Olhando, porém, para o sistema sem os filtros habituais de natureza política ou corporativa as constatações não são muito diferentes das que o sociólogo António Barreto recentemente identificou na justiça portuguesa quando se referiu “Ás regras processuais, fonte de desigualdade e despotismo. A chicana burocrática que destrói a eficiência e alimenta a desigualdade. As garantias excessivas, factor de injustiça e paralisia. As relações entre magistratura judicial e Ministério Público, sem falar nas polícias, que se têm transformado em obstáculo sério à eficiência.” 
O Estado de Direito democrático instituído com base no respeito pelo primado da lei depende para o seu funcionamento pleno da independência efectiva dos tribunais e da autonomia do Ministério Público. Seguindo a moldura institucional da Constituição de 1992 há quase trinta anos que do sistema herdado dos anos antes e depois da independência procura-se construir um poder judicial com um nível de eficácia suficiente para administrar a justiça, garantir os direitos fundamentais e contribuir para preservar a paz e a segurança de todos. As dificuldades reconhecidas por todos com que o sistema ainda se depara, funcionando aquém do desejável, deviam deixar a claro os obstáculos a serem vencidos ou ultrapassados sejam eles materiais, ou de natureza organizativa, cultural ou formativa.
O comprometimento de todas as forças políticas com a independência do poder judicial é inequívoco. As leis que erigiram o sistema foram aprovadas por quase unanimidade dos votos dos deputados de todas as forças políticas. Certamente que outras leis que eventualmente poderão aprimorar mais o sistema no sentido de uma efectividade maior a todos os níveis se devidamente negociadas terão o acordo dos partidos representados no parlamento. Prova disso foi o consenso conseguido na revisão constitucional de 2010 que transferiu para os conselhos de magistratura judicial e do ministério público a gestão efectiva dos recursos dos tribunais, das procuradorias e das respectivas secretarias. Também o engajamento dos sucessivos governos em disponibilizar recursos ao sistema da justiça pode ser comprovado por todos.
Daí que as razões para a persistente ineficácia dos tribunais traduzida na morosidade da justiça não terão somente a ver com o sistema em si ou com falta de vontade política. Deverão contribuir para as ineficiências e a falta de eficácia outros condicionantes cujos efeitos perniciosos também se fazem sentir em outros sectores da vida económica, social e cultural onde os retornos dos investimentos feitos não se traduzem, por exemplo, em maior qualidade do ensino, na diminuição perceptível da insegurança, na melhoria significativa da competitividade, no aumento de produtividade e em maior civismo. Condicionantes esses que devem ser identificados e ultrapassados num esforço colectivo mas dentro de um quadro de pluralidade, para que o país acumule competências, veja os seus propósitos realizados e invista com confiança no futuro.
Infelizmente demasiadas vezes acontece o contrário. Não são os condicionantes que são eliminados, mas sim as resistências à mudança que se vêem reforçadas no ambiente de crispação política criado pelos partidos, quando focados na procura de pequenas vantagens tácticas ou no aproveitamento de alguma oportunidade para passar uma má imagem do adversário. O país ouviu na semana passada as declarações da presidente do Paicv a envolver em dúvidas e suspeições a nomeação do novo procurador-geral da república, dizendo que “é estranho que só depois de se terem avançado com processos, que envolviam personalidades muito próximas do actual poder, é que houve essa pressa na mudança do PGR”. Foi algo totalmente desnecessário, mas que se justifica com a lógica do “vale tudo”.
As quatro nomeações anteriores do PGR pelo presidente da república sob proposta do governo nunca mereceram apreciação do género pelas forças políticas precisamente porque é vontade de todos que o PGR seja independente do governo e esteja acima de qualquer suspeição. Declarações feitas em ambiente de stresse, embora graves, mas sem qualquer impacto institucional não devem servir de pretexto para pôr em causa um processo de substituição que cai dentro da normalidade, considerando que o fim do mandato se verificou no passado mês de Maio e o novo mandato inicia-se com a abertura do ano judicial. Desde 2003 que a prática tem sido a nomeação do PGR para um único mandato de cinco anos. Politizando a justiça o que se consegue é a descredibilização do sistema e que em consequência aumente a tentação de agentes na administração da justiça de se desresponsabilizarem pelos resultados. Podem continuar a pedir mais meios e regalias, mas passam a responsabilidade pelos resultados aos políticos ávidos nas suas tricas políticas de oportunidades para se culparem uns aos outros.
É evidente que ninguém ganha com isso, muito menos quem quer uma justiça célere e eficaz. Também a prazo não ganham as forças políticas que, num momento, prontificam-se a suportar um poder judicial independente e a enfrentar a complexidade da tarefa de pôr a funcionar com eficácia todas partes do sistema, salvaguardando a sua independência e a autonomia, e, noutro momento, parecem dispostas a alimentar teses conspirativas que o descredibilizam. Globalmente esses avanços e recuos e a falta de consistência estratégica na implementação de políticas tendem a aumentar a ineficiência do sistema no seu todo porque não é só a justiça que é afectada. Também o são outros sectores da vida do país com impacto directamente nas pessoas, na economia e na sociedade. A credibilidade da democracia sofre no processo porque para os cidadãos a política deixa de ser o processo para se encontrar as melhores vias para o desenvolvimento para passar a ser simplesmente jogadas de poder onde tudo é possível. Há que rejeitar definitivamente a lógica do “vale tudo” na política. Os custos presentes e futuros são incomportáveis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 934 de 23 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 21, 2019

Chega de panaceias

O discurso do governo particularmente pela voz do Vice-primeiro-ministro e Ministro das Finanças tem sido dirigido para os jovens e para a necessidade de investimento na formação profissional.
Nesse sentido, segundo Olavo Correia, até agora 7 mil jovens foram beneficiados com formação e estágios profissionais, mas a meta a atingir é de 10 mil beneficiários. A proposta do Orçamento do Estado para o ano de 2020 prevê 358 mil contos para financiar a formação e 387 mil contos como comparticipação do Estado em estágios profissionais. E a ideia é de se ter um centro de formação profissional em todas as ilhas. Com essas medidas o governo reitera a sua aposta nos jovens e sugere que está na linha de cumprir com a promessa de campanha, várias outras vezes repetida, de criação de 45 mil postos de trabalho e de ter uma economia a crescer a uma média de 7% até ao fim da legislatura. O facto de até agora só se ter atingido um crescimento de 5,1% em 2018 (o World Economic Outlook de Outubro de 2017 põe o crescimento numa média de 5 % nos próximos anos) e de ser baixado o desemprego para 12,2% revela as dificuldades e a complexidade da situação socio económica e laboral que não se compadecem com panaceias, voluntarismos e apelos motivacionais.
Mesmo com as melhores das intenções são vários os obstáculos a um aproveitamento adequado de um investimento massivo na formação profissional. Na sua página oficial do Facebook, o VPM e Ministro das Finanças começa por reconhecê-los ao apelar que se valorize a formação profissional ao mesmo nível de outras carreiras, ocupações e profissões. Depois constata a tentação de no processo de contratação se descartar os formados nas escolas profissionais a favor de trabalhadores sem qualificação e recomenda a adopção de carteiras profissionais para que possam ter emprego digno. Por último propõe que as empresas que recebem renúncia fiscal do Estado sejam obrigados a recrutar jovens formados. Outros problemas certamente existirão designadamente no ajuste entre as ofertas de formação e a procura real de qualificações, em conseguir a sinergia certa entre o centro de formação e o ambiente empresarial que favoreça a qualidade e em ganhar dimensão crítica em termos de número e rotatividade de formandos que permita aos centros consolidar-se como instituição de formação.
Sucesso na implementação de políticas depende muitas vezes da devida articulação com outras e do encadeamento no tempo certo que se fizer das medidas previstas. Razão para que isoladamente não sejam tomadas como panaceias que vão resolver todos os males. No caso da política de formação profissional, é evidente que só se terá grande absorção de mão-de-obra formada se houver boa evolução da exportação de bens e serviços e do turismo tendo em conta que a procura interna é limitada e não suficientemente diferenciada. Para se conseguir isso porém é fundamental que o país seja competitivo apresentando entre outros factores uma mão-de-obra especialmente preparada para ser atractiva para investidores que tenham na mira mercados externos. Também internamente constrangimentos como a informalidade da economia e a resistência das empresas em contractar profissionais terão que ser confrontados decisivamente sob pena de se ver todo o investimento público na formação a perder-se ou a ficar subaproveitado. Não se pode ter uma situação similar àquela descrita pelo presidente da associação dos taxistas da Praia à agência Inforpress de já estarem a circular um número de táxis clandestinos quase igual aos legalmente estabelecidos depois de todo o esforço feito por várias entidades para regularizar a situação.
Corre-se o risco de frustrar as expectativas das pessoas quando se extrapola os efeitos de certas políticas ou o impacto de certas obras ao mesmo tempo que se simplifica a realidade e não se dá à sociedade a dimensão real dos problemas. Quantas vezes se anunciaram obras que seriam estruturantes e catalisadores do desenvolvimento em ilhas ou partes do território nacional para depois se constatar que afinal “a montanha pariu um rato”. Não é que os investimentos feitos em portos, aeroportos, estradas, barragens, habitação social, escolas, etc, não tenham trazido algum benefício. O problema é que os benefícios são muito menos do que os prometidos e esperados e os custos são muito maiores do que inicialmente assumidos porque não acompanhados de outras acções e políticas com as quais deveriam criar sinergia e potenciar a criação de valor.
O resultado por exemplo é, para as autoridades, como reconciliar os surtos de insegurança que acontecem na cidade da Praia com os investimentos de milhões feitos no âmbito da cidade segura e também em garantir à polícia nacional os meios e os incentivos para serem efectivos nas suas funções. Ou congratular-se com o sucesso já conseguido da CV Airlines no hub do Sal ao mesmo tempo que declara o governo sem poder para baixar preços das passagens aéreas como se não tivesse políticas para o sector de transporte aéreo e dever de dar combate a práticas monopolistas. Ou ainda assistir-se ao investimento na educação na ordem dos 12 milhões de contos na proposta do OE e se ter a sensação generalizada de que está longe o retorno desejável em termos de qualidade, de preparação dos jovens para o futuro e de assegurar uma base em termos de competência linguística, educação humanística e base científica e técnica.
Em Cabo Verde sempre se alimentaram sonhos do tipo: se o país chovesse ter-se-ia fartura e todos seriam felizes. Por causa disso a mobilização da água torna-se panaceia e investe-se em sistemas de captação, mas descuram-se os passos seguintes para se ter uma agricultura que não seja de simples subsistência. No fim do dia a precariedade persiste, as populações continuam vulneráveis e paradoxalmente não se alimenta uma cultura de poupança de água como deixam saber as revelações vindas a público de perdas escandalosas de água nas redes públicas. Talvez por razões similares tende-se a acreditar que mesmo ficando tudo o resto igual se houvesse crédito o país estaria a fervilhar de actividade com o empreendedorismo ou que se pode criar cyber islands com investimentos dos outros em data centers sem que no domínios das Tecnologias de informação (TICs) se se verificasse um esforço sistemático de formação nas escolas e universidades durante anos seguidos, a exemplo de outros países.
Não devia ser assim. O país sem recursos, com população diminuta e localização geográfica não muito vantajosa apesar dos devaneios em contrário devia encarar a problemática do desenvolvimento com mais humildade, responsabilidade e abertura para o diálogo. A política infelizmente não tem servido para isso. Bem pelo contrário, tem-se prestado ao camuflar dos problemas, à insistência em panaceias de toda a espécie e em levar as pessoas numa montanha russa de expectativas altas e frustrações profundas. Há que dar um basta a isso.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 933 de 16 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 14, 2019

Restabelecer os equilíbrios

O descontentamento das pessoas em relação à democracia é hoje um fenómeno quase universal. Multiplicam-se as críticas sobre o seu funcionamento e suposta ineficiência e aumentam as dúvidas quanto à sua capacidade de encontrar soluções para os problemas da actualidade.
 Hoje fala-se da recessão democrática, da crise de representação e do défice de participação e não é para menos. Pelo tom usado por muitos nas redes sociais em constantes momentos de indignação perante situações grandes e pequenas, em acusações de corrupção dos políticos que quase não deixam ninguém de fora e na atitude cínica com que se encaram os ideais democráticos podia-se pensar que o fim da democracia está próximo. A realidade é que mesmo com dúvidas e frustrações, aparentemente, todos aspiram viver em democracia. Regimes mais ou menos autoritários ou iliberais reivindicam o manto de democratas e ditaduras totalitárias vestem a roupagem da democracia para se camuflarem e se legitimarem. A ideia da democracia não está morta nem moribunda, mas carece de vitalidade e ela só pode vir da sociedade, da sua convicção e do seu engajamento.
Já dizia Alexis de Tocqueville que o sucesso da democracia americana devia-se à existência de uma sociedade civil particularmente activa e participativa desde dos primórdios da república. O capital social existente traduzido numa cultura cívica intensa e num elevado grau de associativismo foi crucial para a consolidação da democracia americana. Claro que o rápido desenvolvimento de uma classe média empreendedora cuja prosperidade dependia do respeito pelo direito de propriedade e pelos direitos contractuais conjugado com a garantia de um poder judicial independente capaz de eficazmente redimir os conflitos foi central para se manter a sociedade civil autónoma, exigente na qualidade dos serviços prestados pelo Estado e fiscalizador do uso dos recursos postos à sua disposição pelos contribuintes. Ao longo dos tempos nem todas as experiências democráticas conseguiram reunir as condições óptimas para triunfar.
Cabo Verde não é excepção. A adopção durante décadas do modelo de desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa no quadro do regime de partido único fez crescer a dependência do Estado e o espírito assistencialista em todo o território nacional. Em 1988 o então presidente da república Aristides Pereira constatava isso apelando que as frentes de trabalho (FAIMO) deixassem de ser “o local onde se degrada a consciência laboriosa do nosso povo”, mas a verdade é que praticamente todo o país se tinha tornado numa grande FAIMO. No processo, as elites socioeconómicas anteriores tinham sido suprimidas ou neutralizadas e em substituição tinha emergido uma outra elite intimamente ligada ao Estado que lhe dá os acessos, faculta-lhes os meios e cria-lhes as oportunidades. É evidente que a nova elite dificilmente podia ser a base para uma sociedade civil autónoma, crítica e reivindicativa perante o Estado.
Com o advento da democracia no pós 13 de Janeiro de 1991, pôs-se a questão de qual seria mais difícil, se mobilizar a sociedade civil para apoiar a reestruturação da economia e, no processo, conseguir-se mais crescimento e emprego ou fazer o desmame material e cultural de pessoas e instituições do modelo de reciclagem da ajuda externa. Ter-se-á ficado a meio do caminho e o resultado é que da parte das elites existentes não houve um comprometimento forte com os valores democráticos, com a economia de mercado e a ideia de uma sociedade civil realmente autónoma. Acredita-se ainda que o mais natural é o Estado continuar no “topo da cadeia alimentar” mas, não talvez da mesma forma. Anteriormente os recursos foram essencialmente ajuda, hoje são mais variados, mas a tendência é o Estado comportar-se da mesma forma e o sector privado e as elites submeterem-se à sua orientação, preferência e humores.
O estado actual do país reflecte em vários aspectos o quanto se falhou em criar as condições para a emergência de uma sociedade civil engajada que desse suporte à democracia. Sente-se isso principalmente neste momento de especial fragilidade da democracia a nível local e global em que a opinião expressa nas redes socias, em comentários e também em alguns discursos visa atingir fundamentalmente o parlamento, o sistema judicial e os media. Coincidentemente os mesmos alvos que em países como a Polónia e a Hungria, mas também os Estados Unidos e o Reino Unidos estão na mira dos assumidamente populistas. Em Cabo Verde aparentemente está-se a dar continuidade às críticas e ao maldizer que acompanharam a construção da democracia a partir dos anos 90. Paradoxalmente, nesse período, a sair do regime de partido único, já se criticava a existência de partidos, o bipartidarismo e o parlamento plural. Com pouco tempo de vigência dos direitos fundamentais já se acusava as autoridades de serem pior que a ditadura anterior. Sem ainda tempo para recuperar da estagnação dos tempos de economia estatizada já se transbordava de indignação pela suposta venda do país a investidores externos. Caso para perguntar se antes não encontraram razão suficiente para defender a democracia o que aconteceu de novo que poderia tornar os críticos no seu defensor activo.
De facto, o que vem acontecendo é o contrário. Os ataques recrudesceram sem preocupação com as consequências. Para muitos que sempre viveram na democracia e na liberdade as críticas até podem ser normais considerando que parecem reflectir insuficiências no sistema democrático e falhas dos agentes políticos e suas organizações. Não lhes passa pela cabeça que a sua actual vivência democrática e tudo o que dão por garantido pode ser reversível, como aliás vem acontecendo em alguns países até recentemente liberais e democráticos. Por outro lado, não parecem ter apercebido que muita crítica expressa no espaço público é pobre, segue certas conveniências e deixa-se instrumentalizar. Nem notam que por algum bloqueio o país ainda está por dar sinais de que o nível do debate público se elevou com as várias universidades criadas e os seus milhares de estudantes formados.
A democracia cabo-verdiana perde com a falta de uma sociedade civil autónoma, activa e focalizada. O discurso político empobrecido sem a pressão dos problemas e prioridades trazidas pela sociedade limita-se aos temas dos partidos que lhes podem trazer pequenas vitórias tácticas na luta pelo poder. Ou, então, coopta a agenda das instituições internacionais que não poucas vezes substitui o que deviam ser políticas públicas do país com as consequências que todos conhecem. Basta analisar os custos e benefícios dos múltiplos projectos em todo o país. Por isso é que a vitimização, o “coitadismo”, o ter sido abandonado ou discriminado são temas constantes não só do discurso político como também de activistas sociais. Tragicamente procura-se compensar a quebra da autoestima que tudo isso acarreta com “bengalas identitárias” que desviam o país da narrativa que historicamente lhe deu consciência da nação muito antes de ser um Estado independente. Desvio que só pode levar à autoflagelação do tipo que o Presidente da República aconselhou para se evitar, na sequência do incidente com o professor universitário guineense no Aeroporto da Praia, e à quebra na motivação de cada um em particular e da sociedade em geral de se fazer mais e melhor em prol de uma vida de prosperidade e em liberdade. Para isso, há que cortar com o cinismo, enfrentar os problemas sem cair no ilusionismo e reconstruir os equilíbrios necessários entre o Estado, a sociedade e o mercado..
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 932 de 9 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 07, 2019

Evitar a “desconsolidação” democrática

O ano parlamentar que praticamente coincide com o ano político iniciou a 1 de Outubro. Arranca com a quarta sessão legislativa cujo término a 31 de Julho de 2020 se verificará provavelmente em cima das eleições autárquicas a terem lugar entre Julho/Agosto.
 Por ser um ano pré-eleitoral o mais normal é que se acentue a polarização política entre os partidos e aumente substancialmente a crispação. E o facto de se realizarem eleições disputadas para a liderança do maior partido da oposição no próximo mês de Dezembro certamente irá afectar o tom e a natureza do discurso político em direcção ao governo. Cada candidato vai querer ser o mais contundente e efectivo nas críticas à governação. Também não deverá ficar grande espaço para grandes entendimentos entre os grupos parlamentares que implicam maiorias de dois terços dos votos dos deputados. Com estas pedras no caminho dificilmente irá ser um ano parlamentar mais produtivo, correndo-se o risco de a legislação prometida em matéria eleitoral, tanto quanto à paridade de géneros como à limitação de mandatos, ficar comprometida. Nem tão pouco se conseguir acordos alargados no provimento de cargos exteriores à Assembleia Nacional como o Provedor da Justiça e o Conselho Superior de Magistratura Judicial que há mais de um ano esperam ser substituídos.
Quer isto dizer que não será este ano ou o próximo que se vai constatar uma melhoria na qualidade do trabalho parlamentar. Com o ciclo eleitoral já à porta e as três eleições autárquicas, legislativas e presidenciais separadas cerca de seis meses umas das outras, não será o melhor momento para se reparar as relações parlamentares no sentido de maior efectividade seja na produção legislativa, seja na elucidação da nação dobre os problemas candentes do país ou ainda na fiscalização dos actos da governação. De facto, não se pode considerar que nestes últimos anos houve avanços entre as forças políticas quanto à capacidade de negociar, de firmar acordos e de chegar a compromissos em matérias cruciais para o país. Pelo contrário. Como todos se vêem ou querem apresentar-se como representantes genuínos e únicos do povo, com exclusão dos outros que são tidos como antipatriotas, negativos e maledicentes, não fica espaço para o diálogo.
Mesmo fortes chamadas à realidade, como foram, entre outras, a quase estagnação económica dos primeiros cinco anos desta década e a seca desde de 2017, não se mostraram suficientes para alterar o tipo de debate político em Cabo Verde. Persiste-se no confronto que impede visão clara e plural sobre os problemas do país, dificulta a identificação das prioridades e não mobiliza vontades para se investir no futuro. Complica a situação o facto de quaisquer alterações favoráveis do ambiente externo, quase sempre conjunturais, mas com repercussões positivas no país, serem suficientes para se esquecer males passados, vulnerabilidades reveladas e omissões até ao momento despercebidas. Ultrapassado o mau momento é só ver o país a retomar o seu caminho imperturbável como se nada tivesse acontecido até que desperte com mais um choque externo. Entretanto, reformas são adiadas, cresce a inércia social e cultural impeditiva do desenvolvimento e diminui a capacidade de resiliência a todos os níveis.
Para os autores do best-seller “Porque Falham as Nações” Daron Acemoglu e James Robinson no seu novo livro “O Corredor Estreito: Estados, Sociedades e o destino da Liberdade” não basta que se tenha uma moderna Constituição e leis democráticas para se dar a democracia como realizada, para se considerar garantido o exercício da liberdade e criadas as condições e oportunidades para maior prosperidade. Ao lado do Estado forte e legitimado pelo voto popular tem que existir uma sociedade também pujante, alerta e fiscalizadora capaz de correr a passo e passo com o Estado nesse corredor estreito onde espaço para liberdades existem, garantem-se com eficácia serviços do Estado, a começar pela segurança e justiça, e se assegura que a dinâmica plural de ideias, projectos de futuro e escolha de prioridades sirva a todos e não seja sequestrado por qualquer grupo político ou económico para benefício próprio. Ninguém quer viver na anarquia ou ausência de Estado mas também ninguém deseja um Estado autoritário sem limites no uso do poder. Segundo Acemoglu e Robinson só se consegue o equilíbrio certo e o desenvolvimento com uma sociedade que não só compete mas também coopera ou na perspectiva de Raghuram Rajan no seu livro “O terceiro pilar” com uma comunidade activa e focada, capaz de conter o Estado e o mercado nos seus excessos e garantir que o impacto do desenvolvimento chegue a todos.
O problema com as democracias actualmente é que a sociedade ou não se engajou na consolidação da democracia ficando essencialmente pela formalidade derivada da adopção da Constituição e das leis modernas ou deixa-se levar por discursos políticos do tipo populista que enfraquecem os princípios e valores liberais e descredibilizam as instituições democráticas. Assiste-se mesmo em democracias mais velhas a um processo que o cientista político Yascha Mounk chama de “desconsolidação” democrática devido a várias razões, designadamente o aumento da desigualdade social, a pressão migratória e os efeitos da globalização. Aconteceu no Reino Unido e na semana passada e viu-se como o Supremo Tribunal, por unanimidade dos 11 juízes, pôs fim a algo similar que visava diminuir o papel do parlamento na discussão do Brexit
Em Cabo Verde a construção das instituições democráticas não foi acompanhada de uma adesão activa e engajada com os princípios e valores liberais. Para isso contribuiu uma inusitada preocupação em desculpar o regime de partido único cujos valores estavam nas antípodas do regime democrático. Por outro lado, falta à sociedade civil a base económica para uma verdadeira autonomia perante o Estado e na luta de todos e de cada um para se “desenrascar” faltam razões fortes para a defesa da liberdade económica, da igualdade de oportunidades e das bases para a criação de riqueza. Nestas condições a pressão para a “desconsolidação” democrática é real. Vê-se na descredibilização do parlamento, no comportamento às vezes pouco curial dos órgãos de soberania e seus titulares, nos ataques ao sistema judicial, no assalto populista aos partidos e na movimentação de interesses corporativos junto do Estado.
Inicia-se um novo ano político e é sempre de desejar que seja diferente e se reoriente para preparar o país para eventuais consequências das incertezas criadas designadamente pela guerra comercial em curso entre os Estados Unidos e a China, a instabilidade no Médio Oriente e no mercado petrolífero e a quase certa quebra na dinâmica da economia mundial. Cabo Verde cresceu nos dois primeiros trimestres deste ano acima dos 6%. Isso é bom, mas deve-se em grande medida ao impacto da conjuntura internacional favorável sobre as exportações e o turismo. Ninguém garante que continue assim. Os efeitos das incertezas, já visíveis no horizonte, serão maiores se o país, entretanto, não melhorar a sua competitividade e produtividade. E isso só se consegue com instituições fortes, uma sociedade engajada e uma profunda mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 931 de 2 de Outubro de 2019.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Dia Nacional dos direitos humanos

O governo de Cabo Verde com a aprovação da Resolução 123/2018 que declarou o 25 de Setembro Dia Nacional dos Direitos Humanos deu por duas razões um passo importante ao fazer as pessoas, a sociedade e as instituições do Estado mais conscientes da importância da garantia do exercício desses direitos para uma convivência em liberdade, na paz e confiança na justiça.
Primeiro, com a consagração de um dia próprio para a comemoração dos direitos humanos separado da data internacional de 10 de Dezembro, convidou a que no país se faça uma reflexão sobre o caminho percorrido e se invoquem os sacrifícios passados para os resgatar. Por essa via, eleva-se a sensibilidade face a qualquer violação presente e futura dos mesmos e reaviva-se a memória do que acontece quando os indivíduos são despojados dos seus direitos e ficam indefesos perante eventuais abusos das autoridades e de outros poderes na sociedade.
Segundo, ao fazer coincidir a o dia nacional dos direitos humanos com a data de entrada em vigor da Constituição de 1992 ajuda a cimentar na mente de todos e em particular das instituições a importância de se ver os direitos humanos como o pilar base da democracia liberal e constitucional. Em simultâneo deixa claro que a afirmação constitucional do primado da lei como princípio fundamental, a declaração que o exercício do poder só é legitimo se for conforme à Constituição e a garantia da independência dos tribunais visam fundamentalmente salvaguardá-los por forma a que em liberdade e com “governo consentido” todos possam exercer o seu direito à felicidade.
O gesto do governo em criar um dia nacional para os direitos humanos ganha particular pertinência quando se notam tendências de os considerar excessivos ou até contraproducentes em certos momentos, designadamente de emergência securitária. Sente-se isso, por exemplo, em discursos populistas, na postura das instituições ligadas ao combate ao crime e ao terrorismo e em atitudes de indivíduos ou grupos atraídos por um certo justicialismo demagógico. Há que contrariar essas tendências e trabalhar para desenvolver uma sensibilidade nas pessoas e na sociedade que permita reacção imediata na forma de repúdio, denúncia e exigência de acção das autoridades perante o que configurar atropelo de direitos. Particular atenção se deve prestar à polícia e outras forças de segurança que, por força da acção coerciva que são chamadas a exercer, podem incorrer em excessos na sua actuação ou em flagrantes demonstrações de abuso de poder. Das queixas apresentadas à Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, a polícia é a mais visada, segundo a presidente da referida comissão em declarações recentes à imprensa. É facto que essas queixas em geral não provocam da parte das autoridades reacções que vão além do inquérito interno. Mesmo em situações de mortes violentas em circunstâncias complicadas (mortes nas esquadras, o caso de Monte Tchota, etc.) fica-se por saber se houve auditoria externa ou qual foi o papel do Ministério Público no aclaramento dos acontecimentos e na defesa dos direitos dos cidadãos.
Em Cabo Verde constata-se uma deficiente sensibilidade em relação aos direitos humanos. A explicação para isso estará por um lado nas muitas décadas, quarenta e oito anos de salazarismo e quinze anos de partido único, vividas com regimes avessos aos direitos humanos e que submetiam o indivíduo e a sua dignidade ao poder do Estado, na perspectiva de Mussolini de tudo no Estado, nada contra o Estado e nada fora do Estado. Uma outra razão terá a ver com a forma com a transição política para a democracia se verificou em que tudo foi feito para negar uma descontinuidade entre os dois regimes, o democrático e o de partido único, e para não assumir de forma consequente que em termos de princípios e valores encontram-se nas antípodas um do outro. O resultado é que não se depara em Cabo Verde com situações como aquela do Chico Buarque num concerto em Portugal a referir-se aos jovens como “mocidade portuguesa” e a ter em reacção o silêncio geral e olhares de incompreensão. Ou do embaixador alemão, com a memória da juventude hitleriana, a dizer “não gosto de manipulação de crianças”, quando convidado a opinar pelo seu anfitrião sobre um espectáculo de crianças de um país africano seguindo coreografia norte coreana. Pelo contrário. Ainda hoje referências de violência nos anos de partido único contra pessoas, comprovadas por testemunhas vivas, pela imprensa da época e outras fontes, são apresentadas pela comunicação social pública como “alegadas torturas”. Recentemente com a discussão e aprovação da lei da reparação das vítimas da tortura viu-se a reacção de vários sectores de opinião ostensivamente a negar o acontecido e a discordar que se fizesse o mínimo para os que claramente foram injustiçados no passado, sofrendo na pele e na alma a sanha do aparelho repressivo do regime.
Em tal ambiente de dúvidas e disputas político-partidárias sobre os valores e princípios que estão na base dos direitos humanos dificilmente as instituições democráticas vão assumir pronta e integralmente tudo o que a Constituição consagra. Se mesmo em países com democracia mais consolidada com é o caso de Portugal fala-se em “deficiente sensibilidade e preparação constitucional” de polícias, procuradores e juízes que são quem no Estado de Direito democrático devem ser os garantes do exercício dos direitos fundamentais, imagine-se o caminho que ainda se tem que percorrer aqui em Cabo Verde. A iniciativa do governo em criar o Dia Nacional dos Direitos Humanos tem, pois, uma especial utilidade. Para além de celebrar essa conquista de civilização que são os direitos humanos e contribuir para uma cidadania mais participada e atenta, deve ser um dia para se dedicar uma especial atenção às instituições que a Constituição confia a defesa desses mesmos direitos e avaliar o progresso delas na assunção completa dos valores constitucionais na aplicação da lei.
Humberto Cardoso

Editorial originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 930 de 25 de Setembro de 2019.

segunda-feira, setembro 23, 2019

Sobrevivência vs. desenvolvimento

Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva.
Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva. A alegria no rosto de todos revela mais uma vez o efeito poderoso que “azágua” tem na psique cabo-verdiana. Mobiliza pessoas de volta para os campos, dá um outro vigor aos camponeses que em antecipação já tinham semeado em pó e renova a esperança de todos que o ano agrícola será de fartura. Há séculos que os cabo-verdianos vivem o drama de esperar que as chuvas caiam, que venham no tempo certo e que não causem demasiados estragos. Demasiadas vezes não acertam. A história do arquipélago é em muitos aspectos tributária do facto do sonho não se concretizar e em vez do bom ano desejado se ter que lidar com a tragédia das secas, com mortes do gado e não raramente ao longo da história também com o horror das mortandades resultantes das fomes. Toda essa luta pela sobrevivência numa terra em que realmente não chove e deixa as populações completamente desamparadas perante os efeitos de secas sucessivas moldou este povo como nenhum outro. Contribuiu com os ingredientes certos para gerar uma nação, a partir das gentes a labutar nas diferentes ilhas, caracterizada por um rosto e marcas culturais sem igual nas várias experimentações humanas na bacia do Atlântico que se sucederam à descoberta do Novo Mundo.
O sucesso na luta pela sobrevivência foi fundamental para a cabo-verdianidade. No meio da precariedade reinante alimentou os laços de solidariedade, ajudou a criar um ethos e uma ética de trabalho que sempre distinguiu os cabo-verdianos no país e no estrangeiro e dirigiu o foco das famílias e da sociedade para a necessidade de educação e da relação com o mundo. Sentimentos de fatalismo, ressentimento e menoridade falharam em se instalar. Pelo contrário, o amor à terra natal, a sodade e a morabeza tornaram-se elementos distintivos da alma do cabo-verdiano nos quais todos procuram se rever. Com a independência nacional e a ajuda externa mais abrangente e substancial, porque não limitada ao que Portugal poderia oferecer, a questão da sobrevivência deixou de se colocar. Como diria o poeta “as estiagens deixaram de nos meter medo”. O país com mais apoio financeiro e de outro tipo e maior acesso a mercados estaria pronto para passar de uma postura de sobrevivência para uma de luta pelo desenvolvimento. Com sorte e perspicácia dos governantes talvez pudesse capitalizar sobre as qualidades adquiridas no confronto com as dificuldades do país e fazer da luta pelo desenvolvimento também uma caminhada de sucesso. Quis o destino que não fosse assim.
As secas de 2017 e 2018 vieram relembrar com particular brutalidade que a vulnerabilidade das populações no mundo rural e a precariedade da sua existência não foi alterada substancialmente desde da independência. É um facto que investimentos de muitos e muitos milhões foram feitos ao longo de décadas e nos últimos anos em barragens, sistemas de irrigação e acções múltiplas de apoio a agricultores. A verdade porém é que não se submeteram a qualquer estratégia coerente de desenvolvimento e o resultado é o que se vê: a produtividade manteve-se baixa, a qualidade fraca, o mercado restrito e os canais de distribuição ineficientes. Deixaram as populações a funcionar numa lógica de sobrevivência e quando a seca adveio com particular dureza ficaram completamente expostas e mais uma vez teve-se que pedir ajuda internacional para minimizar o impacto no rendimento das pessoas e nos seus pertences. Alternativas de emprego e rendimento em sectores como a indústria e os serviços não foram construídas porque faltou visão, empenho para fazer as reformas no ambiente de negócios e não se apostou na educação com inteligência e sentido estratégico.
Olhando retrospectivamente pode-se constatar que realmente nunca se chegou a operar a mudança completa do paradigma de sobrevivência para o de desenvolvimento. Há provavelmente várias razões para isso mas é evidente que a principal é política. Num país de escassez brutal de tudo e funcionando numa lógica de sobrevivência, detém de facto o poder quem administra os recursos, garante os acessos e escolhe os ganhadores. O aumento expressivo de ajuda externa no período pós-independência serviu para legitimar o partido único que dizia querer acabar com as fomes e educar toda a gente. Nos anos que se seguiram o Estado cresceu de forma acelerada e com ele uma classe média a ele subordinada e grata enquanto se reduzia a parte da estrutura produtiva do país nas mãos de privados. Com tanta gente no Estado, nas empresas públicas e nas FAIMO na condição de dependentes é evidente que não havia espaço para se cultivar os valores civis e éticos indispensáveis ao desenvolvimento.
Desenvolvimento precisa de liberdade, autonomia, iniciativa e criatividade, para além de um ambiente socioeconómico e político que respeita os direitos da propriedade, dá garantia de cumprimento de contractos, trata a todos por igual e tem tribunais independentes para dirimir conflitos. O problema é que ao não existirem durante muitos anos ficou difícil institucionalizá-los na sua plenitude ao longo da segunda república. Nestas condições a resistência às reformas de todo o tipo e em particular às reformas económicas é enorme. É só ver a resistência da administração pública em adoptar procedimentos mais expeditos, o apoio transversal na sociedade que se dá à economia informal e o suporte explícito de que gozam certos interesses corporativos com prejuízos evidentes para o país. Contribui para a manutenção desta situação o facto de a ajuda externa e da cooperação ter mantido um papel proeminente e praticamente nos mesmos moldes mesmo nos anos de regime democrático não obstante a retórica no sentido diferente. Sem uma alteração dos hábitos a tendência é para as instituições e os actores deixarem-se ficar no seu papel tradicional e resistir às reformas que eventualmente irão enfraquecer o seu status sócio-económico e afectar negativamente nos meios que poderá aceder ou disponibilizar. Por aí se vê o quanto tem sido difícil pôr de lado a perspectiva de sobrevivência e abraçar a via de desenvolvimento.
Entretanto o país vai sulcando o seu caminho ainda com a pessoas a sonhar que as chuvas poderão trazer a felicidade, ou na falta delas, a água das barragens ou a água dessalinizada servirão para isso e para manter fixa as populações nas zonas rurais com as suas culturas de subsistência. Num outro registo assiste-se ao esforço de outros sectores como o turismo, a construção civil, o comércio, transportes e os serviços em geral em se manterem de pé perante os efeitos erosivos de uma economia em vários aspectos desestruturada e dominada pela informalidade. Em acréscimo têm ainda de suportar os custos de água, energia e outros produtos e serviços tornados caros precisamente por falta de eficácia na acção do Estado para pôr cobro à situação existente. Concluindo, pode-se dizer que sem a solidariedade de outrora, em que realmente estava em jogo a sobrevivência, todos quererão arrebatar o seu quinhão onde puderem e não haverá vontade crítica e orientação compreensiva e estratégica para efectivamente se criar valor e prosperar com benefícios para todos.