Finda mais uma Semana da República, que anualmente
desde 2012 acontece de 13 a 20 de Janeiro e é patrocinada pelo
presidente da república Jorge Carlos Fonseca, não parece que o objectivo
de fazer dos feriados datas de concórdia nacional tenha sido realizado.
Em declarações no dia dos heróis nacionais o PR disse que continua a
pretender que não se deve seleccionar fase da história, daquela que
podemos gostar mais ou gostar menos. Os jornalistas contrapõem que há
muitas críticas à forma como os combatentes da liberdade da pátria são
tratados.
O Primeiro-ministro por sua vez
apela para que não se continue a partidarizar a figura de Amilcar
Cabral e que se deixe de o considerar património de um partido político
em particular para ser património da nação cabo-verdiana. Antes na
sessão solene da Assembleia Nacional já se tinha repetido a habitual
contestação do 13 de Janeiro como Dia da Liberdade e da Democracia com
os argumentos de sempre: que a liberdade foi de facto inaugurada no 5
de Julho de 1975 e que a democracia realmente resultou da generosidade e
visão do ex-partido único evidenciadas na decisão de abertura política
de 19 de Fevereiro de 1990.
Pelo ambiente político assim recriado todos os anos percebe-se que a celebração da chamada semana da república falha em unir a nação. Só expõe as fracturas de uma república ainda dividida pelo confronto entre a defesa dos princípios e os valores da democracia liberal derivados do respeito pela dignidade humana e o apego de uma clique política a legitimidades históricas e revolucionárias. Os órgãos de soberania em particular o PR e o Governo esforçam-se por ir ao encontro das reivindicações dos intitulados heróis e combatentes mas o esforço nunca é tido com suficiente. Sempre que há uma oportunidade surgem reclamações que estão a ser preteridos e que a figura de Amilcar Cabral não tem o reconhecimento devido. Parece que não chega que ao longo da semana todo o sistema de ensino do país, dos jardins-de-infância às universidades, a comunicação social pública, as Forças Armadas na comemoração do 15 Janeiro e as mais altas figuras do Estado se desdobram em manifestações de gratidão. Quanto mais recebem, mais querem.
Mas a verdade é que as democracias não funcionam com o culto de personalidade, demonstrações eternas de gratidão aos melhores filhos e legitimidades revolucionárias. Foi para acabar com isso é que aconteceu o 13 de Janeiro de 1991. Na sequência, as liberdades foram recuperadas, o pluralismo foi instituído e os governos com mandato fixo passaram a resultar da vontade popular. Permitir que esses valores e práticas regressem simplesmente para cultivar egos, cavalgar ondas identitárias e apaziguar ressentimentos enfraquece as instituições democráticas e transforma a política numa guerrilha permanente que lhe retira toda a possibilidade de contribuir para a identificação dos problemas do país e a mobilização das vontades para os resolver. É o que já está acontecer e que se manifesta na impaciência quando se procura realizar alguma coisa, na euforia fácil seguida de frustração em relação às promessas feitas e no cinismo que tem vindo a crescer em relação à política e aos políticos e aos trabalhos parlamentares.
De facto, conhecer o percurso histórico do país não significa justificar opções feitas no âmbito de projectos de poder que constituíram sacrifícios enormes em liberdade e dignidade humana, no atraso de décadas no desenvolvimento do país quando comparado com realidades insulares similares com as Maurícias e as Seicheles e numa deficiente capacidade de construir um futuro próspero. Como valorizar quem protagonizou a independência nacional se para isso sete meses antes, em Dezembro de 1974, se acabou com a liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de reunião e de manifestação e a formação livre de partidos políticos que existia desde o dia 25 Abril e depois se enviou os adversários políticos para a prisão do Tarrafal e posterior deportação para Portugal. As liberdades suprimidas então só foram paulatinamente recuperadas em parte a partir de Maio de 1990 e tempos depois com a queda do artigo quarto em fins de Setembro do mesmo ano. O partido único não tinha que ser uma inevitabilidade histórica. Foi uma opção de poder de um grupo político com as consequências conhecidas de todos. Para ser independente o país não tinha que ser uma ditadura. E a eventual glória da independência não apaga a responsabilidade pela ditadura.
Martin Luther King Jr é homenageado no 20 de Janeiro, um feriado nacional nos Estados Unidos da América, porque protagonizou a luta pelos direitos civis e políticos fundamentais para a liberdade e dignidade dos negros americanos que a emancipação dos escravos na sequência da guerra civil americana não tinha garantido. Formalmente livres, na pratica as leis de Jim Crow e todas as práticas segregacionistas que foram instituídas nos Estados do Sul coarctaram efectivamente a liberdade, o direito de voto e a expectativa de construção de uma vida digna e de prosperidade para a população saída da escravatura. A realização do sonho descrito eloquentemente por Luther King no célebre discurso de Agosto de 1963 em Washington só poderia começar pela conquista dos direitos fundamentais.
É uma vitória similar que fundamentalmente se celebra no 13 de Janeiro. Depois de 15 anos desprovidos da totalidade de direitos civis e políticos os cabo-verdianos passaram a ser cidadãos plenos no seu próprio país. A Constituição de 1992 em reacção aos anos de ausência de direitos estabeleceu que nenhuma maioria em sede da revisão constitucional ou referendo pode limitar ou restringir os direitos, liberdades e garantias constitucionais. A sessão solene da assembleia nacional onde deputados eleitos do povo representam toda a nação na pluralidade das suas ideias e na diversidade dos seus interesses justifica-se para anualmente afirmar e confirmar os princípios fundamentais da liberdade, do pluralismo, da separação de poderes, do primado da lei e da independência dos tribunais que toda a comunidade nacional estabeleceu como garante da sua liberdade e autodeterminação. Ataque a esses princípios de que ângulo for, seja pela demagógica incursão pelo nível de concretização dos direitos sociais, seja pela tentativa de reabrir o debate quanto ao próprio dia, seja ainda pelo apontar de insuficiências ou pretensas ineficiências ao processo democrático só serve para manter a república dividida.
O argumento que se podia fazer sessões solenes do parlamento noutras datas não cola. Os outros feriados nacionais não simbolizam o mesmo e sendo mais expressão da unidade da nação prestam-se mais a um protagonismo central do PR que é órgão de soberania singular e suprapartidário. É o que se pode constatar noutras democracias. Da mesma forma também se pode ver com clareza que cultos de personalidade e legitimidades revolucionárias são incompatíveis para se estabelecer a verdade histórica, inimigas de uma real emancipação e autonomia das pessoas e contrárias a uma cultura de auto- responsabilização individual e colectiva. Há que libertar-se finalmente desta praga.
Pelo ambiente político assim recriado todos os anos percebe-se que a celebração da chamada semana da república falha em unir a nação. Só expõe as fracturas de uma república ainda dividida pelo confronto entre a defesa dos princípios e os valores da democracia liberal derivados do respeito pela dignidade humana e o apego de uma clique política a legitimidades históricas e revolucionárias. Os órgãos de soberania em particular o PR e o Governo esforçam-se por ir ao encontro das reivindicações dos intitulados heróis e combatentes mas o esforço nunca é tido com suficiente. Sempre que há uma oportunidade surgem reclamações que estão a ser preteridos e que a figura de Amilcar Cabral não tem o reconhecimento devido. Parece que não chega que ao longo da semana todo o sistema de ensino do país, dos jardins-de-infância às universidades, a comunicação social pública, as Forças Armadas na comemoração do 15 Janeiro e as mais altas figuras do Estado se desdobram em manifestações de gratidão. Quanto mais recebem, mais querem.
Mas a verdade é que as democracias não funcionam com o culto de personalidade, demonstrações eternas de gratidão aos melhores filhos e legitimidades revolucionárias. Foi para acabar com isso é que aconteceu o 13 de Janeiro de 1991. Na sequência, as liberdades foram recuperadas, o pluralismo foi instituído e os governos com mandato fixo passaram a resultar da vontade popular. Permitir que esses valores e práticas regressem simplesmente para cultivar egos, cavalgar ondas identitárias e apaziguar ressentimentos enfraquece as instituições democráticas e transforma a política numa guerrilha permanente que lhe retira toda a possibilidade de contribuir para a identificação dos problemas do país e a mobilização das vontades para os resolver. É o que já está acontecer e que se manifesta na impaciência quando se procura realizar alguma coisa, na euforia fácil seguida de frustração em relação às promessas feitas e no cinismo que tem vindo a crescer em relação à política e aos políticos e aos trabalhos parlamentares.
De facto, conhecer o percurso histórico do país não significa justificar opções feitas no âmbito de projectos de poder que constituíram sacrifícios enormes em liberdade e dignidade humana, no atraso de décadas no desenvolvimento do país quando comparado com realidades insulares similares com as Maurícias e as Seicheles e numa deficiente capacidade de construir um futuro próspero. Como valorizar quem protagonizou a independência nacional se para isso sete meses antes, em Dezembro de 1974, se acabou com a liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de reunião e de manifestação e a formação livre de partidos políticos que existia desde o dia 25 Abril e depois se enviou os adversários políticos para a prisão do Tarrafal e posterior deportação para Portugal. As liberdades suprimidas então só foram paulatinamente recuperadas em parte a partir de Maio de 1990 e tempos depois com a queda do artigo quarto em fins de Setembro do mesmo ano. O partido único não tinha que ser uma inevitabilidade histórica. Foi uma opção de poder de um grupo político com as consequências conhecidas de todos. Para ser independente o país não tinha que ser uma ditadura. E a eventual glória da independência não apaga a responsabilidade pela ditadura.
Martin Luther King Jr é homenageado no 20 de Janeiro, um feriado nacional nos Estados Unidos da América, porque protagonizou a luta pelos direitos civis e políticos fundamentais para a liberdade e dignidade dos negros americanos que a emancipação dos escravos na sequência da guerra civil americana não tinha garantido. Formalmente livres, na pratica as leis de Jim Crow e todas as práticas segregacionistas que foram instituídas nos Estados do Sul coarctaram efectivamente a liberdade, o direito de voto e a expectativa de construção de uma vida digna e de prosperidade para a população saída da escravatura. A realização do sonho descrito eloquentemente por Luther King no célebre discurso de Agosto de 1963 em Washington só poderia começar pela conquista dos direitos fundamentais.
É uma vitória similar que fundamentalmente se celebra no 13 de Janeiro. Depois de 15 anos desprovidos da totalidade de direitos civis e políticos os cabo-verdianos passaram a ser cidadãos plenos no seu próprio país. A Constituição de 1992 em reacção aos anos de ausência de direitos estabeleceu que nenhuma maioria em sede da revisão constitucional ou referendo pode limitar ou restringir os direitos, liberdades e garantias constitucionais. A sessão solene da assembleia nacional onde deputados eleitos do povo representam toda a nação na pluralidade das suas ideias e na diversidade dos seus interesses justifica-se para anualmente afirmar e confirmar os princípios fundamentais da liberdade, do pluralismo, da separação de poderes, do primado da lei e da independência dos tribunais que toda a comunidade nacional estabeleceu como garante da sua liberdade e autodeterminação. Ataque a esses princípios de que ângulo for, seja pela demagógica incursão pelo nível de concretização dos direitos sociais, seja pela tentativa de reabrir o debate quanto ao próprio dia, seja ainda pelo apontar de insuficiências ou pretensas ineficiências ao processo democrático só serve para manter a república dividida.
O argumento que se podia fazer sessões solenes do parlamento noutras datas não cola. Os outros feriados nacionais não simbolizam o mesmo e sendo mais expressão da unidade da nação prestam-se mais a um protagonismo central do PR que é órgão de soberania singular e suprapartidário. É o que se pode constatar noutras democracias. Da mesma forma também se pode ver com clareza que cultos de personalidade e legitimidades revolucionárias são incompatíveis para se estabelecer a verdade histórica, inimigas de uma real emancipação e autonomia das pessoas e contrárias a uma cultura de auto- responsabilização individual e colectiva. Há que libertar-se finalmente desta praga.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 947 de 22 de Janeiro de 2020.