Em tempo de eleições invariavelmente volta-se à questão da participação dos caboverdianos residentes no exterior nos pleitos eleitorais.
Há vozes que dizem para se alargar a participação para as eleições autárquicas. Outras, mais em surdina, mostram preocupação com os efeitos da transposição da crispação política e do partidarismo excessivo que resulta das disputas políticas no país para as comunidades no exterior. Neste ciclo eleitoral o foco das atenções tem sido a participação nas eleições presidenciais. Contestam-se os requisitos para se ser candidato a presidente da república, em particular, a exigência de ser caboverdiano de origem e de não ter dupla ou plurinacionalidade. Disputa-se o chamado valor do voto do caboverdiano residente no estrangeiro que segundo algumas interpretações seria de um quinto do voto do cidadão recenseado no território nacional.
A participação da diáspora nas eleições iniciou-se com a Constituição de 1992. Para as legislativas ficou estabelecido no nº2 do artigo 153º da versão originária que ao conjunto dos círculos eleitorais fora do território nacional correspondiam seis deputados. A lei eleitoral depois viria a criar três círculos na emigração com dois deputados cada. Para as presidenciais estendeu-se o sufrágio a residentes e não residentes com a ressalva de que o total desses votos equivalia no máximo a um quinto dos votos apurados no território nacional. A ousadia em dar aos emigrantes a possibilidade de votar nas eleições do PR diluiu-se na controvérsia criada à volta da limitação dos efeitos da votação no exterior. Alguns países na época permitiam a votação da diáspora nas legislativas, mas não nas presidenciais. Portugal só viria a consagrar a participação dos emigrantes na revisão de 1997 mais de vinte anos depois da adopção da Constituição da III República.
Em Cabo Verde, ao contrário da generalidade dos países, existe a percepção de que o número de caboverdianos e seus descendentes a viver fora do país é maior do que a população residente. Esse facto coloca potencialmente a hipótese de o presidente ser eleito só com os votos dos emigrantes. Ora, sendo o presidente da república o representante da comunidade política e o Chefe de Estado no território que define o país não parece próprio que a sua escolha em eleições seja determinada por cidadãos não residentes, embora recenseados. Daí talvez que se tenha querido limitar o eventual impacto dos votos a um quinto dos conseguidos nas urnas em território nacional.
Curiosamente, apesar de até agora nunca se ter aplicado o critério porque a votação na diáspora nas eleições presidenciais tem ficado sempre muito aquém desse máximo não falta quem queira ver agravo na matéria e queira interpretar o preceito como uma espécie de discriminação do emigrante, quando, de facto, era claro o intento do legislador constituinte de tornar mais inclusiva a sua participação política. Prova disso é que – quando se trata da representação dos cidadãos num órgão plural como o parlamento – a quota dos deputados pela emigração, é de seis em 72 deputados, ou seja, de (8,3%) quando em Portugal são 4 em 230 deputados representando 1,7%. Em relação a uma outra objecção que é levantada quanto a dupla nacionalidade do candidato a PR, a posição de constitucionalistas como Gomes Canotilho e Vital Moreira é que é de se questionar se o cargo é compatível com a posse de outra cidadania e de se admitir implicitamente uma proibição de eleição de cidadãos plurinacionais.
A verdade é que, não obstante o esforço feito ao longo dos anos na promoção do recenseamento no exterior, o número de caboverdeanos recenseados que vão votar não tem aumentado extraordinariamente. Embora sejam inquestionáveis os laços afectivos que os ligam à terra, à família e aos amigos nota-se que para muitos a participação política é uma outra coisa. As questões do país não deixam de estar distantes do seu quotidiano e por isso não são seguidas de forma sistemática e muito menos apaixonada. Democracia liga comunidade a um território específico e conecta a representação nos órgãos de poder político à contribuição fiscal dos cidadãos e às suas perspectivas de como o “bolo” geral deve ser aplicado na resolução dos problemas da comunidade.
É natural que, existindo possibilidade de participação, quem mais se engaja no processo é quem é afectado directamente tanto pelos impostos pagos como pelos benefícios recebidos e serviços disponibilizados pelas autoridades públicas. Não é à toa que na base da democracia está o princípio de“no taxation without representation” (sem representação não há tributação). Aliás, nas eleições autárquicas vê-se aplicado o princípio quando limita o voto aos considerados munícipes com exclusão mesmo dos que eventualmente ali nasceram, mas não têm residência permanente. Por isso, assumir que existe um quadro discriminatório nas actuais limitações de elementos da diáspora nas eleições presidenciais parece excessivo e apenas pode servir para exacerbar antagonismos onde nem deviam existir.
A pandemia da covid-19 veio mais uma vez confirmar a importância-chave da ligação do país às suas comunidades no exterior. As remessas dos emigrantes aumentaram na actual situação de maior necessidade demonstrando o quanto que a solidariedade com os familiares nas ilhas é consistente em qualquer circunstância mesmo quando a conjuntura não é boa e os rendimentos diminuem. O fluxo externo assim gerado ajuda a estabilizar o país e faz relembrar que é preciso desenvolver estratégias a vários níveis para o garantir, ampliar e qualificar de modo a ter o máximo de impacto na economia nacional e a afectar de forma mais positiva o rendimento das pessoas.
Nesse sentido, é fundamental que o país no seu todo aposte no sucesso das suas comunidades nos países de emigração. Noutras paragens diz-se que querelas partidárias não devem ir além da linha de horizonte para que a política externa tornada consensual no país seja mais efectiva no plano internacional. Em Cabo Verde esse princípio também devia ser aplicado à política dirigida às comunidades emigradas. Constituem um activo demasiado importante para serem alienadas com crispações em nome da participação política nas ilhas quando a atenção na comunidade devia ser virada para conseguir mais mobilidade social, melhor posicionamento na estrutura produtiva e crescente capacidade de influenciação política e cultural nos países de acolhimento.
Cabo Verde ainda pode ajudar com uma política de educação e formação que fomente uma emigração mais qualificada. Países como a Índia fizeram isso durante décadas no domínio das ciências e hoje colhem o rico retorno do investimento em particular nos sectores da economia do conhecimento e das tecnologias de informação e comunicação. As Filipinas “exportam” anualmente mais de 13 mil enfermeiras e outros profissionais de saúde. Também Cabo Verde deverá ter uma política activa nesse sentido considerando que sem um sector industrial dinâmico não tem como resolver o problema do desemprego de forma rápida e com emprego de qualidade.
Uma aposta podia ser feita no domínio da saúde onde claramente há um mercado global em franca expansão principalmente agora com a Covid-19 que hoje é uma pandemia, amanhã provavelmente será uma doença endémica exigindo cuidados permanentes para neutralizar os surtos, vacinar e cuidar de sequelas. No país já há várias escolas de enfermagem e de outros cuidadores de saúde, mas seria de toda a importância que, dentro de uma estratégia não só de qualificar a emigração como também de preparar o país para ser um futuro fornecedor de cuidados de saúde, conseguissem certificação internacional dessas classes de profissionais. A convergência com a União Europeia no quadro do acordo especial não tem que ser só no campo normativo. Deve ser mais abrangente e incluir o exercício de profissões que, para benefício das partes, justificariam a ampliação do acordo de mobilidade. Aliás, neste aspecto, há muito que o caminho foi aberto pelos emigrantes que nos vários países são cuidadores só que infelizmente sem capacitação formal e por causa disso prejudicados no rendimento que poderiam auferir.
Para Cabo Verde é de grande importância que os emigrantes tenham possibilidade de participação política efectiva na vida nacional. O quadro existente mesmo não sendo o ideal é claramente satisfatório e está a par do que existe nas democracias mais avançadas. O estreitamento das relações do país com as suas comunidades no estrangeiro deve ir por outras vias que realmente aumentem as suas probabilidades de sucesso e de prosperidade nos países de acolhimento e em simultâneo as capacitem para melhor ajudar os familiares e investir na economia das ilhas. De evitar de todo deve ser a tentação de transplantar a crispação política no país para as comunidades. Colhem-se ganhos políticos mínimos e deixa-se como resultado mal-estar, ressentimentos e questiúnculas identitárias perturbadores que constituem obstáculos ao almejado por todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1006 de 10 de Março de 2021.