segunda-feira, novembro 15, 2021

Fará história quem oferecer nova narrativa

 

O novo Presidente da República, doutor José Maria Neves, no seu discurso ontem na cerimónia de investidura disse a dado passo que Cabo Verde “vive uma situação de crise a qual foi revelada e agravada pela pandemia cujos efeitos têm sido extensos e profundo”.

Tais efeitos vêem-se, segundo ele, nos níveis da dívida pública e do défice público nas altas taxas de desemprego, nas manchas significativas de pobreza e na acentuada desigualdade e exclusão social. É um facto que a situação do país piorou com a covid-19 como, aliás, todos os países do mundo, mas já não é tão claro que a crise em que se encontra tenha sido revelada em 2020 pela pandemia.

Provavelmente já vem de longe quando, na sequência de grandes investimentos nos princípios da década, se seguiram anos de quase estagnação económica com médias de crescimento anual de 1% do PIB. Mostrou a cabeça com clareza quando a seca de 2017-2019 revelou as vulnerabilidades do país e a precariedade de vida das populações, particularmente no mundo rural, não obstante os programas multimilionários de luta contra a pobreza implementados ao longo dos anos, designadamente o do Banco Mundial, de 117 milhões de dólares, iniciado em 2005. A conjuntura económica externa favorável dos anos antes da pandemia terá ajudado a camuflar a situação com crescimento a aproximar-se à volta dos 5%, mas os problemas de fundo da dívida pública elevada, da falta de diversificação da economia, do desemprego e da crescente desigualdade social já lá estavam. O que leva a pensar que a crise em que se encontra o país tem raízes mais profundas e que não deriva simplesmente de opções políticas recentes do governo.

Saber identificar essas causas mais profundas que mantêm Cabo Verde vulnerável e as suas populações em situação de precariedade profunda após 46 anos de independência é a tarefa urgente que se impõe neste momento. Já se conhece parte das consequências da covid-19 mas não se sabe ainda até onde pode ir considerando que a covid-19 ainda não está sob controlo e não se consegue prever o quanto vai afectar a economia global nos próximos tempos. Concomitantemente, está-se perante outros desafios como o da transição energética e o das alterações climáticas cujas consequências de omissão ou de uma má abordagem ninguém realmente conhece e que podem ser simplesmente catastróficos. Para se poder navegar no meio de tantas incertezas, o mínimo que se deve fazer é procurar ter uma visão realista sobre o país e mobilizar vontades para ultrapassar os obstáculos que até agora impediram o país de pôr o seu desenvolvimento em bases mais seguras, mais sustentáveis e mais esperançosas para toda a gente.

Do presidente da república, que é o garante da unidade nacional, espera-se que tenha um papel central na promoção do diálogo necessário para se conhecer os constrangimentos que impedem o país de avançar num passo rápido, mesmo nas melhores conjunturas, e chegar aos acordos para a realização das reformas que o país precisa. A coincidência do início de um novo mandato presidencial com a crise que, pelo seu impacto expõe as fragilidades do país e as vulnerabilidades das populações de uma forma nunca antes vista, pode constituir-se numa oportunidade única para se proceder à tal reflexão. Na sua qualidade de árbitro e moderador do sistema político e exercendo a sua magistratura de influência, o novo presidente da república poderia desempenhar um papel fundamental em todo esse processo e fazer o debate fluir, colocando o foco no interesse comum da nação e minimizando diferenças ideológicas. O país encontra-se numa encruzilhada e fará história quem contribuir para que encontre a melhor saída.

O facto de depois 46 anos de independência ainda não ter a estrutura produtiva diversificada que seria de desejar nem a estrutural empresarial necessária para criar empregos de qualidade e exportar bens e serviços é uma falha que devia inquietar toda a gente. Piora a situação é que, com as insuficiências existentes, não se estabeleceu no país uma cultura de trabalho voltada para a criação de riqueza que pusesse ênfase na produtividade e na qualidade do serviço prestado. Pelo contrário, ao mobilizar a ajuda externa para as colmatar, em particular no que respeita a assegurar algum rendimento para as pessoas, desenvolveu-se um sistema de dependência que acabou por se sobrepor a tudo o resto no país.

O Estado agigantou-se e centralizou-se cada vez mais, criando uma classe média dele dependente para empregos, favores e acessos privilegiados. Também, como sempre acontece quando se estabelecem sistemas de natureza rentista, a desigualdade aumenta e fica difícil quebrar círculos viciosos de pobreza. Finalmente, o exercício do poder político a todos os níveis acaba misturado com a gestão da dependência alimentando o eleitoralismo na governação e práticas ilegais como compra de votos nos períodos eleitorais. Não admira que, privilegiando sistemas distributivos em detrimento de estruturas produtivas, se note a diminuição do capital social com deterioração do civismo e do associativismo devida à corrida desenfreada para aceder aos recursos existentes. Em tal ambiente, o nível de criminalidade, particularmente em certas zonas mais carenciadas do país, tende a crescer.

Também não é alheio a isso que Cabo Verde de hoje conviva com questões fracturantes que já se mostram preocupantes e prejudiciais. O PR ontem no discurso de tomada de posse teve de se referir ao novo pacto de poder entre as ilhas, talvez para atenuar a tendência actual de se ver em Cabo Verde nove países. Para o que foi uma nação una, acentua-se a ideia de que o país se divide em “badios” e “sampadjudos” e narrativas de ressentimento fazem escola em certos círculos. Uma outra questão fracturante é a da língua crioula, tida como não oficial mesmo quando é discurso de investidura do PR, que é posta em contencioso identitário com o português com evidente efeito negativo na qualidade da sua aprendizagem no sistema de ensino. Sair com sucesso da crise deve significar deixar para trás questões que esgotam a energia da pessoas e da sociedade em querelas, diminuem a cooperação entre elas e enfraquecem o sentido de um desígnio comum.

Yuval Harari, o historiador e filósofo autor do livro Sapiens, numa entrevista recente ao jornal New York Times chamou a atenção para as grandes narrativas, as estórias que fazem parte do imaginário colectivo e que a crença nelas permite que as pessoas cooperem à escala global da sociedade. Segundo ele. “a estória em que você acredita é a que molda a sociedade que você cria”. Naturalmente que atitudes diferentes resultam se nessas estórias se é sujeito e protagonista com autonomia ou se se é passivo e objecto da acção de outrem. Cabo Verde construiu-se como uma nação ao longo de séculos em condições adversas dentro de um império mas a narrativa que prevalece é que a sua nacionalidade foi ganha e decidida nas matas da Guiné-Bissau a 600 kilómetros de distância.

É evidente que nada de bom pode daí resultar. Com essa narrativa, a população, vista com paternalismo pelos poderes constituídos, é esvaziada da energia e autonomia com impacto directo na disponibilidade para cooperar ou contribuir na realização dos desígnios nacionais. O círculo vicioso da dependência reproduz as vulnerabilidades e a precariedade de tudo o que se construiu acaba por se revelar na primeira crise grave que surgir. Inverter a situação implicará reformas só possíveis com uma nova atitude moldada por uma narrativa que resgata o protagonismo, a autonomia e audácia perdidas em ideologias desajustadas e jogadas renovadas de poder paternalístico. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1041 de 10 de Novembro de 2021.

segunda-feira, novembro 08, 2021

Evitar a captura do Estado

 

O mundo a querer sair da terrível pandemia causada pelo Sars2-cv-19 que já contabiliza cinco milhões de mortos depara-se agora com a grande tarefa de enfrentar as consequências da gestão da crise.

Assim é, porque medidas extremas como quarentenas repetidas, apoios monetários directos às pessoas desempregadas e sem rendimentos e inoculação massiva de vacinas desenvolvidas em tempo recorde tiveram que ser tomadas para se poder conter um vírus que em menos de seis meses já tinha contaminado praticamente todo o planeta. E o acto de “parar” o planeta, metaforicamente ou não, não podia deixar de ter um impacto enorme que hoje se sente em todo o mundo, em particular na disrupção das cadeias de produção e de abastecimento e nas falhas de produtos de consumo, na pressão inflacionista visível na alta de preços de quase tudo e na crise energética exacerbada por más opções tomadas no âmbito da transição energética.

A acrescentar a isso há ainda as perturbações no mercado de trabalho causadas pelas reacções às vacinas e ao processo de vacinação que têm contribuído para agravar a escassez de bens básicos de consumo e de componentes para produção, dificultando extraordinariamente um regresso à normalidade pré-pandémica. Como pano de fundo disto tudo tem-se ainda os extremos climáticos observados em vários pontos do globo que indiciam problemas mais graves derivados do aquecimento global, do degelo das calotas polares e da elevação dos níveis médios das águas dos oceanos. A humanidade é assim lembrada de uma assentada de que perigos, ameaças e desafios de grande envergadura colocam-se com urgência e que na ausência de uma resposta concertada só pode vir desgraça que, como bem provou a Covid-19, ninguém pode, à partida, dizer que está imune nem mesmo os países tecnologicamente mais avançados ou os mais ricos. A COP26 em Glasgow que se iniciou no dia 1º de Novembro é a última das múltiplas tentativas das Nações Unidas em federar vontades dos diferentes países para organizar uma resposta conjunta aos problemas potencialmente catastróficos das alterações climáticas resultantes do aquecimento global. Espera-se que das conversações havidas saiam compromissos das partes que renovem a esperança que não se está a caminhar inexoravelmente para um desastre climático de proporção planetária.

Ao nível de cada país o que cada vez mais se espera é que o Estado seja mais eficiente na utilização dos meios e recursos e mais eficaz na sua actuação. A importância crucial de se ter um Estado efectivo viu-se durante a situação emergencial vivida durante a crise pandémica. Vai continuar a ser necessário face às dificuldades que se apresentam tanto para materializar a retoma económica e ajudar na reconfiguração do que será o novo normal como também para enfrentar o desafio da transição energética essencial para a contenção dos efeitos das alterações climáticas. Com as receitas em queda por causa da crise, as exigências quanto à qualidade das despesas e às opções dos investimentos devem ser maiores assim como mais rigorosa terá que ser a fiscalização política da administração pública para evitar que recursos sejam capturados por interesses políticos, corporativos e outros em detrimento do interesse geral. A crise política que Portugal vive neste momento na sequência da não aprovação do Orçamento do Estado para o ano 2022 é ilustrativa do que já acontece em muitos países. Em tempo de vacas magras e de incertezas é maior a tentação de “captura do Estado” por parte de grupos de interesses. Impedir que isso aconteça é um dos grandes desafios da actualidade.

O Estado para ser eficaz tem que ser credível. Para manter a credibilidade não pode passar a imagem de se desviar dos seus propósitos em prol do interesse geral para satisfazer interesses particulares. Em Cabo Verde, o caminho, por exemplo, não pode ser a rigidez da despesa pública agravada em 90% com a implementação dos PCCS, em detrimento de investimentos em serviços públicos e infraestruturas essenciais para uma maior dinâmica económica particularmente quando não é muito visível a melhoria da qualidade dos serviços prestados e a contribuição para a diminuição dos custos de contexto essencial para um bom ambiente de negócios. Nos tempos actuais de grandes dificuldades os sacrifícios devem ser suportados por todos e as exigências de rigor, produtividade e competência devem-se aplicar sem se deixar desviar por considerações de natureza eleitoralista.

Também questões importantes para o presente e futuro não podem ser ignoradas. A forma como na reunião plenária da Assembleia Nacional da semana passada se discutiu a justiça, a segurança e a educação, matérias essenciais para o país, não foi a melhor nem a mais produtiva. Quando se tratava da justiça, a oposição punha enfase nos meios disponibilizados pelo governo e não havia responsabilização das magistraturas pelos resultados, não obstante funcionarem em regime de autogestão. Quando veio à baila a questão da qualidade da educação, foi a vez do governo de acusar a oposição de desrespeitar o trabalho dos professores. Algo similar aconteceu com a segurança e mais uma vez o argumento de respeito pelos polícias foi utilizado pelo governo. São exemplo de tácticas sempre utilizadas no parlamento e noutros fóruns para bloquear o debate sobre matérias essenciais ao país. Com isso, excita-se o espírito corporativo em várias classes de profissionais da administração pública tornando-os insensíveis e hostis a qualquer crítica ou avaliação do seu sector de actividade. Entretanto, os problemas vão-se acumulando debaixo do tapete.

Quando não há uma discussão séria de questões essenciais, nota-se a deterioração dos serviços como é o caso que ficou patente nas declarações recentes do Procurador-Geral da República (PGR) ao longo das quais diz que “na prática não constitui segredo para ninguém que a cooperação e a concertação entre os órgãos da policia criminal ainda estão longe do desejado e desejável, com tendência para regredir e com prejuízo claro para a investigação criminal, o que não pode acontecer”. Ou seja, toda a gente sabe que há tendência para regressão na cooperação entre as polícias com impacto na segurança, mas não há debate nem fiscalização da matéria no parlamento. Provavelmente se for agendado vai sempre surgir de um dos actores políticos a acusação de que se está a pôr em causa os polícias. Não admira, pois, que o PGR sugira que “as questões devem ser resolvidas internamente”. A grande questão é quem se responsabiliza se o prejuízo para a investigação criminal por falta de cooperação se verificar como receia o PGR.

Hoje, mais do que nunca, não é de deixar o Estado e a sua administração pública à deriva e sob ameaça de captura por interesses de grupos. A presente situação de alta geral de preços – que pode vir a revelar-se transitória porque resultante em boa medida de estrangulamentos na produção e distribuição e de um surto na procura após a pandemia – não deve servir de pretexto para reivindicações salariais desajustadas e possíveis disrupções laborais que o país não consegue comportar no momento. Os desafios actuais exigem um Estado competente, eficiente e eficaz e capaz de uma intervenção qualificada a vários níveis para potenciar a iniciativa e a criatividade de cada indivíduo com vista à criação de riqueza e prosperidade. Para isso todos devem contribuir e por aí que se deve encaminhar com estabilidade política, mas também com honestidade e respeito pelo pluralismo e pelo exercício do contraditório. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1040 de 3 de Novembro de 2021.

segunda-feira, novembro 01, 2021

Descobrir a origem das coisas

 

Findo o ciclo eleitoral, as pró­ximas eleições que serão para as câmaras municipais só vão realizar-se no último trimestre de 2024 ficando as legislativas para 2026. Este grande interva­lo de tempo sem eleições podia ser uma grande oportunidade para – num quadro plural, mas que também deve ser de conver­gência em aspectos fundamen­tais – a sociedade se mobilizar e encontrar vias para a constru­ção de uma prosperidade sólida e sustentável.

Os enormes desa­fios que se colocam neste mo­mento ao país e vão-se colocar nos próximos anos assim o exi­gem. Infelizmente não é o que provavelmente vai acontecer. A tentação é de continuar a fazer política da mesma forma venha seca, venha pandemia ou venha crise económica mundial. O re­cente ciclo eleitoral foi ilustrati­vo a esse respeito.

De facto, não se aproveita­ram os vários embates eleito­rais para trazer para a consciên­cias das pessoas os problemas do país. Os actores políticos limitaram-se a renovar as pro­messas e a fazer acusações mú­tuas do não cumprimento do que foi prometido no passado. Em consequência, a situação real do país não passou a ser mais conhecida e eventuais so­luções para sair da crise socioeconómica não foram realmen­te debatidas. O impacto da cri­se pandémica no mundo e dos efeitos nos bens e serviços, as­sociados aos aumentos no preço dos combustíveis, aos estran­gulamentos no shipping e nas cadeias de produção e de distri­buição, às alterações climáticas, e a dificuldades na transição energética, não foi explicado de forma inteligível à população.

Pelo contrário, deixou-se en­tender às pessoas que por acção ou por omissão o governo é de alguma forma responsável pela inflação nos preços que se já se fazem notar em todos os secto­res. Há mesmo quem atribua o desaire eleitoral do candidato apoiado pelo partido no gover­no ao mau “timing” dos aumen­tos do preço dos combustíveis e de energia e água e também à proposta intempestiva de au­mento do IVA. Entretanto, não se dá a devida atenção às razões de fundo das vulnerabilidades nacionais, às ineficiências em vários sectores que prejudicam a produtividade e a competi­tividade do país e a comporta­mentos avessos a critérios me­ritocráticos, à orientação por resultados e à valorização do conhecimento que são nocivos. E sem essa atenção, e sem a cla­rificação dos problemas reais, dificilmente será possível fede­rar vontades na sociedade para fazer as reformas necessárias do Estado, da educação e da economia e se ter, de facto, de­senvolvimento sustentável.

Todos dizem que a realidade actual de uma economia pouco diversificada, dependente do turismo, altamente endividada (mais de 155% do PIB) e sem possibilidade aparente de cres­cer a taxas superiores a 7% do PIB consideradas necessárias para debelar o desemprego, mesmo numa conjuntura fa­vorável como foi a anterior à pandemia, não pode continuar. Agir, porém, é mais difícil. Mesmo quando se procura fa­lar a verdade dos factos não se é ouvido. O governo através do ministro das Finanças tem-se referido em vários momentos ao problema da dívida pública que está a atingir níveis quase insustentáveis. Para 2022 o ser­viço da dívida pública, segundo ele, vai aumentar 9 milhões de contos com o fim das mora­tórias dos créditos contraídos entre 2008 e 2016, passando a totalizar cerca de 24 milhões contos. Perante esta declara­ção, aparentemente nem o país pestaneja e nem se vê razão suficiente para os partidos com assento no parlamento chega­rem a acordo e alterar na lei os mínimos dos valores do défice e da dívida interna para o Estado de Cabo Verde poder fazer face aos seus compromissos junto dos credores.

Caso para perguntar que si­tuação difícil ou crise consegue forçar as pessoas, a sociedade e os actores políticos a focar nas reformas que devem ser feitas e chegar aos compromissos ne­cessários para as materializar. O poeta Ovídio Martins dizia que “as secas já não nos me­tem medo porque descobrimos a origem das coisas”, mas na realidade parece que o que se descobriu foi a solução da aju­da externa quando há qualquer calamidade seja ela seca, pan­demia ou desastre natural. As reformas para diminuir vulne­rabilidades e ganhar resiliência são sucessivamente adiadas ou quando encetadas ficam aquém dos resultados pretendidos. O que parece perdurar é a con­vicção de que talvez o país seja “too small to fail” e qualquer ajuda, qual migalha a cair do prato dos outros, tem grande impacto na sua pequena econo­mia. Nesse sentido, ninguém se sente grandemente pressionado para fazer os arranjos políticos e sociais que poderiam apressar reformas e assegurar que tives­sem os resultados desejados.

Para responder ao grande fardo de cumprir com o servi­ço da dívida pública (capital mais juro) já se estão a mobi­lizar parceiros como o BAD, o Banco Mundial, Luxemburgo, Portugal e a União Europeia sendo todos os contactos feitos e as promessas de ajuda anun­ciados com grande fanfarra pelo governo. Do FMI vieram cerca de 30 milhões de dólares correspondentes a 21 milhões de SDR, de direitos especiais de saque. Foi o que coube a Cabo Verde em resultado da distri­buição feita pelo FMI por todos os países do mundo de acordo com as suas respectivas cotas a partir de um bolo comum cor­respondente a 650 bilhões de dólares. O interessante neste esquema para ajudar os países com dificuldades acrescidas devido à crise pandémica é que os SDRs recebidos não contri­buem para o aumento da dívida pública.

O FMI, através do fundo Poverty and Resilience Trust constituído a partir de SDRs cedidos por países sem difi­culdades orçamentais, preten­de alargar ainda mais a ajuda aos países mais pobres. Cabo Verde deve poder usar esse ca­nal multilateral para conseguir mais SDRs e reestruturar a sua dívida externa com esquemas que lhe permitam moratórias mais longas e juros mais bai­xos. Devia-se explorar também canais bilaterais com os países mais próximos e em particular com aqueles como Portugal em que uma parte da dívida é de natureza comercial (exemplo Casa Para Todos) e o serviço da dívida é mais pesado. Nos anos noventa inovou-se com a criação do Trust Fund para di­minuir o impacto do serviço da dívida interna acumulada na transição da economia estati­zada para economia de merca­do. Talvez seja agora o tempo para uma entidade igualmente inovadora para fazer face aos constrangimentos orçamentais que irão ser postos pela dívida externa a partir de 2022.

Não se deve é ficar por aí. O espaço ganho deve ser utilizado para se avançar com as refor­mas que podem tornar o Estado e a sua máquina mais eficiente e eficaz e também mais útil e competente enquanto agente do desenvolvimento. A rigidez das despesas do Estado que segundo o OE de 2022 atin­ge os 90 % deve ser diminuída consideravelmente. Para isso e também para se poder atingir os objectivos de resiliência e sustentabilidade, compromis­sos sociais e políticos terão que ser firmados. Se em tempo de crise profunda não se conseguir o que a realidade nacional e in­ternacional força todos a fazer para se poder construir um fu­turo de prosperidade, ninguém garante que mais tarde haverá motivação para isso. É respon­sabilidade de todos assegurar que esta crise não seja mais uma oportunidade perdida. Ao governo da República natural­mente cabe uma responsabili­dade muito maior.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1039 de 27 de Outubro de 2021.

segunda-feira, outubro 25, 2021

Os dados estão lançados

Realizadas as eleições presidenciais de 17 de Outubro, termina o ciclo eleitoral que tinha sido inaugurado a 25 de Outubro do ano passado com o pleito autárquico. A corrida presidencial foi ganha por José Maria Neves que era o candidato apoiado pelo Paicv, abrindo as portas para mais uma experiência no relacionamento entre o presidente e o governo e a sua maioria parlamentar, quando oriundos de campos políticos diferentes.

Já tinha acontecido há 10 atrás, em 2011, quando o presidente Jorge Carlos trabalhou com o primeiro-ministro José Maria Neves suportado por uma maioria parlamentar do Paicv. Nada de realmente anómalo aconteceu então e o mais provável é que também, nos próximos cinco anos de mandato, a governação não seja demasiadamente perturbada por crises institucionais para além das costumeiras tensões entre órgãos de soberania no exercício das suas respectivas funções. O sistema de governo é parlamentar e, assegurado o apoio de uma maioria na Assembleia Nacional, não há margem para situações que possam pôr em causa o regular funcionamento das instituições.

O processo eleitoral terminou bem com todos a reconhecer a lisura dos procedimentos na votação e na contagem de votos e a aceitar prontamente os resultados. O comportamento geral dos candidatos e dos directamente envolvidos nas eleições contrastou, porém, com muito o que, por várias razões, se foi dizendo ao longo da campanha eleitoral. Falou-se de fraude, de hackers, de esquemas de compra de votos e outros estratagemas para manipular as eleições. Da forma como essas acções eram apresentadas, ficava a impressão que uns e outros eram useiros e vezeiros no recorrer a essas manobras e que se nada houvesse para as impedir, podiam determinar os resultados.

É verdade que a dependência das pessoas em relação ao Estado e a favores e boa vontade de outrem tende a abrir espaço para abusos diversos e para manipulação de consciências. Não se pode é, no momento de campanha acusar com veemência adversários de cometer fraude, receber financiamentos duvidosos e de comprar votos para de seguida esquecer das acusações feitas e, pior ainda, estando no governo ou em posição de pressionar para se saber as raízes e as intrincâncias dos esquemas montados para essas práticas, não se agir para finalmente sanar o sistema dessas ilegalidades. Ao insistir nesse tipo de comportamento, eleição após eleição, só se acaba por aumentar o cinismo das pessoas em relação à política e globalmente manter sob suspeita o sistema eleitoral e as instituições que regulam o sistema como o CNE e a DGAPE e que ao longo dos anos têm feito avanços consideráveis para garantir que o processo de legitimação da vontade do povo seja o mais livre, justo e inclusivo.

Há que realmente pôr um fim a essas práticas, particularmente, quando já se tornou habitual, para certos candidatos a autocratas nas democracias, questionar os resultados eleitorais para se perpetuarem no poder ou negar a legitimidade do poder exercido pelos vencedores. Também de evitar, até porque vai no mesmo sentido, é excitar paixões com base em acusações mais ou menos abertas de anti-patriotismo e de conluio com forças estrangeiras ou recorrendo a outras teorias de conspiração. Na realidade, com essas tácticas o que se quer é negar a participação política do outro. A prova disso é que, fora do contexto da política reduzida a uma luta tribal, não se dá nenhuma credibilidade a esse tipo de alegações e não são accionadas quaisquer autoridades para as investigar. O espectáculo marcado por gestos de conciliação e de respeito pelo sistema democrático que todos quiseram dar na noite eleitoral para ter significado real, em termos de credibilização das instituições e da política e não ser um jogo cínico e hipócrita, deve querer dizer que nem sempre os fins justificam todos os meios, mesmo no processo de conquista do poder.

O jogo democrático no processo eleitoral, não obstante as suas insuficiências e fragilidade perante actos de manipulação e também de não ir completamente ao encontro dos desejos de participação de todos, deve ser valorizado pelas razões óbvias de garantir a representatividade dos cidadãos nos órgãos políticos, de escolher governantes e de legitimar o exercício do poder. O facto de não poucas vezes surpreender nos resultados, mesmo quando são usados os instrumentos mais sofisticados das sondagens para orientar a campanha e os meios mais modernos de marketing político para imagem e mensagens dos candidatos e recursos financeiros desiguais de suporte, serve para o credibilizar ainda mais. As pessoas querem acreditar que “o povo é a voz que fala mais alto”.

Este ciclo eleitoral que chega ao fim surpreendeu em toda linha. Nas eleições autárquicas de Outubro de 2020, quando a Capital passou para o Paicv. Nas legislativas de Abril de 2021, quando numa inversão do voto autárquico em vários círculos, o MpD ganhou em quase todo o território nacional com excepção da Ilha do Fogo. Agora nas presidenciais o candidato José Maria Neves, apoiado pelo Paicv, vence em todos as ilhas com excepção de S. Nicolau, Sal, Maio e Brava. No ciclo anterior de 2016 não houvera surpresas e não eram de esperar, considerando que o Paicv saía de um longo período de 15 anos de governo. O MpD ganhou as legislativas e as autárquicas e o candidato por ele apoiado venceu as presidenciais. Já neste ciclo, ainda só com um mandato do MpD, as inflexões no sentido de voto do eleitorado de uma eleição para outra podem estar a traduzir algum desencanto com as políticas do governo.

O desencanto transpareceu nas autárquicas, em particular com a perda da Câmara Municipal da Praia. Pouco depois, em sondagens vindas a público em Outubro/Novembro, manifestou-se na intenção de voto nas legislativas a favor do Paicv. Terá sido atenuado com a ofensiva do partido no governo, o arrastar da pandemia e alguma incapacidade da liderança da oposição em capitalizar os ganhos das autárquicas e conduzido à vitória do MpD nas legislativas, mas com uma maioria menos confortável. Agora, nas eleições presidenciais, apesar dos bons resultados da vacinação da população, as dificuldades do governo em lidar com as consequências socioeconómicas da pandemia terão outra vez redirigido a intenção de voto para um candidato apoiado pelo Paicv. Perante os resultados das eleições presidenciais, a impressão com que se pode ficar é que em algum momento, em 2020, o eleitorado começou a virar-se para o Paicv e que realmente não parou ao longo destes meses.

Os resultados das legislativas nesse sentido constituíram uma espécie de anomalia dados os condicionalismos vividos no momento. Se assim for, o governo ainda com vários anos de mandato terá que saber como lidar com a situação complexa que vai ter entre mãos e eventualmente contorná-la, reconquistando a confiança dos segmentos mais flutuantes do eleitorado. Não vai ser fácil, considerando que a derrota de Carlos Veiga nas presidenciais poderá arrastar consigo a perda de algum capital no campo simbólico, identitário e de legado do partido que nos anos noventa construiu a democracia e as suas instituições e ainda liderou o processo de transformação de uma economia estatizada numa economia de mercado.

De facto, a afirmação do MpD como alternativa de governo tem muito a ver como manter o essencial do seu legado que o distingue de políticas rentistas e de reciclagem da ajuda externa que sempre caracterizaram os governos do Paicv e que invariavelmente têm conduzido o país a taxas baixas de crescimento como aconteceu nos fins dos anos oitenta e entre os anos 2011-2015, acompanhado de dívida pública de mais de 120% do PIB. A liberalização da economia foi seguida de grandes reformas no sistema fiscal, sistema financeiro, de privatizações esforço de industrialização e atracção de investimento externo e ainda do o acordo cambial com Portugal e a União Europeia que serviram de base para elevação do potencial de crescimento do país e proporcionaram as maiores taxas de crescimento do PIB de sempre. O esbatimento desse legado pode trazer dificuldades em afirmar-se como alternativa às narrativas, práticas e atitudes que sempre foram protagonizadas pelo Paicv. De qualquer forma, os dados estão lançados e a bem da democracia é fundamental que se conserve sempre a possibilidade de alternância no governo do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1038 de 20 de Outubro de 2021.

segunda-feira, outubro 18, 2021

Pensar fora da caixa

 Ainda no último trimestre do ano de 2021 o caminho para a retoma da economia na generalidade dos países sejam eles desenvolvidos, emergentes ou menos desenvolvidos continua semeado de incertezas. Não era esse sentimento nos primeiros meses do ano, quando se iniciou a vacinação massiva das pessoas em particular nos Estados Unidos e na Europa.

Acreditava-se que em Julho e até o mais tardar no fim do Verão estar-se-ia perante um regresso à normalidade e que o esperado crescimento económico seria vertiginoso, suportado por uma procura suprimida por meses de restrições diversas e mesmo quarentenas estritas e agora libertada. A realidade é que o aparecimento de variantes mais contagiosas do coronavírus, o Alfa e depois o Delta, a resistência inesperada à vacinação e os persistentes problemas de produção e distribuição das vacinas que vão deixando milhões desprotegidos não permitiu que essas expectativas se concretizassem completamente.

Há, de facto, crescimento, mas não nas taxas previstas, e dá sinais de ser assimétrico em detrimento dos países mais pobres alargando em consequência o fosso entre os países pobres e os países ricos. Quanto ao emprego, continua muito aquém do desejado a meio com incertezas por causa da Covid-19 e em alguns casos de resistência de uma parte significativa de pessoas em regressar ao que tinham ou faziam no mundo pré-pandémico. Nota-se ainda a tendência para o aumento da inflação também de forma desigual, menos nos países ricos e mais nos outros, o que pode vir a traduzir-se em mais um obstáculo para a retoma da economia. A persistência dos efeitos da pandemia com impacto nas cadeias de abastecimento tem-se traduzido na escassez de certos produtos, atrasos na entrega de componentes necessários para a produção e naturalmente num aumento geral de preços de vários produtos, de bens alimentares e de fornecimento de energia.

Tudo leva a crer que os aumentos mais pronunciados dos preços de energia, em particular, dos produzidos a partir de combustível fóssil resultam dos efeitos cumulativos da retoma da actividade no período pós-pandémico. Também podem dever-se ao fraco investimento no sector energético de base fóssil em reacção às opções de se proceder à transição energética e de dar combate às alterações climáticas e ainda aos constrangimentos gerados pela rivalidade entre as grandes potências e que afectam os stocks de petróleo e gás natural em todo o mundo. Nestas condições provavelmente não será tão cedo que se poderá regressar a um mundo de menos incertezas e com capacidade de crescer e criar empregos. Há os mais optimistas que apontam para o segundo semestre de 2022 como de regresso à normalidade e à retoma mundial, mas há quem veja um caminho mais longo e mais sinuoso a percorrer. São vários os sinais que se vai regredir no grau da globalização com proteccionismos, onshoring de empresas em sectores-chave, reformulação de cadeias de valor, impactando nas possibilidades e oportunidade de muitos países retirarem milhões de pessoas da pobreza como aconteceu nas últimas décadas.

Em Cabo Verde, já se sentem os efeitos das deficiências na circulação de bens e da alta de preços em vários bens e serviços entre os quais energia e transportes. A economia nacional, extremamente dependente do turismo, sofre ainda as consequências de um sector que pelas suas características provavelmente vai levar algum tempo até atingir o vigor anterior e afectar o emprego, as receitas públicas e as exportações do país da mesma forma que outrora. Com mudanças a se verificarem no ambiente económico a nível mundial, dificilmente um restauro das actividades irá acontecer retomando simplesmente o que se fazia antes. Será fundamental saber adaptar-se às novas condições e poder inovar e ser mais produtivo e competitivo. Também será essencial saber aproveitar as oportunidades e explorar novos mercados e canalizar o que de melhor se tem para investir no futuro de modo a garantir um desenvolvimento sustentável.

É evidente que não se consegue adequar o país e as pessoas ao novo paradigma de relações que está a emergir do mundo pós-pandémico repetindo a mesma forma de pensar, de encarar e fazer as coisas do passado. Por causa das extraordinárias mudanças verificadas no mundo, em todos os países e nas relações internacionais e na atitude das próprias pessoas há um apelo geral para se pensar “fora da caixa “,out of the box, e encontrar soluções novas para realidades novas não devia certamente ser este o momento para se enfiar a box na cabeça e insistir em pensar dentro dela. Infelizmente, é o que está a passar. Ouvindo o parlamento no que foi a primeira reunião plenária desta sessão legislativa tem-se a impressão que se vive e debate-se num mundo à parte. Os aumentos dos custos de energia em proporções similares ao que se passa em vários países em vez de ser um convite a discussões construtivas sobre a problemática energética de um país insular no actual contexto mundial é oportunidade para mais um jogo de culpas entre os partidos do arco da governação.

Acontece o mesmo quando é trazida à discussão a questão da TACV e do hub na ilha do Sal. Repetem-se as mesmas acusações, mas, quando possíveis soluções são discutidas, não se fica com a impressão que se está a tomar em devida conta a realidade actual do impacto sem precedentes da pandemia e das incertezas que existem quanto ao futuro e à evolução do sector da aviação comercial. O mesmo padrão de comportamento repete-se quando a temática é outra, seja ela à volta da água, da energia, dos transportes, da habitação, ou das barragens. Tudo parece funcionar num registo eleitoralista permanente em que quem governa mostra triunfalmente o quanto é que já ofereceu à população e a oposição esforça-se por demonstrar que foi muito pouco, alguém foi discriminado e está-se a fazer para ganhar votos.

Todos dizem querer um Estado Social cada vez maior, mas sem os sacrifícios e os compromissos necessários para construir a base económica que o tornaria sustentável. Em tal ambiente, são quase estéreis os debates democráticos que pela sua função deviam ser esclarecedores da situação do país e do mundo envolvente e precursores de soluções. Daí é só mais um passo no sentido da degradação do discurso político e da sua não correspondência com a verdade e a realidade factual, submetido que fica à logica segundo a qual “os fins justificam os meios”. O outro lado deste estado de coisas, que configura um autêntico bloqueio ao desenvolvimento, é a crescente dependência da ajuda externa, tornada mais evidente quando perante choques, sejam eles de origem interna ou externa, como está a acontecer há mais de três anos, primeiro com a seca e depois com a pandemia e os seus efeitos socioeconómicos a nível local e global.

As eleições presidenciais podiam ter o efeito de uma “pedrada no charco” e ajudar o país a sair do torpor mental e intelectual que a política partidária com discurso rasteiro, populista e permanentemente eleitoralista o está a condenar. O presidente da república não governa, mas pode ser um promotor do “mercado de ideias” que, segundo pensadores como John Stuart Mill, deve-se criar na busca da verdade. O país, na procura da prosperidade, precisa pensar “fora da caixa” e só pode fazê-lo com o respeito pela verdade e pelo conhecimento. Nesse aspecto, o presidente da república através das suas mensagens e iniciativas e também do seu papel de moderador e árbitro do sistema político pode ter um papel importante para ajudar o processo democrático a ser virtuoso e por essa via credibilizar ainda mais a democracia liberal e constitucional.

Diminui-se, porém, esse papel se se deixa que as eleições presidenciais sejam capturadas pelas mesmas tricas e futricas partidárias – (SOFA, dois primeiros-ministros, dois milhões, profanações) – que só contribuem para manter a actual falta de diálogo no país. Na sequência, descredibilizam-se as instituições competentes para as investigar e que em tempo as deram por resolvidas (Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal de Justiça, Ministério Público) e deixam o país numa crispação política paralisante, quando mais precisa movimentar, experimentar e inovar na busca de soluções para sair da crise, voltar à normalidade e fazer a retoma da sua economia. É preciso deixar o país respirar e libertá-lo das grilhetas das inverdades, dos mitos e do ilusionismo que o aprisionam. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1037 de 13 de Outubro de 2021.

segunda-feira, outubro 11, 2021

Ir além dos equívocos da função presidencial

 

Com o início da campanha para as eleições presidenciais a atenção do eleitorado foca-se cada vez mais na questão dos poderes do presidente da república no sistema político cabo-verdiano.

Os candidatos em debates, entrevistas e encontros com a população têm deixado claro a forma como vêem os poderes do presidente e como pretendem exercê-los se forem eleitos. Os pontos de divergência normalmente são à volta da relação, mais ou menos próxima com o governo, da influência mais ou menos aberta e assertiva sobre as políticas do governo e da abertura e independência em nomeações partilhadas do governo e do PR para cargos como Procurador Geral da República, Presidente do Tribunal de Contas, embaixadores e Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Nos extremos encontram-se posições de candidatos que se colocam em franca ruptura com o que a Constituição estabelece como sendo as competências do presidente da república e até clamam por mudanças constitucionais de fundo.

Perante o quadro algo confuso assim exposto, nem sempre é fácil para o eleitor comum discernir se se trata de um novo escrutínio para eleger um arbítrio e moderador do sistema político ou se se trata de uma espécie de repetição das legislativas para se obter uma “maioria presidencial” susceptível de ser instrumentalizada, dependente da sua origem no quadrante político, para reforçar ou para se opor ao governo. A condicionar o debate está uma insuficiente discussão sobre os poderes presidenciais que até agora não se fez porque ficou inquinada logo nos primórdios da adopção da Constituição de 1992. Ao invés de se densificar o papel que o presidente suprapartidário eleito por sufrágio universal tem na nova Constituição de pendor parlamentar, optou-se por manter vivo o conflito com o sistema semipresidencial, na época de preferência de uma minoria. Daí que durante a vigência da II República haja sempre quem diga que o PR não tem poderes, que eleições presidenciais são inúteis e que o titular é um simples corta-fitas. Contraditoriamente são praticamente os mesmos que, quando os ventos são de feição, querem que o PR ajude o governo e, quando são contrários, que se transforme numa oposição activa. Nessas condições é evidente que o debate não evolui.

No sistema de pendor parlamentar existente no país, o PR não governa, o governo só é responsável politicamente perante a assembleia nacional e o poder de demissão do governo e da dissolução do parlamento pelo presidente da república não é livre, dependendo o seu exercício de condicionalismos muito especiais estabelecidos na Constituição. O parecer favorável do Conselho da República só caiu na revisão da Constituição de 2010. A estabilidade governativa que Cabo Verde tem gozado, 8 governos nos trinta anos da II República, deve-se muito a este modelo constitucional. Vê-se que é assim comparando com Portugal que nos seus primeiros seis anos de democracia, quando o pendor presidencialista do sistema político era mais forte, teve oito governos, três dos quais de iniciativa presidencial. São Tomé e Príncipe, nos últimos trinta anos, já vai em 17 governos, vários deles demitidos pelo presidente da república. Na Guiné-Bissau a situação é ainda mais complicada com bloqueios devidos a conflitos entre os PRs e os primeiros-ministros. O presidencialismo que para alguns parece a melhor solução não dá garantia de estabilidade como se pode ver no Brasil com os casos de impeachment e de corrupção e tem o perigo de evoluir para formas autoritárias do exercício do poder do tipo ensaiadas por Donald Trump e por Jair Bolsonaro.

Essas experiências deviam ser suficientes para que a questão dos poderes do presidente da república fosse já pacífica em Cabo Verde. A verdade é que não é e vê-se no espectáculo dado por candidatos com programas eleitorais que não se ajustam ao quadro das competências definidas na Constituição. Há quem queira ser autoritário e há quem não queira ser corta-fitas como se fossem opções reais no quadro existente. Um elemento perverso que resulta de se insistir em diminuir e subestimar os poderes do PR é a pressão que em certas circunstâncias os partidos políticos, grupos de interesses e pessoas próximas põem sobre o titular e compelem-no a agir sob pena de ficar a ser visto como inefectivo ou peça decorativa. Em Cabo Verde, já algumas vezes e com diferentes presidentes da república viveram-se momentos em que pressões para um maior protagonismo do presidente fora do quadro da lealdade institucional esperado e quase a ultrapassar as competências próprias levaram a situações complicadas. Talvez não as mais graves ou mais visíveis como a demissão do governo, dissolução do parlamento e eleições antecipadas, mas nem por isso menos preocupantes.

Valeu algumas vezes a capacidade dos outros órgãos de soberania de se acomodar às incursões nas suas competências sem mágoas públicas. Dentro de certos limites, algo similar acontece num momento ou noutro em qualquer sistema político com separação e interdependência de poderes. Normalizar tais situações, porém, pode abrir caminho para a instabilidade que se tem visto em países com governos que não completam mandatos e têm eleições antecipadas demasiado frequentes, com todo os custos que isso acarreta. Velar pelo normal funcionamento das instituições, enquanto arbitro e moderador do sistema, é a tarefa principal de quem não tem funções de governação e que só é responsável perante a nação que o elegeu. É uma função essencial que exige muito de quem a exerce designadamente em termos de maturidade, percurso, dedicação à causa pública e humildade para se assegurar que o sistema funciona no seu todo sempre no quadro da legalidade e respeitando o sistema de princípios e valores que lhe serve de referência principal.

Por outro lado, quem a exerce não deve cair na tentação de substituir o governo no desenvolvimento e implementação de políticas, porque pressionado por pessoas, grupos ou situações específicas. Deve, sim, tudo fazer para que os que foram eleitos para governar e para ser oposição cumpram os respectivos papéis e as virtualidades do sistema em encontrar soluções para os problemas sejam sempre potenciadas. O exercício de competências partilhadas em nomeações e exonerações de titulares de certos órgãos constitucionais essenciais para o normal funcionamento do sistema como o PGR, CEMFA, TC deve ser feito com firmeza e total autonomia. Da mesma forma, também devem ser exercidos os poderes de fiscalização como o poder de veto político a diplomas legislativos vindos do governo e do parlamento e os pedidos de fiscalização preventiva da constitucionalidade para que alguma coerência seja mantida e percepcionada pelos cidadãos e pela sociedade, tanto em matéria dos mandatos recebidos como de aplicação de comandos constitucionais, em particular em matéria de direitos.

A função presidencial não devia ser procurada por quem apresenta tiques de megalómano ou narcisista, nem quem tem vocação de ilusionista e mostra pouca adesão à verdade e aos factos. Compreende-se a atractividade do cargo para essas figuras. Cabe naturalmente ao cidadão ajuizar das propostas feitas e escolher. Não se pode é ignorar que acontecimentos recentes têm alertado contra os saltos para fora da realidade e reafirmado a necessidade de cooperação e solidariedade para se ultrapassar as extraordinárias situações vividas actualmente por toda a parte. Só garantindo que o sistema funcione e que resultados chegarão a todos é que se poderá impedir que perante o caos emergente – criado com todos a procurar tirar a sua quota parte, pouco interessando quem fica sem nada – alguém se proponha como ditador e acabe por ser eleito, deixando para trás não só a liberdade, mas também a possibilidade de prosperidade. Aconteceu em outros países e ninguém pode garantir que algo similar ou pior não venha acontecer aqui. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1036 de 6 de Outubro de 2021.

segunda-feira, outubro 04, 2021

Não há Justiça sem Liberdade

 

Este sábado, dia 25 de Setembro, realizaram-se manifestações clamando por “mais justiça” e repudiando a situação de “não Justiça” com a presença de centenas ou alguns milhares de pessoas em S.Vicente e na Cidade da Praia.

Tudo leva a crer que não conseguiram ter o impacto desejado nem a adesão esperada apesar dos esforços feitos pelos seus mentores, da cobertura recebida dos órgãos de comunicação social e da forte presença nas redes sociais. A anteceder essas manifestações já se vinha verificando passeatas em vários pontos do país com paragens nos tribunais. Razões invocadas são em alguns casos discordância com as formas de coação (TIR) impostas a pessoas acusadas de crimes e noutros casos considerar como excessiva a prisão preventiva. Em outros casos ainda há o que o presidente da república, em entrevista à televisão pública, no domingo passado, chamou de confusão da justiça com segurança.

A novidade em todas estas situações está na aparente predisposição das pessoas em levar as suas queixas, insatisfações e receios às sedes dos tribunais aparentemente fazendo o poder judicial o principal culpado pela insegurança, criminalidade e falhas da justiça. A morosidade e a qualidade da justiça dispensada poderão eventualmente justificar críticas ao sistema e acções para responsabilizar quem deve assegurar que a justiça é realizada com eficácia e em nome do povo. Incitar a população contra os tribunais não é certamente a forma de fazer isso, particularmente quando se levanta em arco um caso de fuga do país de pessoa acusada e julgada por homicídio. Um caso que parece configurar a chamada justiça justiceira ou justiça pelas próprias mãos que é incompatível com o primado da Lei, o Estado de Direito e a existência de uma sociedade civilizada.

O incitamento contra o poder judicial infelizmente tem-se tornado normal em democracias em que já é notório uma espécie de “deriva iliberal”. A Hungria e a Polónia nos últimos anos têm sido objecto de resoluções do parlamento europeu condenando ataques aos juízes, à imprensa e aos direitos das minorias. No Brasil, o confronto do presidente Bolsonaro com o sistema de justiça visando a sua descredibilização é parte essencial da deriva para um Brasil menos livre e menos democrático. Nos Estados Unidos da América, os quatro anos de Trump foram de ataque sistemático a todas as instituições democráticas. Segundo revelações recentes, aventava-se mesmo a possibilidade de um golpe de estado na sequência da derrota eleitoral do presidente. O assalto ao Capitol por populares no 6 de Janeiro deste ano era para desencadear o plano para esse efeito. Em todos esses casos o objectivo é o exercício do poder sem os limites que os direitos humanos, o primado da Lei e uma justiça independente impõem.

Aos seus seguidores e à sociedade em geral quer-se fazer crer que é o excesso de direitos e o excesso de garantias que dificultam a realização da justiça. Muitas vezes a mensagem é condimentada com acusações de corrupção ou de incompetência dos magistrados e com queixas em relação às exigências processuais procurando capitalizar sobre o sentimento generalizado das pessoas que a justiça não é suficientemente célere e eficaz. Invariavelmente, o objectivo é conseguir com promessas de acção musculada, guerra ao crime e justiça imediata que as pessoas cedam liberdade em troca de segurança e deixem de acreditar num poder judicial independente. A tentação das forças de segurança e de alguns políticos de se justificarem passando a ideia que fazem a sua parte, mas que os tribunais atrapalham tudo com o invocar de direitos e garantias, reforça esse sentimento, mas tem o seu contrário. Deixa no ar a ideia de que, ou se está perante confissão de incompetência, ou de má-fé vinda de quem por lei devia estar na primeira linha de defesa dos direitos dos cidadãos quando investiga e combate o crime e quando impõe a autoridade do Estado. Não ver um caso investigado avançar devia ser motivo para rever práticas e melhorar a cientificidade da abordagem e não para alimentar desconfiança no sistema de justiça, tornar aceitável fazer a justiça com as próprias mãos e promover políticas do tipo “bandido bom é bandido morto’’.

Um facto já constatado repetidas vezes em vários países, incluindo Cabo Verde, é que não há Justiça sem Liberdade e sem Justiça não há paz. Ir por atalhos que sacrificam direitos, aumentam o poder arbitrário e discricionário do Estado e deixam os cidadãos sem possibilidade de defesa, não é o que se espera de um Estado constitucional. A expectativa é que qualquer deriva deve poder ser controlada e revertida com “checks and balances”, pesos e contrapesos, que resultam designadamente do pluralismo do sistema político, da actuação moderadora do presidente da república suprapartidário e das decisões de magistraturas independentes. Para isso é fundamental a assunção plena dos cargos e o exercício das respectivas competências num quadro de lealdade, ciente de que as virtudes do sistema só se revelam com o funcionamento na totalidade das suas diferentes partes. Também fundamental é manter bem vivo do lado dos cidadãos o sistema de valores e princípios consagrados na Constituição e trabalhar para que seja seguido e aplicado por todos na república. Como disse James Madison se não há virtudes [republicanas] entre nós, vamos estar numa situação miserável.

Administrar a Justiça significa dirimir conflitos partindo do princípio que todos são iguais perante a lei e que a lei deve ser aplicada a todos de forma igual. Para que a justiça seja eficaz e aceite por todas as partes é evidente que tem que ser independente, em particular na relação com o Estado que é a entidade mais poderosa no país, e há que assegurar que o próprio Estado se submete à lei e às decisões dos tribunais.Conseguir criar um corpo de magistrados com uma cultura institucional em que todos e cada um veja como sua missão realizar com independência, com competência e com celeridade razoável para ser efectiva não é tarefa fácil em qualquer democracia. De facto, quantas vezes já se tentaram reformas da justiça em países como Portugal e França. Na Itália, há uns três meses atrás, estava-se a ultimar a mais recente reforma centrada nos prazos processuais e nas prescrições. Em Cabo Verde, avançou-se com uma revisão constitucional em 2010, instalaram-se os tribunais de relação, em 2016 e fizeram-se várias alterações nas leis para além de injecções de recursos materiais e humanos ao longo dos anos para se ter uma justiça mais eficaz.

Ninguém está completamente satisfeito com os resultados obtidos, mas é claro que conciliar a independência em relação ao poder político com a exigência de uma prestação na administração da justiça atempada para ser útil a uma magistratura com autogoverno, e por isso propício a atitudes corporativistas, também não deverá ser fácil. Há opções que podiam ser feitas para melhorar a situação e garantir uma maioria de não magistrados nos conselhos das magistraturas como a Constituição anteriormente previa e acontece noutros países. De qualquer forma, o parlamento está em falta há vários anos ao não eleger substitutos nos conselhos superiores que terminaram o mandato. Também devia-se avaliar se a inovação quanto à composição e a presidência do CSMJ, que deixou de ser por inerência o presidente do supremo tribunal de justiça, tem sido útil para o sistema e qual deve ser o papel do Presidente da República no processo da nomeação dos presidentes desses órgãos. A Inspecção Judicial merece uma outra reflexão provavelmente “fora da caixa” para se encontrar uma solução que sirva os objectivos da autogestão da magistratura e ajude a recuperar a confiança dos cidadãos na capacidade de o sistema rever as suas práticas, promover o mérito no seu seio e manter-se distante da influência política e de outros interesses prejudiciais à integridade da magistratura.

É evidente que o que não se precisa é instigar as pessoas contra o sistema como se verificou nos últimos dias. Na prática significa atirá-las contra as instâncias que eventualmente poderão defendê-las se todos as outras falharem em reconhecer-lhes direitos. Por outro lado, há que existir maior sensibilidade da parte da magistratura quanto à oportunidade de apresentação da questão salarial e outros benefícios como pensões em caso de aposentação. Não é o que transparece no relatório sobre o Estado da Justiça entregue ao parlamento. Com o país a enfrentar a crise pandémica, não é o melhor momento para isso. De qualquer maneira, a suposta indexação aos salários dos políticos já foi contornada com os vários subsídios e depois dos acórdãos do STJ de 2019, tais subsídios já contam para a pensão.

Contenção e razoabilidade devem prevalecer principalmente quando existem forças que, aproveitando-se das fragilidades da democracia, procuram pôr em causa as instituições. Deve-se entender que, ao atacar a justiça da forma como tem sido feita, é a própria liberdade que fica em risco de ser esvaziada. O momento é para unir esforços para enfrentar essas ameaças e impedir que a crise pandémica vá além dos seus efeitos socio-económicos e se transforme numa crise da democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1035 de 29 de Setembro de 2021.

sábado, setembro 25, 2021

Cumprir com humildade e maturidade

A menos de um mês das eleições presidenciais de 17 de Outubro o foco da discussão é a função constitucional do presidente da república e a disputa é à volta de quem projecta as melhores qualidades de carácter, de trajectória e de mundividência para o seu exercício. 

Para que o debate seja construtivo é fundamental que, de todos e em particular dos concorrentes, haja preocupação em elucidar a sociedade e os eleitores sobre a natureza do cargo, as suas competências e o seu papel no quadro constitucional de relacionamento com os outros órgãos de soberania. Infelizmente, nos tempos actuais não são poucos os que tomam a desinformação, a distorção dos factos e mesmo a hostilidade directa contra a Constituição como formas legítimas de fazer política. Não se pode é permitir que prevaleçam e que a prática de mobilizar paixões, ressentimentos e impulsos justiceiros para conquistar o poder se estabeleça. Momentos altos de reafirmação e renovação democráticas como são as próximas eleições presidenciais devem servir para aumentar a confiança na democracia e confirmar a importância central da liberdade.

No próximo dia 25 de Setembro celebra-se o 29º aniversário da entrada em vigor da Constituição de 1992 e da inauguração da II República com o içar da nova bandeira de Cabo Verde. Devia ser o Dia da Constituição, como acontece com datas similares nos Estados Unidos, Espanha, Timor- Leste e em várias outras democracias, um dia assinalado nas escolas e dedicado a conferências, palestras e eventualmente a actos oficiais. Em Cabo Verde quase que passa despercebido. E é estranho que isso aconteça quando se tem presente como o acto da adopção de uma constituição liberal e democrática foi transformativo para as pessoas e para o país. Reviver o momento devia ser parte de um ritual de renovação do consenso à volta dos seus princípios e valores e da confiança nas instituições democráticas por forma a evitar que dentro da democracia surjam forças para a minar, destoar ou mesmo destrui-la. O perigo é real como se pode constatar de situações calamitosas em alguns países democráticos protagonizadas por presidentes da república, governos, partidos e outros grupos de interesse que têm posto em causa a liberdade, os actos eleitorais e a independência dos tribunais. 

No essencial, o contrato implícito na Constituição é sobre quem escolhe os governantes, como o poder é exercido e quais os limites do Estado. Para quem nunca escolheu os seus governantes, mas sofreu com decisões tomadas em comités obscuros e sentiu-se completamente indefeso perante um Estado paranoico e sem freios em modo repressivo, ter uma real e operante Constituição é de facto um salto para uma outra condição, a de cidadão pleno. Não é à toa que em muitos países o Dia da Constituição é também o Dia da Cidadania. Também não é à toa que os inimigos da democracia procuram descredibilizá-la com ataques cirúrgicos dirigidos às instituições e aos procedimentos democráticos em particular ao parlamento, aos tribunais, aos média, aos partidos e ao pluralismo. A via mais perniciosa é a que se serve dos próprios procedimentos democráticos, socorre-se dos próprios titulares dos órgãos de soberania e recorre a exemplos de ineficácia das instituições para quebrar a confiança do cidadão no sistema democrático e convidá-lo a renunciar parte da sua liberdade em troca de mais segurança. 

Não é só a liberdade que fica em perigo com o falhanço da democracia. É também a possibilidade de um futuro de prosperidade numa base sustentável como se pode inferir da história dos últimos duzentos anos. A ordem democrática necessária para isso pressupõe cidadãos livres, pluralismo de ideias, descentralização de poderes e o primado da lei e só pode manter-se se privilegia a procura da verdade, se se atém aos factos e se revê na crença que a realidade é demasiado complexa para ser captada só por uma pessoa ou por um grupo específico. Regimes que não se suportam na liberdade criativa e no livre empreendedorismo e na inovação de meios, métodos e políticas podem até durante algum tempo dar sinais de prosperar e mesmo de brilhar com taxas altas de crescimento, mas a prazo não conseguem ultrapassar as democracias na produção e distribuição de riqueza e bem-estar. A história é clara em demonstrar que a rigidez política inevitavelmente conduz à estagnação económica. 

Manter a democracia funcional no seu todo para que as virtualidades da ordem que produz se revelem, implica que todos os poderes exerçam as suas competências no quadro da normalidade. Maiorias devem poder governar, mas devem ser limitadas nas suas opções pelos direitos dos cidadãos, pelos direitos das minorias e pelo quadro legal existente. Mandatos decididos em eleições livres e plurais devem ser limitados e a possibilidade de alternância deve sempre existir. Conflitos devem poder ser dirimidos por um poder judicial independente. O presidente da república, enquanto representativo da comunidade política, deve fazer cumprir as normas e procedimentos indispensáveis para o sistema político funcionar de forma equilibrada fazendo os ajustes necessários que forem ditados por factores internos ou externos, mas mantendo sempre a confiança no sistema.

É evidente que o exercício de um cargo com essas responsabilidades vitais para o funcionamento pleno e virtuoso do sistema é bastante exigente. Naturalmente que ninguém está excluído e tirando os condicionalismos impostos pela Constituição quanto ao limite mínimo de idade de 35 anos e ser cabo-verdiano de origem não é legítimo trazer outros, sejam eles de percurso político-partidário, da idade ou de experiência prévia. O cargo é suprapartidário e o seu exercício competente para certos segmentos do eleitorado pode depender do comprometimento com a vida pública já demonstrado pelo candidato em vários papéis entre os quais a vida político-partidária. Não ter pertencido a nenhum partido também não é desqualificador à partida. A possibilidade de participação dos partidos nas eleições presidenciais apoiando um ou outro candidato não deve ser visto como negativo sob pena de se entrar pelo caminho de restringir direitos políticos e participação política. Com o foco na personalidade do candidato e no que apresenta como seu projecto de presidência, os eleitores podem avaliar, sem serem desviados por razões espúrias, que perfil e que qualidades o país quer ver no seu próximo presidente da república.

A situação do país ainda apanhado pelas graves consequências da crise pandémica não está fácil e nem vai melhorar tão cedo. O governo já anunciou que o serviço da dívida pública vai aumentar, em 2022, em 9 milhões de contos em consequência de créditos conseguidos entre 2008-2016. A pergunta que se coloca é se os investimentos feitos estão a justificar-se em termos de custo/benefício. A persistência das vulnerabilidades do país a par com o acumulado da dívida pública que dificilmente poderá ser paga, clama por uma melhoria do sistema de prestação de contas e de responsabilização dos actos e políticas dos sucessivos governos. No mesmo sentido vão as últimas revelações públicas num comunicado da direcção geral do turismo e transportes que, só em leasing de aviões, supõe-se durante o ano de 2020 até Março de 2021, em que não houve voos regulares, a CVA contraiu uma dívida de 35,5 milhões de dólares junto da Loftleidir.

As eleições presidenciais constituem um bom momento para se ponderar essas e outras razões que exigem que as instituições funcionem e que haja mais “accountability’’ no exercício dos diferentes cargos da república. Também é fundamental que se fale a verdade ao país, que se procure saber as reais dificuldades existentes e haja vontade de mudar e não ficar por ilusionismos fazendo “mais do mesmo” mas anunciando mudanças para melhor. A crise da democracia será ultrapassada quando diminuir nas suas ineficiências e for capaz as suas virtualidades. Para isso, humildade e maturidade são qualidades imprescindíveis para se realizar com sucesso a tarefa primeira que é de cumprir e fazer cumprir a Constituição. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1034 de 22 de Setembro de 2021.


segunda-feira, setembro 20, 2021

Ensino de qualidade para garantir resiliência e manter confiança

 

O ano lectivo 2021/2022 iniciou esta segunda-feira, 13 de Setembro. Ainda em tempo de crise pandémica e com variantes do coronavírus a assombrar as tentativas de um regresso ao normal, a esperança de todos é que finalmente se consiga retomar o ensino e a aprendizagem das crianças e jovens sem as interrupções e restrições dos dois últimos anos lectivos.

Os esforços do país em desenvolver o seu capital humano não podem continuar a ser interrompidos e a se revelarem menos eficientes do que seria expectável. É todo o futuro de uma geração que fica seriamente comprometida, se, aos problemas de qualidade, se juntar menos tempo dedicado ao ensino e a precária actividade pedagógica, porque em aulas presenciais intermitentes.

O país ao longo dos anos tem feito investimentos extraordinários na educação das novas gerações. Em consequência, segundo o Relatório Nacional Voluntário 2021 (VRN) apresentado pelo governo a 12 de Julho último no âmbito do programa “Cabo Verde Ambição 2030” a taxa de escolarização líquida atingiu 92,4% nos primeiros oito anos de escolaridade. A taxa de passagem de anos dos alunos foi de 90,3%. No ensino secundário a taxa de escolarização chegou aos 61,2% enquanto no ensino superior, entre jovens de 18 a 24, a percentagem de estudantes foi de 23,5%. O retorno desse investimento, porém, não tem sido o melhor. Segundo o relatório referido, VRN, uma avaliação feita a alunos do 2º e 6º anos nas disciplinas de Português e Matemática revelou que 61,8% dos alunos mostraram boa capacidade de leitura e 45% deram provas de capacidade razoável no mundo da escrita.

O problema é que do total dos alunos só 9,1% conseguiu atingir os objectivos da avaliação no que toca à aplicação do conhecimento básico da estrutura da língua e uma maioria de seis entre cada 10 alunos revelou ser incapaz de responder às questões colocadas. Na matemática, e de acordo com o relatório de análise contextual, os alunos mostraram múltiplas dificuldades em resolver problemas de operações e números, na organização dos dados e na geometria. Só 12.6% conseguiu responder à maioria das questões de geometria e medições, enquanto 53,1% mostrou-se incapaz de as responder adequadamente. Com base nesses e noutros dados de desempenho constantes do relatório (VRN, pg. 70 e s..) pode-se concluir que, se numa certa perspectiva a batalha da massificação do ensino foi ganha, considerando os altos níveis de escolarização existentes, em termos de qualidade da formação dada, os resultados ficaram muito aquém do desejado.

Sem uma educação de qualidade não há desenvolvimento, em particular nos países pequenos, insulares e sem recursos naturais, como bem testemunham os casos de sucesso como Singapura e Maurícias. Em Cabo Verde, o resultado dos investimentos feitos na educação não tem contribuído o suficiente para a constituição do capital humano necessário para o país crescer e ser competitivo. A satisfação que oficialmente se tira dos proclamados ganhos da educação mais parece uma celebração de uma vitória de Pirro. Apenas se vê o sucesso da massificação em número de escolas, liceus e universidades e no número de alunos inscritos, mas não se tem em devida conta as grandes perdas em gente mal formada, em sonhos individuais e expectativas familiares não realizados e em oportunidades perdidas por falta de qualidade da formação dada e de uma cultura de excelência no país. Massificação sem qualidade é uma fraude. Não é inclusivo, reproduz desigualdades e alimenta frustrações e ressentimentos.

O relatório VRN 2021 apresentado por Cabo Verde lembra que a ambição do país em ter uma educação de excelência teria que se realizar através de um sistema educacional integrado numa economia do conhecimento e de um ambiente escolar e universitário com cultura de investigação, experimentação e inovação que ajudasse os cabo-verdianos a dominar línguas, ciência e tecnologia. A isso devia ainda juntar-se a adopção por todos de um perfil cosmopolita na relação com o mundo imbuído de valores e motivações favoráveis à aprendizagem ao longo da vida. O facto de que é percepção geral que se está muito aquém desses objectivos, seja na aquisição de competências no domínio das línguas, das ciências e das tecnologias, seja na adopção do cosmopolitismo que faria do cabo-verdiano um homem do mundo, é deveras preocupante. Também complicado é ver que, se se deixa de lado a questão de obras nas escolas, os problemas do sistema educacional do país parecem resumir-se às reivindicações salariais, progressões e requalificações dos professores, relegando para um secundaríssimo plano questões sobre a qualidade e os conteúdos leccionados. Aliás, sempre que um político ensaia trazer para discussão pública a qualidade do ensino imediatamente um colega de cor política diferente salta-lhe literalmente em cima com os problemas dos professores ou reivindicações de cozinheiras ou de guardas pondo fim a qualquer debate sereno e substantivo sobre o assunto.

Não espanta, pois, que ao invés de valorizar o conhecimento, o sistema parece mais estar mergulhado em guerras culturais sendo uma delas à volta do uso do crioulo no sistema de ensino. O crescente militantismo pela causa é por demais evidente no número cada vez maior de professores e outros profissionais e representantes do sector educativo que insistem em expressar-se pública e oficialmente em crioulo nos órgãos de comunicação social. Não parece que as dificuldades notórias na aprendizagem da língua portuguesa apontadas pelo relatório VRN 2021 estejam a preocupar quem deliberadamente põe o crioulo e o português num conflito identitário artificial em que são vistos como mutuamente exclusivos. E é evidente que depois fica difícil motivar os jovens mais impressionáveis a aprender devidamente a língua oficial deixando-os efectivamente em desvantagem como cidadãos e como profissionais face aos que, ou por influência dos pais ou porque frequentam escolas privadas, não se deixaram apanhar por esse conflito.

Uma outra área do saber também afectada quando há guerras culturais e ideológicas é a disciplina de história. Várias gerações de jovens e crianças cabo-verdianas não estudaram o suficiente da história universal para se situarem no mundo com o conhecimento dos factos passados e o seu desenrolar no tempo e de como impactam o presente e enformam e constrangem o futuro. Aliás, as universidades cabo-verdianas nem oferecem licenciaturas em história e quando muito dirigem os interessados para estudos africanos. Ensina-se História de Cabo Verde no ensino básico e no secundário, mas muito limitado no seu escopo como se pode aperceber do que se propõe como objectivos gerais do ensino de história no 9º ano de escolaridade no tocante à história da idade contemporânea: “analisar o despertar nacionalista cabo-verdiano contextualizado nas consequências da II Guerra Mundial, conhecer a génese, etapas da luta pela independência, o protagonismo de Amílcar Cabral e a construção do Estado em Cabo Verde(...)”.

Num quadro de aprendizagem tão limitado da história do país e do mundo não é de estranhar que haja quem, num evento tendo como principais oradores o ministro de Cultura e um ex-presidente da república e na plateia várias personalidades e académicos, proclame que Amílcar Cabral foi o segundo maior líder político da humanidade. Nem na Coreia do Norte se chegou a tanto. Cabo Verde, porém, não pode dar-se ao luxo de seguir um caminho que o afasta do conhecimento e das competências que precisa para prosperar e do cosmopolitismo com que deve encarar o mundo para poder aproveitar as oportunidades e afirmar-se no mundo. É fundamental que, parafraseando o lema deste ano lectivo, se invista num ensino de qualidade para garantir a resiliência necessária nestes tempos conturbados e manter a confiança de que há futuro possível para ser construído.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1033 de 15 de Setembro de 2021.

segunda-feira, setembro 13, 2021

11 de Setembro: 20 anos depois

 Há vinte anos atrás as Torres Gêmeas do World Trade Center em Nova Iorque caíram na sequência de um ataque terrorista. Aviões comerciais penhados de passageiros foram transformados em mísseis por terroristas e dirigidos contra alvos civis num acto que pela sua ousadia e consequências mudou completamente o mundo.

Os Estados Unidos da América apanhados de surpresa reagiram com uma guerra ao terrorismo que iria levar à invasão do Afeganistão e do Iraque e no solo nacional iria afectar os direitos dos indivíduos, em particular os direitos à privacidade e à protecção de dados pessoais no quadro da lei chamada Patriot Act. O resto do mundo em choque acabou por seguir a liderança americana nessa nova ofensiva que iria se revelar custosa, inútil e destruidora de vidas em vários países e regiões do globo. A retirada dos soldados americanos do Afeganistão no dia 30 de Agosto último, duas décadas depois, pelo reconhecimento da inutilidade de toda a sua missão de “construção de Estado-Nação” a partir de estados falhados, provavelmente estará a assinalar uma nova era nas relações internacionais com especial impacto no que poderá ser o futuro das relações multilaterais para o desenvolvimento.

O acto terrorista marcou o fim do optimismo que no pós-derrube do Muro de Berlim e desmoronamento do império soviético e quedas em cadeia de regimes autoritários e totalitários em todo o mundo tinha levado Francis Fukuyama a proclamar o fim da história e a vitória da democracia liberal e da economia de mercado. Desenvolvimentos posteriores só vieram a confirmar o quão era deslocado esse optimismo. As tentativas de construção da democracia no Iraque resultaram em guerra civil e destabilização dos países vizinhos. A Primavera Árabe falhou terrivelmente nas suas promessas de democracia e deixou entre vários outros recuos uma Líbia destroçada e uma Síria ainda com uma ditadura impiedosa. O movimento migratório de milhões de pessoas em direcção à Europa que se seguiu provocou crises políticas em vários países, esteve na origem da saída do Reino Unido da União Europeia e alimentou o novo protagonismo da extrema-direita.

Entretanto, não se concretizou a esperança de uma evolução democrática na China que acompanhasse o crescimento rápido da sua economia e o extraordinário feito de retirar centenas de milhões de pessoas da pobreza e de criar uma numerosa classe média. Pelo contrário, viu-se surgir a possibilidade de um modelo de estado iliberal rival das democracias e que podia constituir uma alternativa de desenvolvimento a ser adoptado por outros países. E nas democracias a reacção à crise financeira de 2008, que rapidamente se transformou numa crise económica e social com aumento de desemprego, maior desigualdade social e futuro incerto para as novas gerações, abriu o caminho para o populismo, para sentimentos anti-elitistas e de desconfiança na globalização. Ou seja, em menos de vinte anos, o optimismo dos primórdios do século XX quanto ao sucesso da democracia cedeu lugar ao pessimismo particularmente quando populistas e outros políticos claramente iliberais se fizeram eleger em países de grande peso e influência enfraquecendo a aliança das democracias. Em causa ficaram a observância de princípios e valores universais e a defesa de uma ordem mundial baseada no direito internacional, acordos comerciais e pactos de segurança mútua que em vários aspectos é disputada por regimes autocráticos.

Em 2020 veio a pandemia do coronavírus. A rapidez com que o vírus chegou a todos os países demonstrou, para além de qualquer dúvida, qual o nível de globalização, de conectividade e de interdependência que se já atingiu. A covid-19 sendo uma ameaça global e existencial podia ter sido um factor favorável a uma maior cooperação entre as nações, ao aprofundar da consciência da nossa humanidade comum e à compreensão da natureza planetária de muitos desafios que actualmente se colocam. Infelizmente não foi completamente assim. No desenvolvimento das vacinas o nível de cooperação entre entidades científicas, farmacêuticas e reguladoras foi extraordinário e permitiu em tempo recorde ter um instrumento essencial de resposta à crise pandémica. As dificuldades já se vêem na tentação do nacionalismo económico, na disrupção das cadeias de abastecimento e na falta de articulação para se dar uma resposta global rápida e atempada a uma ameaça que toca a todos.

O resultado é que já se sentem as consequências da ausência de uma abordagem efectiva e global da crise. A baixa nas expectativas de crescimento económico tem a ver com as perturbações na disponibilidade de mão-de-obra e no consumo causadas pelos surtos de variantes da SARS- CoV-2 como a Delta, não obstante o alto nível de vacinação em alguns países. Isso acontece porque enquanto houver gente não vacinada haverá possibilidade de variantes do vírus que de uma forma ou outra vão poder contornar as vacinas. Também com dificuldades de abastecimento dos mercados muita produção é afectada, tornando precária o emprego e mais cara o preço dos produtos, com impacto a nível da inflação e das decisões de investimento e de consumo. Contornar todos os estrangulamentos que se colocam para uma retoma efectiva da economia a escala global exige um nível de cooperação que os egoísmos nacionais dificilmente vão facilitar.

Um outro problema que poderá juntar-se aos existentes que dificultam a cooperação, em particular com os países menos desenvolvidos, vem da constatação já tirada por alguns do fracasso americano no Afeganistão quanto à utilidade da ajuda externa em promover o desenvolvimento. Daron Acemoglu, um dos autores do livro “Por que falham as Nações?” é claro a dizer que despejar recursos num processo de construção de uma economia de cima para baixo não consegue captar a cooperação da sociedade, pode gerar indiferença e em certos casos hostilidade directa que impedem que se consiga algum ganho permanente de toda ajuda dispensada. Ian Burama, um outro analista político acrescenta num artigo recente sobre a armadilha colonial que tais recursos acabam por ser em grande parte capturados por uma elite local enquanto a maioria da população fica numa situação de dependência crescente do Estado, das ONGs e de outras instituições de ajuda internacionais, o que inevitavelmente gera corrupção.

São ainda poucos os analistas a concordar com a decisão de Joe Biden de retirar a América do Afeganistão, mas é grande o suporte dessa decisão junto da população americana. Ninguém garante que a desilusão com o esforço de “nation building” não seráestendida para outros casos de ajuda externa diminuindo o apoio ao multilateralismo na resolução dos problemas do desenvolvimento. Perceber que esse perigo existe é fundamental particularmente quando são muitas as tentações de promover o regresso das indústrias e de refazer as cadeias de valor para aumentar a importância da manufactura nacional e criar maior auto-suficência. Para Cabo Verde, um país muito dependente da ajuda internacional, provar que com competência, criatividade e sentido de oportunidade pode fazer o melhor da ajuda ao desenvolvimento é fundamental nestes tempos que, com a saída dos americanos do Afeganistão, um outro paradigma de relações entre os países poderá estar a emergir. Nesse sentido há que unir esforços para acabar com a dependência que reproduz pobreza e aumenta a desigualdade social. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1032 de 8 de Setembro de 2021.

segunda-feira, setembro 06, 2021

Não há segurança sem liberdade

 

No dia 31 de Agosto, completaram-se 40 anos após os acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 em Santo Antão.

Nesse dia memorável o embate entre a população e as autoridades foi violenta, resultando dos disparos feitos pela tropa presente na ilha um morto e dois feridos. Em disputa estava uma reforma agrária que iria colocar a terra “nas mãos de quem a trabalha” e permitir ao então regime de partido único consolidar o seu poder aliando-se a uma classe estratégica. Desde o início foi grande e abrangente a resistência de proprietários e camponeses às medidas preconizadas e não durou muito para que o regime, fiel à sua natureza, passasse à repressão pura e dura dos descontentes.

Na sequência do 31 de Agosto dezenas de pessoas foram presas e levadas para prisões militares em S.Vicente onde sofreram espancamentos, sevícias várias e tortura durante meses. Em Março de 1982, quase sete meses depois dos acontecimentos, 15 de entre eles foram julgados por um tribunal militar que os condenou a penas de 6 meses a 10 anos de prisão pelo crime de tentativa de alteração da Constituição por rebelião armada. A chamada contraofensiva política-ideológica não ficou por aí. Segundo o jornal governamental “Voz di Povo”, de 28 de Outubro de 1981, num curto espaço de tempo foram realizadas cento e cinquenta reuniões com mais de 6 mil participantes e os desordeiros foram julgados em tribunais populares com assistência massiva das populações. Imagine-se o impacto disso tudo sobre as pessoas. A curto prazo, nas eleições de 1985 o medo infligido terá contribuído para que fosse precisamente nos concelhos mais reprimidos de Santo Antão que o partido único conseguiu percentagem de votos (97%) superiores à média nacional de 94%. Poucos anos depois nas eleições livres de 13 de Janeiro de 1991 veio o acerto de contas e o já ex-partido único não conseguiu eleger um único deputado na ilha.

Em vários momentos e em todas as ilhas ao longo dos 15 anos da sua ditadura houve situações em que o regime teve a oportunidade de mostrar o seu verdadeiro rosto repressivo. Os mais notórios e traumáticos foram os casos de S.Vicente em 1997, da Brava em Setembro de 1979, da Praia em Novembro de 1980 e de S. Vicente em 1987. O 31 de Agosto em Santo Antão é o mais completo, porque até envolveu tribunal militar e penas prolongadas de prisão. O regime ainda hoje visto por alguns como tendo sido benevolente e até paternalista, na verdade escondia atrás da fachada um aparato jurídico institucional repressivo construído desde os primórdios da independência nacional onde constavam a lei do boato (nº 37/75) com penas de prisão de seis meses a um ano, a lei de prisão preventiva (nº 95/76) que permitia a prisão de qualquer pessoa por forças de segurança até cinco meses sem culpa formada, a obrigatoriedade de uma autorização de saída para viagem ao exterior, julgamento de civis em tribunais militares e até perda de nacionalidade por decisão do conselho de ministros. Como para provar que consubstanciavam o regime e eram parte integrante dele, essas leis repressivas só foram revogadas na sessão de Maio de 1990 da Assembleia Nacional Popular, três meses após a declaração da abertura política.

Como várias personalidades históricas já fizeram questão de notar: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. Lembrar, em 2021, os 40 anos do 31 de Agosto não é invocar um regime já morto para voltar a combatê-lo e quiçá tirar algum ganho político desse exercício. O que importa, de facto, é compreender o que acontece quando o respeito pela dignidade humana não é assumido como princípio básico de uma comunidade política e as liberdades são restringidas e submetidas a lógicas do poder. No dia 31 de Agosto e nos dias e meses que se seguiram as pessoas puderam presenciar e viver directamente com particular intensidade as consequências de não se ter liberdade de expressão, liberdade de reunião e manifestação e de estarem submetidos a um poder de um o Estado que não é limitado pelos direitos fundamentais dos cidadãos, em particular o direito à vida e à integridade física e moral e o direito à liberdade e segurança pessoal. Não estranha, pois, que, em parte como reacção ao que foi vivido, na Constituição de 1992 se tenha incluído um vasto catálogo de direitos dos cidadãos e estabelecido que os direitos fundamentais não podem ser restringidos ou limitados em sede da revisão constitucional por qualquer maioria. É para que a história não se repita.

Relembrar a data todos os anos serve fundamentalmente para reforçar a importância crucial de se garantir os direitos que então foram sonegados e de se manter sempre alerta para quaisquer derivas que visem enfraquecê-los sob que pretexto for. Podia ter sido a data escolhida para a celebração do dia nacional dos direitos humanos. O governo optou pelo 25 de Setembro, o dia da entrada em vigor da Constituição de 1992 que tem como seu princípio basilar o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos humanos. Também foi uma boa escolha. Importa é que se aprofunde uma cultura de defesa dos direitos fundamentais junto das pessoas, da sociedade e das instituições do Estado. E é claro que para isso é fundamental que a história dos tempos, quando os direitos civis e políticos dos cidadãos não eram respeitados, seja contada e também conhecidas as consequências do seu atropelo por órgãos do Estado.

A conquista histórica e civilizacional dos direitos humanos fundamentais não deve ser tomada como garantida, nem muito menos como irreversível. Derivas iliberais são hoje comuns tanto nas mais antigas como nas novas democracias. Em todas elas encontram-se personalidades, grupos e mesmo partidos políticos que têm uma visão muita limitada dos direitos fundamentais e do Estado de Direito e que procuram sempre uma oportunidade para virar a opinião pública contra o que chamam de excessos garantísticos na Constituição e nas leis. Não poucas vezes alimentam e depois capitalizam o sentimento de insegurança da população para apoiar acções musculadas das polícias. Em simultâneo, viram as pessoas contra o poder judicial e a independência dos tribunais que é a última instância de defesa dos direitos dos cidadãos e do primado da lei.

Também há aqui em Cabo Verde várias vozes que aproveitam qualquer crescendo de insegurança para lembrar outros tempos em que com milícia, tropa, polícia e tribunais populares se vivia “tranquilamente”. Nestes dias de algum aumento da criminalidade no país e em particular na Cidade da Praia já estão outra vez a fazer-se ouvir. Recordar o 31 de Agosto, expõe a mentira nessa narrativa que é possível viver com segurança sem a garantia dos direitos fundamentais e com um Estado que põe os cidadãos a serem julgados por “tribunais cangurus”, sejam eles tribunais populares ou militares. Para fazer face aos problemas de insegurança, impõe-se, sim, que tanto o sistema policial como o poder judicial ajam com competência e celeridade e no respeito estrito pela Constituição e pelas leis. É preciso trabalhar para isso e responsabilizar a quem de direito pelos resultados. Mas a grande verdade do 31 de Agosto é que não há segurança sem liberdade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1031 de 1 de Setembro de 2021.

segunda-feira, agosto 30, 2021

Combater a insegurança

 

Já no segundo semestre de 2021 em todo o mundo as in­certezas em relação aos próxi­mos meses não diminuíram sig­nificativamente como esperado.

Em vários países da Europa e também nos Estados Unidos, Brasil, África do Sul, Indonésia e outros países asiáticos a varian­te Delta do vírus Sars2-coV-19 veio outra vez baralhar as cartas alterando completamente as ex­pectativas da retoma económi­ca e do regresso à normalidade previstos para o fim do Verão. A grande esperança deposita­da nas vacinas não se realizou por completo. Diminuíram as hospitalizações e as mortes por Covid-19, mas ficou mais difícil alcançar a imunidade de grupo. Em vez dos 70% de vacinados, fala-se agora em 85% ou até em mais de 90%. Complicando ain­da as coisas, já há quem assume que poderá ser necessário uma terceira dose da vacina para manter o sistema imunitário realmente efectivo contra as novas variantes do coronavírus.

Em Cabo Verde, a oferta de centenas de milhares de doses de vacinas no âmbito do projec­to Covax e no quadro das rela­ções bilaterais com países ami­gos, aliada ao trabalho efectivo e meritório das equipas de vaci­nação em todas as ilhas, têm-se conseguido um nível elevado de vacinação. O governo apon­ta para finais do ano atingir os 85% da população elegível para as vacinas. Com a resolução n.º 82 de 23 de Agosto deram­-se passos importante para, na prática, tornar obrigatória a va­cinação em vários grupos pro­fissionais entre os quais, os pro­fessores, profissionais de saúde, empregados de hotelaria e res­taurantes e outros prestadores de serviço que fazem atendi­mento público. A confirmação semanas atrás da presença no país da variante Delta do coro­navírus deve reforçar o sentido da urgência em vacinar o maior número de pessoas e mover-se agressivamente para proteger os jovens e as crianças da in­fecção particularmente quando já se está a poucas semanas da abertura das aulas.

Vendo o impacto causado por surtos da variante Delta em países com percentagens eleva­das de população vacinada não se pode, de facto, ser compla­cente com a situação actual em que se forjam resistências à va­cinação e se dá guarida a com­portamentos de risco. Não é por acaso que a resolução refe­rida, no seu preambulo, chama a atenção para o facto de apesar de todos os esforços envida­dos, as taxas de contaminação mantêm-se num nível acima do desejado. Agora que se está a lidar com uma variante do vírus várias vezes mais contagiosa do que a variante Alfa que aumen­tou exponencialmente os casos de covid-19 em Abril/Maio há que transmitir a urgência em melhorar os níveis de vacinação e principalmente em invocar o sentido de dever de todos em se vacinarem para o seu bem, dos mais próximos e para o bem de toda a comunidade.

Como está a ficar cada vez mais claro que a imunidade de grupo provavelmente será um objectivo impossível de atingir é da maior importância que se dê ênfase a outras formas de minimização das possibilidades de contágio. Curiosamente nos cuidados a ter com o corona­vírus ainda se insiste nas reco­mendações anteriores de lim­peza das mãos e das superfícies. Não se põe o foco devido no uso das máscaras, na ventilação dos espaços e nas regras de funcio­namento em recintos fechados que o conhecimento científico mais recente da forma como o vírus se transmite de uma pes­soa para outra recomenda. E isso agora é da maior impor­tância porque, como já se sabe, as pessoas vacinadas mesmo com duas doses não estão livres de serem infectadas por no­vas variantes do coronavírus e, tratando-se da variante Delta, de serem contagiosas, ou seja, de poderem passar o vírus para outras pessoas mesmo que se­jam assintomáticas ou tenham sintomas leves da doença.

Manter a confiança é um ele­mento chave de combate contra a crise pandémica e a crise eco­nómico e social que a acompa­nha. Informações incompletas ou pouco rigorosas passadas às pessoas podem miná-la e na sequência comprometer o engajamento e o contributo de pessoas, empresas e sociedade para a eficácia das medidas de política dirigidas para mitigar os efeitos das crises e preparar as condições de retoma. A pro­messa das vacinas era que con­seguida a imunidade de grupo praticamente tudo voltaria ao normal. Os cientistas hoje di­zem que perante a capacidade demonstrada de mutação do co­ronavírus provavelmente não é possível pelo menos por algum tempo conseguir imunidade de grupo independentemente da percentagem da população que se vier a vacinar. Recomendam, porém, que mesmo sem esse resultado é importante conti­nuar a vacinar para diminuir as chances do vírus ter mutações circulando por gente não vaci­nada.

Imagine-se que não é fácil para as autoridades insistir na vacinação e até dar passos para a tornar obrigatória quando em simultâneo não podem prome­ter que tudo voltará ao normal mesmo se todos estiverem vaci­nados. Também não é fácil de­pois de mais de um ano e meio de pandemia dizer às pessoas que se deverá continuar a usar máscaras em certas situações e que o acesso a certos lugares e serviços e a participação em actividades colectivas poderão ainda ficar sujeitos a determi­nadas restrições. Navegar nes­te ambiente de incertezas, sem que se agravem ao nível do in­divíduo e da sociedade as con­sequências do distanciamento social, de perda real de rendi­mentos e de oportunidade de carreira ou de realização pes­soal e profissional, exige mais do que nunca que a postura de Estado seja honesta, sábia e pragmática e também compe­tente e segura no momento de execução.

O pior que pode acontecer é que com todas as incertezas quanto ao futuro e as dificulda­des de viver no momento pre­sente com menos rendimentos e sem muitas outras opções de vida se venha ainda acrescentar a insegurança e a violência no quotidiano das pessoas. Vê-se isso nalguns países onde existe uma cultura de violência asso­ciada à posse de armas de fogo. O estranho é algo similar tam­bém se verificar em Cabo Verde, mas sem que se assuma que há uma cultura de violência e que aparentemente o acesso a ar­mas de fogo em particular pelos jovens é fácil como parece fácil para alguns deles usá-las contra pessoas ao menor pretexto. A deterioração económico-social e até psicológica por causa da crise claramente que é propí­cia à erupção de situações que podem evoluir para a violência e aumentar o sentimento de in­segurança.

Impedir que se entre numa espiral de violência é funda­mental para que o Estado pos­sa manter a sua autoridade e a confiança das pessoas e aplicar a sua estratégia de saída da cri­se. Nesse sentido, não oferecem qualquer conforto reacções de autoridades que explicam a violência presente com erup­ções cíclicas sem oferecer mais explicação dos fenómenos so­ciais atrás do crime. Também mostra-se insensibilidade quanto à existência em algum grau de uma cultura que propi­cia a violência na resolução de problemas quando se recorre a apelos descontextualizados de “Homi faca, Mudjer matchadu, Mininus tudu ta djunta pedra” para retoricamente responder a algum desentendimento na esfera pública. O que é preciso é mais serenidade, mais soli­dariedade e mais coragem para identificar as causas e os meios da violência e efectivamente os neutralizar e ao mesmo tempo restaurar a esperança de outras saídas para a crise e para uma vida digna.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1030 de 25 de Agosto de 2021.