A odisseia do Governo pelo sector de energia e água teve um novo desenvolvimento com a publicação do decreto lei n. 36/2008 de 10 de Novembro. A partir de agora o Governo pode adjudicar a concessão de produção de água e energia por ajuste directo a entidades privadas, no quadro de parcerias público-privadas.
No preâmbulo do decreto-lei referido, o Governo justifica essa decisão: a urgência em abastecer as populações com água e energia não se compadece com a realização de concurso público para a escolha de parceiro estratégico. E, por ser urgente, a escolha é a a dedo, a ser feita pelo ministro de economia (artigo 3º nº 3). E para tornar a parceria apetecível, garante-se 30 anos de exclusividade (artigo 10º nº 4).
É este o desfecho encontrado para a saga da Electra: A constituição de monopólios privados na produção de água e energia sem qualquer responsabilidade no transporte e distribuição às populações. Um desfecho previsível, quando durante quase cinco anos se faz uma gestão desastrosa da relação com um parceiro estratégico de envergadura mundial como a EDP. Também previsível quando, ao convidar o parceiro a sair, ele fica liberto da promessa de conseguir financiamento no valor de 250 milhões de dólares para, em quinze anos, investir em energia e água. Ainda previsível quando se deixa a Electra atolada em dívida, porque fica sozinha com a dívida dos 70 milhões de dólares dos investimentos iniciais nos geradores e dessalinizadores da Praia, S.Vicente e Sal, e as tarifas são geridas politicamente, absorvendo a empresa o diferencial entre os seus custos e o preço de venda ao público.
O conflito ideológico que rodeou as privatizações em Cabo Verde sempre obscureceu as razões de fundo porque se devia abrir vastos sectores da economia à iniciativa e gestão privadas. Privatiza-se, para se libertar o Estado da necessidade, via orçamento, de cobrir as ineficiências e os custos excessivos das empresas públicas. Ao fazer isso controla-se o défice, melhora-se a qualidade das despesas e contem-se a inflação. Privatiza-se, para ganhar, em sectores chaves da economia, uma outra capacidade de financiamento quanto ao volume de capitais a mobilizar quanto á definição do timing, do momento certo de investimento. Privatiza-se, ainda, para que haja dinâmica e inovação na gestão e para uma menor submissão das decisões económicas a constrangimentos políticos partidários do Estado.
São todas essas razões que foram atiradas ao ar quando o Governo deixou argumentos de campanha eleitoral persistir no seu discurso e permear as suas decisões. O que o Sr. Primeiro-Ministro há dias chamou de cancros, a Electra e a TACV, são exemplos paradigmáticos do que foi permitido acontecer. A Electra foi o palco da luta pelo resgate da terra supostamente vendida. A TACV sofreu com incursões de gestão que procuraram provar que privatizar era desnecessário. O Estado tem pago em milhões de contos os resultados dessas folias. Os indivíduos e a sociedade perderam em confiança, oportunidades e qualidade de vida.
Privatizações implicam o reforço do papel regulador e fiscalizador do Estado. E o reforço da função central do Estado na defesa do interesse público, em termos, designadamente, de previsibilidade, qualidade e preço de produtos. Garantir um ambiente de concorrência é, portanto, fundamental. E tal ambiente cria-se com a regulação e a fiscalização necessárias ao desenvolvimento de mercados, à inovação de processos e produtos, à melhoria da qualidade e à prática de preços justos. A existência de monopólios públicos ou, pior ainda, de monopólios privados é o que se deve evitar.
Monopólios naturais existem, a rede eléctrica é um deles, e recaem normalmente sobre bens de domínio público. São normalmente objectos ou de gestão directa do Estado ou de concessão. No caso de concessão, é por tempo limitado e envolvem investimentos programados, condições de prestação de serviço público estabelecidas, tarifas determinadas em concertação com autoridades reguladoras e devolução dos bens ao Estado no fim da concessão.
Na privatização da Electra foi liberalizada a produção de energia e água e foi assinado, em 2002, um contrato de concessão da rede pública. Com a perda do parceiro estratégico e a, de facto, nacionalização da empresa, o Governo rapidamente mostrou-se incapaz de equacionar e resolver os problemas de energia. Nos discursos e entrevistas de membros do Governo sobre o sector era evidente o desnorte. Todos os dias surgiam novas soluções: produtores independentes, incineradora da Praia a produzir energia, energias renováveis, aproveitamento de gradiente térmico oceânico, energia das ondas do mar. Chegou-se mesmo a falar na energia nuclear.
A realidade é o que já se sabia à partida. Dificilmente o Estado consegue financiamentos vultuosos, e no tempo certo, para fazer os investimentos estratégicos que se impõem. Na falta de capacidade de investimento e pressionado por razões políticas, o Governo opta por entregar ilhas ou municípios inteiros a privados. Como parece acontecer com a Boavista. E, segundo o referido decreto-lei, como já está decidido para os municípios de Santa Catarina, São Lourenço dos Órgãos, São Miguel e São Salvador do Mundo.
Pergunta-se, quais são os ganhos para o País, para os consumidores, e para os operadores e investidores. No contexto de baixa de expectativas ou mesmo de resignação que vinha se verificando com a progressiva implosão da Electra qualquer coisa parece ser um ganho. A realidade é, porém, muito diferente. E os custos serão enormes, para todos.
Á vista desarmada pode-se notar que, primeiro, ao entregar mercados potencialmente ricos e em expansão como o da Boavista e do Sal a produtores privados e deixar a Electra a operar nas outras ilhas só se precipita ainda mais o seu colapso. O bife de lombo é entregue a um enquanto outros ficam com o osso para roer. Segundo, com os produtores privados não se vê qualquer alteração vantajosa no preço da água e energia. Cobram os preços da Electra. Preços que já incluem as ineficiências e a estrutura pesada de uma empresa que tem presença em todas as ilhas e em quase todos os pontos do território nacional. Ou seja, os consumidores nas ilhas não ganham directamente com tarifas mais baixas, nem se melhora, com menores custos de factores como energia e água, a competividade da ilha, na atracção de investidores. Mas os lucros dos produtores, esses, devem ser fabulosos. Não têm os custos da Electra.
Por último, ao decidir pela concessão da produção com exclusividade de 30 anos, segundo o decreto-lei 36/2008, o Governo deixou para o Estado e para os municípios a responsabilidade de construção, manutenção e expansão das redes públicas. Ficou com a parte mais custosa. Normalmente garante-se, por algum tempo, exclusivo de fornecimento ou especial facilidade de acesso em troca de gestão e desenvolvimento de um bem de domínio público. Dar exclusividade nestas circunstâncias, sem correspondente responsabilidade em assegurar todos os meios de prestação do serviço público, configura o estabelecimento do pior dos monopólios privados. Monopólios que, como todos os outros, vão estar em posição de extrair rendas, com prejuízos para os consumidores e para economia em geral.
O Governo parece estar a engajar-se num processo de “pick the winners” de “escolha dos ganhadores” que noutras paragens conduziram ao nepotismo, ao clientelismo e à corrupção. Foi descuidado com a gestão dos terrenos e, outra vez, para obter ganhos políticos instantâneos e contornar erros graves de governação, trilha caminhos duvidosos. Até se envereda por oferecer subsídios, sem concurso público, a empresas de transporte marítimo que só prevêem operar em Janeiro de 2010 (Resolução nº38/2008 de 17 de Novembro).
A percepção da fragilidade da estrutura produtiva e da dependência excessiva de fluxos exteriores, mais evidentes hoje no contexto de crise generalizada, devia tornar o Governo e outros sujeitos políticos menos ideológicos e mais pragmáticos. Devia constituir um lembrete permanente aos governantes, mas também á toda a classe política, que não se pode dirigir o País com preocupações eleitorais permanentes. E devia afastar qualquer tentação de, à partida e sem transparência, escolher ganhadores no processo de crescimento da economia nacional.
Publicado no jornal ASemana de 28 de Novembro de 2008