O Dia Nacional da Rádio foi mais uma vez comemorado pela Rádio de Cabo Verde no dia 9 de Dezembro, desta feita com uma conferência sobre “Desafios do jornalismo na era da pós-verdade: Rádio Pública e o combate às Fake News”. Coube ao Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, fazer a abertura do acto e desenvolver o tema “Fake News, uma ameaça à Democracia?” O insólito neste e noutros actos similares nos anos anteriores é o facto de comemorarem nesta data um acontecimento, a Tomada da Rádio Barlavento pelas hostes do PAIGC em Dezembro de 1974, que para todos os efeitos simboliza o oposto de tudo o que, em democracia, deve reger a comunicação social e em particular a rádio pública. A data significou o fim do pequeno período do pluralismo que desde o 25 de Abril de 1974 até ao momento prevalecera em Cabo Verde, o fim das rádios privadas e o primeiro acto do que viria a ser o regime de partido único que durante quinze anos iria suprimir as liberdades de expressão, de informação e de imprensa no país.
Desde 1992 que a Constituição estabelece que aos órgãos públicos da rádio e televisão se deve garantir a expressão e o confronto das correntes de opinião, a independência dos jornalistas perante o poder político e poder económico e a isenção dos mesmos órgãos face ao Estado. Também dispõe que jornais podem ser criados sem necessidade de autorização e que privados podem operar livremente na rádio e na televisão mediante licença conseguida em concursos públicos. Face a tais comandos constitucionais não se descortina como a celebração simbólica da tomada da Rádio Barlavento reforça uma cultura da rádio pública alicerçada nos princípios e valores neles subjacentes. A insistência na data parece configurar o que hodiernamente se vem chamando de pós-verdade em que emoções e preferências pessoais de grupos sobrepõem aos factos e acabam por constituir uma realidade alternativa completamente impermeável a toda e qualquer demonstração em contrário. Ironicamente, pós-verdade é o tema escolhido para discussão nas comemorações deste ano.
Na sua intervenção, o Sr. Presidente da República deixa enteder que o fenómeno da pós-verdade não tem grande alcance ou impacto em Cabo Verde. Tudo indica que ele está equivocado. A comemoração da tomada da Rádio Barlavento depois de mais de 25 anos de democracia, assim como a celebração de personalidades, instituições e datas reminiscentes do regime anterior só continuam possíveis porque realmente se vive no país um ambiente de pós-verdade. As emoções, as lealdades e aderência à historiografia do antigo partido único desafiam, com a ajuda do Estado e da ideologia ainda presente nos órgãos públicos da comunicação social e na educação, quaisquer factos que põem em causa a narrativa dos auto-proclamados libertadores da pátria, de facto, supressores de liberdade nos quinze anos que se seguiram à independência. Entre muitos exemplos que se podia trazer à colação, só assim se explica que o Presidente da República eleito democraticamente tenha presidido em Novembro deste ano ao simpósio de homenagem ao presidente que nunca foi eleito por voto popular. Ou que a Uni-CV, ontem, tenha celebrado o Dia da Literatura Inglesa com uma palestra sobre o legado literário de Amílcar Cabral e dos seus contemporâneos.
O controlo do espaço público, do espaço educativo e do espaço comunicacional só é possível porque em boa medida impera a pós-verdade. Não é por acaso que, não obstante a grande produção de livros e outras publicações, muito raras são as obras que se debruçam sobre o que aconteceu no país entre 1975 e 1990. Escreve-se sobre o antes da independência e a transição de 1990 mas deixa-se cair um pano escuro sobre os 15 anos como se constituíssem um tabu. Dizem eles que esses foram os anos de construção do estado, do regime político possível e da viabilização do país independente. O facto que só depois do 13 de Janeiro é que as instituições modernas e a cidadania plena se tornaram uma realidade, que a promessa de liberdade e democracia foi cumprida e que ainda não acabou a dependência externa não parece afectar essa narrativa. Na conferência o presidente da república interroga-se se também Cabo Verde está na era da pós-verdade. A realidade alternativa que tudo subordina à narrativa da luta de libertação faz crer que a pós-verdade não é um fenómeno novo e mínimo em Cabo Verde. Pelo contrário, o país conhece-o de há muito e apesar dos vários governos democráticos e de duas alternâncias já verificadas, não consegue libertar-se dela.
Nota-se a sua persistência na incapacidade do país em lidar com o sofrimento, a humilhação e a indignidade infligidas a várias pessoas em todas as ilhas durante os tais anos que se procura manter na obscuridade. Quando vozes na sociedade e também este jornal chamaram a atenção em 2016 para o trigésimo quinto aniversário dos acontecimentos de 31 de Agosto, que tanto penalizaram indivíduos e famílias em S. Antão, dos órgãos representativos da república, o Presidente e o Parlamento, não se ouviu nada. Da mesma forma, neste ano do quadragésimo aniversário das prisões e torturas em S. Vicente em 1977 também não se ouviu um pedido de desculpas do Estado de Cabo Verde e muito menos se falou em qualquer forma de reparação para os que sofreram prisão, sevícias e perda de vida na sequência de brutalidades de agentes da autoridade. Chega-se ao ponto de comemorar o dia dos direitos humanos sem que se faça referência à luta aqui travada tanto durante o regime de Salazar/Caetano como no regime do partido único para que se tivesse um Estado subordinado a uma Constituição que consagrasse a liberdade e a dignidade humana como os seus princípios maiores e, por isso, limitado no poder de coerção que podia exercer sobre qualquer pessoa. O catálogo extensivo desses direitos na Constituição de 92 resulta dessa luta, mas disso ninguém fala para não perturbar a narrativa da pós-verdade.
Para a defesa efectiva dos direitos humanos tanto no presente como no futuro é da maior importância saber o que significou no passado viver sem esses direitos e estar completamente à mercê de um Estado opressor. O mesmo conhecimento do passado que deve servir de suporte quando hoje se trabalha para ultrapassar os obstáculos na consolidação das instituições, se procura pôr de pé uma comunicação social livre e se esforça por edificar uma economia não dependente e dinamizada pela iniciativa individual e empresarial. Para que a nova atitude prevaleça, porém, é preciso que os órgãos de soberania se sintam mais obrigados aos princípios e valores constitucionais e menos tentados pelas emoções e lealdades suscitadas pela pós-verdade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 837 de 13 de Dezembro de 2017.