Sempre que a questão da TACV vem à baila o governo é peremptório a dizer que “a CVA continuará a existir e a ser a companhia de bandeira”. Para qualquer observador não deixa de ser temerário fazer uma afirmação dessas nos tempos actuais da pandemia da Covid-19, de forte recessão mundial e de crise profunda no sector da aviação comercial.
Se para países altamente desenvolvidos como a Alemanha a decisão de financiar a Lufthansa para sobreviver os momentos difíceis que os especialistas do sector dizem que vão prolongar-se até pelo menos 2024, para outros mais modestos como a Islândia essa não é uma opção que possam considerar.
No caso de Cabo Verde com as fragilidades estruturais da sua economia e a dívida pública a aproximar-se dos 150% do PIB uma decisão de tal envergadura pelas suas implicações financeiras deveria merecer a maior ponderação. Não é porém o que recebe. Qualquer debate sobre o estado actual e o futuro da TACV desperta paixões avassaladoras e é motivo de troca de acusações mútuas entre as forças políticas. Em geral, soluções não são apresentadas e dos embates só se depreende que há acordo genérico e vontade em preservar a empresa aparentemente mesmo à custa do endividamento.
O último aval do Tesouro para a empresa se financiar foi concedido com a justificação que se impunha pagar os salários em atraso aos trabalhadores. Avales anteriores de várias centenas de milhares de contos procuraram viabilizar operações da companhia em vários momentos quando procurava desenvolver um hub na ilha do Sal que iria ser instrumental na movimentação de passageiros entre Europa e América do Sul e entre Africa e América do Norte. Os mais recentes avales porém têm suportado financiamentos de custos fixos existentes não obstante a companhia aérea ter deixado de voar desde 19 Março com o fecho das fronteiras devido à pandemia da Covid-19.
Sem estar a gerar receitas e com o próprio plano de negócios inviabilizado com a crise no sector é evidente que os avales do Estado tornaram-se operações de alto risco com implicações no défice orçamental e dívida pública. A empresa dificilmente hoje ou no futuro próximo terá condições de cumprir as suas obrigações junto dos credores deixando o Estado completamente exposto. Significativamente, quem parece que não ficou exposto no negócio é o grupo Icelandair. No seu relatório de contas deixa claro que a sua exposição ao associado TACV/CVA é zero e que nas transacções com a empresa as receitas geradas pela Cabo Verde Airlines ascenderam a 37,2 milhões de dólares e as despesas a 1,1 milhões de dólares.
Privatizações de empresas estatais acontecem por várias razões. São essenciais, por exemplo, quando se faz a transição de uma economia estatizada para uma economia do mercado como aconteceu nos anos noventa do século passado em Cabo Verde e nos vários países que deixaram o bloco soviético para se juntarem à economia mundial. Privatiza-se também para se liberalizar ainda mais a economia e potenciar a iniciativa privada como aconteceu na América e na Europa na sequência das políticas de Reagan e de Margaret Thatcher. Noutras situações, opta-se por privatizar empresas para diminuir o risco fiscal e conseguir receitas extraordinárias. No caso da TACV, era óbvio que devia ser privatizado por ser um risco sério para as finanças do Estado. Nos fins de 2015 e início de 2016 viu-se que também se tinha tornado num risco político para qualquer governo particularmente em tempo eleitoral. Desencadeou-se o processo sob a batuta do Banco Mundial que para o efeito fez questão de reter a ajuda orçamental (40 milhões de dólares) até que o processo ficasse completo. O grande problema é que mesmo com a privatização os riscos não foram eliminados e com a Covid-19 estão a ganhar proporções assustadoras.
A opção feita de privatização centrou-se na construção de hub na ilha do Sal que iria movimentar passageiros entre os vários continentes. Para além do impacto geral na economia que se esperava dessas operações ainda se queria incentivar o turismo no país através da promoção de Cabo Verde como um stopover na travessia da Atlântico. Para isso, ter como parceiro estratégico uma das empresas que constituem o grupo Icelandair mostrava-se promissor considerando a experiência e o sucesso do grupo em construir um hub no Atlântico Norte com stopover na Islândia. Seria uma jogada de risco mas que permitiria potenciar vários activos da TACV em algo que, se bem-sucedido, poderia constituir-se num grande ganho para o país.
Pelo relatório de contas do quarto trimestre de 2019 do grupo Icelandair ficou claro porém que sem um forte financiamento das operações do hub, o negócio correria sérios riscos. Aparentemente, a parceria estratégica não incluía uma componente financeira como normalmente se vê nos casos de privatização de companhias aéreas. Estranhamente, parece que o parceiro estaria a contar com o Estado para comparticipar do esforço financeiro quando, ao mesmo tempo, o governo com a venda das restantes acções até Dezembro de 2019, queria cumprir com o Banco Mundial e ver-se livre do risco associado. A meio do impasse criado, veio a pandemia e tudo parou. Não se realizaram mais voos mas continuaram os custos com os trabalhadores e supõe-se também com o leasing dos três aviões que, entretanto, foram estacionados na Flórida.
A questão que se coloca é se o plano de negócios do hub “já não existe, desapareceu”, como disse o Vice-Primeiro Ministro (VPM), por que é que os accionistas até agora não chegaram a acordo em como agir para conter e controlar os prejuízos e tomar uma decisão em relação ao futuro. Está-se a pagar o leasing dos aviões nos mesmos termos de antes? Será possível rentabilizar a empresa regressando ao plano de negócios anterior dos voos étnicos e de conexão com Lisboa, como foi sugerido pelo VPM, quando já se descontinuaram as operações domésticas e a regional? Vai-se continuar com um accionista que mais parece ser fornecedor de serviços de leasing de aviões do que o parceiro estratégico que aposta no negócio de criação de um hub no Atlântico? Vai-se deixar protelar uma situação que tudo leva a crer só irá piorar no estado actual da pandemia com custos impressionantes para o país porque mais uma vez a TACV está-se a revelar um risco político e os accionistas sabem disso? Há que pôr fim ao impasse que se vem arrastando ao longo de largos meses desde Março. Como bem disse alguém “Quando estiver no fundo do poço, a primeira coisa a fazer para sair dele é parar de cavar”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 990 de 18 de Novembro de 2020.