Com o início da campanha para as eleições presidenciais a atenção do eleitorado foca-se cada vez mais na questão dos poderes do presidente da república no sistema político cabo-verdiano.
Os candidatos em debates, entrevistas e encontros com a população têm deixado claro a forma como vêem os poderes do presidente e como pretendem exercê-los se forem eleitos. Os pontos de divergência normalmente são à volta da relação, mais ou menos próxima com o governo, da influência mais ou menos aberta e assertiva sobre as políticas do governo e da abertura e independência em nomeações partilhadas do governo e do PR para cargos como Procurador Geral da República, Presidente do Tribunal de Contas, embaixadores e Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Nos extremos encontram-se posições de candidatos que se colocam em franca ruptura com o que a Constituição estabelece como sendo as competências do presidente da república e até clamam por mudanças constitucionais de fundo.
Perante o quadro algo confuso assim exposto, nem sempre é fácil para o eleitor comum discernir se se trata de um novo escrutínio para eleger um arbítrio e moderador do sistema político ou se se trata de uma espécie de repetição das legislativas para se obter uma “maioria presidencial” susceptível de ser instrumentalizada, dependente da sua origem no quadrante político, para reforçar ou para se opor ao governo. A condicionar o debate está uma insuficiente discussão sobre os poderes presidenciais que até agora não se fez porque ficou inquinada logo nos primórdios da adopção da Constituição de 1992. Ao invés de se densificar o papel que o presidente suprapartidário eleito por sufrágio universal tem na nova Constituição de pendor parlamentar, optou-se por manter vivo o conflito com o sistema semipresidencial, na época de preferência de uma minoria. Daí que durante a vigência da II República haja sempre quem diga que o PR não tem poderes, que eleições presidenciais são inúteis e que o titular é um simples corta-fitas. Contraditoriamente são praticamente os mesmos que, quando os ventos são de feição, querem que o PR ajude o governo e, quando são contrários, que se transforme numa oposição activa. Nessas condições é evidente que o debate não evolui.
No sistema de pendor parlamentar existente no país, o PR não governa, o governo só é responsável politicamente perante a assembleia nacional e o poder de demissão do governo e da dissolução do parlamento pelo presidente da república não é livre, dependendo o seu exercício de condicionalismos muito especiais estabelecidos na Constituição. O parecer favorável do Conselho da República só caiu na revisão da Constituição de 2010. A estabilidade governativa que Cabo Verde tem gozado, 8 governos nos trinta anos da II República, deve-se muito a este modelo constitucional. Vê-se que é assim comparando com Portugal que nos seus primeiros seis anos de democracia, quando o pendor presidencialista do sistema político era mais forte, teve oito governos, três dos quais de iniciativa presidencial. São Tomé e Príncipe, nos últimos trinta anos, já vai em 17 governos, vários deles demitidos pelo presidente da república. Na Guiné-Bissau a situação é ainda mais complicada com bloqueios devidos a conflitos entre os PRs e os primeiros-ministros. O presidencialismo que para alguns parece a melhor solução não dá garantia de estabilidade como se pode ver no Brasil com os casos de impeachment e de corrupção e tem o perigo de evoluir para formas autoritárias do exercício do poder do tipo ensaiadas por Donald Trump e por Jair Bolsonaro.
Essas experiências deviam ser suficientes para que a questão dos poderes do presidente da república fosse já pacífica em Cabo Verde. A verdade é que não é e vê-se no espectáculo dado por candidatos com programas eleitorais que não se ajustam ao quadro das competências definidas na Constituição. Há quem queira ser autoritário e há quem não queira ser corta-fitas como se fossem opções reais no quadro existente. Um elemento perverso que resulta de se insistir em diminuir e subestimar os poderes do PR é a pressão que em certas circunstâncias os partidos políticos, grupos de interesses e pessoas próximas põem sobre o titular e compelem-no a agir sob pena de ficar a ser visto como inefectivo ou peça decorativa. Em Cabo Verde, já algumas vezes e com diferentes presidentes da república viveram-se momentos em que pressões para um maior protagonismo do presidente fora do quadro da lealdade institucional esperado e quase a ultrapassar as competências próprias levaram a situações complicadas. Talvez não as mais graves ou mais visíveis como a demissão do governo, dissolução do parlamento e eleições antecipadas, mas nem por isso menos preocupantes.
Valeu algumas vezes a capacidade dos outros órgãos de soberania de se acomodar às incursões nas suas competências sem mágoas públicas. Dentro de certos limites, algo similar acontece num momento ou noutro em qualquer sistema político com separação e interdependência de poderes. Normalizar tais situações, porém, pode abrir caminho para a instabilidade que se tem visto em países com governos que não completam mandatos e têm eleições antecipadas demasiado frequentes, com todo os custos que isso acarreta. Velar pelo normal funcionamento das instituições, enquanto arbitro e moderador do sistema, é a tarefa principal de quem não tem funções de governação e que só é responsável perante a nação que o elegeu. É uma função essencial que exige muito de quem a exerce designadamente em termos de maturidade, percurso, dedicação à causa pública e humildade para se assegurar que o sistema funciona no seu todo sempre no quadro da legalidade e respeitando o sistema de princípios e valores que lhe serve de referência principal.
Por outro lado, quem a exerce não deve cair na tentação de substituir o governo no desenvolvimento e implementação de políticas, porque pressionado por pessoas, grupos ou situações específicas. Deve, sim, tudo fazer para que os que foram eleitos para governar e para ser oposição cumpram os respectivos papéis e as virtualidades do sistema em encontrar soluções para os problemas sejam sempre potenciadas. O exercício de competências partilhadas em nomeações e exonerações de titulares de certos órgãos constitucionais essenciais para o normal funcionamento do sistema como o PGR, CEMFA, TC deve ser feito com firmeza e total autonomia. Da mesma forma, também devem ser exercidos os poderes de fiscalização como o poder de veto político a diplomas legislativos vindos do governo e do parlamento e os pedidos de fiscalização preventiva da constitucionalidade para que alguma coerência seja mantida e percepcionada pelos cidadãos e pela sociedade, tanto em matéria dos mandatos recebidos como de aplicação de comandos constitucionais, em particular em matéria de direitos.
A função presidencial não devia ser procurada por quem apresenta tiques de megalómano ou narcisista, nem quem tem vocação de ilusionista e mostra pouca adesão à verdade e aos factos. Compreende-se a atractividade do cargo para essas figuras. Cabe naturalmente ao cidadão ajuizar das propostas feitas e escolher. Não se pode é ignorar que acontecimentos recentes têm alertado contra os saltos para fora da realidade e reafirmado a necessidade de cooperação e solidariedade para se ultrapassar as extraordinárias situações vividas actualmente por toda a parte. Só garantindo que o sistema funcione e que resultados chegarão a todos é que se poderá impedir que perante o caos emergente – criado com todos a procurar tirar a sua quota parte, pouco interessando quem fica sem nada – alguém se proponha como ditador e acabe por ser eleito, deixando para trás não só a liberdade, mas também a possibilidade de prosperidade. Aconteceu em outros países e ninguém pode garantir que algo similar ou pior não venha acontecer aqui.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1036 de 6 de Outubro de 2021.