O novo Presidente da República, doutor José Maria Neves, no seu discurso ontem na cerimónia de investidura disse a dado passo que Cabo Verde “vive uma situação de crise a qual foi revelada e agravada pela pandemia cujos efeitos têm sido extensos e profundo”.
Tais efeitos vêem-se, segundo ele, nos níveis da dívida pública e do défice público nas altas taxas de desemprego, nas manchas significativas de pobreza e na acentuada desigualdade e exclusão social. É um facto que a situação do país piorou com a covid-19 como, aliás, todos os países do mundo, mas já não é tão claro que a crise em que se encontra tenha sido revelada em 2020 pela pandemia.
Provavelmente já vem de longe quando, na sequência de grandes investimentos nos princípios da década, se seguiram anos de quase estagnação económica com médias de crescimento anual de 1% do PIB. Mostrou a cabeça com clareza quando a seca de 2017-2019 revelou as vulnerabilidades do país e a precariedade de vida das populações, particularmente no mundo rural, não obstante os programas multimilionários de luta contra a pobreza implementados ao longo dos anos, designadamente o do Banco Mundial, de 117 milhões de dólares, iniciado em 2005. A conjuntura económica externa favorável dos anos antes da pandemia terá ajudado a camuflar a situação com crescimento a aproximar-se à volta dos 5%, mas os problemas de fundo da dívida pública elevada, da falta de diversificação da economia, do desemprego e da crescente desigualdade social já lá estavam. O que leva a pensar que a crise em que se encontra o país tem raízes mais profundas e que não deriva simplesmente de opções políticas recentes do governo.
Saber identificar essas causas mais profundas que mantêm Cabo Verde vulnerável e as suas populações em situação de precariedade profunda após 46 anos de independência é a tarefa urgente que se impõe neste momento. Já se conhece parte das consequências da covid-19 mas não se sabe ainda até onde pode ir considerando que a covid-19 ainda não está sob controlo e não se consegue prever o quanto vai afectar a economia global nos próximos tempos. Concomitantemente, está-se perante outros desafios como o da transição energética e o das alterações climáticas cujas consequências de omissão ou de uma má abordagem ninguém realmente conhece e que podem ser simplesmente catastróficos. Para se poder navegar no meio de tantas incertezas, o mínimo que se deve fazer é procurar ter uma visão realista sobre o país e mobilizar vontades para ultrapassar os obstáculos que até agora impediram o país de pôr o seu desenvolvimento em bases mais seguras, mais sustentáveis e mais esperançosas para toda a gente.
Do presidente da república, que é o garante da unidade nacional, espera-se que tenha um papel central na promoção do diálogo necessário para se conhecer os constrangimentos que impedem o país de avançar num passo rápido, mesmo nas melhores conjunturas, e chegar aos acordos para a realização das reformas que o país precisa. A coincidência do início de um novo mandato presidencial com a crise que, pelo seu impacto expõe as fragilidades do país e as vulnerabilidades das populações de uma forma nunca antes vista, pode constituir-se numa oportunidade única para se proceder à tal reflexão. Na sua qualidade de árbitro e moderador do sistema político e exercendo a sua magistratura de influência, o novo presidente da república poderia desempenhar um papel fundamental em todo esse processo e fazer o debate fluir, colocando o foco no interesse comum da nação e minimizando diferenças ideológicas. O país encontra-se numa encruzilhada e fará história quem contribuir para que encontre a melhor saída.
O facto de depois 46 anos de independência ainda não ter a estrutura produtiva diversificada que seria de desejar nem a estrutural empresarial necessária para criar empregos de qualidade e exportar bens e serviços é uma falha que devia inquietar toda a gente. Piora a situação é que, com as insuficiências existentes, não se estabeleceu no país uma cultura de trabalho voltada para a criação de riqueza que pusesse ênfase na produtividade e na qualidade do serviço prestado. Pelo contrário, ao mobilizar a ajuda externa para as colmatar, em particular no que respeita a assegurar algum rendimento para as pessoas, desenvolveu-se um sistema de dependência que acabou por se sobrepor a tudo o resto no país.
O Estado agigantou-se e centralizou-se cada vez mais, criando uma classe média dele dependente para empregos, favores e acessos privilegiados. Também, como sempre acontece quando se estabelecem sistemas de natureza rentista, a desigualdade aumenta e fica difícil quebrar círculos viciosos de pobreza. Finalmente, o exercício do poder político a todos os níveis acaba misturado com a gestão da dependência alimentando o eleitoralismo na governação e práticas ilegais como compra de votos nos períodos eleitorais. Não admira que, privilegiando sistemas distributivos em detrimento de estruturas produtivas, se note a diminuição do capital social com deterioração do civismo e do associativismo devida à corrida desenfreada para aceder aos recursos existentes. Em tal ambiente, o nível de criminalidade, particularmente em certas zonas mais carenciadas do país, tende a crescer.
Também não é alheio a isso que Cabo Verde de hoje conviva com questões fracturantes que já se mostram preocupantes e prejudiciais. O PR ontem no discurso de tomada de posse teve de se referir ao novo pacto de poder entre as ilhas, talvez para atenuar a tendência actual de se ver em Cabo Verde nove países. Para o que foi uma nação una, acentua-se a ideia de que o país se divide em “badios” e “sampadjudos” e narrativas de ressentimento fazem escola em certos círculos. Uma outra questão fracturante é a da língua crioula, tida como não oficial mesmo quando é discurso de investidura do PR, que é posta em contencioso identitário com o português com evidente efeito negativo na qualidade da sua aprendizagem no sistema de ensino. Sair com sucesso da crise deve significar deixar para trás questões que esgotam a energia da pessoas e da sociedade em querelas, diminuem a cooperação entre elas e enfraquecem o sentido de um desígnio comum.
Yuval Harari, o historiador e filósofo autor do livro Sapiens, numa entrevista recente ao jornal New York Times chamou a atenção para as grandes narrativas, as estórias que fazem parte do imaginário colectivo e que a crença nelas permite que as pessoas cooperem à escala global da sociedade. Segundo ele. “a estória em que você acredita é a que molda a sociedade que você cria”. Naturalmente que atitudes diferentes resultam se nessas estórias se é sujeito e protagonista com autonomia ou se se é passivo e objecto da acção de outrem. Cabo Verde construiu-se como uma nação ao longo de séculos em condições adversas dentro de um império mas a narrativa que prevalece é que a sua nacionalidade foi ganha e decidida nas matas da Guiné-Bissau a 600 kilómetros de distância.
É evidente que nada de bom pode daí resultar. Com essa narrativa, a população, vista com paternalismo pelos poderes constituídos, é esvaziada da energia e autonomia com impacto directo na disponibilidade para cooperar ou contribuir na realização dos desígnios nacionais. O círculo vicioso da dependência reproduz as vulnerabilidades e a precariedade de tudo o que se construiu acaba por se revelar na primeira crise grave que surgir. Inverter a situação implicará reformas só possíveis com uma nova atitude moldada por uma narrativa que resgata o protagonismo, a autonomia e audácia perdidas em ideologias desajustadas e jogadas renovadas de poder paternalístico.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1041 de 10 de Novembro de 2021.