Como fazer para desenvolver Cabo Verde é a grande questão sempre colocada por gerações e gerações de cabo-verdianos ao longo dos séculos. Durante todo esse tempo, recomendações, sugestões e palpites sucederam-se na busca de respostas.
Grandes planos, projectos e programas foram implementados por sucessivos governos na perspectiva de ultrapassar os obstáculos existentes e quebrar o círculo vicioso da miséria reinante no arquipélago. Claramente que, não obstante os progressos feitos, se ficou muito aquém da tarefa. Os dados de hoje da pobreza e da extrema pobreza, de vulnerabilidade e precariedade social, de fragilidade e não diversificação da estrutura produtiva e ainda quanto ao montante da dívida pública são elucidativos a esse respeito. Tempo talvez para se fazer outras abordagens e rever ideias fixas sobre Cabo Verde, cuja realidade de país arquipélago, relativamente remoto, pobre em recursos naturais e escassa população nem sempre se tem em devida conta.
A urgência na procura de vias alternativas de desenvolvimento aumentou nos últimos tempos em que o mundo ganhou maior complexidade e tornou-se mais imprevisível, primeiro com a pandemia do SARS-CoV-2 e agora com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Já de há algum tempo, pelo menos desde a crise financeira de 2008, que a globalização da economia mundial, com as oportunidades múltiplas que abriu nas três décadas passadas, designadamente para países em desenvolvimento, vinha perdendo impulso. É provável que o processo esteja a acelerar na actual conjuntura internacional e a abrir caminho para rearranjos nas relações económicas internacionais que à partida não se sabe se serão mais ou menos favoráveis para os pequenos países como Cabo Verde. Na nova realidade que se desenha não se pode, sob pena de se ficar ainda mais para trás, deixar de proceder a reflexões mais aprofundadas sobre os constrangimentos que até agora têm limitado o desenvolvimento e mantidas as vulnerabilidades do país.
Não se deve ficar tentado repetir o que é essencialmente o mais do mesmo apesar de aparentar ser diferente. Não augura que se esteja realmente a mudar quando, por exemplo, ainda se conjectura o uso de terrenos noutros países para cultivo numa perspectiva de segurança alimentar como aconteceu no passado com os terrenos do Paraguai, da Guiné-Conacri e de Angola. Ou quando ainda não se deixou de acumular dívidas com a TACV – mas continua-se a falar em reactivar o hub do Sal como se nada tivesse acontecido na aviação comercial mundial – ou de se pôr a hipótese do regresso ao mercado doméstico, não obstante se ter convidado um operador para fazer serviço público na ligação entre as ilhas. Ou ainda quando se insiste na ideia “estafada” de ser porta de entrada de outros países para a África Ocidental mesmo com o facto presente de que Cabo Verde não consegue nas importações e exportações com a região ir além dos 5% do seu comércio exterior.
Também devia-se relegar para um outro plano essa tendência de mimetismo ou de replicação das mesmas iniciativas em todos os pontos do país. Apresentadas como criativas pelos seus patrocinadores, na prática fazem esquecer que Cabo Verde, apesar de ter nove ilhas habitadas, é um único país. Por outro lado, desincentiva-se a exploração da diversidade que potencia a participação das ilhas na criação da riqueza nacional. Nessa onda de suposta criatividade que do Carnaval passou para pólos universitários e até já se quer criar zonas económicas especiais em todos os pontos do país. É o modismo a substituir as razões de fundo por que são criadas zonas económicas especiais.
ZEEs em vários países surgiram como entidades que entre outras coisas facilitam a atracção do investimento directo estrangeiro, o aumento das exportações, a transferência de tecnologias e processos de produção e a criação de emprego massivo. Beneficiam de ambiente de negócios propício que pode incluir incentivos fiscais, acesso a propriedade, novo regime laboral e facilidades administrativas que não existem em outros pontos do país. O sucesso das zonas especiais como se pode constatar em países como as Maurícias, a China e Bangladesh é maior quando a partir do que é o investimento para exportação de bens e serviços se consegue conectar com empresas nacionais que fornecendo bens intermediários ou serviços diversos directa ou indirectamente beneficiam do acesso a mercados externos em expansão, arrastando no processo vários sectores da economia. É evidente que não podem ser ao mesmo tempo excepção e regra. Nem na China depois de 40 anos se alargou o conceito para todo o país. Como campos de experimentação de políticas viradas para maior eficiência, competitividade e crescimento e criação de emprego precisam ser circunscritas antes de algumas medidas serem aplicadas de forma generalizada.
É talvez a falta de foco nos resultados que justifica o mimetismo e a falta de criatividade nas propostas e iniciativas apresentadas em nome do desenvolvimento e da luta contra a pobreza. É nesse sentido que, por exemplo, a comunicação na esfera pública é pontuada por expressões como empoderamento, empreendedorismo e resiliência. Gastos em meios, formações e actos de socialização de estudos e documentos são desfilados ininterruptamente. Mas fica-se em geral por saber que mais produtos foram vendidos, que mais mercados foram criados ou alargados, que empregos permanentes passaram a existir e que impacto nos rendimentos e na qualidade de vida das pessoas se conseguiu de todo o investimento feito. Certamente que efeitos positivos existem, mas não se põe suficiente ênfase nisso, como se os ganhos maiores estão no acto de anunciar, patrocinar, financiar e inaugurar.
A persistente precariedade e vulnerabilidade das populações depois de vários programas de milhões de dólares gastos na luta contra a pobreza mostra o limite de uma abordagem de desenvolvimento que tendencialmente quer fazer crer que toda a gente é empreendedora e é capaz de criar o seu próprio emprego. Pode até prestar-se como uma espécie de paliativo para os problemas do momento, mas não deve substituir o esforço para se conseguir crescimento económico que traz prosperidade e suporta com sustentabilidade os mecanismos da redistribuição dirigidos para os vulneráveis e para os mais pobres. As prioridades devem ser outras na sua definição e não devem orientar-se por objectivos e metas que, findos os projectos e perante qualquer choque económico ou choque externo, imediatamente mostram que não são sustentáveis.
Os desafios e incertezas que se colocam neste momento são de uma gravidade sem paralelo em que a hipótese de guerra e de disrupção na logística de alimentos e de combustíveis não está excluída. Não é tempo para simplesmente se ir ao sabor do que ao país é oferecido. Há que definir prioridades, que focar nos resultados e construir resiliência sem comprometer a eficiência na utilização dos recursos disponíveis. Mais do que nunca o interesse colectivo deve sobrepor-se aos ganhos políticos individuais.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1059 de 16 de Março de 2022.