O governo pelo decreto-lei nº 21/2022, publicado no Boletim Oficial de 10 de Junho, criou uma nova entidade reguladora independente, a Autoridade de Concorrência, com a missão de promoção e defesa da concorrência nos vários sectores económicos tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a afectação dos recursos e os interesses dos consumidores.
A exemplo do que vem acontecendo em vários países que recentemente e em particular nos anos noventa seguiram pelo caminho da liberalização da economia, supõe-se que com este e outros actos quer-se dar um outro impulso ao processo de transição de um Estado intervencionista para um Estado regulador da economia. Independentemente da pertinência e da oportunidade da criação neste momento da nova autoridade reguladora não deixa, porém, de ser curioso que a indicação para a nomeação dos membros do conselho de administração tenha sido atribuída ao ministro das Finanças.
O normal seria que fosse o ministro que normalmente reúne os sectores do comércio, da indústria e da energia como acontece noutras paragens. Aliás, o próprio diploma refere-se a atribuições antes exercidas por serviços desse ministério em matéria de concorrência que são passadas à nova autoridade reguladora. Também no caso recente da nomeação dos membros do conselho de administração da Agência Reguladora Multissectorial da Economia (ARME) a impressão com que se fica é que, apesar da lei estabelecer que a indicação dos membros do conselho de administração deve ser sob proposta dos membros de governo com responsabilidade nas áreas cobertas pela ARME, todo o protagonismo ficou com o titular das Finanças. Coincidentemente dois dos nomeados, incluindo o PCA, vieram directamente de posições-chave no ministério das Finanças.
Mesmo que se considere que esse papel reforçado seja uma opção do executivo há certas questões a ponderar. O ministro já tem competências abrangentes sobre os sectores financeiro e fiscal e é de se perguntar se não se torna problemático para o funcionamento eficiente e eficaz do país que ainda se acrescente outras noutros sectores de actividade. Para além de eventual ruído no próprio funcionamento do governo tendo em conta que os estatutos estipulam que a relação orgânica da ARME faz-se através do ministro da Economia é quase inevitável que tal concentração excessiva de poderes tenha outras consequências. Por outro lado, pode acabar por afectar de algum modo o desempenho de empresas públicas e privadas, a autonomia das entidades reguladoras, a competitividade do país e os próprios consumidores nas escolhas possíveis de produtos e serviços e nos preços a pagar.
Situações similares de sobreposição ou de algum conflito de competências já se tinham verificado anteriormente e viram-se as consequências na governação e na condução de certos dossiers como o da privatização da TACV. A resolução do governo nº 87/2017 de 3 de Agosto que dispôs 23 empresas públicas ou participadas pelo Estado para serem privatizadas ou cedidas em forma de concessão passou efectivamente a tutela dessas empresas para o ministério das Finanças. Na sequência dessa decisão e provavelmente em resultado das tensões criadas o então ministério da Economia que abrangia os vários sectores da economia foi dividido em três ministérios no quadro de uma remodelação ministerial que se verificou no fim do ano de 2017 e alguns dos seus serviços ou departamentos transferidos para o ministério das Finanças. A aparente intenção de dar um maior peso ao ministério da Economia na estrutura do governo implícita no desenho inicial sucumbiu à habitual dinâmica governativa em Cabo Verde que acaba sempre por afirmar uma posição quase hegemónica do ministério das Finanças sobre os outros departamentos governamentais.
Aconteceu no passado quando a instabilidade na área económica da governação visível no facto de se ter sete ministros de economia em 15 anos contrastava com a estabilidade nas finanças com três ministros. Voltou a mostrar-se no último governo com múltiplas mudanças de titulares e de configuração governamental nos sectores económicos mantendo-se o mesmo ministro das Finanças e cada vez mais reforçado na sua função de vice-primeiro-ministro. Com isso o país aparenta ter um viés na forma como a sua economia é estruturada e orientada que não só tende a mantê-lo institucionalmente débil e como também muito aberto à informalidade devido à fragilidade do seu tecido empresarial. Vive-se numa espécie de círculo vicioso que de alguma forma impede Cabo Verde tanto de conseguir taxas de crescimento que podiam construir uma base de criação de empregos e de aumento de rendimento como também de se diversificar para ganhar resiliência e enfrentar as suas vulnerabilidades e diminuir a precariedade das populações.
Mesmo antes da pandemia não se conseguiu chegar a crescer a economia a mais de 7 % do PIB, a taxa que consensualmente se considera necessário para, de facto, debelar a pobreza, combater o desemprego e prosperar. Não parou de crescer, porém, durante todo esse tempo, o escopo da actividade do ministro das Finanças. Com a crise que veio depois e a ajuda externa que foi mobilizada então é que se agigantou como se pode comprovar pelo frenesim de aparecimentos públicos em múltiplos eventos prodigiosamente cobertos pelos órgãos de comunicação e pelas redes sociais. O problema é que fazer essencialmente o mais do mesmo como anteriormente, mas agora numa escala ainda maior, não só tende a reproduzir as ineficiências do passado como muito provavelmente a agravá-las.
Em situações de crise a dependência em relação a quem gere recursos e disponibilidades acaba por afectar negativamente a participação e autonomia das outras partes, diminuindo a complexidade de todo o sistema e com ela a sua resiliência, capacidade adaptativa, a iniciativa e criatividade. No processo perde-se extraordinariamente em eficiência e eficácia mesmo que se esteja a nadar em recursos disponíveis. O próprio governo é afectado porque perde em colegialidade quando os seus membros são condicionados pela gestão que é feita num ministério das Finanças cada vez mais influente. O sistema do governo de base parlamentar enfraquece e perde as virtualidades derivadas de um exercício construtivo do contraditório quando a percepção de crise se generaliza e desencadeia uma corrida desenfreada aos recursos cada vez mais escassos.
Não é à toa que para além de não se ter conseguido o crescimento necessário, não se conseguiu travar o sentimento de precariedade e assiste-se ao degradar de sistemas como o de segurança, da justiça e da educação. A pandemia apesar dos seus efeitos nocivos trouxe a possibilidade de ajuda massiva no sector da saúde que ajudou o país a conter a percepção das deficiências. Nos grandes objectivos de redinamizar a economia com as privatizações como se cogitou na referida resolução nº 87/2017 das 23 empresas só realmente se concretizou o processo da privatização da TACV e pode-se claramente ver pelos resultados que, de facto, fracassou redondamente e resultou em mais dívida pública e destruição de valor em vários sectores de actividade conexas. Há que continuar a atrair investimento externo, construir parcerias e criar condições para servir uma procura externa de bens e serviços, mas aprendendo com os erros cometidos, sendo competitivos e adquirindo competências várias e garantindo segurança a todos os níveis, seja ela pessoal, jurídica, sanitária e regulatória.
Concentração de poderes em estruturas, funções e pessoas nunca é salutar. Perde-se extraordinariamente em eficiência e eficácia e inibe-se toda a criatividade, a capacidade de correr riscos e a energia necessária para sair da situação de crise e construir algo de novo. A crise que se vive actualmente é afinal várias crises juntas e ninguém garante que outras não vão aparecer. Não é repetindo os erros do passado recente que se vai contornar as dificuldades e enfrentar as incertezas. A construção de uma base sólida onde se possa apoiar para se conseguir o desenvolvimento sustentável e inclusivo irá requerer espírito de solidariedade, respeito pela diversidade, adesão aos princípios e valores da liberdade e democracia e uma verdadeira paixão pelo conhecimento. Um desafio que se coloca principalmente aos que detêm o poder e têm a responsabilidade de o exercer para o bem de todos e não para benefício pessoal.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1072 de 15 de Junho de 2022.