segunda-feira, junho 20, 2022

Concentração de poderes não é salutar

 

O governo pelo decreto-lei nº 21/2022, publicado no Boletim Oficial de 10 de Junho, criou uma nova entidade reguladora independente, a Autoridade de Concorrência, com a missão de promoção e defesa da concorrência nos vários sectores económicos tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a afectação dos recursos e os interesses dos consumidores.

A exemplo do que vem acontecendo em vários países que recentemente e em particular nos anos noventa seguiram pelo caminho da liberalização da economia, supõe-se que com este e outros actos quer-se dar um outro impulso ao processo de transição de um Estado intervencionista para um Estado regulador da economia. Independentemente da pertinência e da oportunidade da criação neste momento da nova autoridade reguladora não deixa, porém, de ser curioso que a indicação para a nomeação dos membros do conselho de administração tenha sido atribuída ao ministro das Finanças.

O normal seria que fosse o ministro que normalmente reúne os sectores do comércio, da indústria e da energia como acontece noutras paragens. Aliás, o próprio diploma refere-se a atribuições antes exercidas por serviços desse ministério em matéria de concorrência que são passadas à nova autoridade reguladora. Também no caso recente da nomeação dos membros do conselho de administração da Agência Reguladora Multissectorial da Economia (ARME) a impressão com que se fica é que, apesar da lei estabelecer que a indicação dos membros do conselho de administração deve ser sob proposta dos membros de governo com responsabilidade nas áreas cobertas pela ARME, todo o protagonismo ficou com o titular das Finanças. Coincidentemente dois dos nomeados, incluindo o PCA, vieram directamente de posições-chave no ministério das Finanças.

Mesmo que se considere que esse papel reforçado seja uma opção do executivo há certas questões a ponderar. O ministro já tem competências abrangentes sobre os sectores financeiro e fiscal e é de se perguntar se não se torna problemático para o funcionamento eficiente e eficaz do país que ainda se acrescente outras noutros sectores de actividade. Para além de eventual ruído no próprio funcionamento do governo tendo em conta que os estatutos estipulam que a relação orgânica da ARME faz-se através do ministro da Economia é quase inevitável que tal concentração excessiva de poderes tenha outras consequências. Por outro lado, pode acabar por afectar de algum modo o desempenho de empresas públicas e privadas, a autonomia das entidades reguladoras, a competitividade do país e os próprios consumidores nas escolhas possíveis de produtos e serviços e nos preços a pagar.

Situações similares de sobreposição ou de algum conflito de competências já se tinham verificado anteriormente e viram-se as consequências na governação e na condução de certos dossiers como o da privatização da TACV. A resolução do governo nº 87/2017 de 3 de Agosto que dispôs 23 empresas públicas ou participadas pelo Estado para serem privatizadas ou cedidas em forma de concessão passou efectivamente a tutela dessas empresas para o ministério das Finanças. Na sequência dessa decisão e provavelmente em resultado das tensões criadas o então ministério da Economia que abrangia os vários sectores da economia foi dividido em três ministérios no quadro de uma remodelação ministerial que se verificou no fim do ano de 2017 e alguns dos seus serviços ou departamentos transferidos para o ministério das Finanças. A aparente intenção de dar um maior peso ao ministério da Economia na estrutura do governo implícita no desenho inicial sucumbiu à habitual dinâmica governativa em Cabo Verde que acaba sempre por afirmar uma posição quase hegemónica do ministério das Finanças sobre os outros departamentos governamentais.

Aconteceu no passado quando a instabilidade na área económica da governação visível no facto de se ter sete ministros de economia em 15 anos contrastava com a estabilidade nas finanças com três ministros. Voltou a mostrar-se no último governo com múltiplas mudanças de titulares e de configuração governamental nos sectores económicos mantendo-se o mesmo ministro das Finanças e cada vez mais reforçado na sua função de vice-primeiro-ministro. Com isso o país aparenta ter um viés na forma como a sua economia é estruturada e orientada que não só tende a mantê-lo institucionalmente débil e como também muito aberto à informalidade devido à fragilidade do seu tecido empresarial. Vive-se numa espécie de círculo vicioso que de alguma forma impede Cabo Verde tanto de conseguir taxas de crescimento que podiam construir uma base de criação de empregos e de aumento de rendimento como também de se diversificar para ganhar resiliência e enfrentar as suas vulnerabilidades e diminuir a precariedade das populações.

Mesmo antes da pandemia não se conseguiu chegar a crescer a economia a mais de 7 % do PIB, a taxa que consensualmente se considera necessário para, de facto, debelar a pobreza, combater o desemprego e prosperar. Não parou de crescer, porém, durante todo esse tempo, o escopo da actividade do ministro das Finanças. Com a crise que veio depois e a ajuda externa que foi mobilizada então é que se agigantou como se pode comprovar pelo frenesim de aparecimentos públicos em múltiplos eventos prodigiosamente cobertos pelos órgãos de comunicação e pelas redes sociais. O problema é que fazer essencialmente o mais do mesmo como anteriormente, mas agora numa escala ainda maior, não só tende a reproduzir as ineficiências do passado como muito provavelmente a agravá-las.

Em situações de crise a dependência em relação a quem gere recursos e disponibilidades acaba por afectar negativamente a participação e autonomia das outras partes, diminuindo a complexidade de todo o sistema e com ela a sua resiliência, capacidade adaptativa, a iniciativa e criatividade. No processo perde-se extraordinariamente em eficiência e eficácia mesmo que se esteja a nadar em recursos disponíveis. O próprio governo é afectado porque perde em colegialidade quando os seus membros são condicionados pela gestão que é feita num ministério das Finanças cada vez mais influente. O sistema do governo de base parlamentar enfraquece e perde as virtualidades derivadas de um exercício construtivo do contraditório quando a percepção de crise se generaliza e desencadeia uma corrida desenfreada aos recursos cada vez mais escassos.

Não é à toa que para além de não se ter conseguido o crescimento necessário, não se conseguiu travar o sentimento de precariedade e assiste-se ao degradar de sistemas como o de segurança, da justiça e da educação. A pandemia apesar dos seus efeitos nocivos trouxe a possibilidade de ajuda massiva no sector da saúde que ajudou o país a conter a percepção das deficiências. Nos grandes objectivos de redinamizar a economia com as privatizações como se cogitou na referida resolução nº 87/2017 das 23 empresas só realmente se concretizou o processo da privatização da TACV e pode-se claramente ver pelos resultados que, de facto, fracassou redondamente e resultou em mais dívida pública e destruição de valor em vários sectores de actividade conexas. Há que continuar a atrair investimento externo, construir parcerias e criar condições para servir uma procura externa de bens e serviços, mas aprendendo com os erros cometidos, sendo competitivos e adquirindo competências várias e garantindo segurança a todos os níveis, seja ela pessoal, jurídica, sanitária e regulatória.

Concentração de poderes em estruturas, funções e pessoas nunca é salutar. Perde-se extraordinariamente em eficiência e eficácia e inibe-se toda a criatividade, a capacidade de correr riscos e a energia necessária para sair da situação de crise e construir algo de novo. A crise que se vive actualmente é afinal várias crises juntas e ninguém garante que outras não vão aparecer. Não é repetindo os erros do passado recente que se vai contornar as dificuldades e enfrentar as incertezas. A construção de uma base sólida onde se possa apoiar para se conseguir o desenvolvimento sustentável e inclusivo irá requerer espírito de solidariedade, respeito pela diversidade, adesão aos princípios e valores da liberdade e democracia e uma verdadeira paixão pelo conhecimento. Um desafio que se coloca principalmente aos que detêm o poder e têm a responsabilidade de o exercer para o bem de todos e não para benefício pessoal. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1072 de 15 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 13, 2022

Os tempos clamam por um Estado mais eficiente em tudo

 Nos últimos dias vem-se desenvolvendo uma controvérsia à volta da participação do presidente da república numa cimeira da CEDEAO no Gana. Primeiro, através de um comunicado, os serviços da presidência da república anunciaram que por razões logísticas e financeiras o PR não iria estar presente no encontro de Chefes de Estado e de Governo marcado para o dia 4 de Junho.

Depois questionou-se se houve ou não cortes no orçamento da presidência da república no tom já habitual entre os protagonistas políticos que pouco esclarece, mas serve para alimentar especulações sobre possíveis tensões entre os dois órgãos de soberania. Curioso é que enquanto em Cabo Verde muitos se apoderam do tema com intervenções na comunicação social e nas redes sociais que acabam por configurar mais um “round” nos múltiplos jogos para manter activa de crispação política, a cimeira de Accra, sem ter conseguido chegar a acordo em relação à situação no Mali, Burkina Faso e Guiné-Conacri mostrou-se praticamente uma perda de tempo. Foi adiada para o próximo mês de Julho.

De qualquer forma, em todo este imbróglio a questão central sobre qual devia ser a participação de Cabo Verde, considerando as prioridades da política externa do país, e a que nível de representação, se do Chefe de Estado ou do Governo ou de Embaixador, é que aparentemente não foi discutida. Certamente que se tivesse sido esse o caminho seguido desde o início, para qualquer que fosse a opção adoptada encontrar-se-iam os meios financeiros para a concretizar, não obstante os constrangimentos orçamentais actuais do país. Tanto nesta como em outras situações é fundamental que se afirme que deslocações e viagens oficiais têm como objectivo principal razões de Estado e não protagonismo pessoal ou motivação partidária. Porque, de facto, tratando-se da utilização de recursos públicos, e estes são sempre escassos, a decisão para as realizar devia ser sempre devidamente ponderada.

A verdade é que há dúvida nas pessoas, que todos os dias assistem na televisão pública ao desfile dos políticos em frequentes e repetidas visitas às ilhas, encontros com população, auscultações, inaugurações, apresentações de planos estratégicos, aberturas e fechos de seminários, formações e socializações, se essas deslocações e viagens se justificam. Provavelmente algumas terão razão de ser, mas certamente que nem todas. Viu-se durante a pandemia, em particular durante os lockdown e as restrições nas viagens, que com alguns constrangimentos é certo, podia-se funcionar, fazer chegar mensagens às pessoas e resolver problemas candentes. A essa experiência muito concreta e real devia seguir-se mais contenção no que até o momento tinha sido uma prática de décadas.

As dificuldades que se seguiram com a retoma a não se verificar no ritmo esperado, com os surtos das variantes do SARS-CoV-2 a perturbar um regresso à normalidade, e depois com a invasão da Ucrânia pela Rússia acompanhadas das incertezas em relação a esses e outros constrangimentos que ainda se mantêm, deviam ter levado a uma mudança profunda de atitude. Não foi o que aconteceu e claramente que a tendência é voltar ao que sempre se fez. E continuará a ser assim enquanto não houver melhor ponderação nas decisões de viagem, considerando designadamente as prioridades de governação, a eficácia na execução da política interna e externa do governo, a representação do país e o dever de accountability, de responsabilização e de prestação de contas. Ficar-se-á na mesma também se não se cortar com práticas de responder sem razão justificada a convites feitos ou solicitados, de exercer funções públicas seguindo motivações pessoais ou partidárias ou deixar-se enredar em agendas de outras entidades porque é conveniente e não se tem uma agenda própria.

Muito do que acontece na política e em outras actividades públicas e em eventos diversos ao nível nacional e também local faz-se em modo de espectáculo e em geral põe-se mais ênfase nos protagonistas do que nos temas ou questões tratadas. Daí o desdobramento de certas personalidades por tudo o que é mediático resultando muitas vezes em excesso de exposição, banalização de funções e em custos evitáveis em deslocações e estadias. E não se pense que nisto tudo estão envolvidos apenas governantes, deputados, presidentes de câmara e outros políticos. O Primeiro-ministro na discussão do Orçamento do Estado a explicar os 630 mil contos para deslocações e estadias deixou claro que uma parcela significativa dessa soma é utilizada pela administração pública e outros serviços do Estado e o mais normal é que as práticas já estabelecidas levem a um maior prejuízo para as finanças públicas do que se pode claramente assacar aos políticos. Afinal eles são um alvo mais visível e atacável do que práticas e culturas organizacionais estabelecidas que muitos pouco ousam pôr em causa.

O privilégio de viajar dentro e fora do país com as correspondentes ajudas de custo foi sempre cobiçado nos vários níveis dos serviços do Estado. Visto por muitos como complemento de salários deliberadamente diminuídos nos primeiros anos da independência era procurado activamente pelos que tinham acesso de alguma forma a dirigentes e conseguiam integrar delegações. Aos outros num tempo que era de escassez ficava só a possibilidade de comprar produtos trazidos do exterior por colegas e adquiridos, supunha-se, com poupança nas ajudas de custo. Imagine-se a inveja que tudo isso provocava. Quando podiam, alguns privilegiados até instituíram uma espécie de escala de viagem. Não espanta que ainda hoje a questão de viagens e ajudas de custo seja matéria sensível seguida por largos sectores da população e por isso potencialmente explosiva e passível de aproveitamento nas lutas partidárias. Curiosamente não há muita preocupação com uma outra consequência dessa prática. A desconformidade entre integrantes das delegações e o objectivo da viagem, que vem de longe e ainda é perceptível em alguns casos, tem custos e explica muitas vezes a inutilidade, a falta de resultados ou a dificuldade de se fazer o seguimento de missões. Nem por isso, como se pode inferir da controvérsia actual, se procura preparar melhor as participações, fazer as concertações necessárias e mobilizar os recursos para o sucesso das mesmas.

Cabo Verde não precisa de distracções artificialmente criadas só para manter a virulência política que impede o debate de questões de substância e de futuro. No ambiente actual de preços elevados de todos os produtos e em particular dos bens alimentares e dos produtos energéticos o foco devia estar em ganhos de eficiência a todos os níveis não só para se ser mais produtivo como também para poupar nos recursos disponíveis. Obviamente que a poupança nas deslocações e estadias por serem mais visíveis e também matéria sensível pelas razões referidas deveria ser um objectivo central da governação na actual conjuntura.

Até ajuda que não se esteja num período pré-eleitoral em que a pressão partidária não é tão forte e que a reacção das pessoas perante as incertezas do momento é de maior contenção nas suas exigências. Para isso, porém, o exemplo deve vir de cima. E ao contrário do que disso o Primeiro Ministro em entrevista, as críticas devem ser escutadas para melhor se estar em condições de governar o país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1071 de 8 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 06, 2022

Mais pluralismo e menos crispação na comunicação social

 

Na última sessão da Assembleia Nacional de Maio foi agendado a pedido do governo um debate sob o tema comunicação social, democracia e desenvolvimento.

Como seria de esperar o que devia ser o debate entre os deputados e o governo transformou-se numa espécie de batalha campal em que jornalistas eram postos em colisão com o governo e deputados procuravam posicionar-se conforme as suas preferências político-partidárias de um lado ou de outro da barricada. A publicação dias antes do relatório dos Repórteres Sem Fronteiras que dava conta da queda de Cabo Verde de nove lugares no ranking da Liberdade de Imprensa no Mundo incendiou o que já por si seria um debate quente.

Não estranha por isso que mais uma vez se tenha ficado por manobras para mostrar quem é mais amigo dos jornalistas, quem se move contra a liberdade de imprensa e quem mais protege a comunicação social pública. Ao lado ficou o debate sobre o grau de pluralismo existente em Cabo Verde e em particular na comunicação social. O mesmo aconteceu com o papel do serviço público da rádio e da televisão, a eficácia da comunicação social como meio de fiscalização da acção governativa ou simplesmente como watchdog e a importância cada vez mais sentida de se ter uma comunicação social credível para contrabalançar os efeitos mais negativos das redes sociais.

A democracia, que precisa ser protegida de polarizações extremas que deixam o sistema político fragilizado, viu-se secundarizado num debate em que os protagonistas se desdobraram a desresponsabilizar-se por qualquer falha e, em simultâneo, a apontar o dedo ao outro. No mesmo segundo plano ficou o desenvolvimento que para acontecer não precisa que se confunda facto com opinião e se deixe de buscar a verdade. Nem que se procure alimentar a alienação das pessoas e da sociedade com posicionamentos anticientíficos e teorias de conspiração e promover atitudes que minam a confiança nas instituições, porque se quer com motivos escusos contornar a ordem democraticamente estabelecida.

É interessante notar que a disputa actual à volta da liberdade de imprensa que opõe jornalistas ao governo veio na sequência de denuncias trazidas à praça pública de um assassinato verificado em 2014 durante uma operação policial tida como supervisionada pelo então diretor-adjunto da polícia judiciária e actual ministro da Administração Interna. Acusados dois jornalistas de crime de violação do segredo de justiça e constituídos arguidos rapidamente a controvérsia deixou de ser o conteúdo das denúncias e o eventual envolvimento de um ministro para se concentrar na questão de saber se a violação de segredo de justiça pelos jornalistas é legal ou mesmo constitucional.

Seguiram-se denúncias de perseguição de jornalistas e entrou-se pelo caminho de confronto entre jornalistas e o governo já noutras ocasiões percorrido e que pode permitir constatações do tipo: os governos do MpD dão-se mal com a imprensa. Ou seja, a tensão criada pelas denúncias acabou por ceder à tranquilidade que de alguma forma a disputa política habitual entre os partidos traz a todos, socorrendo-se das reivindicações de alguma classe profissional mais mediática como arma de arremesso. O anúncio da queda dos nove lugares no ranking da liberdade de imprensa, tal qual a cereja em cima do bolo, funcionou como um bónus para se apressar no regresso ao “normal” em que questões essenciais são sempre adiadas.

Cabo Verde tem uma posição nos rankings da democracia, das liberdades e especificamente da liberdade de imprensa que não destoa muito de outros países tidos como democráticos. Aliás, muitas vezes está melhor classificado do que alguns deles com mais anos de regime democrático. Tentar compreender as razões das insuficiências ainda presentes devia ser matéria intensa de debate entre as forças políticas. Infelizmente prefere-se ficar por acusações mútuas e não agir concertadamente para ultrapassar os constrangimentos.

No que respeita por exemplo à comunicação social devia ser óbvio o peso excessivo da rádio e televisão públicas. O órgãos públicos absorvem enormes recursos por via de taxas e outras transferências do Estado e têm cativo grande parte do mercado de publicidade do país tanto de origem estatal como privada ocupando com isso uma posição hegemónica clara. Empecilhos fortes ao pluralismo são criados nessas circunstâncias devido à fragilidade económico-financeira dos órgãos privados e a dificuldade em competir na contratação de jornalistas. Uma outra consequência é que com tantos meios e recursos acompanhado de capacidade de influência das audiências torna-se praticamente impossível evitar suspeição de interferência governamental, independentemente de quem governa e de órgãos supostamente independentes criados para mediar a relação entre o governo e a direcção dos órgãos públicos.

A Constituição prevê um serviço público da rádio e televisão e impõe princípios de independência e de pluralismo interno. Não define qual deve ser a dimensão do serviço que fica ao critério dos governos, mas é evidente que se for esmagador o pluralismo é globalmente prejudicado. Da parte de quem governa vai sempre existir a tentação de alguma interferência e da parte da oposição haverá sempre acusações de manipulação. Se nem a BBC com um percurso reconhecido de isenção e imparcialidade está a salvo de acusações, imagine-se o que pode acontecer em Cabo Verde onde uma cultura de dependência do Estado foi instituída desde os primórdios da independência nacional em 1975. Conseguir um maior equilíbrio entre o órgãos públicos da comunicação social e os órgãos privados deveria ser o primeiro passo para se ultrapassar a situação.

As dificuldades para se avançar nesse sentido são à partida enormes, desde logo pela fragilidade dos privados. Órgãos de comunicação social privados e em particular rádios em S. Vicente e na Praia deixaram de existir poucos meses antes do 5 de Julho de 1975. Posteriormente, nos anos oitenta iniciativas embrionárias de televisão por particulares foram terminadas para dar lugar à televisão estatal. Nos anos noventa da democracia e da liberdade de expressão os privados tiveram de recomeçar praticamente do zero. Mesmo a cultura jornalística em grande parte moldada nos órgãos estatais do regime anterior e marcada pela dependência e pelo controlo ideológico não constituía grande ajuda para iniciativas com uma outra matriz.

Não é à toa que durante anos a prática do exercício dos direitos designadamente dos direitos de liberdade de expressão e de imprensa estabelecidos pela nova constituição tenha sito pontuada por choques entre o novo poder e os jornalistas. Entretanto a comunicação social do Estado manteve a sua posição hegemónica no sector apesar das tentativas de reforma. Provavelmente aprendeu a manobrar as forças políticas que se sucedem no governo de forma a absorver cada vez mais recursos e reforçar ainda mais a sua posição. Discutível, porém, continua a ser a qualidade da programação que não devia ser virada simplesmente para conquista de audiências e o grau de pluralismo atingido e que é traduzido nas correntes de opinião expressas.

Mudar a situação só podia vir de um amplo consenso dos partidos para se diminuir no acesso aos recursos do mercado publicitário a favor dos privados e apostar mais na qualidade dos programas informativos e de entretenimento e nos documentários. Ganhar-se-ia no pluralismo externo com uma maior diversidade de órgãos privados e também se diminuiria na crispação política derivada da disputa de quem mais tem influência na rádio e na televisão públicas. Coragem e visão para se agir nesse sentido é que parece faltar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1070 de 1 de Junho de 2022.

segunda-feira, maio 30, 2022

Por um jogo de soma positiva

 

Há um ano atrás tomava posse o novo governo saído das eleições legislativas de 18 de Abril. O país encontrava-se então em meio do surto da variante Delta do Sars-CoV-2, mas já se descortinava algum alívio das graves restrições de 2020 em resposta à pandemia que conduziram à contracção de 14,8% da economia nacional.

No discurso do primeiro-ministro apontava-se como prioridades sociais o emprego, a eliminação da pobreza extrema e a redução da pobreza absoluta e como prioridades económicas o crescimento, o alívio da dívida e a diversificação da economia. Com o desenvolvimento de vacinas e início de vacinação em grande escala, particularmente nos países emissores de turistas, perspectivava-se já um início da retoma que infelizmente não veio a se concretizar na dimensão esperada. Incertezas várias vieram baralhar tudo.

Primeiro surgiu a nova variante Ómicron altamente contagiosa e logo de seguida as tensões geopolíticas na Europa que depois desembocaram na invasão da Ucrânia pela Rússia. Reapareceram as restrições de viagem e os constrangimentos nas várias cadeias de abastecimento tornaram-se piores. O crescimento económico do ano 2021 ficou pelos 7% e as previsões para 2022 já de per si menos optimistas de 2021 sofreram uma quebra para um intervalo (3,5-4,5%) como aliás aconteceu ao nível global e também na generalidade dos países, de acordo com os dados de Abril do FMI/Banco Mundial.

Onde aparentemente não se notou mudança significativa foi nas políticas de antes da pandemia, que a todo o vapor se dá continuidade sem atender à conjuntura, e no tipo de confronto político que degrada o discurso e leva ao imobilismo mesmo perante problemas sérios e urgentes como a segurança. Também sem grandes alterações continuou a abordagem feita a questões essenciais do país que mexem com o futuro e a credibilidade das instituições. Opta-se em geral por varrer os problemas para debaixo do tapete. O próprio governo continua impávido com a mesma estrutura e o mesmo número de membros de há um ano atrás, salvo o reajuste devido a um pedido de demissão, não obstante as mudanças de conjuntura que obrigam a melhorar drasticamente a eficiência na utilização dos meios e recursos e a enviar sinais de contenção e solidariedade para a sociedade.

O facto de até agora não se puder prever como e quando se verá o fim do conflito na Ucrânia só tem aumentado as incertezas em relação ao futuro. No curto prazo já se percebe que todos são afectados pelos aumentos extraordinários dos preços em particular dos bens alimentares e energéticos. E que a verificar-se escassez de produtos em particular dos alimentares as consequências poderão ser desastrosas. Em face de tudo isto o mais natural é que houvesse uma disposição e uma motivação para fazer mudanças seja de comportamento, de políticas e de práticas. Paradoxalmente não é o que tem acontecido. Não se notaram as alterações na atitude das pessoas, instituições e países no sentido de mais cooperação e solidariedade que muitos esperavam ver por causa da pandemia e de outras ameaças como alterações climáticas. Em vários países o paradoxo é motivo de reflexão. Num país com as vulnerabilidades que Cabo Verde apresenta, compreender o que está por detrás do fenómeno é vital.

O mundo está a mudar rapidamente e em direcção difícel de prever. Há uma guerra em andamento que não se sabe como vai terminar ou como impedir que se alastre e sofra uma escalada para algo muito pior. Está-se a procurar isolar politica, económica e financeiramente um país, novas alianças militares tendem a formar-se e ordens económicas distintas podem vir a emergir. As disrupções ou convulsões que vão se processando enquanto o planeta procura outros equilíbrios afectam todos os países e em particular os mais pequenos, insulares, sem recursos naturais e sem economia diversificada. Num tal ambiente optar pelo imobilismo, por continuar a fazer o “mais do mesmo” e por transformar a política numa guerra de posições e num jogo de soma zero é o pior que se pode imaginar. Mas é precisamente por esses caminhos que se tem insistido em ir não obstante a seca, a pandemia, a recessão brutal de 2020, e a guerra na Ucrània e o seu impacto na inflação e na provável escassez de produtos básicos.

Viu-se recentemente a propósito da concessão dos aeroportos à Vinci. As forças políticas e a sociedade podem não discutir outros problemas cruciais do país como a educação, saúde, habitação e segurança, mas quando se trata da implementação de políticas económicas que incluem privatizações todas as paixões vêm à tona. Nessas circunstâncias fica-se com a impressão que não é propriamente a opção de política que se contesta. De facto, aproveita-se do assunto em questão para se renovar a divisão entre os que se assumem como “construtores” das infraestruturas nacionais os que são acusados de “vendedores” desses mesmos bens.

É claro que os supostos vendedores replicam que de facto o país na maior parte dos casos herdou elefantes brancos e dívida pública pesada contraída para os construir. Acrescentam ainda que uma solução possível para se conseguir dar utilidade a algumas dessas infraestruturas, criar riqueza nacional e conseguir receitas para pagar a dívida passa por atrair investimento externo através da venda ou concessão que traga capital, tecnologia, knowhow e mercado para os bens e serviços do país. O problema é quando a concretização desses propósitos falha estrondosamente como aconteceu com a CVA e os islandeses e cria-se o ambiente perfeito para se reproduzir a narrativa dos “vendedores da terra”. Com as paixões acirradas não há como reflectir sobre o que falhou, aprender com os erros e procurar posicionar-se melhor nas iniciativas futuras.

A pandemia e a perda do mercado externo que levou à maior recessão histórica de Cabo Verde e ao desemprego em massa de milhares de pessoas deviam ter sido instrumental para se compreender que Cabo Verde para prosperar terá que atrair investimento externo e mobilizar procura externa para os seus bens e serviços, ou seja, exportar. Todos os países, grandes e pequenos precisam de capital, tecnologia e mercados. Para os quase minúsculos e sem possibilidade de ter economias de escala como Cabo Verde não devia existir qualquer dúvida a esse respeito. Estranhamente, ou talvez não, aqui acredita-se que afinal se pode viver da ajuda externa ou que talvez o país seja “too small to fail”, demasiado pequeno para falir. É só ouvir e ver todos os dias na rádio e na televisão o entusiasmo e as demonstrações de autossatisfação com que são anunciados os milhões a serem investidos no âmbito da cooperação bilateral, multilateral e de instituições financeiras diversas.

Curiosamente, os objectos desses financiamentos sejam eles quais forem, em geral não são alvo das guerras de posições dos actores políticos apesar de em muitas áreas estabelecerem a agenda do país forçando opções de política que não passaram pelo crivo parlamentar. A política assim compartimentalizada permite que se vá avançando “a empurrar com a barriga” sem perturbar interesses instalados ao mesmo tempo que se reserva espaços de combate para luta pura pelo poder, sacrificando no processo o debate construtivo para a consecução do interesse nacional. Se em tempos normais os custos dessa postura dos actores políticos mesmo não sendo imediatamente visíveis acabam por pesar, afectando a credibilidade e eficácia das instituições e minando a confiança das pessoas, em tempos de transformações rápidas, como actualmente, podem ser um fardo terrível e ter efeitos desastrosos. No arrancar de mais um ano de governação, e com o mundo à beira de mudanças profundas, exige-se uma outra atitude e um patriotismo constitucional que não permita que a política se limite aos termos de um jogo de soma zero.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1069 de 25 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 23, 2022

Ano e mandato atípicos

 

Amanhã, 19 de Maio, a Assembleia Nacional que resultou das eleições de 18 de Abril de 2021 completa o primeiro ano de mandato. Nesse dia com a inauguração de uma nova legislatura e logo depois com um novo governo cumpria-se o segundo acto do ciclo eleitoral que tinha arrancado em Outubro com as eleições autárquicas e que iria terminar seis meses depois com as presidenciais.

As eleições tinham assegurado uma maioria absoluta ao MpD que, apesar de menos folgada do que na legislatura anterior, era suficiente para garantir a estabilidade da governação do país. Augurava-se então que, não obstante os problemas sem precedentes criados pela pandemia, num certo sentido e por algum tempo o exercício do mandato seria mais tranquilo, porque menos pressionado por eleições próximas. Infelizmente não é o que se veio a verificar e as razões não têm a ver somente com o aparecimento da variante Ómicron e seu impacto na retoma da economia e com os efeitos de tensões geopolíticas que depois levaram à guerra na Ucrânia.

Logo na sessão inicial e no processo de eleição do presidente e dos outros membros da Mesa da Assembleia Nacional ficou evidente para toda a gente que afinal a maioria saída das eleições não estava tão sólida como seria de esperar. A não aprovação do primeiro candidato a vice-presidente apresentado pelo grupo parlamentar maioritário deixou claro as fracturas internas no seu seio. Semanas depois, na discussão da moção de confiança ao governo era palpável o desconforto perante a possibilidade de não se ter a maioria absoluta necessária para a aprovar. O apoio explícito dos deputados da UCID à moção logo no início da sessão parlamentar ajudou a dissipar as dúvidas, mas a fragilidade da maioria ficou exposta e dificilmente seria recuperada. Aliás, incidentes posteriores como por exemplo na aprovação do Orçamento do Estado vieram demostrar que feridas internas não tinham sido saradas.

Com isso o espaço político que a relegitimação do poder nas urnas teria criado para o governo e a sua maioria e que lhes deveria permitir mais iniciativa, influência e capacidade de congregar vontades rapidamente se esvaziou. Cedeu lugar ao ambiente de crispação e de guerrilha política que existia antes das eleições, como se, para a minoria, a maioria que saiu das urnas não se concretizou. Já para as pessoas que se engajaram de uma forma ou outra nas eleições a crispação renovada foi mais um motivo de frustração porque é como se o seu voto não tivesse servido nem para mudar a postura dos actores políticos. Alguns deles continuavam a comportar-se como se não tivessem ganho e outros como se não tivessem perdido.

A realização das eleições presidenciais seis meses depois não foi muito propício a que se diminuísse o grau de crispação política que logo após as legislativas tinha voltado a instalar-se. Pelo contrário as fracturas reveladas da maioria constituíram incentivo para transformar as eleições presidenciais em mais um embate partidário. A vitória do candidato presidencial originário de quadrantes políticos da oposição acabou por enfraquecer ainda mais a dimensão da vitória nas legislativas e com ela a imagem do governo. As aparentes fragilidades demonstradas na relação com o novo presidente da república também não ajudaram. Se se acrescentar a tudo isso a incapacidade ou falta de vontade em reforçar a unidade e melhorar a prestação da maioria parlamentar e também de ajustar a estrutura governativa às exigências de um mundo a braços com desafios múltiplos, não é de estranhar que o maior partido da oposição mesmo à distância de vários anos das próximas eleições esteja a sinalizar para a sociedade que se prepara para regressar ao poder.

Como na generalidade dos países também em Cabo Verde a crise da democracia é fundamentalmente uma crise de representação e o seu epicentro é o parlamento. Com discursos antipartido e antielitistas quer-se fazer as pessoas acreditar que não são escutadas, nem os seus interesses tidos em consideração e que a solução é seguir cegamente líderes que primam pela autenticidade e ligação às pessoas. Após as eleições legislativas de 2016 a crise claramente que se aprofundou com o populismo e com o pessoalismo na política a dominar na actuação dos partidos. O fenómeno não apenas cabo-verdiano como se vê na eleição de Trump nos EUA, de Bolsonaro no Brasil e da ascensão de populistas na Itália, Hungria, Espanha e outros países europeus. A verdade é que com tudo isso a qualidade do trabalho parlamentar caiu muito comparativamente, dando mais argumentos aos costumeiros inimigos da democracia e do pluralismo. A par disso oferece-se oportunidade de questionar a utilidade do parlamento e de, a exemplo do que se passa nos países com líderes populistas, descredibilizar as instituições tomando como alvos preferenciais o parlamento, o sistema judicial e os médias.

De alguma forma algo mais consciente do desgaste provocado nas instituições e nos partidos políticos já se nota nas tentativas de inflectir o sentido das tendências actuais. No Paicv, na sequência da derrota nas legislativas, elegeu-se um novo líder com um claro mandato para reunir tendências, gerações e experiências para melhor se apresentar como alternativa credível nas eleições de 2026. No MpD, a revelar problemas internos por resolver, há, com o partido no governo, um caso possivelmente inédito, exceptuando nos sistemas parlamentares do tipo inglês, de uma possível disputa da liderança a meio do mandato. Combater as derivas populistas no interior dos partidos, porém não é suficiente. Há que fazer o parlamento exercer as suas competências em particular em relação a outros órgãos de soberania como foi o caso de reavaliação do veto do presidente da república e de eleição no tempo certo de órgãos externos da assembleia nacional para não se estar na situação de ter órgãos com mandatos terminados há quase um ano.

A credibilização do parlamento passa por se ultrapassar a imagem de crispação política existente e mostrar que é possível o exercício do contraditório sem que isso conduza ao bloqueio e à impossibilidade de negociar, construir consensos e firmar acordos em boa fé. Isso é essencial para a estabilidade governativa do país e para se ter de facto uma real fiscalização dos actos da governação. Também é importante para mostrar que ao funcionar com discurso aberto e com contraditório, dados transparentes e com foco no interesse público esta-se a evitar que verdades alternativas, teorias de conspiração e outras distorções da realidade ganhem proeminência na sociedade. Nesse aspecto foi uma falha lamentável na sessão da semana deixar passar a oportunidade de reparar imediatamente o chamado “erro material” detectado no código penal que deixou alguns crimes de corrupção passiva e activa e tráfico de influência com prazos de prescrição baixos. De acordo com a declaração de voto do Paicv a vontade unanimemente expressa do legislador na plenária e em sede da comissão especializada era precisamente no sentido contrário e para elevar para prazos máximos a prescrição desses crimes.

A iniciar um segundo ano de mandato é de toda a importância que a Assembleia Nacional assuma as suas funções como pilar fundamental do sistema de governo e contribua efectivamente para o cumprimento do princípio da separação e a interdependência dos órgãos de soberania. Enquanto órgão de soberania que representa todos os cidadãos na pluralidade das suas opiniões e na diversidade dos seus interesses deve agir decisivamente para se prosseguir com o jogo democrático, a única via para se encontrar soluções para os problemas de hoje e se construir o amanhã sem que a liberdade e a dignidade de todos sejam sacrificadas. O primeiro ano foi em certos aspectos algo atípico. Que o segundo que agora começa se reja pela normalidade democratica para que todos sejam ganhadores. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1068 de 18 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 16, 2022

Reescrever a parceria especial

 Nas mensagens divulgadas no dia 9 de Maio o Presidente da República e o Primeiro-ministro saudaram o Dia da Europa, o dia que celebra a paz e a unidade do continente europeu, e manifestaram a vontade de Cabo Verde de reforçar e aprofundar as relações com a União Europeia.

Na sua mensagem, o PR para além de caracterizar a Europa como parceiro estratégico diz que “está em gestação uma nova ordem mundial e Cabo Verde deve saber reposicionar-se e, desde logo, reescrever a parceria especial com a União Europeia”. Acrescenta ainda que o país deve agir inteligentemente para dar à parceria especial novos contornos, no sentido do seu aprofundamento e adequação aos desafios emergentes na arena internacional, com profundos reflexos num pequeno estado insular como o nosso”.

As mensagens deixam passar alguma apreensão e urgência. Compreende-se que seja assim. O aniversário da Europa que também significativamente quase que coincide com o dia do fim da segunda guerra mundial, 8 de Maio, acontece num momento em que a paz foi quebrada no velho continente com a agressão russa à Ucrânia. Já se vê que a resposta unânime da Europa manifestando solidariedade com luta dos ucranianos na defesa da integridade territorial do seu país e impondo pesadas e abrangentes sanções à Rússia vai ser um ponto de viragem nas políticas europeias com consequências designadamente nas políticas de alargamento e de defesa.

Outras consequências já se estão a verificar nos extraordinários aumentos de energia, de bens alimentares e de vários outros produtos. A prazo, os efeitos da inflação, o impacto da dívida pública e os efeitos dos estrangulamentos nas cadeias de abastecimento vão conjugar para diminuir os rendimentos das pessoas e baixar as taxas de crescimento económico. Em maior dificuldade ficarão os países em desenvolvimento a braços com a manutenção do ritmo da retoma pós-pandémica num ambiente movediço de rearranjo das relações económicas. Num tal contexto confiança e previsibilidade nas cadeias globais de valor e de abastecimento ganham importância fulcral. Crucial será poder prever os contornos dessa nova ordem mundial e saber como reposicionar-se tendo em conta que provavelmente o mundo tornar-se-á mais complexo, por que marcado por rivalidades geopolíticas e pela dinâmica de blocos económicos que obrigam a tomadas de partido e não deixam muito espaço para a ambiguidade e o equívoco nas relações internacionais.

Para Cabo Verde, o Banco Central (BCV), no relatório semestral de política monetária divulgado na semana passada, aponta riscos para a economia associados à escalada da guerra na Ucrânia e o apertar das sanções à Rússia. Neles o BCV inclui a escassez de matérias-primas e cortes na produção de sectores económicos dependentes desses produtos, as consequências de preços de importação muito mais altos e possíveis desabastecimentos e também as incertezas e a falta de confiança criadas que afectariam as decisões de consumo e de investimentos de empresas e pessoas. De acordo com o BCV, os riscos poderão agravar-se mais se a situação da covid-19 na China persistir, se a expectativa de inflação se mantiver e se houver o ressurgimento da pandemia com uma nova variante mais contagiosa e mais letal.

São alertas que deviam levar os actores políticos e a sociedade no seu conjunto a reflectir mais aprofundadamente sobre a conjuntura actual marcada ao nível nacional pela seca, pela pandemia e pela dívida pública e ao nível internacional pelas ondas sísmicas causadas pelos constrangimentos nas cadeias de abastecimento, pela inflação e pela guerra na Ucrânia e por tensões geopolíticas em vários pontos do globo. Até agora não se tem a impressão que foi dada a devida atenção a estas questões, pelo menos no que toca à mudanças de comportamento e de atitude. Continua-se a substituir discussões substantivas de políticas por exercícios de arremesso político e persiste-se com a prática da política-espectáculo e do eleitoralismo permanente. Não se apela suficientemente à solidariedade que os tempos exigem e que podia levar a mais contenção nos comportamentos e gastos, mais ponderação nas reivindicações e maior disponibilidade em encontrar vias e soluções para os múltiplos problemas que afligem o país.

Do BCV, para além dos alertas vêm as recomendações para reduzir o peso da dívida pública priorizando gastos essenciais e para avançar com reformas que resolvem problemas estruturais e aumentam o potencial da economia do país. Uma outra recomendação é que a perda de rendimento da economia seja compartilhada por trabalhadores e empresas para não se entrar numa espiral inflacionária que prejudicaria a todos. Aí, porém, as autoridades teriam que agir com um outro rigor na fiscalização económica para evitar a extracção de lucros excessivos pelas empresas num ambiente de aumento rápido de preços. Os trabalhadores, por seu lado, teriam que conter-se nas reivindicações salariais para se evitar pressão sobre os preços. Para conseguir isso talvez fosse necessário um pacto Estado, patronato e sindicatos para o crescimento e para o emprego. Implicaria provavelmente que os problemas do país e os desafios que se colocam na actual conjuntura fossem assumidos na sua plenitude por todos, ressalvando a diversidade dos pontos de vista e das estratégias a adoptar para os enfrentar. Também implicaria que o passado deixasse de ser objecto de nostalgia e motivo de ressentimento para se poder concentrar no presente e potenciar o que existe com vista à construção de um futuro inclusivo e sustentável.

Realismo e pragmatismo devem caracterizar as políticas de Cabo Verde neste momento particularmente desafiador em que o país, a sair da crise pós-pandémica, enfrenta uma conjuntura internacional de incertezas. Considerando que cerca de 80% das importações e exportações do país é com a Europa e que também daí vem o grosso da ajuda externa, das remessas dos emigrantes e do investimento externo e se situa o ponto de origem do fluxo do turismo que contribui para 25% da economia nacional, faz todo o sentido que seja o principal foco da atenção estratégica do país. Aumentar o potencial do país é fundamental assim como é de suma importância estar atento às mudanças e saber ajustar-se com vantagens.

O aprofundamento da parceria especial com a União Europeia que o PR incentiva no actual momento de viragem da União Europeia tem particular urgência neste momento em se está a sinalizar que a comunhão de valores e princípios democráticos e liberais é fundamental para a solidariedade entre as democracias e vai ganhar mais peso nas relações económicas futuras que se querem mais resilientes. Os tempos recentes da pandemia demonstraram como foi importante para Cabo Verde a solidariedade do Ocidente nas vacinas e na ajuda bilateral e multilateral para que o pior da crise fosse ultrapassado. O futuro próximo está cheio de incertezas e desafios importantes colocados, seja pela ameaça ainda presente do coronavírus e dos constrangimentos no abastecimento, seja pelas alterações climáticas e pela transição energética que para serem ultrapassados exigem que se reforce e se aprofunde a cooperação com outros países, em particular com aqueles com quem se partilham valores e se tem o maior nível de integração económica. Há que ser pertinente e inteligente para ser bem-sucedido. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1067 de 11 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 09, 2022

Mais responsabilidade constitucional

 No debate parlamentar com o Primeiro-ministro sobre Segurança que teve lugar na semana passada aconteceu um acto inédito. O PM fez um requerimento à Mesa da Assembleia Nacional para obrigar os deputados do Paicv a entregar provas das denúncias de escutas telefónicas ilegais e uso indevido de videovigilância.

O próprio PM confessou que não sabe se o governo pode solicitar um requerimento ao parlamento. De facto, o artigo 114º não inclui fazer requerimentos no uso da palavra pelos membros do governo enquanto para os deputados está claramente estabelecido na alínea g) do artigo 111º. Por outro lado, consideram-se requerimentos só os pedidos respeitantes ao processo de apresentação, discussão e votação ou ao funcionamento da reunião (artigo 121º). Não parece que tenham cabimento na dinâmica de um debate em sede de fiscalização política do governo em que “a uma acusação política se responde com uma refutação política”. Mesmo assim foi-se avante com o requerimento, mas ninguém espera que tenha quaisquer efeitos práticos.

Exigir entrega de provas das denúncias só contribuiu para cortar a meio o debate e para o transformar em mais um exercício de arremesso político prejudicando ainda mais a imagem já desgastada do parlamento. É seguir pelo caminho da judicialização da política que de facto atenta contra a liberdade de expressão dos deputados como bem referem vários constitucionalistas e põe em perigo a eficácia do parlamento como órgão de soberania que fiscaliza a acção governativa. Ainda bem que existem as imunidades incluindo a irresponsabilidade civil, criminal e disciplinar do deputado em relação a tudo o que é dito na plenária da assembleia nacional para que os pesos e contrapesos funcionem na democracia e haja accountability, ou seja, a responsabilização e a prestação de contas por todos os actos praticados por quem tem o mandato, os recursos e os meios para governar. Tentar coartar isso é que pode configurar um ataque às instituições democráticas em particular àquela onde os cidadãos estão representados no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.

De facto, dar vazão a queixas ou denúncias de cidadãos de eventual uso ilícito e ilegal de escutas telefónicas ou outros meios de vigilância electrónica no quadro de um debate parlamentar com o PM não devia ser visto como ataque a serviços ou departamentos do Estado como a polícia e serviços de informação que estão sob a direcção ou superintendência do governo da república. Em causa estão direitos fundamentais dos cidadãos para cuja defesa todos os órgãos de soberania numa democracia liberal e constitucional têm especial obrigação de activamente contribuir. E a verdade é que possibilidades de abuso desses meios na investigação criminal e no âmbito da recolha de informações por razões de segurança existem sempre mesmo nas democracias mais maduras e com sistemas de controlo judicial e outros dos mais estritos.

São conhecidos casos que de tempos em tempos vêm a público na América e na Europa de atropelos diversos e que depois levam a inquéritos, revisão dos procedimentos e aprimoramento dos mecanismos de controlo. Recentemente foi revelado o caso de escuta dos telemóveis de ministros em Espanha e um pouco antes de um caso similar de escuta de personalidades da Catalunha que já tinha sido alvo de denúncias da oposição e dos separatistas catalães. No caso de Cabo Verde, em que a democracia é menos madura e em que se está praticamente no início da criação de uma cultura institucional respeitadora dos direitos, é fundamental que da parte do governo haja uma preocupação e uma disposição por fazer os serviços sob sua responsabilidade, cumprir o legalmente estabelecido e estar atento a todas insuficiências, omissões e uso ilícito dos meios disponibilizados. Para além das auditorias que por iniciativa própria deve promover, queixas e denúncias dos cidadãos devem ser investigadas como forma também de avaliar o sistema, tendo sempre em conta que do Estado se espera em primeiro lugar que garanta a segurança, a liberdade e a privacidade de cada cidadão.

Tomar denúncias no parlamento como ataques a departamentos e serviços do estado em vez de aproveitar para esclarecer situações e procedimentos existentes e também de refutar acusações se as houver ou avançar com investigação quando se mostrar necessário retira o aspecto construtivo do que legitimamente se devia esperar do debate entre situação e oposição. Pelo contrário, tende-se a personalizar as críticas feitas e tomá-las como sendo dirigidas aos profissionais do sector, sejam eles polícias, professores, médicos e enfermeiros ou outras classes de funcionários públicos. Na sequência, o que se nota é que o debate degradar-se, passando as partes a competir para mostrar quem é o melhor a proteger essas classes de profissionais em salários, benefícios e meios disponibilizados como se tudo isso se tratasse de uma corrida eleitoral para assegurar votos. Evidentemente que num ambiente assim as razões para o debate perdem-se pelo caminho e as questões reais e urgentes de segurança, de qualidade do ensino, eficácia da justiça, e de resultados de políticas em vários outros sectores passam para o segundo plano.

Recorrentemente as mesmas matérias regressam para o debate e invariavelmente acontece o mesmo. Privilegia-se o apelo a sentimentos e a identidades artificiais, factos não são reconhecidos ou vistos em contexto e no fim o que prevalece é a “cor da camisola” deixando pouco espaço para compromissos e consensos. Infelizmente as alternâncias na governação e na oposição não se têm prestado para melhorar a situação com diminuição da crispação e o firmar de acordos tácitos que permitisse quebrar o círculo vicioso actual. Parece faltar o que alguns chamam de “responsabilidade constitucional” que leva a que se cumpram as regras do jogo democrático para que as virtualidades do pluralismo, da diversidade e do exercício do contraditório se conjugam para realizar o interesse colectivo. Mais forte tem sido a tentação pelo personalismo na política que depois acaba por se traduzir em falhas repetidas no funcionamento de órgãos de poder político ao nível central e local e em protagonismos desajustados de figuras públicas com responsabilidade.

O facto de nem as sucessivas crises, com o seu impacto dramático e até assustador criando muitas incertezas para o futuro, se mostrarem suficientes para mudar o estado de coisas na esfera pública, é realmente preocupante. Ainda não se consegue focar nos desafios que se colocam ao país mesmo quando a conjuntura é terrível e incerta. Também não há atitude de contenção como se pode ver pelos festivais com dinheiro público já anunciados, tornando difícil nutrir o espírito de solidariedade que os tempos actuais exigem. Paradoxalmente, como se nada tivesse acontecido – guerra, aumentos brutais de preços, endividamento rápido do país - parece reinar ainda o eleitoralismo mesmo sem eleições à vista, como se viu na última sessão do parlamento. Em consequência, não se deixa que mesmo os problemas mais candentes e urgentes de Cabo Verde sejam tratados com seriedade e sentido de responsabilidade. Todos, porém, devem reconhecer que a situação do país e do mundo não permite que isso continue. Urge uma mudança de rumo e de atitude.   

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1066 de 4 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 02, 2022

Com a desglobalização em curso passos falsos pagam-se mais caros

 

As reuniões de Abril das instituições de Bretton Woods ficaram marcadas pela más notícias que dominam a actual conjuntura mundial. A previsão do crescimento mundial foi revista em baixa em cerca de 1,3%. Espera-se inflação à volta dos 5,7% nos países desenvolvidos e 8,7% nos países em desenvolvimento e um maior risco de incumprimento no serviço da dívida pública de muitos países, em particular os menos desenvolvidos. Fala-se abertamente do fim da globalização pelo menos na forma como se tem até agora processado e que se caracteriza pela capacidade de bens, pessoas e capital se moverem livremente para onde são mais produtivos. Nesse sentido, a expectativa é que o futuro seja de um mundo bipolar ou multipolar e com maior enfase na regionalização. Também é previsível que, no que alguns já chamam de nova ordem mundial, para além do aumento das tensões globais, haja perdas de eficiência na circulação dos produtos com impacto geral nos preços de bens e serviços.

Para a Secretária do Tesouro dos Estados Unidos da América, Janet Yellen, num discurso proferido uma semana antes das reuniões do FMI e do Banco Mundial (13 de Abril), a emergência de uma nova ordem internacional é já uma realidade incontornável. Por causa da invasão da Ucrânia, as sanções aplicadas à Rússia irão transformá-la num país pária ficando também de fora dessa nova ordem os países cúmplices nas tentativas de contornar as medidas punitivas do mundo ocidental. Segundo Yellen, se com a globalização aconteceu muito do offshoring das empresas no processo de construção das cadeias globais de valor, e mais recentemente as tentações proteccionistas clamaram por onshoring para recuperar postos de trabalho e rendimentos perdidos, agora a questão deve ser posta numa nova perspectiva que é de friendly-shoring.

A preocupação já não é só eficiência, mas também resiliência e isso é um compromisso que se consegue criando cadeias de abastecimento e de valor, mas só com países que comungam dos mesmos princípios e valores e dão garantias num quadro de uma ordem que funciona com regras estabelecidas em matéria designadamente de concorrência, respeito pela propriedade intelectual e regime laboral. Janet Yellen foi clara na sua intervenção que não é de admitir no novo bloco económico países que com força de mercado em matérias-primas, tecnologias ou outros produtos abusem desse poder e criem constrangimentos aos outros para ganhar vantagens geopolíticas. Aparentemente no quadro dessa nova ordem a selecção de países para o chamado friendly-shoring vai ser mais rigoroso, não deixando muito espaço para países que ora pendem para um lado, ora para outro, muito no estilo da política dos países não-alinhados dos tempos da Guerra Fria.

A verdade é que agora o que está em jogo não são só questões ideológicas ou mesmo rivalidades dos blocos militares de outrora. Trata-se de segurança económica e também de enfrentar desafios da transição energética, de se ajustar a um mundo dominado pelo digital, preparar-se para futuras crises pandémicas e de cooperar na resposta global às alterações climáticas. Não dá para ter parceiros em cima do muro. Essa é uma das razões para a forte reacção negativa do Ocidente à abstenção na matéria de suspensão da Rússia da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Dos 143 países que pouco tempo antes tinham condenado a invasão da Ucrânia só 93 concordaram em aprovar a resolução de suspensão. O facto é que a agressão da Rússia continua e ameaça alastrar-se ainda mais para assegurar o controlo do Leste e Sul da Ucrânia e possivelmente incluindo a Transnístria que é parte da Moldávia. E a situação perigosa que se desenha é de um conflito durável e mais alargado e com risco de envolver armas nucleares, possibilidade não excluída por muitos e que não deixa muito espaço para posições ambíguas que talvez antes eram possíveis.

Cabo Verde vai ter que encontrar o seu lugar nesta ordem emergente com características muito próprias e desafios ainda desconhecidos. No desenvolvimento de uma estratégia própria para se enquadrar no novo quadro mundial certamente que terá em perspectiva o seu ponto de partida. Cabo Verde é hoje uma democracia liberal e tem uma economia altamente integrada na economia do Ocidente, também democrático e liberal, para onde mais exporta, de onde mais importa e vem a quase totalidade do fluxo turístico e do investimento directo estrangeiro, de quem recebe a maior parte da ajuda externa e é a origem das remessas das suas comunidades emigradas. Actualmente, o país está ainda a sofrer o impacto de crises sucessivas, seca, covid-19 e guerra na Ucrânia que têm contribuído para o excesso da dívida pública, para alta de preços e para as dificuldades em fazer a retoma da economia. No meio de todas as incertezas presentes devia ser claro que não há espaço para posições equívocas quando democracias são ameaçadas. Também faz todo o sentido que se procure aproveitar as oportunidades que uma reconfiguração das cadeias de valor venha oferecer na lógica do friendly-shoring.

A parceria especial com a União Europeia tem merecido o consenso de todo os governos e certamente que haverá apoio generalizado para o seu reforço. Neste momento em que o processo de globalização sofre um recuo e possível reconfiguração em blocos económicos é de se servir da base extensa de interacção que já existe e da convergência de princípios e valores para se proceder numa ancoragem mais firme na zona económica em que efectivamente o país funciona. O foco nesse sentido não deve excluir a possibilidade de exploração de outras parcerias, mas sempre tendo em vista os constrangimentos existentes como bem apontou o secretário geral da Zona de Comércio Livre Continental Africana, ZCLCA, quando se referiu ao problema da conectividade das ilhas com as economias do continente. De facto, o comércio intercontinental é ainda menos que 20%, comparado com os mais 60% da Europa, 40% das Américas e 30% da Ásia. Sem um volume de comércio aceitável não há como sustentar tráfego marítimo e aéreo regular.

Qualquer estratégia para ser eficaz precisa fazer a devida ponderação das situações, ter sempre em mente os objectivos e saber a todo o momento quais as prioridades a atingir. Mais do que nunca, principalmente por causa dos grandes desafios que se colocam, esperam-se resultados e não exercícios do mais do mesmo em que governação efectiva é substituída por política de espectáculo. Eficiências exigidas nestes tempos de magros recursos conseguem-se evitando protagonismos excessivos e desencontrados que retiram consistência às políticas apresentadas, prejudicam a cooperação e mesmo a solidariedade entre os seus principais agentes e minam a confiança de quem quer ver coerência na governação. É preciso ter em atenção que no mundo polarizado de hoje passos falsos pagam-se mais caros e oportunidades perdidas não se repetem com facilidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1065 de 27 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 25, 2022

Valorizar o capital humano só depende nós

 Há uma semana atrás o governo anunciou o investimento do Banco Mundial no valor de 26 milhões de dólares no projecto de Capital Humano. Para o Vice-Primeiro-ministro o financiamento vem no momento crucial quando o país saído da pandemia precisa apostar na formação e na inclusão.

O foco do Banco Mundial é reduzir a extrema pobreza e aumentar a prosperidade partilhada. Daí o projecto ter uma componente habitacional e outra de protecção social para além do que especificamente apresenta no sector da educação em matéria de reforma curricular, formação de professores e desenvolvimento de competências para a empregabilidade. A sensação de déjà-vu que acompanha esse tipo de cerimoniais faz pensar que mais se está a administrar uma espécie de paliativos para a situação sócio-económica difícil do que a romper com o círculo vicioso que impede resultados no desenvolvimento do capital humano à altura dos investimentos feitos.

Em 2019, já se tinha avançado com um projecto também do Banco Mundial de 10 milhões de dólares para a melhoria do sector da educação e formação. Outros projectos de vários milhões financiados pela cooperação internacional têm sido implementados ao longo de décadas. Anualmente fatias apreciáveis do Orçamento do Estado atingindo somas de mais de 10 milhões de contos em 2021, cerca de um quinto do total do OE, têm sido aplicadas no sector. Não obstante todo esse esforço, os resultados não têm sido os melhores. Segundo estudos feitos pelo Banco Mundial em 2019, Cabo Verde quando comparado com os países vizinhos destaca-se pela falta de capital humano com as competências alinhadas com as necessidades do mercado. Também foi em Cabo Verde entre os países da CEDEAO que as empresas apontaram a falta de capital humano qualificado como o maior constrangimento ao crescimento da economia e ao desenvolvimento.

Curiosamente Cabo Verde destaca-se ainda pela negativa por pertencer a uma pequena lista de países que não tem dados internacionalmente comparáveis de resultados de aprendizagem. É dos poucos países do mundo que não aparece no Índice de Capital Humano produzido pelo Banco Mundial. De acordo com o referido estudo do BM, foi em 2019 que através do projecto de melhoria da educação e formação se implementou um dos primeiros sistemas de avaliação nacional do ensino para leitura e matemática no 2º e 6º do ensino básico. A grande questão que salta logo à vista é como é que o país se permitiu investir tanto no sector da educação, incluindo não só verbas do Estado como também a contribuição financeira das famílias e o esforço e a expectativa dos pais e alunos, sem que se tenha procurado avaliar o grau de eficiência, qualidade e de satisfação com que todos esses recursos e toda a energia dos envolvidos estavam a ser aplicados.

Hoje é geralmente assumido que os recursos humanos constituem a base da riqueza das nações. Países podem ter mais ou menos recursos naturais e até estratégicos, beneficiar ou não de outros factores como geolocalização privilegiada ou ter uma história que lhes dificulta ou facilita na relação com o resto do mundo, mas todos têm um potencial a explorar e a expandir nas suas gentes. A rapidez e o nível de prosperidade que conseguirem atingir irá depender do investimento feito nos recursos humanos, em particular na qualidade do sistema de ensino a todos os níveis e no sistema de formação profissional. É isso que lhes permite adquirir conhecimento, aumentar a competitividade e produtividade e inovar nos produtos, processos e tecnologias para se desenvolverem e serem bem-sucedidos num mundo em que a economia cada vez mais se baseia no conhecimento.

Países pequenos e de sucesso como Singapura e Estónia e vários outros sem grandes recursos naturais são exemplos de uma aposta forte e mundialmente reconhecida na qualificação dos seus recursos humanos. Para um país como Cabo Verde a escolha devia ser óbvia até porque praticamente não tem outros recursos. Infelizmente ficou-se por uma visão estreita que acabou por se fixar na massificação do ensino e por se preocupar fundamentalmente com o acesso, seja no básico, secundário e universitário. De acordo com o estudo do BM, ao nível secundário não se deu suficiente atenção aos resultados da aprendizagem nem às taxas de repetência e de abandono escolar. Ainda segundo o documento o sistema de formação profissional é fragmentado e funciona movido pela oferta, mas sem estar alinhado com as oportunidades de emprego e a procura do mercado. A exemplo de outros sistemas ligados aos recursos humanos pouca atenção é dada aos resultados em termos de qualidade e empregabilidade afectando directamente os muitos jovens que não terminam o ensino secundário e procuram outras alternativas. E sem uma parceria estreita com o sector privado a formação profissional fica na dependência de doadores para a sua sustentabilidade.

A prioridade de Cabo Verde devia ser a qualidade dos seus recursos humanos e nesse sentido primar pela excelência do seu sistema de ensino. Aliás, é o que se esperaria quando se escolhe como patrono do Dia do Professor o doutor Baltasar Lopes da Silva. Seguindo o seu exemplo em toda a gente e especialmente entre os jovens e os professores devia-se cultivar o gosto pelo estudo e pela procura de conhecimento. Este sábado, dia 23 de Abril, Baltasar Lopes completaria 115 anos e certamente que lá do alto gostaria de saber que os professores não só lutam pelos seus direitos e respeitabilidade da sua profissão como se posicionam na linha de frente do combate pela qualidade do ensino em Cabo Verde. Um combate que incentive a excelência, tanto na prestação do professor como do aluno, valorize o mérito e contribua para inverter a falta de qualidade no ensino que, segundo o estudo do Banco Mundial, também resulta de níveis baixos de qualificações dos professores.

Neste dia 23 de Abril, que é também dedicado ao Livro, devia-se renovar o esforço para acabar com a situação que vem de há mais de quatro décadas em que as crianças e jovens mal fazem uso de manuais e livros nos seus estudos. Aliás, várias gerações de professores passaram pelos mesmos constrangimentos e não é de estranhar que continuando a existir carências de manuais, livros e bibliotecas o gosto pela leitura esteja em queda livre. Urge quebrar esse círculo vicioso porque sem hábito de leitura e de estudo não há como o país realmente desenvolver-se e prosperar recorrendo ao único recurso que realmente tem que sãos os seus homens, mulheres, crianças e jovens. Para fazer isso, a vontade é apenas nossa assim como a responsabilidade de a não fazer. Projectos e milhões podem ajudar, mas só se existir vontade e perseverança para seguir esse caminho e um sentido de dignidade para não continuar na dependência dos outros. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1064 de 20 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 18, 2022

Democracia vs. autocracia

 

A resistência corajosa do exército e da população ucraniana à ofensiva russa tem sido servido de inspiração para muitos que se revêem nos ideais da liberdade e da democracia.

Na sequência de invasão e com as manifestações de solidariedade sem precedentes com a Ucrânia renovou-se a convicção de que os países democráticos devem responder com firmeza às incursões agressivas das autocracias. Em alguns sectores mais optimistas até se considerou que com a nova euforia à volta dos valores democráticos mesmo nas democracias seria possível pôr um travão ao avanço de forças iliberais tanto da extrema direita como da extrema esquerda, algumas delas com ligações ao presidente Putin. As eleições recentes na semana passada na Hungria e na França vieram, porém, demonstrar que a realidade é mais complexa do que se pensa.

É verdade que sentimentos de indignação e de solidariedade por causa da guerra têm estado na base da unidade de propósitos das democracias em matérias como sanções económicas e financeiras, apoio aos milhões de refugiados e fornecimento em tempo de armas para conter o ímpeto russo e eventualmente empurrar as suas forças para além das fronteiras internacionalmente reconhecidas. Seria um desenvolvimento extraordinário que esses sentimentos também tivessem um impacto na política interna das democracias, quase todas elas, em maior ou menor grau, com sintomas de crise no quadro do que se convencionou chamar de recessão democrática. As eleições referidas, que na Hungria deram a Viktor Orbán a sua quarta maioria folgada e na França colocaram a candidata da extrema direita, Marine Le Pen na sua melhor posição de sempre para a conquista da presidência na segunda volta, vieram desfazer qualquer ilusão a esse respeito.

Também nos Estados Unidos o apoio ao partido republicano não parece ter sido beliscado pela proximidade de Putin a vários dos seus dignatários, a começar por Donald Trump, nem por posturas populistas que contribuem para descrédito das instituições como as evidenciadas na confirmação pelo Senado da Juíza Ketanji Jackson. São exemplos que contrariam a hipótese aventada por alguns analistas de que a solidariedade com a Ucrânia fosse o ponto de partida para um novo entusiasmo pelos valores liberais, reminiscente dos anos 1989-90 da queda do Muro de Berlim e do fim do império soviético, que contribuísse para pôr um travão à deriva populista nas democracias.

A crise da democracia e das suas instituições têm certamente outras causas que levam as pessoas a não se sentirem representadas e a se verem impedidas de uma participação efectiva. A frustração e o ressentimento que daí resulta torna-as alvo de discursos políticos que em regra trazem à baila humilhações imaginárias, fomentam sentimentos anti-elitistas, alimentam teorias conspirativas e xenófobas e fazem apologia do chefe único, autêntico e cuja vontade confunde-se com a vontade do povo. Não espanta, pois, que regimes autocráticos estejam em ascensão e que mesmo nas democracias derivas iliberais sejam tentadas.

Vários desenvolvimentos recentes como a globalização, as novas tecnologias de informação e comunicação e as redes sociais facultaram às pessoas plataformas para interagirem, se informarem, produzir informação e se associarem numa escala nunca antes atingida. Se em termos globais os resultados da globalização têm sido extraordinários na diminuição do número de pobres e no aumento da riqueza produzida, a verdade é que tem aparecido disparidades enormes tanto à escala mundial como nacional e local. O resultado para uns tem sido degradação dos níveis de vida com diminuição do estatuto social e baixa de expectativa em relação ao futuro. Para outros é a marginalização económica e social com risco de serem apanhados nos círculos viciosos da pobreza e pobreza extrema. Ainda para muito poucos tem sido o acumular de uma fatia muito grande da riqueza nacional aumentando a desigualdade social e pondo em causa o contracto social.

O mal-estar, malaise, que é criado depois contribui para a violência social, a criminalidade, a corrupção, o cinismo na política e finalmente o descrédito das instituições. Aparentemente nem a situação de crise existencial como foi recentemente a pandemia da covid-19 consegue mobilizar a energia colectiva necessária para a ultrapassar com o menor custo possível. Em países como os Estados Unidos da América com quase um milhão de mortes em cerca de seis milhões em todo o mundo viu-se como a desinformação desenfreada, atitudes anti-ciência, boicotes de instituições, partidarização do uso de máscaras, teorias de conspiração contra vacinas terão contribuído para o que claramente configura como um numero excessivo de mortes. Ciente dessa situação certos países autocráticos fazem apologia do seu sistema político, supostamente mais eficientes e mais capazes na gestão das crises. Mesmo nas democracias já há forças políticas que abertamente clamam por restrições de direitos, limitações na independência da justiça e maior escopo de acção das forças de segurança para restaurar a ordem ou mesmo a “civilização”. Putin é popular nesses círculos.

Também em Cabo Verde os efeitos da crise da democracia se fazem sentir. Nota-se a erosão das instituições com particular enfoque no parlamento, mas afectando em maior ou menor grau os outros órgãos de soberania e as câmaras municipais. As crises sucessivas, as persistentes vulnerabilidades do país e a crescente dependência do Estado não favorecem um ambiente propício para se reverter a situação. Aos partidos políticos do arco do poder cabe uma maior responsabilidade. O problema é que afectados pelo populismo prevalecente dificilmente terão energia, motivação e foco para fazer o caminho inverso.

O PAICV provavelmente ciente que os desaires eleitorais em boa medida se devem a opções populistas na formulação de políticas e na escolha de dirigentes no seu congresso da semana passada optou por uma política mais conciliatória considerando os extraordinários desafios do país e uma nova abordagem na composição dos seus órgãos dirigentes. A recusa do presidente da câmara municipal da Praia em participar nos órgãos do partido assim reformulados poderá sugerir outros entendimentos e futuros problemas considerando que as eleições autárquicas em 2024 precedem as legislativas de 2026.

O MpD enquanto partido do poder estará sujeito a uma maior pressão para defender a sua actual maioria autárquica e concorrer para um terceiro mandato. Dificilmente a tendência será de mudar o que já existe. Quaisquer alterações de fundo provavelmente irão acontecer na convenção posterior às autárquicas de 2025 e não em 2023. De outros partidos, como a realidade eleitoral do país já demonstrou, fica-se em geral pelo mimetismo do que já se viu em política populista e se assistiu em alguns países.

O grande problema é que Cabo Verde com as incertezas actuais, a pesada dívida pública e os efeitos de crises sucessivas, seca, covid-19 e alta de preços de energia e alimentos não pode esperar para 2026 para melhor se ajustar para enfrentar os desafios. O caminho passará por aprofundar a democracia consciente de que há mais “que nos une do que o que nos separa”. Deriva autocrática é que não é solução. Os primeiros quinze anos de país independente foram elucidativos a esse respeito. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1063 de 13 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 11, 2022

Segurança, um activo estratégico

 

Na semana passada no âmbito de um seminário sobre “operações especiais de prevenção criminal” a Polícia Nacional veio confirmar a percepção de insegurança sentida no país e em particular na Cidade da Praia no ano de 2021. Segundos os dados apresentados pela PN, a criminalidade aumentou em cerca de 33% em relação ao ano 2020.

As razões, de acordo com o ministro da Administração Interna, têm a ver com “a retoma da vida social e económica e o aumento da conflitualidade social”. Entretanto, não se explicita que mecanismos, ambientes ou lugares são os mais propícios ao crime e como combatê-lo para evitar que o regresso a uma certa normalidade não se traduza logo no aumento da criminalidade.

Na comunicação feita ao público, as autoridades trouxeram à baila, talvez pela primeira vez, o papel das armas em circulação no país como um dos factores facilitadores do crime. O Procurador-Geral da República na sua intervenção considerou que o número de ocorrências criminais com armas de fogo é preocupante pela dimensão destas cidades e pelas dimensões do país. Dias antes, a 27 de Março, dois polícias tinham sido baleados quando responderam a uma ocorrência num dos bairros da capital. Na população há muito que existe a percepção do risco acrescido representado pelo uso de armas de fogo nos assaltos e em outros crimes. Não se viu ao longo dos anos o que deviam ser acções efectivas das autoridades em retirar armas da circulação. Menos ainda foi visto um esforço legislativo, regulamentar e operacional para desarmar a população a exemplo do que outros países fizeram quando confrontados com ondas de criminalidade violenta.

É notório o desencontro entre os dados oficiais da criminalidade e a percepção de insegurança pelos cidadãos. As pessoas sentem que há mais assaltos com armas de fogo, mas dos dados apresentados fica-se a saber que “no ano findo a PN apreendeu menos 81 armas artesanais do que em 2020, menos 69 armas convencionais e menos 5.660 munições”. Diz-se que os actuais dados da criminalidade, como que a contramão, interromperam o “ciclo de cinco anos (2016 a 2021), em que consecutivamente se registou diminuição acentuada das ocorrências criminais no país”. A realidade é que a percepção de insegurança persistiu ao longo dos anos com picos, por exemplo, em 2019 que levaram o então Presidente da República a chamar a atenção das autoridades no Dia de Defesa Nacional e na mensagem de Ano Novo para a necessidade de restaurar a tranquilidade e obrigou a embaixada americana a alertar os cidadãos americanos para o aumento de assaltos na Cidade da Praia.

Perante mais um aumento da criminalidade no país não se pode ficar pelo simples aprimoramento das abordagens anteriores que até agora não conseguiram diminuir a sensação de insegurança das pessoas. Segundo o ministro da Administração Interna, pretende-se pôr um foco nas operações especiais de prevenção criminal no quadro de uma estratégia de “frente e inovadora”, visando, sobretudo, a questão que tem que ver com as armas. Para o bem de todos é de desejar que desta vez tenham boa sorte em pôr em prática a estratégia. Um bom começo foi o encontro organizado para discutir essas operações especiais de prevenção do crime em que participaram magistrados do ministério público e magistrados judiciais. Espera-se que depois a responsabilidade pela insegurança não fique diluída nas justificações do tipo a polícia prendeu, mas o tribunal pôs em liberdade. Cabo Verde é um Estado de Direito democrático e todos querem ter a garantia que a polícia actua de acordo com a lei e no estrito respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e que os tribunais são independentes na administração da justiça.

A verdade é que ambientes facilitadores de crimes são por natureza complexos e nem sempre susceptíveis de serem tratados com certas abordagens policiais que fazem lembrar tácticas militares e provocam reacções negativas das comunidades. Em muitos casos depois de megas operações policiais não se vêem apreensões de armas ou de outros produtos ilegais e não se fazem prisões que justifiquem o aparato. A repetição dessas operações agrava a situação porque como não há colaboração das pessoas, não há trabalho prévio de inteligência e os eventuais infractores conseguem escapar, enquanto outras pessoas inocentes são apanhadas na rede e ficam ressentidas com buscas e inquirições que consideram despropositadas.

Constatações similares foram feitas noutras paragens a partir da implementação das políticas de tolerância zero ou da teoria de “broken-window” que levaram a situações de abusos de pessoas e hostilidade das comunidades visadas. Hoje, procura-se fazer uma intervenção mais compreensiva que não fica pela acção policial, envolvendo outras entidades, designadamente o poder local, a sociedade civil e também a própria comunidade. É entendimento de muitos que indo por essa via a acção policial na prevenção do crime ganharia muito em eficiência e eficácia. Os recursos são limitados e nem o uso da tecnologia via sistemas de videovigilância sofisticados pode compensar por deficiências de organização, de estratégia e de colaboração voluntária da comunidade e de outras entidades.

A segurança é um bem necessário e um activo estratégico para o desenvolvimento. Depende essencialmente da vontade do país para ser garantido. Recursos substanciais têm sido investidos no sector sem que haja diminuição da percepção de insegurança da população em particular nos centros urbanos. Com as incertezas do mundo actual o futuro vai depender muito da capacidade de se conseguir realizar o sonho de ter um país de paz e morabeza e aberto ao mundo. Para isso impõe-se uma maior atenção em relação à qualidade dos investimentos e à escolha dos objectivos e prioridades para o sector. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1062 de 6 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 04, 2022

Visão e perseverança

 

Os efeitos da guerra na Ucrânia já se fazem sentir terrivelmente nos preços de todos os produtos a começar pelos combustíveis e bens alimentares. Inaugura-se um novo período de preços voláteis em produtos essenciais devido a tensões geopolíticas e a escassez no mercado a ponto de ruptura de stocks por razões que têm a ver com a diminuição da oferta na origem e por constrangimentos logísticos no transporte e na distribuição.

A tendência para o aumento dos preços já vinha do período da pandemia da covid-19. A guerra, as sanções económicas e financeiras e as tentativas de isolamento da Rússia só a agravou. A crise económica assim gerada tem uma abrangência tal que não deixa nenhum país incólume. Num pequeno país insular e arquipelágico os efeitos tendem a multiplicar-se ainda mais.

Reconhecendo a nova realidade, o governo tomou algumas medidas para diminuir o impacto da subida dos preços dos produtos petrolíferos e alimentares entre as quais a suspensão temporária do mecanismo de fixação de preços dos combustíveis entre Abril e Junho. Nesse período vai-se manter o preço do gás butano e do combustível para a produção de electricidade, enquanto os outros produtos ficarão sujeitos a ajustes até 5%. Já na resposta à alta de preços devido à pandemia já se tinha tomado medidas no sentido da baixa do IVA para energia de 15% para 8%, e de majoração às empresas em 30% dos custos de energia e água e aumento da tarifa social de 30 para 50%. Não se sabe é até quando esta conjuntura de alta de preços vai durar e se haverá recursos que permitirão por tempo mais longo amortecer o choque do aumento dos preços.

Na resolução do governo está-se a contar com alguns mecanismos de compensação para o diferencial entre o preço real e o praticado incluindo impostos e eventual escalonamento e diluição do remanescente a pagar em doze meses. Prevêem-se outras medidas se não houver uma mudança da conjuntura, mas dificilmente vai-se evitar que os aumentos de preços, a persistiram, não serão repassados para os consumidores, afectando a economia no seu todo e diminuindo o poder de compra das populações. A questão que agora se coloca – perante o que claramente se configura como um choque externo que vem em cima de um outro, a pandemia da covid-19 – é em que medida o país se tem preparado para esse tipo de contingências.

É verdade que não era fácil prever a invasão da Ucrânia e o seu impacto no mundo, mas de há muito que se sabe da transição energética que deve ser feita para que as alterações climáticas já manifestas não ganhem proporções catastróficas. Noutros países esse processo é extremamente complexo e com passagens faseadas de carvão ou fuel para gás natural e depois para as energias renováveis. Em Cabo Verde, com o potencial existente na energia o solar e na eólica e a menor dependência numa industrialização de base em combustíveis fósseis, o processo poderia talvez ter sido mais directo e expedito. Vários foram os projectos virados para uso e exploração da energia do sol e do vento que tiveram financiamento ao longo de décadas. Os resultados é que são diminutos em relação aos investimentos feitos.

Segundo o governo, as renováveis constituem 18% da energia actualmente disponível, mas com os financiamentos já acordados com o Banco Mundial espera-se 30% em 2030, e a partir de 2030, 50%. Não se pode dizer que o que existe actualmente e mesmo o que se projecta para o médio prazo seja uma posição adequada ou confortável em termos energéticos, em particular para fazer face a eventuais choques externos. Faz falta uma estratégia clara e assumida por todos para se conseguir a maior independência energética possível. De há muito que isso devia ser óbvio, considerando os preços extremamente altos da energia que enfraqueçam o poder de compra das pessoas e que aumentam os custos das empresas e diminuem a competitividade do país. Acrescenta-se a isso o facto de a transição energética para as renováveis ser algo globalmente incontornável e quem primeiro por aí enveredar mais possibilidades teria de aproveitar as oportunidades abertas no novo mercado energético.

Não agindo de forma compreensiva para as energias renováveis acaba-se por ficar com uma espécie de manta de retalho de projectos que não “somam” para dar o resultado que devia ser expectável de tantos milhões gastos. Em 2010 foram cerca de 30 milhões de euros de uma linha de crédito português que foi investido em parques solares na ilha do Sal e em Santiago. Deviam “produzir 4% do total da energia que existe na rede, mas está a produzir cerca de 1,5% para rede” segundo o então director do CERMI numa entrevista a este jornal em Setembro de 2017. A Cabeólica que segundo o ministro da Indústria e Energia é responsável por quase 20% da energia consumida na rede tem parques eólicos em Santiago, S. Vicente, Sal e na Boa Vista e funciona com um contrato “take or pay” que muitos consideram oneroso para a Electra. Na comemoração dos seus dez anos não se ficou a saber se vai investir para alargar ou criar mais parques eólicos ou se vai continuar com o mesmo contrato, não obstante os efeitos da pandemia na economia e a alta de preços dos combustíveis fósseis. Até agora o consumidor cabo-verdiano ainda não sentiu os efeitos dos investimentos feitos nas energias renováveis nos preços de electricidade.

Também quando não há essa perspectiva abrangente fica-se com um handicap duplo. Nas negociações com os parceiros a tendência é para adoptar a agenda e as prioridades que acompanham a promessa de financiamento sem a devida interligação e encadeamento com o já existente criando ineficiências várias. Por outro lado, sem uma visão própria não se contempla soluções a partir de uma gestão criteriosa de recursos próprios como por exemplo quando a cooperação luxemburguesa teve que financiar painéis fotovoltaicos no valor de cerca de 15 mil contos para que a Assembleia Nacional pudesse poupar 27% da sua factura de energia eléctrica. O uso generalizado de energia fotovoltaica nos serviços do Estado há muito que deveria ter sido feito e com recursos endógenos. Afinal, os serviços funcionam principalmente durante o dia quando o sol brilha e os painéis podem produzir electricidade suficiente para as necessidades das instalações.

Os ganhos teriam sido múltiplos e transversais como por exemplo na factura paga à Electra que diminuiria, nos postos de trabalho para instalação e a manutenção que seriam criados para os jovens formados no CERMI e noutros centros em todas as ilhas e, possivelmente, em menos combustível importado. Considerando ainda o peso do Estado nas compras de painéis solares talvez outras entidades e particulares interessados acabassem por ser beneficiados com preços mais baixos desse tipo de equipamento. O exemplo do parque fotovoltaico da Caixa Económica que em seis meses poupou mil contos na factura da Electra como veio em 2019 relatado neste jornal é ilustrativo a este propósito. Não se tinha, de facto, de esperar por um projecto do Banco Mundial para fazer, com recursos próprios e para criar poupanças múltiplas e dinamizar uma actividade com futuro, o que há muito se deveria ter encetado em nome de mais segurança energética para o país e de uma energia mais barata para todos.

Como nas energias renováveis, também noutros sectores o país precisa engajar-se com agenda própria e prioridades bem definidas. Em certos domínios como segurança, educação com qualidade e sistema de saúde competente e eficaz, que são pressupostos indispensáveis para o desenvolvimento do país, nada pode substituir a vontade própria da nação e dos seus governantes em conseguir resultados significativos e sustentáveis. Ter visão própria e ser perseverante é fundamental para vencer a batalha do futuro nestes tempos de incertezas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1061 de 30 de Março de 2022.

segunda-feira, março 28, 2022

Crise, perigos e oportunidades

 A invasão da Ucrânia pela Rússia a completar quatro semanas amanhã, dia 24, desencadeou uma guerra brutal e destrutiva que não parece ter um fim à vista. A agressão contra a soberania e a integridade territorial da Ucrânia mereceu a condenação da generalidade dos países e provocou uma onda de solidariedade sem precedentes.

A perspectiva do conflito se prolongar ainda por mais tempo e potencialmente tornar-se ainda mais mortífera, seja nas batalhas urbanas para a conquista de cidades, seja num possível alastramento para um ou mais países, é motivo de profunda preocupação, particularmente quando as conversações em curso não deixam saber qual podia ser eventualmente uma saída a contente das partes. Entretanto, para esta sexta-feira, dia 25, o Papa Francisco num acto de profundo significado convidou todas as comunidades de fé a reunirem-se para uma prece pela paz na Ucrânia.

A bravura do povo ucraniano demonstrada na resistência à ofensiva russa e na defesa da liberdade e da democracia tem sido motivo de inspiração para muita gente. Já houve governantes em vários países que fizeram mudanças até há pouco tempo consideradas impensáveis nas políticas de sectores- chave como a energética, as relações externas e a defesa. Várias empresas multinacionais retiraram-se da Rússia por decisão dos seus corpos directivos ou por pressão dos consumidores. Personalidades e organizações da sociedade civil moveram-se decisivamente para bloquear a participação da Rússia em eventos culturais e desportivos. São exemplos de protagonismo surpreendente que fazem lembrar o que Albert Einstein teria dito que “no meio de cada crise encontra-se a grande oportunidade”, mas tendo em atenção o que para John Kennedy a palavra representa em chinês: perigo + oportunidade.

O perigo na crise da guerra da Ucrânia é visível na odisseia forçada de milhões de refugiados que o resto da Europa vai ter que absorver e amparar, na tragédia representada pelos milhares de mortos e pelas cidades destruídas e na possibilidade real de a guerra alastrar-se para outros países, não se excluindo mesmo uma escalada com utilização de armas nucleares. Também o perigo reside no impacto que estarão a ter as sanções económicas, financeiras e também culturais e desportivas lançadas contra a Rússia que efectivamente estão a torná-lo num estado pária e talvez mais perigoso, mas cujos efeitos fazem ricochete sobre quem as promove. É exemplo disso o aumento dos preços dos combustíveis, da energia, dos alimentos e da generalidade dos bens e serviços que na Europa e na América têm contribuído para taxas de inflação de respectivamente 5,9% e 7,9 % que há décadas não se registavam nesses países. Nos países em desenvolvimento a pressão inflacionista é, em muitos casos maior, e o mais natural é que venham a sofrer ainda mais com a elevação das taxas de juro e outras medidas de política monetária que já estão a verificar-se nos países do Ocidente para assegurar a contenção da inflação.

Aproveitar a oportunidade, ou seja, tudo fazer para conseguir resultados positivos ao mesmo tempo que se mantém consciente do perigo deve ser a atitude a adoptar quando se enfrenta qualquer crise. Como disse bem o antigo presidente da câmara municipal de Chicago, Rahm Emanuel, não se deve desperdiçar uma crise. Deve-se aproveitar para realizar coisas que antes não poderiam ser feitas. É o que se nota agora por causa da crise na Ucrânia e do seu impacto no mundo. Tem sido possível avançar com mudanças completamente inesperadas de políticas em vários domínios beneficiando do apoio popular que não se podia adivinhar à partida. Um caso paradigmático é o que está a verificar-se na Alemanha.

Também é o que acontece, como reconhece Francis Fukuyama num ensaio publicado no Financial Times de 4 de Março, quando a agressão russa na Ucrânia veio relembrar as pessoas das consequências de viver em ditaduras iliberais em que não há liberdade, não se respeitam os direitos fundamentais, os governantes não são escolhidos pelo voto livre e plural e não se instituiu a independência dos tribunais e o primado da lei. A complacência, que de algum tempo vem reinando em muitas democracias perante a erosão dos valores liberais sob os ataques do populismo tanto da direita como da esquerda, segundo este cientista político, poderá estar, com o exemplo da coragem dos ucranianos, a ceder lugar a uma maior consciência da importância da defesa dos valores liberais e ao renovar do espírito de 1989-90 que levou à queda de regimes autoritários e totalitários em todos os continentes.

A consciência dos perigos que acompanham as crises nem sempre é clara e presente. Em consequência fica mais difícil reconhecer que se está a caminhar para pontos de não retorno e tomar as medidas necessárias para os evitar. Muito menos há predisposição para identificar realidades emergentes e as oportunidades que podiam ser aproveitadas. Um exemplo claro disso são as alterações climáticas em relação às quais se está ainda longe de adoptar as medidas conjuntas que se impõem para enfrentar uma ameaça à escala planetária. Aliás, nem mesma a pandemia do SARS-CoV-2, com os seus seis milhões de mortos e quase quinhentos milhões de infectados conseguiu-se evitar o egoísmo e a falta de solidariedade e inculcar o sentido de urgência que a situação requeria. A crer na mensagem que o recente filme da Netflix “Não Olhe para Cima” quis passar, também uma colisão com um asteróide não seria suficiente para focar a atenção das pessoas nas ameaças existenciais que poderão surgir. A invasão da Ucrânia veio mostrar que talvez não seja bem assim.

Em Cabo Verde, da mesma forma, as crises sucessivas não têm servido para se procurar identificar as razões por que não se consegue sair do círculo vicioso que reproduz a precariedade e a vulnerabilidade das populações e do país. As crises em geral tomam a forma de secas que podem durar um ou mais anos ou de choques externos como aconteceu com a crise financeira, a pandemia do coronavírus e agora a guerra na Europa. Em geral, os efeitos das crises são mitigados pela ajuda externa e nesse quadro são regularmente implementados programas de luta contra pobreza cujos resultados não se têm revelado sustentáveis. O país com poucos recursos e pequena população não tem conseguido criar uma estrutura produtiva capaz de efectivamente combater o desemprego, não obstante os enormes investimentos feitos e a grande dívida pública acumulada.

Como não se fica a saber das razões, também não se aproveitam as oportunidades que surgem nas crises para se fazer outras abordagens dos problemas do país, encetar reformas e mudar a atitude. Com o passar dos anos, depois de esperanças goradas postas em clusters, hubs, plataformas e outras iniciativas que supostamente seriam o caminho para a prosperidade do país acaba por prevalecer a ideia que é o sector público o único que parece oferecer menos risco e mais estabilidade de rendimentos. O turismo tem peso, mas como a pandemia acabou por provar que é demasiado sensível a choques externos. Não estranha, pois, a que a dependência do Estado tende a aumentar mesmo abarcando o sector privado que supostamente deveria ser o motor da economia e a base de uma sociedade civil autónoma e interventiva.

Com o reforço do sector público, mais dependência do Estado e menos recursos para dividir, poucos incentivos existem para quebrar o círculo vicioso. Reconhecer que se está a governar na crise, a pior das últimas décadas, talvez possa ser um bom ponto de partida para novas abordagens, para convergências mais profícuas e duradoiras e um foco maior no que é prioritário e serve para construir um futuro com mais sustentabilidade. Os tempos e os exemplos que vêm de fora da luta pela liberdade e democracia deixam perceber que é possível a união e a solidariedade necessárias para se ultrapassar qualquer crise. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1060 de 23 de Março de 2022.