Na última sessão da Assembleia Nacional finalmente houve votação para suspender o deputado Amadeu Oliveira preso há pouco mais de um ano e permitir o seu julgamento em três processos distintos de que é visado. Há meses que o assunto estava a arrastar-se no parlamento e em Abril acabou por ser agendado, mas depois foi adiado.
Desta vez ainda houve tentativas de deixar a matéria para Outubro. A falta de vontade em avançar para o julgamento de casos de tão forte impacto mediático deixa a impressão que para certos sectores de opinião muitas vezes convém deixar certas matérias num estado de indefinição. A busca da verdade é substituída pelo atirar de suspeições, teorias de conspiração e falsidades.
De facto, com a votação da suspensão foram clarificadas duas coisas. Primeiro, agora já não há dúvida que o deputado em prisão preventiva está suspenso das suas funções. Durante muito tempo alimentou-se a ideia de que ele não teria sido suspenso com a resolução da comissão permanente de Julho de 2021 que autorizou a sua detenção para ser submetido a interrogatório judicial. A verdade é que um deputado detido ou em flagrante delito ou por autorização da Assembleia Nacional não tem condições para o exercício pleno do seu mandato e deve ser suspenso como deixa entender o nº 4 do artigo 166ª da Constituição.
Fere a dignidade do parlamento ter um deputado no activo preso além de mudar a configuração do parlamento tanto no número de deputados com na representação partidária saída das eleições legislativas. O parlamento tem funcionado com 71 deputados e a UCID esteve desfalcada de um representante e isso não é aceitável num órgão eleito. Com a falta de clarificação, o deputado Amadeu Oliveira não foi substituído durante todo este tempo.
Mas agora vai ser e é isso que parece ser uma das razões da irritação de muita gente. Uma outra coisa que resultou da votação é que finalmente vai-se ter o julgamento dos três processos de calúnia e difamação interpostos por magistrados, entre os quais juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça. Será a oportunidade para apresentação de provas das acusações feitas e que têm fragilizado bastante o sistema de justiça em Cabo Verde. Uma oportunidade até agora negada em vários adiamentos, o último dos quais quando o acusado se tornou candidato a deputado pela UCID nas legislativas de 2021.
Aparentemente ninguém devia opor-se à clarificação da situação que tem levado a muito desgaste das instituições incluindo o parlamento e o sistema de justiça. Curiosamente o que se vê é a tentação de ir mais a fundo e envolver o presidente da república pedindo que intervenha quando há uma decisão tomada no parlamento por voto secreto sobre o mandato de deputados que também são eleitos directamente pelo povo. Num outro sentido também grave procura-se visar o juiz que decidiu pela prisão preventiva incentivando um clima de hostilidade contra magistrados que não traz benefícios a ninguém.
A reacção excessiva à posição da Assembleia Nacional vinda de sectores da sociedade revela que não são só os políticos e partidos que querem manter indefinida uma série de situações como forma de tornar intermináveis e sem sentido certas discussões. Na sequência da votação alguns zangaram-se porque ficou claro que o deputado está suspenso e não é uma espécie de preso político. Também que o deputado agora vai a julgamento para apresentar provas das acusações em vez de as repetir sempre que tiver oportunidade e até a partir da plenária da Assembleia Nacional. Indefinições são mais apreciadas como se pode constatar ao longo dos debates sobre questões essenciais para o país em que, em vez de se cingir aos factos e se apresentar posições fundamentadas, vai-se para o secundário, recorre-se às emoções e envereda-se pela exploração de sentimentos populistas, anti-elitistas e anti-sistema.
Faz falta um sentido de responsabilidade constitucional que leve as pessoas, e em particular os detentores de cargos políticos, a sentir o quão fundamental é necessário cumprir as regras e defender o sistema. Sendo a democracia num certo sentido um jogo é evidente que não se pode ter um bom jogo atirando pedras contra o sistema e contra os árbitros e impedindo outros de fazer as suas jogadas. Dos “assistentes ou destinatários” desse jogo espera-se que exijam o cumprimento das regras porque com isso estão a garantir de que têm “um bom e gratificante espectáculo”. Momentos de clarificação das questões como o verificado com a votação na Assembleia Nacional são muito importantes porque evitam as derivas anti-sistémicas e permitem que se retome o debate construtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1079 de 3 de Agosto de 2022.