É de saudar a realização ontem, dia 11 de Outubro, da sessão solene da Assembleia Nacional por ocasião do trigésimo aniversário da Constituição de 1992 que inaugurou a II República. Finalmente conseguiu-se reunir os consensos necessários das forças políticas para a celebração da data de entrada em vigor da Lei Fundamental do país. Não foi tarefa fácil. Em outras ocasiões de comemoração de datas redondas da Constituição realizavam-se actividades de natureza académica ou acções de divulgação por iniciativas de um ou outro órgão de soberania de um dos partidos ou de instituto ou universidade, mas nunca era assumida pelo conjunto dos órgãos de soberania e das forças políticas do país.
A assunção da comemoração das datas que definem a II República tem sido paulatina como se pode ver na do dia 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, que só foi merecedora de uma sessão solene em 2017. Compreende-se que tenha sido assim pela persistência até hoje de narrativas e simbolismos legitimadores do antigo regime que ainda de uma forma ou outra convivem em tensão permanente com os princípios e valores da nova Constituição e com a ideia de que o poder só é legítimo se resultar do voto popular, livre e plural. Com o passo dado ontem Cabo Verde junta-se às democracias que rodeiam de maior solenidade a celebração da liberdade, da democracia e da Constituição. E a exemplo do que acontece nos países democráticos cabe ao parlamento enquanto órgão de soberania representativo de todos os cidadãos na pluralidade das suas opiniões e diversidade dos seus interesses organizar as festividades e acolher todos os outros órgãos de soberania.
Todos os intervenientes nas solenidades do dia 11 de Outubro referiram-se à necessidade de se cultivar uma cultura constitucional. Num certo sentido o foco nesse ponto pode ser entendido como resultado de um amplo consenso da necessidade de cumprir e fazer cumprir a Constituição da República. Se assim for é de maior importância porque precisamente vive-se um momento nas democracias em que se nota uma tendência para se contornar as regras, para desafiar o sistema instituído e até explorar o quão longe se consegue ir impunemente em contramão com as práticas de há muito estabelecidas. Exemplos encontram-se por aí proeminentemente na América de Trump, no Brasil de Bolsonaro e nas práticas iliberais em países com a Polónia, a Hungria e a Índia e mais dissimuladamente em quase todas outras democracias. E pode-se imaginar que Cabo Verde certamente não é excepção.
A adopção de uma Constituição resulta no estabelecimento de uma ordem política, económica e social com os seus órgãos, normas, processos e procedimentos. Consegue-se consolidação institucional e adquire-se cultura institucional respeitando os princípios e valores e aplicando as regras existentes. Há ganhos nesse sentido quando no quadro das relações estabelecidas por essa ordem democrática houver reconhecimento e valorização do mérito particularmente no acto de tornar produtiva e construtiva a interacção de pessoas, partidos, empresas e outras entidades e em virá-la para a consecução do bem comum. Perde-se, pelo contrário, quando se deixa passar a impressão que a via para conseguir protagonismo, popularidade e marca de autenticidade na política e na sociedade é com discurso hostil ao parlamento e ao sistema de justiça, com o atiçar de sentimentos anti-partido e com políticas populistas e eleitoralistas.
A questão é saber para que lado apontam os incentivos existentes na sociedade e até no Estado. As tensões ainda existentes de valores, narrativas e legitimidades, a falta de consenso nas questões fundamentais do país e a crispação que torna a política inefectiva em vários aspectos designadamente em matéria de reformas fundamentais não são muito favoráveis à consolidação de uma cultura constitucional como aparentemente desejada por todos. As crises sucessivas que deixaram a claro vulnerabilidades e a precariedade do país e da sua população podiam ter invertido a tendência actual e precipitado a procura de soluções para se ultrapassar o problema. Nota-se, porém, que nem as incertezas no futuro próximo marcado pela guerra na Ucrânia e pela crise energética, realçadas esta terça-feira no World Economic Outlook do FMI com a perspectiva do FMI que “o pior ainda está para vir e para muitas pessoas o ano de 2023 vai saber a uma recessão”, conseguem mudar a postura dos dois principais partidos no seu confronto habitual em tempo de Orçamento do Estado.
O governo ao invés de construir uma narrativa de solidariedade e propor políticas mobilizadoras da vontade geral indispensável para enfrentar os tempos difíceis que se anunciam põe-se na posição de ser acusado de ter um “orçamento egoísta”. O próprio processo de preparação do Orçamento do Estado deixa confuso ou frustrado os interlocutores. Sindicatos e empregadores queixam-se de não terem dados suficientes para participar efectivamente na reunião de concertação social em particular sobre a matéria de rendimentos e salários. Numa inversão dos procedimentos leva-se a proposta de orçamento ao presidente da república antes da entrega ao parlamento que é o órgão de soberania que primeiramente o deve discutir e aprovar e só depois o enviar para promulgação. Também estranho é chamar os partidos para os escutar sobre a proposta que já foi entregue no parlamento onde estão representados. Faz lembrar a socialização das decisões no quadro da “democracia nacional revolucionária” e não como o sistema de governo parlamentar estabelecido na Constituição de 1992 deve funcionar.
A cultura constitucional que todos reclamam que se deve desenvolver não é certamente muito compatível com o “disparar para todos os lados e estar em todos lugares” que parece caracterizar a postura dos actores políticos. Funcionar assim não deixa muito tempo para reflexão nem para a tomada de decisões devidamente ponderadas. Há que ultrapassar as tensões derivadas em particular da actuação de agentes do Estado que prejudicam o aprofundamento da cultura constitucional para que as virtualidades da ordem estabelecida pela Constituição de 1992 sejam desenvolvidas em toda a plenitude. Nestes tempos de incertezas e desafios é fundamental que se desenvolva nas pessoas o sentido de pertença que permita construir uma sociedade inclusiva, voltada para o futuro e construída à volta de um Estado de Direito democrático. E não se deixar enrolar no nacionalismo xenófobo e divisivo, voltado para o passado e que não esconde a sua atracção autocrática.
Humberto Cardoso
Texto publicado originalmente na edição nº1089 do Expresso das Ilhas de 12 de Outubro