O debate sobre a situação da justiça na Assembleia Nacional marcada para a próxima sexta-feira, dia 28 de Outubro, vai acontecer num contexto algo especial em que questões de justiça têm repetidamente vindo à tona e preocupações com a sua eficácia têm sido manifestadas.
Há mais de um ano que a pretexto do caso Amadeu Oliveira individualidades e grupos da sociedade civil têm procurado, através de petições, manifestações, artigos de jornal e debates na rádio e na televisão, problematizar a situação da justiça no país. Sem respostas que considerem convincentes da parte de todo o sistema judicial e dos órgãos de soberania com responsabilidades no funcionamento do regime, a tendência é para uma progressiva descredibilização das instituições e dos seus titulares e a crescente falta de confiança em acreditar que as coisas podem ainda melhorar.
O fenómeno não é só de Cabo Verde e é visível em maior ou menor grau em vários países. Para as democracias, sejam elas novas ou maduras, tais disfunções constituem perigo de morte. É só ver as convulsões sociais que se têm verificado nos Estados Unidos devido a omissões das autoridades no controlo de armas, a actuação enviesada e discriminatória da polícia em relação às minorias e a reversão de direitos via alterações na jurisprudência. Em outras situações, como se viu de forma flagrante no Brasil, recorre-se à politização da justiça para atingir determinados objectivos e inevitavelmente acaba-se por desacreditá-la aos olhos de todos. E a verdade é que quando as coisas dão para o torto e as democracias entram em derrapagem, vários exemplos (Itália, 1992; Reino Unido, 2019; Brasil, 2019) têm demonstrado o papel do sistema judicial em pôr cobro a certas derivas.
Razão importante para que o próximo debate parlamentar sobre a situação da justiça se focar na recuperação da confiança na justiça pelos cidadãos. Democracias não sobrevivem sem a liberdade e a paz que um sistema de justiça independente e eficaz garante. Mas, para recuperar a confiança, o diálogo entre as partes não pode ficar por “tricas e futricas” e acusações mútuas à mistura com promessas e críticas demagógicas e populistas na busca de ganho eleitoral. Também não se pode assumir que os problemas se resumem fundamentalmente à falta de meios e que a solução está simplesmente em disponibilizá-los. Os factos não confirmam isso e de qualquer forma os recursos são finitos e há sempre que ponderar as prioridades nos investimentos e despesas do Estado. Compromissos são necessários nos meios a facultar e compreensão da importância de outros factores para a consecução dos objectivos de justiça é essencial para não se perder em disputas que alimentam uma cultura de irresponsabilização e que a priori justificam insucesso em atingir os níveis de eficácia pretendidos.
Para essa compreensão é fundamental, por exemplo, saber que “o grosso da magistratura judicial já aderiu à cultura de resultados”, como assegurou o presidente do conselho superior da magistratura judicial em entrevista a este jornal. Também saber que persiste um dos pontos fracos do sistema que é a situação de “inexistência de um corpo de inspectores” judiciais para a melhor gestão da magistratura. E que um outro ponto fraco a ultrapassar são os constrangimentos ao funcionamento do sistema de informação judicial que incluem “aversão à mudança e receio de perda de poderes”. O aumento da produtividade no sistema deve, pois, passar por um esforço de optimização na utilização dos meios existentes e numa melhor gestão dos recursos humanos de forma a que se retire o maior retorno de investimentos futuros em instalações e equipamentos e de acréscimos no número de magistrados e funcionários judiciais.
Assegurar a todos ao longo do debate sobre a situação da justiça que a investigação criminal não está a ser prejudicada pela falta de cooperação entre os polícias deverá ainda contribuir para o reforço de confiança no sistema. Há um ano o Procurador Geral da República já tinha chamado a atenção para o problema, dizendo que “a cooperação e a concertação entre os órgãos da polícia criminal ainda estão longe do desejado e desejável, com tendência para regredir e com prejuízo claro para a investigação criminal”. Voltou há poucos dias a referir-se ao problema em sede da comissão parlamentar especializada para a preparação do debate sobre a situação da justiça. Espera-se que o governo que através do ministério da administração interna e do ministério de justiça, tem poderes de superintendência respectivamente sobre a polícia nacional e a polícia judiciária resolva definitivamente a questão. É dos tais constrangimentos que eliminados teriam impacto positivo na diminuição do sentimento de impunidade no cometimento de crimes tanto pela investigação rápida e concertada dos mesmos como, por essa mesma razão, pela redução de prescrições.
Justiça e segurança andam juntas. O slogan da “não justiça” que certos sectores da sociedade têm utilizado em várias intervenções públicas ao longo deste ano traduz tanto o sentimento da não confiança na justiça como o sentimento de insegurança que os casos de assaltos com armas de fogo têm instilado nas pessoas. Em relação à insegurança ainda bem que finalmente o governo levou ao parlamento uma alteração à lei das armas para diminuir e controlar o acesso às armas. Podia ter ido mais longe com uma política de desarmar a população e combater a cultura de uso e posse de armas que vem se enraizando particularmente entre os mais jovens. De qualquer forma espera-se que haja resultados palpáveis na redução de crimes, atenuando a sobrecarga dos tribunais, e que do lado do sistema judicial se sinta um maior engajamento para efectivamente diminuir a morosidade da justiça.
No debate sobre a situação da justiça as forças políticas e o governo deverão encontrar pontos de convergência que tornem realizável o objectivo geral de mais segurança e mais justiça. Garantir a segurança de todos, a todos os níveis, é uma responsabilidade fundamental do Estado e uma peça central da estratégia de desenvolvimento do país. Reforçar a confiança na justiça é essencial na democracia, para a credibilidade das instituições e para o exercício pleno da cidadania.
Humberto Cardoso
Texto publicado originalmente na edição nº1091 do Expresso das Ilhas de 26 de Outubro