segunda-feira, janeiro 16, 2023

Em defesa da democracia, celebrar o 13 de Janeiro

 

O ano 2022 trouxe boas notícias para a democracia com a contenção pela via eleitoral de movimentos populistas em vários países com destaque para a França, Estados Unidos e Brasil. A democracia liberal ganhou também um grande alento com a solidariedade mundial demonstrada ao povo ucraniano pela coragem na luta pela sua liberdade, integridade territorial e autonomia na escolha do seu futuro. Já o ano 2023, logo no seu início com os acontecimentos de Brasília do dia 8 de Janeiro, veio relembrar com particular estridência que a democracia ainda tem muitos inimigos e que o descontentamento que grassa em franjas significativas da população em relação ao funcionamento das instituições e a actuação da classe política pode ser utilizado para a enfraquecer ou mesmo destruir.

A dois dias de celebração do 13 de Janeiro, “Dia da Liberdade e da Democracia”, é fundamental que se tenha presente a importância de se salvaguardar a democracia e o seu sistema de valores. Isso é particularmente urgente quando sistemas rivais e diametralmente opostos em matéria de respeito pela dignidade humana, pluralismo, separação dos poderes e o primado da lei ainda são brandidos como recomendáveis ou mesmo superiores. O desafio nos tempos actuais feito à democracia liberal não se limita às criticas dos descontentes que sempre teve ao nível nacional. Vai mais longe com ataques às instituições-chave do Estado de Direito democrático, como se viu agora no Brasil e há dois anos atrás nos Estados Unidos da América, e com ramificações incluindo financiamentos e outros apoios internacionais num quadro que estará a desenhar-se de rivalidade entre as democracias e as autocracias.

Hoje é facto assente que Winston Churchill tinha razão quando disse que “a democracia é pior forma de governo à excepção de todos os outros experimentados ao longo da história”. Para os cabo-verdianos que iniciaram da sua livre vontade, bem expressa nas urnas há 32 anos atrás a experiência com a democracia, a frase de Churchill confirma-se plenamente. Apesar das suas insuficiências, é facto que a prosperidade acompanhada de liberdade e de autoestima que se ganhou com a democracia e a transição para a economia de mercado não tem paralelo com o cinzentismo da vida no regime de partido único e o crescimento raso do PIB que caracterizou os seus derradeiros anos.

Historicamente as democracias têm provado que são mais capazes de potenciar os recursos naturais e humanos do país para criar riqueza e fazer uma redistribuição mais equitativa. Na África, por exemplo o Botswana, com os seus diamantes e a sua democracia, destacou-se sempre nas melhores posições em todos os rankings enquanto outros países com grandes recursos minerais e petrolíferos sobre endividam-se, apresentam grandes desigualdades sociais e níveis elevados de corrupção. Já na maioria esmagadora dos países que adoptaram regimes autocráticos não se verificou o desenvolvimento desejável ou expectável.

Só aconteceu em alguns países como Singapura e China que sustentaram durante décadas taxas de crescimento próximo de dois dígitos e agora parece que Ruanda e o Vietname estarão a ir pelo mesmo caminho. São casos raros em que de alguma forma os regimes viram o crescimento acelerado como factor de legitimação do regime. Em Cabo Verde, a autocracia também não funcionou talvez porque a base de legitimidade era outra e durou até quando o povo teve oportunidade de livremente fazer a escolha dos seus governantes.

Estão, pois, muito equivocados os renascentes saudosistas do regime de partido único que pretendem hoje resolver os problemas económicos do país, designadamente dos transportes, abastecimento e energia recorrendo às fórmulas estatizadas do antigamente que já na época eram ineficientes e no contexto actual não têm qualquer cabimento. Do mesmo modo se enganam os que parecem sugerir que a existência de milícias e tribunais de zona, órgãos revolucionários de base local próprios do regime anterior, poderia prevenir problemas de violência e criminalidade nas comunidades. A verdade é que não se pode avançar construtivamente no debate sobre a economia nacional contrapondo sistematicamente fórmulas antigas de governação e pretensos resultados obtidos à realidade presente.

Também no plano social não se consegue encarar devidamente o impacto negativo no tecido social do país de décadas de políticas que levaram à atomização da sociedade, ao aumento da dependência das pessoas em relação ao Estado, à perda da confiança interpessoal e a correspondente diminuição do capital social e do civismo. E sem isso pode-se alocar mais e mais recursos, mas é mais provável que os resultados fiquem aquém do desejado como tem acontecido. O mais complicado é que nem mesmo o espectáculo de, na sequência de megaoperações policiais, se ver milhares de armas brancas confiscadas em particular aos jovens, de se constatar a posse ilegal de centenas de armas de fogo em buscas e de se descobrir nas pequenas encomendas mais de oito mil balas que seriam para venda ilegal parece despertar para um diálogo mais profundo sobre o que claramente são as causas do problema e encontrar a abordagem mais compreensiva e eficaz para os resolver. Ilusões sobre o passado não podem constituir-se em obstáculo para o debate que deve ser feito.

A democracia tem os seus problemas e as suas imperfeições e nem sempre parece estar à altura das suas promessas, em particular quando se trata de levar prosperidade a todos. Apesar de tudo, como se pôde constatar durante a pandemia da Covid-19, é o regime que, quando enfrenta desafios da mais variada ordem e gravidade, permite mais criatividade e inovação na procura de soluções e o que mais fácil permite identificar erros cometidos e mudar para políticas que funcionam. Para que possa revelar todas suas virtualidades e estar à altura do que todos esperam do sistema democrático é fundamental que o seu núcleo central constituído por instituições, normas e regras procedimentais seja respeitado, protegido e seguido por todos, especialmente pelos seus titulares.

O choque sentido mundialmente aquando dos acontecimentos de Brasília traduz o sentimento de profunda inquietação que se seguiria ao desmoronar das instituições que todos têm por asseguradas. Esquece-se demasiadas vezes que para evitar isso é fundamental que todos cumpram com as suas competências, com a integridade e carácter de quem serve o público e não se serve das suas funções para ganho pessoal. Do Brasil ainda vieram outros avisos. Um deles que corrobora o que já se tinha verificado nos Estados Unidos quanto à importância do sistema judicial na protecção da democracia nos momentos críticos. Um outro também fundamental é papel das forças armadas nas democracias. Não são nem anteriores ao Estado, nem estão acima do Estado, ou tutelam a democracia. São defensoras da ordem constitucional vigente e subordinam-se ao poder civil e como tal devem ser imunes aos apelos de grupos extremistas, saudosistas ou revisionistas nos embates contra a democracia.

Ainda uma questão importante é o papel do presidente da república. Órgão singular, o PR é eleito directamente pelo povo, como bem diz António Barreto num artigo do jornal Público de 7 de Janeiro “para acrescentar legitimidade e solidez ao edifício do Estado democrático. Não para vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar”. Nestes momentos de crise da democracia, em que para além dos descontentes há que ter em conta inimigos, não há talvez nada mais fundamental do que essa função de manter a integridade do Estado de Direito Democrático.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1102 de 11 de Janeiro  de 2023.

segunda-feira, janeiro 02, 2023

Em 2022 o mundo mudou

 

É hoje ponto geralmente assente que o mundo mudou em 2022. Ao longo da década passada grandes mudanças já se vinham verificando a todos os níveis designadamente políticos, económicos, sociais e culturais. É hoje ponto geralmente assente que o mundo mudou em 2022. Ao longo da década passada grandes mudanças já se vinham verificando a todos os níveis designadamente políticos, económicos, sociais e culturais. À semelhança dos movimentos tectónicos, durantes anos essas mudanças passaram quase despercebidas para subitamente se manifestarem em terramotos a criar novas realidades geopolíticas e geoeconómicas e em tsunamis a deixar um rasto de destruição e pobreza após a sua passagem. A pandemia da Covid-19 intensificou o processo, mas foi a invasão da Ucrânia pela Rússia e a guerra subsequente que provocou a ruptura no mundo, interrompendo a globalização que se tinha tornado galopante no pós-Guerra Fria e queda do Muro de Berlim.

A guerra e as sanções dos Estados Unidos, da Europa e seus aliados sobre a Rússia que se seguiram, abrangendo em particular os sectores comercial, financeiro e tecnológico, forçaram um realinhamento global. Alguns países pretenderam mostrar-se neutros (África), outros aproveitaram para fazer negócios de oportunidade com a Rússia (Índia) e uns poucos sinalizaram disponibilidade para contornar sanções e fornecer material de guerra (Irão, Coreia do Norte). A reacção da Rússia às sanções, pela via de instrumentalização do fornecimento de petróleo e gás e pelo bloqueio das exportações de cereais e outros produtos da Ucrânia, fez disparar o preço dos combustíveis e dos alimentos a nível mundial contribuindo grandemente para o aumento geral da inflação.

O que normalmente seria um factor que poderia indispor uma parte importante da comunidade das nações contra a Rússia acabou por revelar-se mais uma fractura no apoio que o Ocidente esperava contar. De facto, os preços elevados de energia serviram para aproximar da Rússia os principais países produtores de gás e petróleo (Médio Oriente), todos interessados na bonança da alta de combustíveis. Para justificar a escalada de preços nos produtos alimentares e a escassez de fertilizantes, o esforço de culpabilização dos Estados Unidos e da Europa feito em certos sectores de opinião conseguiu afastar uma condenação explícita da agressão russa por vários países do Sul de entre os mais atingidos pela carestia de cereais.

A China, por seu lado, num momento que culminou em Outubro último de reafirmação de um terceiro mandato do presidente Xi Jingping, vê-se num período de competição com os Estados Unidos marcado pela rivalidade estratégica. Um período claramente mais tenso até porque a questão de Taiwan passou a ser vista numa outra luz na sequência da invasão da Ucrânia e das sanções que foram aplicadas. Mas, apesar de a China se encontrar numa espécie de aliança com a Rússia para contrabalançar o peso da Europa e dos Estados Unidos, trata a guerra na Ucrânia com ambiguidade suficiente que lhe permite apoiar a Rússia sem lhe fornecer armas e materiais estratégicos ao mesmo tempo que reitera o seu suporte pelo princípio do respeito pela integridade territorial dos estados soberanos.

Na prática, todas essas dinâmicas levam à coalescência de países em grupos de geometria variável devido à sobreposição de valores e interesses que certamente os líderes tentarão estabilizar. Para isso, vão invocar a comunidade de valores ou proclamar a necessidade urgente de estabelecimento de cadeias de fornecimento seguras e resilientes no âmbito do já chamado friend shoring. O processo de desglobalização que isso vai implicar poderá ficar ainda mais complexa com a reorganização do comércio internacional que será preciso fazer para efectivar o chamado decoupling, ou desengajamento das economias dos Estados Unidos e da China. É algo que já está em movimento e que certamente nos próximos anos irá afectar a todos de forma nem sempre previsível e vantajosa até se verificar uma estabilização. Outrossim, situações como a guerra na Ucrânia, pelos seus múltiplos impactos, mas também o posicionamento em particular dos países e economias de maior peso, irão determinar que direcção e a que ponto se poderá chegar na reversão da globalização que levou décadas a ser construída.

No entrementes, o mundo tem um outro grande desafio a enfrentar que é a inflação. Tida por temporária no ano passado pela generalidade dos especialistas e por instituições credíveis como o FMI e os bancos centrais, porque se supôs que era devida fundamentalmente ao excesso de liquidez acumulada durante a pandemia da Covid-19 e aos constrangimentos das cadeias de abastecimento, a inflação veio a revelar-se afinal persistente, prolongada e afectando o mundo inteiro. Os constrangimentos criados pela guerra na Ucrânia só a agravou. As suas causas mais profundas têm que ser combatidas e as medidas de política que vêm sendo aplicadas, designadamente o aumento da taxa de juros tornam maior o risco para o próximo ano de uma recessão mundial com consequências devastadoras principalmente para os países mais pobres.

Para além do problema de domar a inflação é facto geralmente assente que o tempo de dinheiro barato terminou e que uma nova era de custos mais elevados de financiamento vai se impor. E isso vai acontecer precisamente quando muitos países lidam com dívida pública acumulada devida à pandemia e exigências postas pela transição energética, pelas alterações climáticas e a adopção generalizada do digital irão implicar financiamentos avultados. Não serão fáceis os próximos tempos com as grandes incertezas a impactar o grau de cooperação internacional que será possível mobilizar e os constrangimentos que o ambiente actual colocam à actuação das instituições multilaterais. Também há que ter em conta os imprevistos derivados do alastramento da guerra na Ucrânia, surgimentos de outros focos de conflito aberto e manifestações climáticas extremas que afectam a produção e distribuição de bens alimentares.

A boa notícia em todo este cenário preocupante e de grande complexidade é que a democracia e os valores liberais que pareciam estar em queda livre numa crise que já vem de vários anos deram um sinal forte de recuperação em várias eleições na Europa, no Brasil e nos Estados Unidos e ganharam grande visibilidade com o espectáculo da Ucrânia a resistir e a vencer na guerra contra a Rússia autocrática com a ajuda dos países democráticos. E as democracias já demonstraram que são mais eficazes do que as autocracias em combater pandemias, em fazer desenvolvimentos científicos e tecnológicos cruciais para a prosperidade e sobrevivência da humanidade e em manter o espírito de resiliência perante a adversidade como bem prova a situação da Ucrânia. O que pode vir a revelar-se uma má notícia é a tentação de governos em vários países de continuar com a mesma atitude e a fazer o mesmo num mundo que pode estar em acelerada mudança em direcção a novos equilíbrios.

É evidente, pelos parcos resultados conseguidos na luta contra pobreza, no desenvolvimento de um sector privado robusto e de uma sociedade civil autónoma em relação ao Estado que não tem sido a melhor a exploração das linhas de cooperação e financiamento que são disponibilizados em quadros multilaterais. Com investimentos cruciais por fazer para o futuro do planeta, para se combater as desigualdades locais e globais e manter a esperança num futuro melhor de muitos milhões de seres humanos, é fundamental uma mudança de fundo na forma como todos esses recursos são geridos tanto pelas organizações internacionais como pelas elites governantes locais. O desperdício de recursos não deve continuar quando há tanta coisa em jogo. A passagem de um tempo de abundância para um outro de escassez num ambiente de tantas incertezas devia ser motivação forte para se operar uma mudança de paradigma que realmente traga resultados que sejam sustentáveis e inclusivos.

Para um pequeno país arquipélago de diminuta população e parcos recursos naturais como Cabo Verde a atitude adequada talvez seja similar a de um surfista que quer chegar a bom porto. Sabe que não pode criar ondas, mas pode aproveitar as que surgem no horizonte, cavalgá-las enquanto for possível e passar para outras antes que morram na praia. Com sabedoria, perseverança e desejo de vencer essa é a postura a adoptar para se enfrentar o ano novo que desponta principalmente quando já se sabe que o mundo mudou.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1100 de 28 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 26, 2022

Para um Natal de paz e esperança

 

Nas últimas semanas a questão da segurança capturou mais uma vez a atenção das pessoas e da comunicação social na sequência de vários assassinatos verificados na capital do país. Os relatos de violência grotesca que vinha acontecendo já tinham despertado a sociedade para o que já se tornou na habitual onda de crimes que recorrentemente atravessa a urbe. Em Outubro de 2021, quando algo similar aconteceu, o departamento de estado americano classificou de crítica a situação da criminalidade em Cabo Verde e desaconselhou viagens para o país. Na passada segunda-feira, o presidente da república veio alertar para o facto de “a criminalidade na Cidade da Praia está a atingir níveis dramáticos e que a situação é extremamente preocupante”.

A reacção da polícia nacional foi accionar o seu costumeiro plano de prevenção no período de Natal e de Fim do Ano ao mesmo tempo que reiterava a intenção de continuar a fazer a sua parte, mas não sem apontar a omissão dos pais no controlo e educação dos filhos. Para o governo e os partidos políticos na última sessão plenária deste ano foi mais uma oportunidade para as habituais escaramuças no parlamento que terminam sem assunção de responsabilidades e sem soluções, mas a lembrar como, nas sucessivas governações, recursos e meios têm sido “despejados” sobre os problemas de segurança. O presidente da república ainda veio apelar no sentido de se mobilizar todos os esforços do governo, das autarquias locais, das empresas, das organizações não governamentais e das igrejas para se criar uma cultura da paz e da não-violência.

O mais normal é que se fique por essas reacções já elas próprias habituais e esperar que a onda passe. “Varrer os problemas para debaixo do tapete” é uma prática estabelecida que nem situações de crise das mais graves como a da pandemia da Covid-19, acompanhada de uma profunda recessão económica, conseguiu abalar. E as consequências já se fazem sentir nos mais diferentes sectores da vida do país, umas mais visíveis e outras a despontar. Em matéria de segurança, num relatório de 25 de Outubro de 2021, as autoridades americanas alertaram para o facto de o crime na cidade da Praia estar a tornar-se mais violento e que por causa disso as ruas ficam desertas de gente logo após o escurecer. Também apontaram que o número de armas de fogo no mercado tinha aumentado e o seu uso no cometimento de crimes que antes era raro tinha-se tornado prevalecente.

Um ano depois, a percepção geral é que os crimes são mais violentos e as armas mais abundantes. A própria polícia diz, de acordo com o despacho da Inforpress de 15 de Dezembro, que em 2021 apreenderam um total de 355 armas de fogo e que neste ano de 2022 já iam em 523, um aumento de 47%. Nas apreensões de armas brancas, segundo o porta-voz da PN, passaram de 1.820 unidades, em 2021, para 2.751 neste ano, numa escalada de 51%. Num ambiente que é claramente de violência crescente, compreende-se o apelo do presidente da república para uma cultura de paz e de não-violência. Só que, perante a incapacidade evidente das instituições, apanhadas como estão em lutas político-partidárias, em lidar com o problema, o aparente desconhecimento das suas causas que nem a proliferação de estudos sociais e teses universitárias parece elucidar e o falhanço em mobilizar a sociedade com a promoção de civismo e reconstituição do capital social, não se vislumbra como se pode inflectir a tendência actual e repor a tranquilidade pública com diminuição significativa do sentimento de insegurança.

Há muito tempo que Cabo Verde, o país da Morabeza, devia ter tomada a questão da segurança como estratégica para o seu desenvolvimento. Nenhuma mancha devia ofuscar a imagem de país seguro a projectar para atrair turistas, visitantes, investidores e residentes. Sendo o país que, como bem refere o referido relatório das autoridades americanas, não tem os problemas habitualmente fracturantes de natureza étnica, linguística e religiosa, nem tem exemplos de violência política, deveria ser capaz de ultrapassar com relativa facilidade conflitos de origem sócio-económico que eventualmente surgissem.

Uma via possível talvez passasse por um forte engajamento de toda a colectividade nacional no desenvolvimento do país com ênfase posto na solidariedade e inclusão. Talvez não deixando instalar a cultura de dependência, mas trabalhando para resultados e investindo no capital humano, se pudesse combater as desigualdades e manter a confiança num contrato social (win-win) em que todos ganhariam e a prosperidade estaria ao alcance de todos. Infelizmente, o caminho tem sido outro e nestes tempos de crise a corrida aos recursos, particularmente os públicos por uma via ou outra, acabou por se tornar marcante. O resultado viu-se no aumento das desigualdades, na atitude de secundarizar resultados e de varrer problemas para debaixo do tapete a favor dos “ganhos à cabeça” e ainda em maior dependência do Estado.

A oportunidade que as crises poderiam oferecer para se reverter a tendência com espírito de solidariedade e maior sentido do bem comum não tem sido aproveitada. Pelo contrário, a situação actual cuja gravidade é sentida por todos, tem levado ao recrudescer dessa corrida por uma via que tende a configurar um jogo de soma nula. Um jogo terrível que, ao terminar com uns poucos ganhadores, gera em contrapartida muitos perdedores devido às ineficiências criadas a todos os níveis, à destruição de uma cultura de cooperação essencial para se ter estruturas produtivas e criar riqueza e ao desenvolvimento de um sentimento de injustiça que mina a comunidade. A perspectiva de mais um ano difícil e cheio de incertezas, em 2023, não augura uma melhoria neste quadro. O que já claramente se constata em matéria de segurança pode bem vir a revelar-se noutros sectores com problemas por resolver ou que sofrem a erosão provocada por esse mal-estar que afecta de uma maneira ou outra as instituições e a sociedade em geral.

Seria da maior importância que houvesse uma forte liderança nos diferentes níveis e sectores do país no sentido de se reverter as tendências negativas nas instituições e na sociedade cabo-verdiana. Paradoxalmente, o que se nota é a tentação de se fazer o aproveitamento da situação de crise para que, ao chegar ao seu término – não se sabe quando e como – alguns indivíduos e grupos estejam melhor posicionados em termos políticos, político-eleitorais, económicos, sociais, etc. Também não ajuda nestes tempos difíceis esse avivar do saudosismo do regime de partido único sob disfarce do culto de Cabral que estranhamente é patrocinado por diversas entidades do Estado quando o sistema de valores da Constituição da República é-lhe completamente oposto. Mantém acesa uma guerra cultural que só fragiliza a unidade do país.

Com o ano de 2023 a despontar e a guerra na Ucrânia sem um fim à vista e cheio de incertezas um sentido de urgência devia impor-se para se deixar de “fazer o mesmo” favorecendo alguns. Já provou que não funciona e mantém o país vulnerável e num círculo vicioso cada vez mais difícil de romper. Tomando de exemplo os ucranianos que lutam e morrem pelo mesmo sistema de valores do Cabo Verde moderno e que inclui liberdade, pluralismo, justiça e solidariedade, o foco deve estar na realização do potencial do país e das suas gentes com ganhos para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1099 de 21 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 19, 2022

Fugir das armadilhas

 

A problemática dos transportes em Cabo Verde, em particular dos transportes aéreos, tem sido matéria quase permanente de discussão pública, de debates parlamentares e arma de arremesso que as forças políticas atiram umas contra as outras. É verdade que a questão é de maior importância, senão vital para o país, e compreende-se que focalize muita atenção não só da classe política como de toda a sociedade. Mas difícil de entender é que, iniciada a discussão, a tendência é para todos se distraírem do que é essencial para se se transformar num misto de jogo de culpas e de promessas muitas vezes irrazoáveis.

Até agora o embate de posições do como fazer para enfrentar a situação é que não tem sido muito produtivo e as soluções já tentadas pelos diferentes governos em boa medida só prestaram para acumular ainda mais a dívida pública. Também com a destruição de valor, perda de oportunidades provavelmente irrepetíveis e pesados custos de estrutura vê-se que se vai tornando cada vez mais remota a possibilidade de o sector aéreo vir a cumprir as expectativas estratégicas para o desenvolvimento do país que todos parecem acreditar que possui. No processo de discussão não ajuda que não se tenha como pano de fundo uma visão realista do que podem ser os custos dos transportes num país insular, arquipelágico, população diminuta, mercado restrito e relativamente remoto dos espaços continentais. E muito menos como assumi-los considerando que Cabo Verde não beneficia dos subsídios e transferências públicas com que os restantes arquipélagos da Macaronésia são privilegiados no quadro das regiões ultraperiféricas.

Às dificuldades mais evidentes em conduzir um debate mais frutífero em matéria dos transportes no país, junta-se uma aparente insensibilidade em procurar compreender por que iniciativas empresariais no sector têm dificuldades e até acabam por descontinuar, como aconteceu com o Icelandair e a Binter, ou já mostram dificuldades em expandir os negócios como a Bestfly. No caso desta companhia de aviação, que tem todo o tráfico doméstico do arquipélago, o mais normal seria que no último debate na Assembleia Nacional fosse questionado o governo pelas razões por que a empresa ainda não avançou com os seus planos de expansão. No mês de Junho trouxe um avião Embraer que se veio juntar aos dois ATRs que já operam supostamente para entrar em operação com conexões para Europa, África Ocidental e os Açores. Recebido com pompa e circunstância e presença de três ministros, o avião até agora continua sem voar, porque não certificado e os Twin Otters, que deviam seguir-se para aumentar a frota, parece que foram adiados.

Em entrevista a este jornal, na edição de 7 de Dezembro, o Director-geral da Companhia explicou que para essa expansão “primeiro de tudo, tínhamos de aumentar o fluxo de tráfego e era aqui que entrava o Embraer”. Como não foi certificado, tiveram de cancelar o projecto Embraer. Acabaram por não desistir e agora estavam a avaliar o retorno do projecto Embraer e que o plano B, provavelmente para contornar o ambiente pouco facilitador, seria de registá-lo noutro sítio. Nas entrelinhas percebe-se a dificuldade em operar em Cabo Verde com rotas ineficientes para os aparelhos ATR e com os altos custos dos bilhetes e a impossibilidade de aumentar frequências que afectam a procura e a que vem somar o ambiente de negócios um tanto rígido.

Ou seja, promove-se o investimento e depois não se faz o seguimento da implementação de modo a assegurar que bloqueios diversos, designadamente de regulação, de práticas monopolistas ou de concorrência informal, sejam com segurança ultrapassados e que se desenvolvam sinergias e criadas cadeias de fornecedores e de outros operadores conexos. Sem isso, tanto os objectivos directos pretendidos com a iniciativa empresarial como os indirectos, através do arrastamento do resto da economia, não se materializam. Para garantir que se vai no sentido desejado, é fundamental que o Estado assuma na plenitude o seu papel em todas as suas capacidades, designadamente de promotor, facilitador, regulador e de garante da segurança jurídica da propriedade e dos contratos.

Do governo que orienta e dirige o Estado não se pode esperar que tenha uma postura passiva quando dele se espera uma abordagem compreensiva, coordenada e dirigida para resultados, num quadro da legalidade vigente. De outro modo arrisca-se a que eventualmente se ficar na posição de não ter disponíveis certos bens e serviços públicos essenciais como recentemente se vislumbrou em mais de que uma situação com a quase paralisação dos voos internos. Também, para se ter crescimento sustentável e inclusive, há que qualificar a intervenção estatal de forma a abranger – como diria a economista Mariana Mazucatto na defesa do seu conceito de Estado empreendedor – doações, créditos, benefícios fiscais e aprovisionamento público. A perspectiva é que com essas medidas de política e em combinação com o sector privado, e a partilhar tanto nos ganhos como nos riscos dos investimentos na inovação e crescimento, é possível maximizar o valor público dos mesmos.

A dificuldade em se mover pela via óbvia de procura de resultados que é deixada transparecer nas discussões estéreis, onde não se identificam as causas dos problemas e não se fazem correcções, pode ser sintoma de uma armadilha (trap) em que o país foi apanhado e que pode estar a se revelar no maior entrave ao seu desenvolvimento. São famosas as várias armadilhas que se podem apresentar no processo de desenvolvimento. Há países onde se fala, por exemplo, de “middle income trap” que não deixa países de rendimento médio dar o salto para o desenvolvimento, ou de “resources curse” que lança países ricos em recursos naturais numa espiral de endividamento e empobrecimento acompanhada de grandes desigualdades sociais. Nem os países mais desenvolvidos estão livres de armadilhas como o Japão bem o provou nos anos noventa com a “liquidity trap” que deixou o país mais de uma década na quase estagnação económica.

Saber identificar a armadilhas que ameaçam o país é fundamental para se pôr cobro ao que vai ficando claro a todos. Despeja-se dinheiro na educação, na segurança, na saúde, na justiça, nos transportes, mas não se está a conseguir inverter a percepção de que os serviços estão a se deteriorar e as instituições a se mostrarem cada vez mais frágeis. Criam-se ecossistemas, mobilizam-se linhas de crédito de milhões, formam-se empreendedores em todos os cantos do país e descobrem-se talentos aos magotes, mas os resultados não se notam na actividade empresarial, na criação de empregos e na criação de riqueza. A economia continua fortemente atracada às vicissitudes de um turismo que tarda em crescer para os números que eram expectáveis, a população diminui com a emigração e a confiança no futuro revela-se precária. Orientar-se para resultados com base no aumento da competitividade e da produtividade deve ser o caminho para se libertar da armadilha (trap). Há que, com visão e liderança realista, pragmática e competente mobilizar energia e vontade para isso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1098 de 14 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 12, 2022

Por um regular funcionamento das instituições

 

Por decreto presidencial publicado no B.O. de 1 de Dezembro renovou-se o mandato do presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Foi nomeado para o cargo o juiz de Direito Bernardino Delgado sob proposta dos membros do CSM.A nomeação do presidente não foi, porém, precedida da completa renovação do órgão de autogoverno da magistratura judicial como seria de esperar. Apesar da assembleia dos juízes ter eleito os representantes no conselho e do presidente da república ter nomeado um juiz para o integrar não foi possível ter os quatro eleitos da Assembleia Nacional para substituir os que de há muito terminaram o mandato ou exerceram mandatos consecutivos, em alguns casos desde 2011 e outros desde 2015.

Como a composição do conselho com juízes e não juízes na actual proporção de 5-4 não é algo indiferente e, muito pelo contrário, é essencial para se contrabalançar tentações corporativistas, faria todo o sentido que se esperasse a renovação dos conselheiros não juízes para se escolher o presidente. Num momento em que a situação da justiça é uma preocupação central da sociedade, como ficou evidente nas intervenções do arranque do ano judicial, devia ser de todo interesse que houvesse a percepção de um regular funcionamento das instituições no sector. Deu-se recentemente o exemplo com a normalização do funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça, após a saída, há quase dois anos, dos juízes conselheiros jubilados, e espera-se ver mais nesse mesmo sentido proximamente com uma inspecção judicial efectiva.

De facto, não se tem procurado assegurar o regular funcionamento das instituições com suficiente vigor e perseverança. E é pena porque revela-se essencial para melhor credibilizar a democracia e as regras do jogo democrático e plural e também garantir a liberdade e a segurança a todos níveis. O que se viu por exemplo na Assembleia Nacional em Outubro a propósito da eleição dos novos membros para o conselho superior da magistratura é paradigmático dessa atitude de descaso. Tudo serviu para não se avançar com um acordo que devia ser para renovação do CSM: desde disputas interpretativas quanto aos procedimentos a seguir, como se fosse a primeira eleição para os órgãos externos por lista plurinominal exigindo maioria de dois terços que se estava a fazer, até o interesse em manter candidatos que não era razoável propor, em primeiro lugar porque há muito que já tinham completado um tempo superior a dois mandatos.

Num ano que foi de muita contestação e crítica dirigida ao sector da justiça, o parlamento perdeu a oportunidade de enviar um sinal de que com a eleição de novos representantes querer imprimir uma outra dinâmica e uma outra sensibilidade e capacidade de gestão ao órgão para, entre outros objectivos, responder aos problemas da morosidade e às acusações de denegação de justiça. A aparente precipitação em se avançar com a proposta e a nomeação do presidente do CSM pelo presidente da república, num quadro em que quase 45% dos proponentes ultrapassaram o seu tempo ou estão de saída, certamente que não qualifica de melhor forma o sinal a enviar para a sociedade. A compor e a melhorar ainda mais o sinal podia-se eleger um vice-presidente não magistrado estatutariamente previsto para coadjuvar o presidente do CSM. Até agora não foi possível ir por esse caminho apesar de o Tribunal Constitucional (TC) num acórdão de 2016 ter unanimemente estabelecido que não tinha razão quem tinha questionado a constitucionalidade da norma que estabelece que o vice-presidente deve ser escolhido entre um dos não-magistrados.

Determinar o nível óptimo de representatividade dos membros não magistrados nos órgãos de autogoverno das magistraturas não tem sido matéria pacífica em Cabo Verde como aliás também não é noutras paragens. Há quem considere que os juízes devem ter a maioria e há quem ache que para se conseguir conter o espírito corporativista há que coloca-los em minoria. Todos, porém, parecem estar de acordo que a presidência deve ficar com o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), mas cedendo a maioria no conselho aos não-juízes. Em Cabo Verde, na última revisão constitucional datada de Maio de 2010, foi-se por uma solução sui generis do presidente do STJ não ser também presidente do CSM podendo sê-lo porém qualquer magistrado eleito pelos seus pares ou nomeado pelo presidente da república para integrar o órgão. Na mesma revisão inverteu-se ainda a tendência que tinha sido vincada na revisão constitucional anterior de 1999 e afirmou-se em seu lugar uma maioria dos magistrados no CSM. O lugar de vice-presidente que devia traduzir-se em algum reequilíbrio foi contestado e mesmo com o acórdão favorável do TC não foi preenchido nos seis anos que se seguiram.

Uma dinâmica dessas que passa por as instituições não funcionarem regularmente como planeadas e desenhadas não deixa de indiciar eventuais interesses que muitos consideram de corporativistas e que levam à protecção da classe face aos críticos que clamam por uma justiça mais célere, de maior qualidade e com maior eficácia. Numa democracia em que todos os órgãos de soberania estão vinculados pelo princípio da separação e interdependência é fundamental que haja o regular funcionamento das instituições para que o sistema de peso e contrapesos (checks and balance) se faça sentir e o equilíbrio político, económico e social seja mantido. Nos tempos actuais, em que certo tipo de activismo político se torna cada vez mais atractivo para ganho pessoal ou de grupo, fazer as instituições sair de práticas já consolidadas e ignorar interpretações de procedimentos de há muito assentes com argumentos disruptivos, é fundamental seguir-se por caminhos que privilegiem conhecimento, maturidade e memória institucional.

Já se viu recentemente o ridículo das acusações de “golpes e contragolpes” que se seguiram ao fracasso do parlamento em eleger personalidades para o órgão de governo da magistratura no momento de maior tensão social dos últimos tempos e em que a justiça é visada. Também não se deixou de notar as várias tentativas de bloquear a competência da comissão permanente de exercer os poderes da assembleia nacional relativamente aos mandatos dos deputados como manda a Constituição, o regimento e os estatutos dos deputados e tem sido a prática estabelecida ao longo dos trinta anos de democracia constitucional. A impressão que se fica é que se quer passar tudo para o Plenário de forma a propiciar espectáculos potencialmente descredibilizadores da instituição.

Práticas similares que mexem com o regular funcionamento das instituições já se notam com maior ou menor gravidade em várias actuações de actores políticos. Na Câmara da Praia e de S. Vicente já levaram à quase paralisação da vida político-institucional desses municípios. Outros alvos poderão estar em mira, mas não se pode esquecer que para o populismo e outras derivas iliberais o principal objectivo é descredibilizar o parlamento e a justiça. Por aí é que se procura ferir de morte a democracia. Fazer cumprir as regras democráticas e assegurar o regular funcionamento das instituições é a via para se manter o sistema de liberdade e pluralismo a funcionar de forma a conservar sempre viva a esperança de uma vida de paz, justiça e prosperidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1097 de 7 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 05, 2022

Corrida ao voto não deve prevalecer

 

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatísticas divulgados ontem, dia 29 de Novembro, o indicador de confiança no consumidor continuou a cair no terceiro trimestre. Inquiridas, as famílias cabo-verdianas fazem uma apreciação negativa do que para os próximos 12 meses será tanto a sua situação financeira como a situação económica do país. A esmagadora maioria confessa incapacidade de fazer qualquer poupança e o número dos já poucos que podiam pensar em comprar carro, ou construir casa, diminui. As incertezas para o ano 2023 são muitas. Está-se perante múltiplas crises e é natural que haja alguma cautela ou mesmo pessimismo em relação ao futuro próximo considerando que ninguém realmente sabe como irá terminar a guerra na Ucrânia e como se irá resolver a crise energética e diminuir a pressão inflacionista que tem prejudicado toda a gente em todo o mundo.

É um sentimento que de certa forma também é partilhado por instituições como o BCV no seu relatório de política monetária e de parceiros como o GAO no seu último comunicado de 18 de Novembro e também patente nas últimas recomendações do FMI. Demonstram sobriedade nas suas projecções e estimam o crescimento económico de Cabo Verde para o ano 2023 à volta de 8,3% e 8%. Do lado do governo, quase com euforia deixa-se passar a ideia que o país poderá crescer dois dígitos. Também dessas instituições ouvem-se recomendações para se conter o défice orçamental e a dívida pública, para se apoiar quem realmente precisa e durante o tempo estritamente necessário e para se investir na competitividade, produtividade e diversificação da economia. Do governo fala-se em alargar o Estado social, eliminar a pobreza extrema e diminuir a pobreza, mas não fica claro que isso só é sustentável com criação de riqueza nacional. De outra forma, terminados os projectos de ajuda externa, na primeira crise revelam-se as vulnerabilidades anteriores e fica claro para todos a precariedade das populações.

Curiosamente, quem em contraste com o sentimento generalizado das pessoas parece compartilhar o aparente optimismo que emana dos lados do governo é a oposição, mas por razões diferentes. O governo ao projectar optimismo quer destacar o sucesso da governação. A oposição aproveita-se da perspectiva rósea do país para reivindicações que embaraçam quem governa e a deixam de bem com sectores da sociedade que poderiam beneficiar da iniciativa. Um resultado de todo esse jogo em nome da caça ao voto é a impressão de que a classe política está algo desfasada do que se passa no país e a projectar e a discutir o futuro económico e social numa perspectiva que nem é comungada pelas instituições mais sóbrias (BCV, FMI, GAO) na apreciação do contexto nacional e internacional, nem pela esmagadora maioria da população do país, como se pode depreender do inquérito do INE.

Compreende-se assim porque da discussão da proposta do Orçamento do Estado, na semana passada, a oposição saiu a acusar que nenhuma das suas propostas foi absorvida e em resposta o primeiro-ministro na comunicação da segunda-feira veio notar que na discussão do Orçamento do Estado “as propostas da oposição são mais para criar problemas do que para resolver problemas”. Acrescentou ainda que são despidas de racionalidade porque “pedem para reduzir o peso da dívida pública e depois vêm com propostas que aumentam a despesa”. Mas governar é priorizar e não é expectável que a oposição e o governo comunguem das mesmas prioridades particularmente quando não há incentivo de nenhuma das partes para se chegar a acordos.

É facto que em Cabo Verde os governos têm sido de maioria absoluta, e como não precisam dos votos dos outros partidos para passar o Orçamento do Estado, não se sentem na necessidade de negociar qualquer proposta vinda das outras bancadas. Aliás, quando pedem à oposição para votar favoravelmente é só para depois a acusar de não querer ou de não se prestar a servir o interesse nacional. Orçamentos do Estado reflectem as opções de política de cada partido e só em situações excepcionais seria expectável que poderiam disponibilizar-se para chegar a algum tipo de compromisso. Como em geral não reconhecem situações excepcionais, ninguém, e em particular os partidos na oposição, se arriscam a perder negociando com o governo.

Curiosamente, neste tipo de arranjos, em que a corrida ao voto parece ser o móbil principal e razão de discórdia, há questões aparentemente tabu. Num momento de maior rigor na definição das prioridades ninguém parece contestar as centenas de milhares de contos gastos em campos relvados por todo o país, ou, num Estado supostamente laico, os investimentos também em centenas de milhares de contos nas igrejas em nome da salvaguarda do património religioso para servir um turismo diversificado. Prefere-se ficar pelo que dá dividendos políticos rápidos porque traz à tona sentimentos como ganância, inveja e ressentimento como são os cargos, as viagens e os carros. Outros projectos que deviam ser estranhos a um Estado sujeito a comando constitucional que o impede de impor ideologias, expressões estéticas e filosóficas aos cidadãos e à sociedade também parecem não merecer escrutínio mais apertado de todos.

É o caso da promessa feita, esta terça-feira, pelo governo de “tudo fazer” para apoiar o projecto da Fundação Amilcar Cabral que, segundo uma nota de imprensa, “decorre da necessidade de os principais protagonistas dessa história narrarem em primeira pessoa a gesta heroica e libertadora de seus povos, visando repor a verdade histórica, a qual vem sendo deliberadamente adulterada nos últimos tempos”. Ninguém compreende como um Estado liberal e democrático como o de Cabo Verde pode querer apoiar ou financiar um projecto dos antigos dirigentes do partido único, que nos moldes descritos mais parece uma acção de Agitação e Propaganda (agitprop), para salvaguardar a memória da luta de libertação que legitimou esses regimes, do que escrever História. Até parece que o surrealismo impera com a maior complacência de todos quando tal não devia ser, considerando os tempos críticos vividos actualmente e as reais prioridades às quais se tem de dar uma resposta eficaz e tempestiva.

As crises múltiplas que afligem o mundo poderiam ser uma oportunidade para, em algumas questões essenciais, se transcender legislatura e agendas partidárias. Mas, sem acordo sobre a situação real do país e em dissintonia com o sentir das populações tudo leva a crer que não vai acontecer. É mais provável que o jogo de quem dá ou promete mais continue. Dizer um basta a isso é fundamental para se evitar o resvalar para as imperfeições de uma democracia simplesmente eleitoral. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1096 de 30 de Novembro de 2022.

segunda-feira, novembro 28, 2022

Quer-se debate construtivo e voltado para o futuro

 

​Nas vésperas da discussão na especialidade do Orçamento do Estado para o ano 2023 vai-se mais uma vez a debate com o Primeiro-Ministro na Assembleia Nacional com o tema “A Transparência como factor de desenvolvimento”.

No ano passado tinha sido o mesmo tema e, recorrentemente, volta-se às questões de governança e de acountability sem que, pelo tom e substância de debates subsequentes no parlamento, se perceba que houve algum progresso no sentido supostamente desejado. Os argumentos continuam primários, não são avançadas soluções e não se vê vontade para fazer reformas, presos como todos parecem estar aos cálculos eleitorais, independentemente da distância que no momento se está das eleições. Os debates acabam por traduzir-se em simples oportunidades para acusações mútuas, para suspeições de favoritismos e até de corrupção e para denúncias de partidarização da administração do Estado. 

Dificilmente no debate de hoje, dia 23 de Novembro, será muito diferente. E é pena porque os tempos actuais de grandes incertezas exigem que se renove e se consolide confiança na democracia. Para isso, porém, é fundamental que, como alguém bem disse, sejam disponibilizados “instrumentos que poderão permitir uma maior transparência, verdade e clareza na defesa de uma sociedade aberta, na qual as políticas públicas resultem de opções realmente partilhadas por todos e adequadamente sujeitas ao controlo efectivo dos cidadãos”. Num ambiente em que se privilegie mais os supostos ganhos de deixar mal o outro, como se todos estivessem envolvidos num jogo de soma zero, não há muito espaço para se chegar a acordo sobre como afinar esses instrumentos. Nem mesmo para reconhecer o caminho em termos institucionais que já se percorreu nas três décadas da democracia para se combater a opacidade do Estado e fazer da transparência e da accountability um princípio fundamental do Estado de Direito democrático. 

De facto, apesar das querelas constantes avançou-se e muito nestes trinta anos. Não é à toa a posição actual de Cabo Verde nos ranking de governação (51) e de corrupção (39). Poderia ser melhor se houvesse um comprometimento para que certas reformas chaves na administração do Estado tivessem continuidade para além das legislaturas. Diferentemente de países tão diferentes como as Maurícias e Botswana que, mesmo com alternância no governo, conseguiram manter uma orientação estratégica consistente e que lhes proporcionou crescimento e prosperidade e os colocou entre os primeiros de África, Cabo Verde deixou-se tolher no seu desenvolvimento pela crispação política. Com isso, quebrou-se o ritmo de reformas e alimentaram-se resistências às mesmas, enquanto o discurso político degradava-se e fixava-se completamente fora de contexto no passado das realizações no governo de cada partido. Depois perguntava-se porque não tiveram continuidade. 

Quando se institui essa forma de fazer política corre-se o risco do país paulatinamente deixar de contar com visões de desenvolvimento dos diferentes partidos porque, de facto, da forma como politicamente se engajam já não estão virados para o futuro. 

A democracia perde porque não apresenta à sociedade reais alternativas mas sim versões “do mais do mesmo”. Por outro lado, toda a acção política passa a configurar no que já foi chamado de técnicas de poder, de como ocupar e usar o Estado para dominar a sociedade e a economia. O calculismo eleitoral acaba por se impor e toda a oportunidade é tida como boa para ganhar pontos sobre o adversário. A tentação maior será de transformar o adversário no “outro” que, conforme as circunstâncias, se pode apresentar como não defensor dos interesses do país, de profeta de desgraças e até de anti-patriota. A democracia, porque baseada no respeito pela dignidade da pessoa humana, reconhece que os indivíduos e cidadãos são livres e têm interesses e que esses interesses são diversos. O facto de se suportar no pluralismo e na tolerância assumidos por todos como princípios permite que da interacção desses interesses resulte o interesse geral. Ninguém, seja ele indivíduo ou grupo, detém o monopólio da verdade ou encarna sozinho o interesse público. Da organização política social e económica que resultam dos princípios democráticos e do Estado de Direito espera-se que emerjam as mais ricas expressões de criatividade, de capacidade inovadora e de energia e vontade para correr riscos e criar o novo. E isso é provado historicamente pelas democracias a todos os níveis, designadamente de crescimento económico, de qualidade de vida, dos avanços científicos e tecnológicos e de expressão artística, quando comparadas com formas de poder autocrático, sejam eles autoritários ou totalitários. Empobrecese, pois, a democracia e o país quando se deixa instituir uma forma de fazer política que exclui e toma o adversário como inimigo e não representativo de interesses legítimos dentro da comunidade, os quais, pela sua expressão contribuem para se definir o interesse nacional. 

Em Cabo Verde, nota-se ainda hoje resistências ao pluralismo e à expressão da diversidade de interesses. Sente-se na hostilidade aos partidos e ao multipartidarismo em certos círculos que, curiosamente, logo nos primórdios da democracia já denunciavam os males do bipartidarismo. Vê-se também na desconfiança como certos sectores da sociedade encaram a iniciativa privada e actividade empresarial e seu impacto nos rendimentos e bem-estar dos indivíduos que são bem sucedidos. Ainda tributários da ideia de que o Estado é o principal provedor de recursos no país não interiorizam como realmente se cria riqueza e como se pode organizar para garantir rendimentos e combater a pobreza de forma sustentada por outras vias que não a da mobilização de recursos externos. A relutância sentida à volta dessas questões não é de estranhar considerando a trajectória histórico- político do arquipélago ao longo da qual se cultivou o igualitarismo, se entregou a política a um grupo supostamente impoluto, porque na “luta” se suicidou como classe social, e se combateu a iniciativa e expressão individual enquanto se procurava enquadrar as pessoas em organizações de massa. 

A política no presente ainda é marcada por confrontos que nos debates trazem ao de cima todo esse legado. Com certo tipo de acusações procura-se excluir o adversário e retirar qualquer legitimidade ou credibilidade aos seus argumentos. Com as suspeições cria-se o ambiente adequado para desconfiança em relação às intenções. Claramente que debates que tem como foco escrutinar a actividade estatal e do governo são os mais propícios para esse tipo de exercício. Em nome da transparência, em vez de procurar consolidar as instituições de controlo e aprimorar o sistema de pesos e contrapesos de forma a se exigir uma prestação de contas atempada e responsável e cada vez mais rigorosa e intransigente, opta-se por repisar velhos argumentos, repetir escaramuças antigas e sair de mãos a abanar depois de mais um debate. 

Há que abandonar essa forma de actuação que não é salutar para a democracia e não ajuda o país e as suas gentes. Se não for agora, que o mundo e também Cabo Verde enfrentam crises múltiplas e sem precedentes, quando será?

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1095 do Expresso das Ilhas de 23 de Novembro

segunda-feira, novembro 21, 2022

Câmaras e populismo: Reforçar pesos e contrapesos

 Com os resultados surpreendentes das eleições brasileiras no dia 30 de Outubro, seguidas das americanas a 9 de Novembro, ouviu-se, no entender de muitos observadores, o quebrar da onda de populismo que há anos tem posto em causa os valores liberais e até ameaçado de morte as democracias.

Bolsonaro e Trump são as duas personalidades cujas vitórias eleitorais em países com peso e influência global tinham tornado plausível a ideia de inverter o curso das democracias e caminhar para autocracias eleitorais. As derrotas por eles sofridas nas eleições referidas necessariamente irão levar a rever o quão longe poderão ir outros movimentos de inspiração populista que vem tendo algum grau de sucesso em países como Hungria, Itália, Polónia e Israel. A verdade é que o ambiente propício para essa forma de entender e fazer política vai continuar a existir e para as democracias particularmente as mais recentes ou ainda pouco consolidadas a questão que se coloca é como atenuar ou neutralizar os seus componentes e, quando isso não for possível, como sobreviver às investidas.

Da experiência do populismo neste século, e em particular nos últimos dez anos, se pode provavelmente dizer que já se viu o “filme” completo: de como se mobilizam paixões no eleitorado servindo-se do nacionalismo, do medo e do ressentimento para chegar ao poder e, como a partir de lá, se move decididamente para fragilizar as instituições, descredibilizar os médias e o sistema judicial, ao mesmo tempo que é afirmado o poder autocrático do líder. Ao longo de todo o processo o “chefe” aparenta ter impunidade perante tudo e todos. Procura mostrar que pode sobrepor-se à lei e às normas estabelecidas, menorizar o papel tradicional dos partidos e do parlamento e, como se viu nas eleições americanas, até proclamar que não aceita o resultado eleitoral se não lhe for favorável. E essa percepção de impunidade tende a consolidar o suporte dos seus seguidores mesmo quando sinais graves de incompetência na governação com resultados às vezes catastróficos, como aconteceu durante a pandemia da Covid-19 nos Estados Unidos com Trump e no Brasil com Bolsonaro. A pouca diferença nas eleições, apesar de desfavorável para os populistas, dá conta de como a sociedade fica polarizada e o quanto se desviou dos padrões da racionalidade, da civilidade e do diálogo político suportado nos factos.

Nenhuma democracia está livre de derivas populistas, especialmente agora que se vive uma época que alguns já chamam de “policrise” em que as crises se sucedem umas às outras e os seus efeitos, interagindo de forma complexa, criam imprevistos e incertezas. E certamente que Cabo Verde não é excepção. A tentação populista existe e é visível a todos os níveis de governação e do exercício do poder. Poderá ganhar força se, perante a incapacidade de se estabelecer um forte sentido de solidariedade nacional em situação de precariedade geral, for desencadeada uma corrida aos recursos do país em particular os públicos. Quando é assim, tudo, designadamente sentimentos de abandono, ressentimentos anti-elites e frustrações de diversa ordem, pode servir para inflamar paixões e abrir caminho à ascensão de pequenos e grandes autocratas. Mas, como bem demonstram as experiências referidas de populismo, o que finalmente põe algum travão à deriva e evita que desemboque na autocracia é a insistência na aplicação nas regras do jogo democrático, no uso dos pesos e contrapesos do sistema político e na afirmação a todo o tempo do primado da lei.

Mais uma razão para uma acção concertada dos vários actores políticos para se pôr cobro à crise político-institucional existente nos municípios da Praia e de São Vicente. Tanto um como o outro tem câmara municipal com composição plural mas as forças políticas não conseguem entender-se quanto ás regras do jogo democrático quando elas deviam ser claras e suportadas por trinta anos de experiência de poder local democrático no país. Não é à toa que só uma única vez, no ano de 1995 em São Vicente, foram realizadas eleições intercalares para se ultrapassar bloqueios nos órgãos municipais. O sistema de governo local é estável apesar do que comparativamente se pode considerar de poderes excessivos atribuídos ao presidente da câmara e que podem deixar espaço para derivas populistas e autocráticas. De facto, a colegialidade da câmara tende a ser sacrificada a favor do poder do presidente e com ela o equilíbrio de poderes no município. De acordo com a Constituição, artº 234, é a câmara, enquanto órgão executivo colegial, que é responsável perante a Assembleia Municipal.

A Constituição, ao estabelecer no artº 121 que os órgãos de poder político colegiais só deliberam com a presença da maioria dos seus membros reforça a natureza colegial e obriga os membros a um diálogo para garantir que o órgão seja efectivo e representativo dos seus eleitores. Parece daí lógico que o que realmente não se pode ter sob pena de desvirtuar toda a razão de ser do sistema é a deliberação de um único eleito ou de uma minoria de eleitos sobre matérias que são da competência da câmara municipal. No caso do imbróglio à volta do orçamento apresentado à assembleia municipal da Praia é evidente que devia resultar de uma deliberação da câmara, da mesma forma que a proposta de orçamento do Estado só vai para discussão e aprovação no parlamento depois de aprovada no conselho de ministros que é o órgão colegial do governo. A proposta do OE não é do primeiro-ministro nem do ministro de finanças, que o elabora, mas sim do governo. E certamente que não seria pela via de uma lei de finanças locais, como se vem sugerindo, que o legislador iria alterar as competências de um órgão de poder político como é a câmara municipal.

Aliás, não é esse o entendimento que todos os órgãos municipais do país, ao longo das três décadas, têm dos procedimentos a seguir na aprovação dos instrumentos fundamentais do município que são o plano de actividades e o orçamento. Insistir em ir por procedimento que não é usual e aceite configura muito do que se tornou prática entre os populistas nas suas investidas contra as instituições. Em São Vicente e na Praia o conflito com o presidente da câmara aparentemente bloqueou o órgão executivo colegial com uma diferença entre os dois casos. Em São Vicente o presidente não ganhou com uma maioria de vereadores e, in extremis, os outros vereadores podem provocar a perda de quórum do órgão e forçar eleições intercalares para reconfigurar a câmara municipal. Na Praia foi o próprio presidente, aparentemente por falta de diálogo, que acabou com a maioria recebida nas últimas eleições e agora procura esvaziar a câmara das suas competências.

Claro que isso só aconteceria com a conivência da mesa da assembleia municipal e da sua maioria de eleitos e com isso efectivamente colocando todos os poderes no município nas mãos do presidente da câmara. Esse é um resultado que não pode ser visto com complacência por parte de todos os outros poderes que garantem que a constituição é cumprida, as regras do jogo democrático são seguidas e que a legalidade no exercício do poder é respeitada. Se faz escola ao nível local essas acções ostensivas para esvaziar de competências os órgãos eleitos, não dura muito tempo que práticas similares sejam tentadas noutras sedes do poder político.

A dificuldade em reverter situações de atropelo às democracias e suas instituições que as últimas eleições brasileiras e americanas revelaram devia um ser aviso a todos os actores políticos para que, seja na sua actuação directa, seja no processo de nomeação de titulares de cargos públicos, tenham presente a importância crucial para a democracia de se ter funcional e efectivo o sistema de pesos e contrapesos previsto na constituição e nas leis.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1094 do Expresso das Ilhas de 16 de Novembro

segunda-feira, novembro 14, 2022

Foco, um ano depois

Foi há precisamente um ano a tomada de posse do Presidente da República José Maria Neves. Com esse acto terminava o ciclo eleitoral que se tinha iniciado em Outubro de 2020 com as eleições autárquicas e depois continuado nas legislativas de Abril de 2021. À frente, Cabo Verde poderia contar com três anos sem pleito eleitoral, o que provavelmente viria a jeito. Praticamente todo o período eleitoral verificou-se durante a pandemia da covid-19 e o país precisaria de uma certa acalmia nas disputas partidárias para melhor poder focar em como trazer de volta a economia depois de uma violenta contracção de quase 15% do PIB e em como construir bases para resistir futuros choques. Infelizmente não foi isso que aconteceu apesar da invasão da Ucrânia pela Rússia e do seu impacto global a vários níveis terem vindo relembrar a urgência em se obter convergências em questões fundamentais e em conseguir mobilizar vontades para a consecução dos grandes objectivos do desenvolvimento.

O Presidente da República foi eleito por uma maioria confortável e, apesar de ser originariamente de uma área política adversária da do governo, não se descortinava, à partida, que poderiam surgir tensões que impedissem consensos nacionais. Até porque o governo é suportado por uma maioria parlamentar clara, o que em princípio limita o espaço para protagonismos do tipo que se viu recentemente com governos minoritário e a chamada “geringonça” em Portugal. Por outro lado, o que está em jogo no momento é a recuperação da dinâmica pré covid-19 e a preparação do país para enfrentar as incertezas e imprevistos que vão aparecendo quase todos os dias, algo que devia ser a preocupação chave de todos os actores políticos. Por isso é que não deixa de ser revelador o facto de até agora, passado um ano, não se ter conseguido ir além do ambiente habitual de crispação, dos ruídos causados pelo excessivo protagonismo comunicacional dos políticos e das tentações populistas que apostam no ressentimento das pessoas e na descredibilização das instituições para assegurar apoio a certas formas de jogo político que talvez em tempo eleitoral tivessem algum sentido, o que não é o caso. 

No sistema de governo criado pela constituição de 1992 o Presidente da República não governa nem o governo é politicamente responsável perante ele, apesar de por ele nomeado. Mas tem um conjunto de competências tanto na nomeação de altos cargos públicos na magistratura judicial, no ministério público, nas forças armadas e para as representações do país no exterior que deixam claro o papel essencial que desempenha para o funcionamento do sistema e para a estabilidade institucional. Também, enquanto órgão de soberania singular, é representativo da unidade da Nação e do Estado e garante o cumprimento da Constituição. Está, por todas essas razões, em boa posição de desempenhar um papel fundamental na criação do ambiente político-institucional favorável à criação de consensos das forças políticas quanto aos objectivos comuns. 

A dificuldade em ir por esse caminho parece estar no como fazer sem interferir na governação. Até agora as eleições legislativas têm resultado em maiorias absolutas na governação do país limitando o eventual protagonismo e espaço de manobra políticos que os sucessivos Presidentes da República poderiam ter com governos minoritários ou em situações de instabilidade governativa. E isso de alguma forma terá contribuído para cimentar a ideia de que o presidente da república em Cabo Verde não teria poderes reais e seria mais uma espécie de “rainha de Inglaterra”. Poderá também ter provocado reacções dos titulares em certas circunstâncias na forma de protagonismo desajustado. 

A origem dessa interpretação provavelmente estará nas discussões que antecederam à Constituição de 1992. O actual sistema de governo de pendor parlamentar foi adoptado em substituição do sistema semi-presidencialista que a monopartidária assembleia nacional popular tinha forçado no texto constitucional em Setembro de 1990 e que se previa como potencialmente desestabilizadora como veio a revelar-se, por exemplo, em São Tomé e Príncipe e na Guiné-Bissau. Criou-se, no entanto, o preconceito de “presidente fraco” para servir de arma de arremesso político e isso não deixou de afectar a forma como os diferentes titulares acabaram por exercer a presidência. Algum protagonismo excessivo poderá ter sido ajudado pela crescente exposição mediática que se tornou normal entre os políticos, imitando o estilo de Marcelo Rebelo de Sousa requintado em tempos do governo minoritário do PS e da geringonça em Portugal. Não é à toa que com o actual governo suportado por uma maioria absoluta está-lhe a ficar difícil manter o estilo de comentar tudo, interpelar ministros e sectores de governação e de servir de ponte a todos. 

Depois da morte de Elisabeth II e de todas as manifestações de apreço pelo que representou ao longo dos 70 anos de garante da unidade da nação, de afrmação de princípios e valores constitucionais e de estabilidade institucional, a acusação de ser “rainha de Inglaterra” já não deve ter a carga pejorativa de antes. Pelo contrário, nos tempos actuais, em que em vários países se assiste ao espectáculo de presidentes, primeiros-ministros e outros titulares de órgãos de soberania a atentarem contra o Estado de Direito democrático e a ir pelo caminho que recentemente o constitucionalista Vital Moreira chamou de “progressiva subversão do sistema de governo constitucionalmente estabelecido”, deve-se dar a maior importância ao cumprimento dessas funções fundamentais ditas da “rainha de Inglaterra. São indispensáveis para se poder preservar as bases da democracia e o senti- do de pertença à comunidade política e nacional necessários para se ter liberdade, pluralismo e alternância de governo. 

De se evitar também é que, em reacção à acusação ou percepção induzida de presidente da república fraco e insufcientemente ocupado porque não governa, se tenha o que alguém já uma vez caracterizou de um “presidente a falar tanta vez, em todo o lado, a propósito de tudo”. A dignidade e a imparcialidade do cargo exigem necessariamente contenção e discrição nas intervenções. A efectividade da magistratura presidencial também depende disso. E em tempos em que se nota da parte de muitos políticos sinais preocupantes do que o autor inglês David Owen chamou no seu livro Hubris de “impetuosidade, recusa de ouvir os outros ou ser aconselhado”, é de maior importância que na chefia do Estado reine a ponderação e a prudência e uma preocupação fundamental em fazer cumprir as regras. Relevância e dimensão histórica ganha-se com esse serviço à nação e não se deixando apanhar por agendas ultrapassadas e narrativas fracturantes.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1093 do Expresso das Ilhas de 09 de Novembro

 

segunda-feira, novembro 07, 2022

Não é tempo para complacência

 

Na sexta-feira passada o Banco de Cabo verde, como habitualmente em Outubro/ Novembro, trouxe a público a segunda edição do seu bianual relatório de política monetária. As informações sobre a performance do país foram melhores do que eram esperadas. No World Economic Outlook do Banco Mundial de Outubro último a previsão de crescimento da economia nacional era de 4% para o ano de 2022 e de 4,8% para 2023.

Para o BCV, porém, já se pode contar com um crescimento este ano à volta de 8% e esperar por 5% no ano de 2023. Pensava-se que o PIB do país só iria atingir o nível de 2019 em 2023 mas, segundo os dados agora revelados, isso será possível ainda em 2022. 

A par com outras boas notícias, como por exemplo, a de se ter garantido credibilidade do regime cambial do peg unilateral da moeda cabo-verdiana ao euro e a reserva em divisas correspondente a mais de sete meses das importações, no relatório do BCV veio uma série de recomendações para se manter o país estável e a crescer com sustentabilidade. O mundo não está fácil e incertezas e imprevistos tornam difícil antecipar o futuro, mesmo o mais próximo, e prevenir as dificuldades em forma de choques de vários tipos que eventualmente venham a surgir. 

A humanidade encontra-se numa encruzilhada perigosa. A invasão da Ucrânia pela Rússia e a reacção dos países do Ocidente em apoiar os ucranianos na defesa da sua soberania e integridade territorial e do seu direito à liberdade e democracia lançou o mundo num mar de incertezas e de disrupções de vária ordem, designadamente geopolítica, comercial e militar em relação ao qual ninguém vê um fim à vista. A desglobalização já está a acontecer, blocos de nações rivais já são uma realidade e mesmo a possibilidade de uma guerra nuclear deixou de ser uma hipótese remota. 

Tudo isso ocorre tendo como pano de fundo as alterações climáticas de abrangência planetária cujo impacto no quotidiano de muita gente e na economia global é já praticamente incontornável. E a verdade é que, sem cooperação entre os vários Estados, particularmente as grandes potências políticas e económicas, dificilmente se vão tomar as medidas de protecção do ambiente, agir concertadamente para fazer a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis e proceder à descarbonização da economia que se impõe no momento. Mesmo a muito curto prazo pouco se consegue prever considerando que imprevistos vários, sejam eles políticos, económicos e até logísticos acabam por afectar num sentido ou noutro. 

Da vitória ou derrota do Lula no Brasil, por exemplo, dependiam decisões com impacto nas alterações climáticas, o mesmo acontecendo com as eleições da próxima terça-feira nos Estados Unidos em que uma eventual derrota dos democratas poderá assinalar mudanças na política de protecção do ambiente com impacto global. Da evolução das relações com a China, a segunda maior economia do mundo, nos últimos tempos marcada por tensões geopolíticas, vai depender muito a possibilidade de avanços numa política global do clima. Também como se está já a constatar, falhas no fornecimento do gás ou do petróleo russo ou então perturbações nos transportes de cereais constituem uma fonte de graves problemas de abastecimento e escaladas de preços que acabam por criar instabilidade geral, em particular nos países mais frágeis. 

A estes, e em especial aos que como Cabo Verde ainda suportam os custos da insularidade, há que preparar para o mundo propenso a choques, de que fala Kristalina Georgieva do FMI, e não cair na tentação de pensar que à conta de alguns indicadores mais favoráveis já se pode dizer que a normalidade está aí mesmo à porta. Aliás, em matéria das exportações do turismo, que mais impacto têm sobre a economia nacional, o BCV veio relembrar que só em 2024 se estima que atinjam os níveis pré-pandémicos de 2019. Acrescenta ainda que há riscos à materialização das actuais projecções, entre os quais, a evolução adversa da guerra na Ucrânia e os seus efeitos nos preços de energia e alimentos e nas cadeias de abastecimento globais, a adopção de políticas monetárias agressivas que poderão expor a vulnerabilidade da dívida e levar ao sobre endividamento e, ainda, um possível ressurgimento da pandemia com uma nova variante. Por isso é que passa a recomendar que a prioridade nos próximos meses seja de combater a inflação e que nesse sentido se tenha atenção nas políticas redistributivas para que sejam direccionadas para quem realmente precisa e se equacione a tempestividade da sua retirada.

Outras recomendações com o mesmo objectivo de combater a inflação e lidar com a dívida incidem sobre a necessidade de coordenação dos agentes económicos para conter aumentos de salários geradores de pressões sobre preços. A solidariedade aí sugerida deverá ser acompanhada de um esforço visível e credível da parte de todo o Estado na contenção das despesas e num funcionamento mais eficiente e eficaz. Aliás, esse esforço deverá servir de elemento motivador do engajamento colectivo necessário para se pôr em prática as sugestões do relatório de se avançar com políticas públicas urgentes, como melhorias na infra-estrutura dos transportes e investimentos na saúde pública para melhor enfrentar eventuais pandemias, e de se proceder a reformas estruturais, abrangendo educação, ambiente de negócios e infra-estruturas digitais. 

É evidente que sem esse comprometimento de todos, neste momento de grandes mudanças e grandes incertezas no mundo, a tentação maior vai ser de gerir o país como se fez nas crises passadas. E da experiência tida sabe-se que não se conseguiu de facto debelar as vulnerabilidades e diminuir a precariedade das populações. Mas, a olho nu, nota-se que a dependência das populações e da sociedade em relação ao Estado aumentou. A tudo isso não é estranho o tipo de política de soma zero que se insistiu em perpetuar e que nem a alternância política no governo conseguiu realmente pôr cobro. Acompanhada de crescente personalização da política que não deixa espaço para diálogo e compromissos e para se criar vontade de reforma, as suas consequências são ainda piores. 

O primeiro-ministro, citado pela Lusa num despacho de 26 de Outubro, apresenta-se como uma espécie de treinador de futebol que toma decisões governativas não em função da reacção daquilo que alguns dirão, seja com que formato, seja com que membro de governo for, focado a fazer bom trabalho. Aos outros, políticos e entidades, provavelmente deverá restar o papel de denunciar situações e procurar tirar benefícios eleitorais das denúncias. Daí talvez se compreenda que nos confrontos políticos em Cabo Verde o que mais se ouve é discurso de abandono e de discriminação e acusações de favoritismo partidário. E também se justifique o frenesim de toda a classe política nas suas visitas às ilhas e nos encontros repetidos com a população que só a pandemia da covid-19 conseguiu travar, deixando a nu o desperdício visível que boa parte dessas deslocações e estadas representam em tempo, em dinheiro e em oportunidade de criação de uma consciência nacional dos problemas do país. Aparentemente não há perspectiva de ganho em dialogar, debater e chegar a acordos. 

Se isso é mau em geral, na actual conjuntura política e económica é muito pior. E nem a publicação agora dos novos indicadores macroeconómicos, aparentemente mais favoráveis do que o esperado, devia retirar gravidade à situação actual e convidar à complacência habitual no país. Tornar o país resiliente para enfrentar choques futuros impõe que se vá além da política rasa e sem imaginação que faz escola no país.

Humberto Cardoso


Texto publicado originalmente na edição nº1092 do Expresso das Ilhas de 02 de Novembro

segunda-feira, outubro 31, 2022

Confiança na justiça é essencial na democracia

 O debate sobre a situação da justiça na Assembleia Nacional marcada para a próxima sexta-feira, dia 28 de Outubro, vai acontecer num contexto algo especial em que questões de justiça têm repetidamente vindo à tona e preocupações com a sua eficácia têm sido manifestadas.

Há mais de um ano que a pretexto do caso Amadeu Oliveira individualidades e grupos da sociedade civil têm procurado, através de petições, manifestações, artigos de jornal e debates na rádio e na televisão, problematizar a situação da justiça no país. Sem respostas que considerem convincentes da parte de todo o sistema judicial e dos órgãos de soberania com responsabilidades no funcionamento do regime, a tendência é para uma progressiva descredibilização das instituições e dos seus titulares e a crescente falta de confiança em acreditar que as coisas podem ainda melhorar. 

O fenómeno não é só de Cabo Verde e é visível em maior ou menor grau em vários países. Para as democracias, sejam elas novas ou maduras, tais disfunções constituem perigo de morte. É só ver as convulsões sociais que se têm verificado nos Estados Unidos devido a omissões das autoridades no controlo de armas, a actuação enviesada e discriminatória da polícia em relação às minorias e a reversão de direitos via alterações na jurisprudência. Em outras situações, como se viu de forma flagrante no Brasil, recorre-se à politização da justiça para atingir determinados objectivos e inevitavelmente acaba-se por desacreditá-la aos olhos de todos. E a verdade é que quando as coisas dão para o torto e as democracias entram em derrapagem, vários exemplos (Itália, 1992; Reino Unido, 2019; Brasil, 2019) têm demonstrado o papel do sistema judicial em pôr cobro a certas derivas. 

Razão importante para que o próximo debate parlamentar sobre a situação da justiça se focar na recuperação da confiança na justiça pelos cidadãos. Democracias não sobrevivem sem a liberdade e a paz que um sistema de justiça independente e eficaz garante. Mas, para recuperar a confiança, o diálogo entre as partes não pode ficar por “tricas e futricas” e acusações mútuas à mistura com promessas e críticas demagógicas e populistas na busca de ganho eleitoral. Também não se pode assumir que os problemas se resumem fundamentalmente à falta de meios e que a solução está simplesmente em disponibilizá-los. Os factos não confirmam isso e de qualquer forma os recursos são finitos e há sempre que ponderar as prioridades nos investimentos e despesas do Estado. Compromissos são necessários nos meios a facultar e compreensão da importância de outros factores para a consecução dos objectivos de justiça é essencial para não se perder em disputas que alimentam uma cultura de irresponsabilização e que a priori justificam insucesso em atingir os níveis de eficácia pretendidos. 

Para essa compreensão é fundamental, por exemplo, saber que “o grosso da magistratura judicial já aderiu à cultura de resultados”, como assegurou o presidente do conselho superior da magistratura judicial em entrevista a este jornal. Também saber que persiste um dos pontos fracos do sistema que é a situação de “inexistência de um corpo de inspectores” judiciais para a melhor gestão da magistratura. E que um outro ponto fraco a ultrapassar são os constrangimentos ao funcionamento do sistema de informação judicial que incluem “aversão à mudança e receio de perda de poderes”. O aumento da produtividade no sistema deve, pois, passar por um esforço de optimização na utilização dos meios existentes e numa melhor gestão dos recursos humanos de forma a que se retire o maior retorno de investimentos futuros em instalações e equipamentos e de acréscimos no número de magistrados e funcionários judiciais. 

Assegurar a todos ao longo do debate sobre a situação da justiça que a investigação criminal não está a ser prejudicada pela falta de cooperação entre os polícias deverá ainda contribuir para o reforço de confiança no sistema. Há um ano o Procurador Geral da República já tinha chamado a atenção para o problema, dizendo que “a cooperação e a concertação entre os órgãos da polícia criminal ainda estão longe do desejado e desejável, com tendência para regredir e com prejuízo claro para a investigação criminal”. Voltou há poucos dias a referir-se ao problema em sede da comissão parlamentar especializada para a preparação do debate sobre a situação da justiça. Espera-se que o governo que através do ministério da administração interna e do ministério de justiça, tem poderes de superintendência respectivamente sobre a polícia nacional e a polícia judiciária resolva definitivamente a questão. É dos tais constrangimentos que eliminados teriam impacto positivo na diminuição do sentimento de impunidade no cometimento de crimes tanto pela investigação rápida e concertada dos mesmos como, por essa mesma razão, pela redução de prescrições. 

Justiça e segurança andam juntas. O slogan da “não justiça” que certos sectores da sociedade têm utilizado em várias intervenções públicas ao longo deste ano traduz tanto o sentimento da não confiança na justiça como o sentimento de insegurança que os casos de assaltos com armas de fogo têm instilado nas pessoas. Em relação à insegurança ainda bem que finalmente o governo levou ao parlamento uma alteração à lei das armas para diminuir e controlar o acesso às armas. Podia ter ido mais longe com uma política de desarmar a população e combater a cultura de uso e posse de armas que vem se enraizando particularmente entre os mais jovens. De qualquer forma espera-se que haja resultados palpáveis na redução de crimes, atenuando a sobrecarga dos tribunais, e que do lado do sistema judicial se sinta um maior engajamento para efectivamente diminuir a morosidade da justiça. 

No debate sobre a situação da justiça as forças políticas e o governo deverão encontrar pontos de convergência que tornem realizável o objectivo geral de mais segurança e mais justiça. Garantir a segurança de todos, a todos os níveis, é uma responsabilidade fundamental do Estado e uma peça central da estratégia de desenvolvimento do país. Reforçar a confiança na justiça é essencial na democracia, para a credibilidade das instituições e para o exercício pleno da cidadania. 

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1091 do Expresso das Ilhas de 26 de Outubro

segunda-feira, outubro 24, 2022

Recomendações para os tempos actuais

 Na última reunião das instituições de Bretton Woods em Washington no dia 14 de Outubro a directora do FMI propôs que se adoptasse uma mentalidade mais proactiva e preventiva para poder construir resiliências num mundo mais propenso a choques. Isso porque, segundo ela, as escolhas certas podem evitar os priores resultados num futuro que se vislumbra de incertezas e imprevistos.

 O mundo está perante a possibilidade de uma recessão global no próximo ano na sequencia de choques sucessivos incluindo a pandemia, a guerra na Ucrânia e a crise energética acompanhados de pressão inflacionária e de perturbações graves nas cadeias de abastecimento. Não será com fórmulas recicladas, com a politiquice habitual e com o descaso na utilização dos recursos existentes ou disponibilizados que se irá enfrentar com sucesso a situação actual e a que se desenha nos próximos tempos. 

A crise expôs todas as actuais fragilidades. Cabe agora reconhecê- las e, seguindo as recomendações do FMI, fazer diferente, ciente que a economia terá de funcionar num outro quadro, mais resistente a choques e mais solidário e inclusivo. As pessoas terão que ser capacitadas para responder a outros desafios e estarem na posição de aproveitar novas oportunidades. O impacto já visivelmente sentido das alterações climáticas terá que levar a outros comportamentos na relação com o ambiente, mudanças nos padrões de consumo e a uma acelerada transição para as energias renováveis. A urgência em fazer isso é relembrada todos os dias pelo crescente aumento dos preços energéticos e dos alimentos, pela inflação que se mantém alta e o abrandamento já notório das principais economias do mundo. Ninguém deve se descuidar levado por optimismos fantasiosos do tipo “retoma está aí mesmo à porta”. 

Agrava essa urgência o facto destas crises sucessivas terem acontecido num quadro de crise da democracia de há uma década atrás. Na sequência da crise financeira de 2007/08 instalou-se um mal-estar nas democracias tanto maduras como mais jovens alimentado pelo aumento das desigualdades sociais e pela percepção de falta de representatividade nas instituições e de diminuição nacional de capacidade decisória. Em resumo, desenvolveu-se o sentimento que a globalização tinha ido longe de mais e que em nome de maior eficiência da economia uma elite enriquecia ainda mais enquanto se perdiam empregos bem pagos emagrecendo a classe média e para os mais novos só sobravam os salários baixos dos empregos no sector de serviços. Em acréscimo a questão das migrações que, entretanto, surgiu foi mais uma acha na fogueira da frustração e do ressentimento que em devido tempo foi instrumentalizada por certas forças políticas fragilizando ainda mais as democracias com questões identitárias polarizantes. 

O problema que se coloca é saber como ultrapassar as várias crises que em simultâneo estão a afectar os diferentes países e em particular as democracias. Facto é que com a invasão da Ucrânia pela Rússia e a reacção do Ocidente com as sanções abrangentes em termos económicos, financeiros e tecnológicos a globalização de antes já não mais existe. A procura de eficiência foi substituída pela resiliência, as cadeias de abastecimento estão a ser refeitas e programas de revitalização da manufactura estão a ser realizadas no quadro das chamadas políticas industriais. Conjectura-se que blocos económicos de um mundo multipolar poderão estar no horizonte e das rivalidades entre eles vai-se ter um mundo de dinheiro mais caro, crescimento mais raso e inflação elevada. Os tempos de abundância, referidos pelo presidente francês Macron, estariam a chegar ao fim. 

Para vários economistas como por exemplo Dani Rodrik as novas “políticas industriais”, encetadas por vários países para avivar a manufactura, criar empregos qualificados e bem pagos com o objectivo entre vários outros de diminuir a desigualdade e a exclusão social, irão se mostrar insuficientes. Segundo esse economista, numa publicação recente no quadro do projecto Hamilton, a importância do sector de serviços para a produtividade e competitividade da economia é cada vez maior e com a actual automação e robotização do sector industrial não há como regressar aos tempos anteriores particularmente no que respeita à criação de um grande número de postos de trabalho nos moldes do antigamente. A solução que ele propõe é uma política industrial para o sector de serviços que também se prima pelo aumento da produtividade e da qualidade e seja capaz de sustentar bons empregos.  

Seria interessante verificar até que ponto essa proposta de política industrial para o sector de serviços feita pelo economista Dani Rodrik poderia aplicar-se a países que, com desenvolvimento tardio, perderam a oportunidade da industrialização para criar empregos em larga escala. Ou a países como Cabo Verde que praticamente têm que, em termos da estrutura produtiva e de aplicação de mão-de-obra, dar o salto diretamente do sector primário para o sector de serviços. Talvez resulte a abordagem que faz no sentido da formalização do sector, incluindo capacitação das pessoas, organização de carreiras, estruturação do mercado de prestação de serviços e coordenação para criação de externalidades positivas com vista ao aumento da produtividade e â melhoria da qualidade dos serviços. Poderia ser o caminho para o desenvolvimento de cuidados de saúde abrangentes e de qualidade que viessem a articular com o turismo, em particular com o residencial e o dirigido aos mais velhos. Aplicar-se-ia a outras áreas de serviços que também se suportam da digitalização e gestão de dados e mesmo ao sector das energias renováveis com as suas necessidades de instalação, manutenção e monotorização. Aumentando a produtividade dos serviços prestados já se tinha a base para salários mais altos. 

De qualquer forma para os países em desenvolvimento como é o caso de Cabo Verde a actual crise coloca particulares desafios. Além de enfrentar os altos preços de energia e alimentos, os constrangimentos no abastecimento e a inflação a subir em flecha têm agora de lidar com a alta do dólar e o seu impacto no custo das importações, no défice orçamental e na dívida pública. A tornar ainda pior a situação vem agora o risco de recessão global provocado pelo aumento quase generalizado da taxa de juros numa tentativa de controlo da inflação nos países desenvolvidos. Mesmo que que não venha a acontecer, o abrandamento da economia que vai provocar, agravado pelo facto de todas as grandes economias, incluindo a China, registarem taxas baixas de crescimento, trará grandes problemas aos países em desenvolvimento ainda não refeitos dos efeitos da pandemia da covid-19. 

A recomendação que vem do FMI para a travessia destes conturbados tempos é para contenção no défice orçamental e no montante da dívida pública. Nesse sentido é de se apoiar estritamente os mais necessitados, cortar nas despesas e melhorar na cobrança de impostos e certificar- -se que a política fiscal está em sintonia com a política monetária. A importância de se seguir por esse caminho ficou dramaticamente demonstrado no Reino Unido com a reversão sob pressão dos mercados da política fiscal da nova primeira-ministra que iria conduzir ao aumento do défice e da dívida pública. Demonstraram o seu descontentamento com a depreciação da libra esterlina em relação ao dólar. 

Em Cabo Verde, onde a discussão da política orçamental fica demasiadas vezes pelo básico de acusações de abandono e descriminação e por propostas de despesa movidas por razões eleitoralistas, os tempos de rigor deveriam levar a uma outra abordagem. Aliás, se há algo visível a olho nu são os gastos excessivos feitos pela máquina do Estado. Nestes tempos de rigor seria um grande serviço feito ao país se chegassem a acordo no controlo das despesas e na diminuição das ineficiências. O mesmo se acontecesse na melhoria da cobrança e no alargamento da base tributária. Infelizmente o eleitoralismo que domina a política cabo- -verdiana provavelmente deixará passar mais esta oportunidade para procurar ter um aparelho de Estado enxuto, eficiente e competente como bem o país precisa para se desenvolver e servir bem a todos os cidadãos.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1090 do Expresso das Ilhas de 19 de Outubro

segunda-feira, outubro 17, 2022

Maior cultura constitucional precisa-se

 

É de saudar a realização ontem, dia 11 de Outubro, da sessão solene da Assembleia Nacional por ocasião do trigésimo aniversário da Constituição de 1992 que inaugurou a II República. Finalmente conseguiu-se reunir os consensos necessários das forças políticas para a celebração da data de entrada em vigor da Lei Fundamental do país. Não foi tarefa fácil. Em outras ocasiões de comemoração de datas redondas da Constituição realizavam-se actividades de natureza académica ou acções de divulgação por iniciativas de um ou outro órgão de soberania de um dos partidos ou de instituto ou universidade, mas nunca era assumida pelo conjunto dos órgãos de soberania e das forças políticas do país.

A assunção da comemoração das datas que definem a II República tem sido paulatina como se pode ver na do dia 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, que só foi merecedora de uma sessão solene em 2017. Compreende-se que tenha sido assim pela persistência até hoje de narrativas e simbolismos legitimadores do antigo regime que ainda de uma forma ou outra convivem em tensão permanente com os princípios e valores da nova Constituição e com a ideia de que o poder só é legítimo se resultar do voto popular, livre e plural. Com o passo dado ontem Cabo Verde junta-se às democracias que rodeiam de maior solenidade a celebração da liberdade, da democracia e da Constituição. E a exemplo do que acontece nos países democráticos cabe ao parlamento enquanto órgão de soberania representativo de todos os cidadãos na pluralidade das suas opiniões e diversidade dos seus interesses organizar as festividades e acolher todos os outros órgãos de soberania.

Todos os intervenientes nas solenidades do dia 11 de Outubro referiram-se à necessidade de se cultivar uma cultura constitucional. Num certo sentido o foco nesse ponto pode ser entendido como resultado de um amplo consenso da necessidade de cumprir e fazer cumprir a Constituição da República. Se assim for é de maior importância porque precisamente vive-se um momento nas democracias em que se nota uma tendência para se contornar as regras, para desafiar o sistema instituído e até explorar o quão longe se consegue ir impunemente em contramão com as práticas de há muito estabelecidas. Exemplos encontram-se por aí proeminentemente na América de Trump, no Brasil de Bolsonaro e nas práticas iliberais em países com a Polónia, a Hungria e a Índia e mais dissimuladamente em quase todas outras democracias. E pode-se imaginar que Cabo Verde certamente não é excepção.

A adopção de uma Constituição resulta no estabelecimento de uma ordem política, económica e social com os seus órgãos, normas, processos e procedimentos. Consegue-se consolidação institucional e adquire-se cultura institucional respeitando os princípios e valores e aplicando as regras existentes. Há ganhos nesse sentido quando no quadro das relações estabelecidas por essa ordem democrática houver reconhecimento e valorização do mérito particularmente no acto de tornar produtiva e construtiva a interacção de pessoas, partidos, empresas e outras entidades e em virá-la para a consecução do bem comum. Perde-se, pelo contrário, quando se deixa passar a impressão que a via para conseguir protagonismo, popularidade e marca de autenticidade na política e na sociedade é com discurso hostil ao parlamento e ao sistema de justiça, com o atiçar de sentimentos anti-partido e com políticas populistas e eleitoralistas.

A questão é saber para que lado apontam os incentivos existentes na sociedade e até no Estado. As tensões ainda existentes de valores, narrativas e legitimidades, a falta de consenso nas questões fundamentais do país e a crispação que torna a política inefectiva em vários aspectos designadamente em matéria de reformas fundamentais não são muito favoráveis à consolidação de uma cultura constitucional como aparentemente desejada por todos. As crises sucessivas que deixaram a claro vulnerabilidades e a precariedade do país e da sua população podiam ter invertido a tendência actual e precipitado a procura de soluções para se ultrapassar o problema. Nota-se, porém, que nem as incertezas no futuro próximo marcado pela guerra na Ucrânia e pela crise energética, realçadas esta terça-feira no World Economic Outlook do FMI com a perspectiva do FMI que “o pior ainda está para vir e para muitas pessoas o ano de 2023 vai saber a uma recessão”, conseguem mudar a postura dos dois principais partidos no seu confronto habitual em tempo de Orçamento do Estado.

O governo ao invés de construir uma narrativa de solidariedade e propor políticas mobilizadoras da vontade geral indispensável para enfrentar os tempos difíceis que se anunciam põe-se na posição de ser acusado de ter um “orçamento egoísta”. O próprio processo de preparação do Orçamento do Estado deixa confuso ou frustrado os interlocutores. Sindicatos e empregadores queixam-se de não terem dados suficientes para participar efectivamente na reunião de concertação social em particular sobre a matéria de rendimentos e salários. Numa inversão dos procedimentos leva-se a proposta de orçamento ao presidente da república antes da entrega ao parlamento que é o órgão de soberania que primeiramente o deve discutir e aprovar e só depois o enviar para promulgação. Também estranho é chamar os partidos para os escutar sobre a proposta que já foi entregue no parlamento onde estão representados. Faz lembrar a socialização das decisões no quadro da “democracia nacional revolucionária” e não como o sistema de governo parlamentar estabelecido na Constituição de 1992 deve funcionar.

A cultura constitucional que todos reclamam que se deve desenvolver não é certamente muito compatível com o “disparar para todos os lados e estar em todos lugares” que parece caracterizar a postura dos actores políticos. Funcionar assim não deixa muito tempo para reflexão nem para a tomada de decisões devidamente ponderadas. Há que ultrapassar as tensões derivadas em particular da actuação de agentes do Estado que prejudicam o aprofundamento da cultura constitucional para que as virtualidades da ordem estabelecida pela Constituição de 1992 sejam desenvolvidas em toda a plenitude. Nestes tempos de incertezas e desafios é fundamental que se desenvolva nas pessoas o sentido de pertença que permita construir uma sociedade inclusiva, voltada para o futuro e construída à volta de um Estado de Direito democrático. E não se deixar enrolar no nacionalismo xenófobo e divisivo, voltado para o passado e que não esconde a sua atracção autocrática.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1089 do Expresso das Ilhas de 12 de Outubro

segunda-feira, outubro 10, 2022

Demografia não é destino

 

Atribui-se ao sociólogo francês August Comte a frase demografia é destino, significando que tendo uma população a rejuvenescer ou a envelhecer conta para as perspetivas de prosperidade futura em termos da sua dinâmica ou sustentabilidade. No mundo actual vários países ou regiões do globo estão em fases diferentes de dinâmica populacional.

Em alguns a tendência é para o envelhecimento como é o caso da Europa. Noutros nota-se o rejuvenescimento e fala-se, por exemplo, da África como o continente mais jovem no ano 2050. As migrações dirigidas para várias partes do mundo, em particular para Europa, Estados Unidos da América, Canadá e Austrália têm na origem, entre outras razões, a tentativa de repor algum equilíbrio designadamente quanto à mão-de-obra, que é deficitária em alguns países e regiões e excedentária noutros.

Cabo Verde um arquipélago com uma população jovem e elevada taxa de desemprego de há muito que tem participado nesse movimento migratório global. Isso deve-se à sua condição de país prejudicado pelo afastamento, insularidade, pequena superfície, relevo e clima difíceis, e por uma economia muito pouco diversificada. As secas cíclicas agravam a situação e limitam a actividade económica a uma agricultura em grande parte de subsistência, à prestação de serviços e recentemente ao turismo. Incapacitado por isso de absorver a sua população jovem que ainda para mais tem-se massivamente escolarizado nas últimas décadas ao nível do básico e do secundário, o país só pode assistir à sua crescente emigração em direcção à Europa e à América. O resultado viu-se nos dados do censo geral da população organizados e divulgados pelo INE em 2012 que deram conta que a população tinha diminuído no arquipélago. Em vez dos cerca de 550 mil habitantes esperados, ficou-se pelos 483.628. Foi uma surpresa geral quando talvez não devia ter sido.

Se no passado a demografia era destino, agora que o país é senhor das suas políticas, devia ter os mecanismos para atingir um outro resultado que, mesmo que fosse a emigração, tivesse uma intencionalidade e uma qualificação que potenciasse todo o investimento feito nas pessoas. As Filipinas fazem isso com aposta em profissões nas áreas da saúde e marinha mercante e na Índia em áreas da ciência, matemática, engenharia e tecnologia de informação e comunicação. É verdade que o fluxo espontâneo para a emigração beneficia as pessoas, os familiares e o país pelo rendimento e as remessas que gera. Também investimentos futuros em negócios diversos e construção de casas trazem ganhos para a economia nacional. Potenciado, porém, com políticas públicas dirigidas para conseguir formação certificada por padrões aceites na União Europeia, a emigração teria um outro alcance.

Não o carácter aparentemente informal a que se vem assistindo nos últimos tempos de recrutamento de trabalhadores para Portugal com possíveis perdas para os próprios por falta de garantias suficientes e prejuízos para as empresas que de repente se veem sem trabalhadores e terão que formar outros para continuar a prestar serviço. Já há algum tempo que era previsível o aumento em Portugal da demanda de trabalhadores especializados em várias áreas. Eles próprios sofrem o efeito da emigração para outros países europeus. Não se conseguiu prever a situação ou não se agiu em tempo talvez porque muito do que diz respeito a emprego e desemprego em Cabo Verde não é vista de forma sistemática e compreensiva.

Por um lado, não se mostra consistência na forma como se aborda a questão do emprego designadamente quanto à ligação entre formação e mercado de trabalho e à necessidade de estruturação e formalização da economia. Também se age como se migrações internas não fossem inevitáveis face aos enormes investimentos feitos e ao número de postos de trabalho criados. Ainda hoje percebe-se que não se imprimiu a necessária urgência na criação de condições de trabalho nos locais e ilhas no que respeita à habitação bem como à saúde e educação. Paradoxalmente, o que mais se ouve são apelos para a criação de condições para as pessoas ficarem nas suas ilhas e nos seus municípios. Até se promete portos e universidades para as pessoas não deixarem as suas respectivas ilhas e também para não emigrarem. Queixa-se que as populações mais vulneráveis e pobres estão nas zonas rurais e no momento seguinte promete-se que tudo será feito para lá ficarem. Repete-se a falácia que é possível construir uma economia que as pode assegurar os rendimentos para as tirar da pobreza.

Fica-se com a impressão de que predomina no país uma visão estática e não dinâmica da movimentação de pessoas, de mão-de- obra, de cultura e do saber. Por isso que não se pôde prever as migrações internas e evitar os problemas graves que existiram e ainda existem por exemplo na ilha do Sal e da Boa Vista. Por essa mesma razão também não se considera qualificar para emigrar. Como que não entra na equação que Cabo Verde tem as características de afastamento, insularidade, pequena superficie, população diminuta, relevo e clima e falta de diversidade económica que a União Europeia qualifica as suas regiões ultraperiféricas como Açores, Madeira e Canárias e as subsidia largamente e em vários sectores designadamente dos transportes aéreos e marítimos. Cabo Verde é tudo isso e em algumas coisas multiplicado pelas nove ilhas.

Seria bom que os governantes e toda a classe política tivessem tudo isso em devida consideração quando procuram diminuir o desemprego, combater a pobreza particularmente nas zonas rurais, enfrentar o problema dos transportes e a necessidade de unificação do mercado nacional, garantir a segurança e capacidade de respostas emergenciais em qualquer ponto do território nacional. Podiam adoptar a mesma abordagem para conseguir o maior retorno do investimento que se faz na educação e qualificar profissionais tanto na perspectiva do mercado interno como do mercado externo. A formalização da economia e a estruturação do mercado de trabalho necessariamente exigirá o contributo de parceiros e entidades privadas que devem ser contemplados com pacotes de incentivos tanto para a formação de mão-de-obra como para a certificação dos produtos e serviços e também dos seus profissionais.

A superação dos constrangimentos próprios dos territórios insulares e ultraperiféricos deve ainda considerar a questão da população caboverdiana que é demasiado pequena para se conseguir economias de escala em qualquer sector. O aumento e a diversificação do fluxo turístico constituirão sempre um grande contributo para minimizar o défice populacional. Uma aposta mais permanente seria o turismo residencial e nessa perspectiva a exploração estratégica das necessidades de lazer, sossego e cuidados básicos da população europeia crescentemente envelhecida podia ser o ideal. Para isso, porém, é fundamental que se equacione os problemas do país e, em particular, a questão demográfica. Quando se preparam alterações à lei da nacionalidade e se facilita a imigração há que ponderar todos esses elementos. A demografia pode não ser destino, mas para isso é fundamental que se encontre políticas públicas certas para se ultrapassar os obstáculos que são muitos e complexos a fim de se conseguir produzir riqueza, diminuir o desemprego e combater a pobreza.