A semana passada foi terrível para o governo. A precedê-la havia o anúncio da assinatura de uma adenda ao contrato de concessão de transportes marítimos que finalmente viria colocar o serviço no caminho certo. A realidade que se seguiu à publicação e divulgação do novo acordo gerou descontentamento generalizado e ameaça de caos no sector. Em particular na rota S.Vicente/ Santo Antão o impacto das novas tarifas foi estrondoso e levou a reacções fortes da população, dos operadores e das forças da oposição.
Não só ficou clara a importância do tráfego marítimo na vida das duas ilhas que realmente constituem uma região económica como também se pôde constatar que o não reconhecimento dessa realidade faz cometer “erros de cálculo” que custam caro às pessoas e à economia e desgastam politicamente o governo.
Somando isso a outros “erros de cálculo” na adequação das opções nas linhas marítimas que ligam as ilhas compreende-se o fogo cruzado intenso em que o governo repentinamente se viu exposto depois da assinatura formal do acordo por dois ministros e pela empresa concessionária, quando a expectativa era outra e muito diferente. O rápido marcha-atrás nas medidas tomadas poderá servir para conter o desgaste político, mas não vai resolver os problemas de fundo. Claramente que há problemas com o modelo de concessão escolhido e parece não haver a melhor articulação entre as medidas de política e a dinâmica económica das ilhas como ficou aparente na ligação S.Vicente/Santo Antão. Também falta clarificar o que pode ser reservado a outros operadores, qual o futuro para a armação nacional e que papel para o Estado que até já assumiu comprar quatro barcos num futuro próximo. Equacionar e agir em relação a tudo isto não vai ser fácil, considerando o nível de descrédito na opinião pública que os últimos acontecimentos acabaram por revelar.
Cabo Verde tem constrangimentos incontornáveis como são a sua condição de arquipélago com 9 ilhas relativamente distantes umas das outras e condições de navigabilidade em oceano aberto muitas vezes severas. Acrescentando a isso a pequena população e a fraca estrutura produtiva do país dificilmente se poderá contar com a possibilidade de rentabilizar os transportes marítimos num sistema de serviço público regular e cobrando tarifas acessíveis sem uma forte subsidiação do Estado. É o que acontece nos outros arquipélagos da Macaronésia como, por exemplo, nos Açores onde subsídios para transportes aéreos chegam aos 140 milhões de euros e para os transportes marítimos atingem 9 a 10 milhões de euros. No país essa realidade não é assumida clara e frontalmente.
Governos sucessivos e partidos que se alternam na oposição esforçam-se por escamotear a realidade ou com subsidiação intransparente ou com afirmações duvidosas que tudo depende de políticas certas e uma boa gestão. Alimentam-se ilusões que as ilhas podem ter barcos a aportar todos os dias ou até que barcos podem pernoitar nas mais isoladas para responder a eventuais situações de emergência. Em consequência, indo de expediente em expediente, para responder a situações que vão surgindo de transporte marítimo de passageiros, particularmente nos últimos tempos em que a circulação aérea ficou mais difícil e mais cara, aumentam-se as ineficiências e naturalmente os custos de operação.
A par disso cresce o descontentamento do público e também as denúncias politicamente motivadas que por sua vez levam à intervenção directa do governo. Intervenções essas que geralmente criam mais ineficiências e custos, agravando o círculo vicioso existente. O resultado disso vê-se no montante de subsidiação indemnizatória que se paga anualmente que por duas vezes (2020-2022) ultrapassou um milhão de contos. A intenção do governo em financiar a compra de quatro barcos para quebrar o círculo vicioso, quando originalmente previa-se que seria a empresa concessionária a adquirir barcos num total de cinco, dá uma ideia da espiral descendente que foi traçada seguindo por esse caminho. Devia ser evidente que se vai tarde na reflexão sobre como reverter uma situação que tende a ficar pior porque se acumulam ineficiências e seus custos e apresenta-se cada vez mais complexa porque é mais profundo o descrédito das populações. A tentação é, como se vê também nos transportes aéreos, de seguir pelos mesmos caminhos adoptando estratégias desenhadas antes das crises e, não obstante fiascos como da associação com a Icelandair, esperar que realmente “desta vez” vai dar certo. É a corrida atrás de ilusões.
A semana terrível do governo cabo-verdiano com a questão dos transportes marítimos tem similaridades com os tempos difíceis que governos de outras democracias vêm passando. Há o exemplo mais recente dos problemas em Portugal da TAP, das pensões na França e das crises sucessivas de governos no Reino Unido ou das tribulações na política americana. As crises múltiplas dos últimos anos acabaram por revelar o quão intratáveis se tornaram problemas como transporte, habitação, aumentos do custo de vida, em particular de alimentação, acesso a serviços de saúde e falhas no sistema educativo. Com o enfraquecimento das instituições, com o maior “ruído” das redes sociais e fragilidades do sistema de partidos e da democracia representativa, a tarefa dos governos democráticos tem-se complicado extraordinariamente.
A opção pela política-espectáculo, a tentação de políticos se comportarem como celebridades e a preferência por medidas de política populistas têm conjugado para tornar ainda pior a situação mesmo quando por algum tempo essa via pareça ser a melhor para conquistar e se manter no poder. Já o que vem de arrasto, que são as exigências crescentes de transparência, o escrutínio apertado em bom número de casos e a tensão permanente criada via redes sociais, que muitas vezes parece o “vociferar da turba”, tendem, por seu lado, a fragilizar a governação, fixando-a na gestão do momento, sem a devida ponderação na realização de objectivos mais alargados e mais virada para suscitar paixões e afectos. É o terreno propício para, de facto, não se cumprirem mandatos, no sentido de se fazer as reformas de fundo que credibilizam instituições, reforçam o capital humano e criam condições para aumentar a competitividade e produtividade. Pelo contrário, enfatiza a concentração em como manter-se no poder e procurar reeleição.
Romper com esse círculo vicioso significa entre outras coisas agir activamente para que os problemas não se acumulem, a dívida pública não atinja valores insustentáveis e a frustração e o ressentimento não se transformem no combustível que alimenta a máquina política no país. Para isso é fundamental governar com verdade, com realismo e pragmatismo e ter presente o tempo do mandato para desenvolver estratégias, mobilizar vontades e encadear medidas políticas de forma a atingir ao fim dos cinco anos os objectivos que se preconizou e deixar alicerces seguros para continuação da construção do futuro.
Hoje fala-se muito na pressão das redes sociais que não deixam que se concentre com tempo, ponderação e sabedoria na melhor forma de resolver os problemas do país. É, porém, responsabilidade dos governantes não se renderem às forças que procuraram tornar inoperacional a democracia representativa. Aliás, seria bom que os activistas nas redes sociais estivessem cientes que essa forma de participação só é possível nas democracias liberais porque nelas é que não se corta a internet e não se constrói sistemas de segurança na internet (firewall) para bloquear conteúdos considerados inaceitáveis pelo Estado.
No meio das pressões que têm que ser feitas, opiniões que devem ser emitidas e chamadas à acção que podem ser feitas via internet, há que considerar que tudo isso só faz sentido se é para garantir a todos “segurança, oportunidade, prosperidade e dignidade”. Como diz Martin Wolf no seu último livro “A crise do capitalismo democrático” esses devem ser os objectivos fundamentais de toda a governação.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.