segunda-feira, maio 01, 2023

Erros de cálculo

 

A semana passada foi terrível para o governo. A precedê-la havia o anúncio da assinatura de uma adenda ao contrato de concessão de transportes marítimos que finalmente viria colocar o serviço no caminho certo. A realidade que se seguiu à publicação e divulgação do novo acordo gerou descontentamento generalizado e ameaça de caos no sector. Em particular na rota S.Vicente/ Santo Antão o impacto das novas tarifas foi estrondoso e levou a reacções fortes da população, dos operadores e das forças da oposição.

Não só ficou clara a importância do tráfego marítimo na vida das duas ilhas que realmente constituem uma região económica como também se pôde constatar que o não reconhecimento dessa realidade faz cometer “erros de cálculo” que custam caro às pessoas e à economia e desgastam politicamente o governo.

Somando isso a outros “erros de cálculo” na adequação das opções nas linhas marítimas que ligam as ilhas compreende-se o fogo cruzado intenso em que o governo repentinamente se viu exposto depois da assinatura formal do acordo por dois ministros e pela empresa concessionária, quando a expectativa era outra e muito diferente. O rápido marcha-atrás nas medidas tomadas poderá servir para conter o desgaste político, mas não vai resolver os problemas de fundo. Claramente que há problemas com o modelo de concessão escolhido e parece não haver a melhor articulação entre as medidas de política e a dinâmica económica das ilhas como ficou aparente na ligação S.Vicente/Santo Antão. Também falta clarificar o que pode ser reservado a outros operadores, qual o futuro para a armação nacional e que papel para o Estado que até já assumiu comprar quatro barcos num futuro próximo. Equacionar e agir em relação a tudo isto não vai ser fácil, considerando o nível de descrédito na opinião pública que os últimos acontecimentos acabaram por revelar.

Cabo Verde tem constrangimentos incontornáveis como são a sua condição de arquipélago com 9 ilhas relativamente distantes umas das outras e condições de navigabilidade em oceano aberto muitas vezes severas. Acrescentando a isso a pequena população e a fraca estrutura produtiva do país dificilmente se poderá contar com a possibilidade de rentabilizar os transportes marítimos num sistema de serviço público regular e cobrando tarifas acessíveis sem uma forte subsidiação do Estado. É o que acontece nos outros arquipélagos da Macaronésia como, por exemplo, nos Açores onde subsídios para transportes aéreos chegam aos 140 milhões de euros e para os transportes marítimos atingem 9 a 10 milhões de euros. No país essa realidade não é assumida clara e frontalmente.

Governos sucessivos e partidos que se alternam na oposição esforçam-se por escamotear a realidade ou com subsidiação intransparente ou com afirmações duvidosas que tudo depende de políticas certas e uma boa gestão. Alimentam-se ilusões que as ilhas podem ter barcos a aportar todos os dias ou até que barcos podem pernoitar nas mais isoladas para responder a eventuais situações de emergência. Em consequência, indo de expediente em expediente, para responder a situações que vão surgindo de transporte marítimo de passageiros, particularmente nos últimos tempos em que a circulação aérea ficou mais difícil e mais cara, aumentam-se as ineficiências e naturalmente os custos de operação.

A par disso cresce o descontentamento do público e também as denúncias politicamente motivadas que por sua vez levam à intervenção directa do governo. Intervenções essas que geralmente criam mais ineficiências e custos, agravando o círculo vicioso existente. O resultado disso vê-se no montante de subsidiação indemnizatória que se paga anualmente que por duas vezes (2020-2022) ultrapassou um milhão de contos. A intenção do governo em financiar a compra de quatro barcos para quebrar o círculo vicioso, quando originalmente previa-se que seria a empresa concessionária a adquirir barcos num total de cinco, dá uma ideia da espiral descendente que foi traçada seguindo por esse caminho. Devia ser evidente que se vai tarde na reflexão sobre como reverter uma situação que tende a ficar pior porque se acumulam ineficiências e seus custos e apresenta-se cada vez mais complexa porque é mais profundo o descrédito das populações. A tentação é, como se vê também nos transportes aéreos, de seguir pelos mesmos caminhos adoptando estratégias desenhadas antes das crises e, não obstante fiascos como da associação com a Icelandair, esperar que realmente “desta vez” vai dar certo. É a corrida atrás de ilusões.

A semana terrível do governo cabo-verdiano com a questão dos transportes marítimos tem similaridades com os tempos difíceis que governos de outras democracias vêm passando. Há o exemplo mais recente dos problemas em Portugal da TAP, das pensões na França e das crises sucessivas de governos no Reino Unido ou das tribulações na política americana. As crises múltiplas dos últimos anos acabaram por revelar o quão intratáveis se tornaram problemas como transporte, habitação, aumentos do custo de vida, em particular de alimentação, acesso a serviços de saúde e falhas no sistema educativo. Com o enfraquecimento das instituições, com o maior “ruído” das redes sociais e fragilidades do sistema de partidos e da democracia representativa, a tarefa dos governos democráticos tem-se complicado extraordinariamente.

A opção pela política-espectáculo, a tentação de políticos se comportarem como celebridades e a preferência por medidas de política populistas têm conjugado para tornar ainda pior a situação mesmo quando por algum tempo essa via pareça ser a melhor para conquistar e se manter no poder. Já o que vem de arrasto, que são as exigências crescentes de transparência, o escrutínio apertado em bom número de casos e a tensão permanente criada via redes sociais, que muitas vezes parece o “vociferar da turba”, tendem, por seu lado, a fragilizar a governação, fixando-a na gestão do momento, sem a devida ponderação na realização de objectivos mais alargados e mais virada para suscitar paixões e afectos. É o terreno propício para, de facto, não se cumprirem mandatos, no sentido de se fazer as reformas de fundo que credibilizam instituições, reforçam o capital humano e criam condições para aumentar a competitividade e produtividade. Pelo contrário, enfatiza a concentração em como manter-se no poder e procurar reeleição.

Romper com esse círculo vicioso significa entre outras coisas agir activamente para que os problemas não se acumulem, a dívida pública não atinja valores insustentáveis e a frustração e o ressentimento não se transformem no combustível que alimenta a máquina política no país. Para isso é fundamental governar com verdade, com realismo e pragmatismo e ter presente o tempo do mandato para desenvolver estratégias, mobilizar vontades e encadear medidas políticas de forma a atingir ao fim dos cinco anos os objectivos que se preconizou e deixar alicerces seguros para continuação da construção do futuro.

Hoje fala-se muito na pressão das redes sociais que não deixam que se concentre com tempo, ponderação e sabedoria na melhor forma de resolver os problemas do país. É, porém, responsabilidade dos governantes não se renderem às forças que procuraram tornar inoperacional a democracia representativa. Aliás, seria bom que os activistas nas redes sociais estivessem cientes que essa forma de participação só é possível nas democracias liberais porque nelas é que não se corta a internet e não se constrói sistemas de segurança na internet (firewall) para bloquear conteúdos considerados inaceitáveis pelo Estado.

No meio das pressões que têm que ser feitas, opiniões que devem ser emitidas e chamadas à acção que podem ser feitas via internet, há que considerar que tudo isso só faz sentido se é para garantir a todos “segurança, oportunidade, prosperidade e dignidade”. Como diz Martin Wolf no seu último livro “A crise do capitalismo democrático” esses devem ser os objectivos fundamentais de toda a governação. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 24, 2023

Basta de tiro no pé

 

A Assembleia Nacional deu como aprovado na generalidade, no dia 14 de Abril, o projecto de lei que classifica a língua portuguesa como património cultural e imaterial de Cabo Verde com 27 votos a favor e 26 contra. A nota justificativa que acompanha o projecto lei começa por apresentar a língua portuguesa como parte integrante e estruturante da história, da sociedade e da identidade cabo-verdiana para depois concluir que não se pode ficar “indiferente a sinais de fadiga” na sua utilização que vão em contramão com a valorização que devia merecer como língua de comunicação interna e língua internacional do Estado de Cabo Verde.

O projecto de lei ainda terá que ser aprovado na especialidade e na globalidade antes de ser enviado ao presidente da república para promulgação. A controvérsia que se instalou sobre a maioria exigida na deliberação provavelmente não vai desaparecer e poderá ressurgir num outro momento do processo legislativo. De facto, de acordo com o nº 2 do artigo 161º da Constituição e 131º do regimento da AN os projectos e propostas de lei são aprovados por maioria absoluta dos deputados presentes. A aprovação por maioria simples, ou seja, sem contar os votos nulos, em branco e as abstenções como determina o nº 3 do artigo 121º da Constituição é, segundo os constitucionalistas, apenas um princípio subsidiário que cede quando a Constituição dispõe de forma diferente e determina que a maioria é absoluta, é de dois terços ou de quatro quintos. A prática parlamentar de sempre tem sido essa e a maioria simples só tem sido adoptada nas resoluções e mesmo nelas só quando a Constituição não estipula uma outra maioria.

De qualquer forma, a declaração do presidente da assembleia nacional a dar por aprovado o projecto de lei já foi de grande significado político. O teor do debate havido e as opções de voto dos deputados revelou o nível de polarização político-ideológica que a questão da língua portuguesa provoca. O ministro da cultura que publicamente se tinha oposto à iniciativa do projecto de lei no debate parlamentar não se fez presente nem o governo manifestou apoio à sua posição. O MpD, partido que suporta o governo, votou maioritariamente no projecto de lei juntamente com a maioria dos deputados da UCID enquanto no PAICV, pelo contrário, só uma pequena minoria foi favorável. Considerando o desenlace, ministros antes de reagirem desabridamente a iniciativas dos deputados e em particular da maioria parlamentar deviam ter em devida conta que, além de responderem perante o primeiro-ministro, são politicamente responsáveis perante o parlamento.

Ao longo do debate ficou evidente a quase impossibilidade de se discutir o estado da língua portuguesa e a necessidade de se elevar o seu nível de proficiência como condição para a cidadania plena, excelência no sistema de ensino, acesso ao conhecimento científico e da história e literatura de Cabo Verde e comunicação efectiva no plano internacional. O contraditório a partir da posição que o crioulo está a ser vítima e que não é suficientemente dignificada como língua materna efectivamente bloqueia o debate e acaba por revelar a polarização típica que se cria nas guerras culturais e identitárias da actualidade.

De facto, não pode ser considerada língua inferior aquela que pode ser utilizada pelo presidente da república, pelos deputados e em qualquer função do Estado, actividade social ou cultural como todos os dias se assiste no país através dos órgãos de comunicação social. O crioulo só tem limitações no seu uso porque ainda não se acordou numa forma estandardizada e na sua expressão escrita. Por isso é que não é língua de ensino, o boletim oficial e outros documentos do Estado não têm uma versão em crioulo nem tão pouco contratos e sentenças judiciais são redigidos em crioulo. A falta de uma versão mais formal da língua também prejudica a comunicação oral em contextos como debates parlamentares, cerimónias oficiais e apresentação de trabalhos académicos que, por razões de protocolo, exigem linguagem mais sofisticada e precisa do que a fala coloquial. O sentimento geral que há alguma degradação nos trabalhos parlamentares provavelmente não estará alheio ao crescente uso do crioulo nos debates sem a formalidade que seria de exigir na linguagem utilizada num órgão de soberania.

Sem ter um padrão do crioulo escrito e aceite pela comunidade nacional não há como ultrapassar a situação actual. Oficializar a língua não resolve o problema: criam-se obrigações custosas para o Estado de disponibilizar informação e serviços em crioulo sem ter os recursos para isso e na ausência de uma língua padronizada. Luxemburgo com todos os seus recursos levou décadas, com tentativas falhadas pelo meio, a padronizar o luxemburguês, mas o nível de utilização na sua forma escrita continua baixo. Ainda a melhor solução é procurar cumprir o comando constitucional que se deve continuar a criar as condições para ter paridade com a língua portuguesa.

Entrementes devia-se evitar criar um ambiente de conflito entre as duas línguas que arraste consigo sentimentos de vitimização, ressentimento e rejeição da língua portuguesa que interferem directamente com a vontade de fazer a sua aprendizagem adequada. Insistir na via que já demonstrou num primeiro embate não ter maioria na assembleia representativa dos cabo-verdianos só estará a prejudicar o presente e o futuro do país pela má vontade que cria nos alunos em relação à língua essencial para aprendizagem e conhecimento. De facto, vai-se para escola fundamentalmente para aprender ler e escrever. Com capacidade de leitura pode-se resolver problemas de matemática, aprender ciências, aceder a toda a literatura publicada e ser um produtor e transmissor de conhecimento. Não sendo uma língua com escrita padronizada é evidente que o crioulo não pode ser ainda uma língua de ensino.

As crianças em geral aprendem as suas respectivas línguas logo nos seus primeiros anos de vida. Depois na escola vão aprender a ler e a escrever e comunicarem-se em linguagem formal e estandardizada. A iniciação na literatura começa também aí. Se a língua materna da criança não é uma língua escrita e como no caso de Cabo Verde é a língua falada por todos e em quase todas as ocasiões, a escola tem um papel suplementar de ensinar a língua do ensino e do conhecimento com um nível de proficiência que garanta sucesso na aprendizagem a todas crianças que nela ingressa. É uma enorme responsabilidade que recai sobre os professores e os pais, mas que a sociedade no seu todo deve assumir. A criação de um ambiente propício para todas as crianças e jovens aprenderem a língua é essencial para garantirem no presente o seu sucesso escolar e depois profissional e também fundamental para o exercício de uma cidadania plena.

Do governo exige-se visão e liderança para que os enormes investimentos feitos na educação não sejam desperdiçados e nem o futuro hipotecado porque não se soube criar a motivação suficiente para elevar o nível de capital humano no país, aumentar competitividade e a produtividade e tornar o país mais atractivo para o investimento externo. Aos jovens não se pode deixar a única opção de querer emigrar para trabalhar em sectores de baixo salário. E tudo porque se permitiu que questiúnculas ideológicas e guerras culturais atrapalhassem o maior investimento que o país pode fazer que é dar uma educação de qualidade às suas gentes.

Imagine-se onde estariam a Singapura com os seus grupos étnicos e as Maurícias com sua história de colónia francesa e depois inglesa se tivessem ficado enredados em questões identitárias que prejudicasse a assunção respectivamente do inglês e do francês e inglês como língua oficial e do ensino. Quase cinquenta anos volvidos após a independência, é preciso que Cabo Verde se compenetre que não tem todo o tempo do mundo para tomar o caminho certo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1116 de 19 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 17, 2023

Evitar o cinismo institucional

 

Na sessão da Assembleia Nacional que começa hoje, dia 12 de Abril, vai-se avançar com a proposta de eleição dos quatro membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) para completar o que deveria ser a total renovação do órgão de gestão da magistratura judicial. Em Novembro último, os juízes tinham eleito os seus quatro representantes e logo no início de Dezembro o presidente da república nomeou um juiz para completar o número de cinco magistrados judiciais entre os nove membros do CSMJ.

A Assembleia Nacional falhara em eleger os seus representantes e, apesar de não se ter verificado a renovação completa do órgão. optou-se por ir à frente com a eleição do seu presidente. Agora, ao mesmo tempo que se procura colmatar a deficiência com a nova eleição na Assembleia Nacional dos restantes quatro membros não magistrados, está-se a avançar com uma proposta de lei de alteração da orgânica do CSMJ que curiosamente vai alterar as regras do seu funcionamento num sentido no mínimo desconcertante.

A actual lei orgânica prevê um cargo de vice-presidente do CSMJ que coadjuva o presidente e que deve ser ocupado por um membro não magistrado eleito pelo órgão. Algo similar acontece no conselho superior da magistratura da Itália, que é considerado por vários autores como o modelo desses órgãos de gestão da magistratura judicial, com o objectivo de garantir ao público transparência, accountability e prestação de contas. O cargo faz, pois, todo o sentido, mas até os dias de hoje, mais de dez anos depois de a lei ter sido publicada, não foi preenchido. Nem mesmo depois do recurso feito para contornar essa norma ter sido considerado improcedente pelo Tribunal Constitucional. Um acórdão datado de 2016 do TC considerou unanimemente que não tinha razão quem questionou a constitucionalidade da norma que estabeleceu que o vice-presidente deve ser escolhido de entre os membros não-magistrados.

Causa, pois, alguma estranheza que numa mudança de 180º e aparentemente em resposta ao acórdão do TC, a proposta de lei que está para discussão e aprovação na Assembleia Nacional, vá determinar que o vice-presidente seja magistrado judicial. Mais, para além de essa alteração aumentar o peso e a influência dos magistrados no conselho também constituirá um reforço do presidente do CSMJ que não só passará a propor para eleição o candidato a vice-presidente como também poderá pedir sua destituição a todo o tempo (nº 4 do artigo 28º da proposta de lei). A discussão sobre o relativo peso dos magistrados e não-magistrados nos conselhos superiores da magistratura não é coisa inócua ou sem importância. A composição diversa desses órgãos é uma questão central para se garantir, por um lado, a autonomia e a independência dos juízes e, por outro, segundo os constitucionalistas, “se atenuar a ausência de legitimação democrática dos juízes enquanto titulares de órgãos de soberania”.

Como essa diversidade se deverá manifestar para o órgão e em que proporção se elege ou se nomeia os seus membros varia com as diferentes soluções encontradas nas democracias. Mesmo no seio de cada uma delas, a configuração tende a evoluir com o tempo. Em Cabo Verde também houve evolução quanto à maioria numérica no CSMJ. Inicialmente, na Constituição de 1992, os indicados pelos órgãos do poder político (três eleitos pela assembleia nacional e os dois nomeados pelo presidente da república) eram maioritários em relação aos magistrados judiciais (2 eleitos pelos juízes: o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Inspector Superior Judicial). Na prática a opção do PR em nomear dois juízes restituía a maioria aos magistrados. Na revisão constitucional de 1999 clarificou-se a intenção do legislador constituinte e estabeleceu-se que os dois membros de nomeação presidencial não podiam ser magistrados ou advogados. Na última revisão de 2010 outra vez, desta feita formalmente, foi invertida a maioria passando a ser 5-4 a favor dos magistrados.

Parafraseando o dito que pessoas investidas com cargos tendem a apegar-se como tenazes ao poder e que esse apego as faz estender o seu poder, aumentar seus direitos e ampliar a esfera da sua própria autoridade, o mais natural é que não se fique por aí. Com as alterações na orgânica do CSMJ apresentadas para discussão e aprovação no parlamento, a proposta de lei em vários artigos dá sinal que se vai no sentido de menor influência dos membros não-magistrados e de maior poder do presidente que também passa a ter voto de qualidade (nº 3 do artigo 34º da proposta de lei).

A questão que se coloca é por que então elegê-los se a capacidade de influenciação na gestão da magistratura judicial é reduzida ao mínimo. Diversidade devia ser a chave para legitimação democrática e contenção de tendências corporativas. O sector da justiça em particular tem estado sob escrutínio mais apertado dos cidadãos e todos querem ver resultados da renovação dos seus órgãos de autogoverno. Se os efeitos não se fazem sentir por limitações várias, podia-se poupar nos custos e evitar os efeitos de fachada que alimentam o cinismo do público em relação às instituições.

Cabo Verde tem várias entidades administrativas independentes, umas nomeadas pelo governo depois de audição parlamentar e outras eleitas pela Assembleia Nacional por maiorias qualificadas de dois terços dos deputados enquanto órgãos externos. O parlamento na sessão a iniciar esta quarta-feira vai eleger candidatos a alguns cargos exteriores e espera-se que renove o mais cedo possível todos os que estão com mandato há muito terminado. O objectivo desejado é que no quadro institucional autónomo e acima das disputas políticas se assegure um ambiente salutar para todo o sistema político que prime pelo cumprimento das regras e por uma cultura de transparência, responsabilização e prestação de contas. Também que salvaguarde os direitos dos indivíduos e os direitos dos consumidores e mantenha funcional uma ordem económica e social facilitadora da iniciativa e da inovação e potenciadora da energia e perseverança de indivíduos e empresas.

São entidades que, pela sua natureza, devem ser competentes, eficazes e afirmativas da sua autonomia em relação aos outros poderes, em particular os económicos e os políticos. Todo o processo de escolha e nomeação dos seus titulares deveria ter isso em devida consideração. Também pela sua natureza e exigências de funcionamento representam custos significativos e na sociedade há a expectativa de um retorno adequado desse investimento. Por isso, não podem ser simplesmente cargos de predilecção de quem só quer privilégios especiais ou moeda de troca de quem quer dispensar favores pessoais ou partidários, nem tão pouco serem escamoteados nos propósitos por que foram criados. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1115 de 12 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 10, 2023

Cabo Verde de luto

 

A tragédia na Serra da Malagueta no domingo, dia 3 de Abril, deixou o país em estado de choque. Um acidente de viação levou à morte inesperada de oito jovens militares e um técnico agrário sucumbiu depois de ter sido atingido por rochas soltas. Já se tinham passado dois dias que militares em cooperação com as forças locais da protecção civil estavam conjuntamente com a população e guardas florestais a dar combate às chamas que ameaçavam alastrar-se por todo o perímetro florestal, a pôr em perigo as pessoas, os seus bens e o gado. Foi quando, apesar do tempo ventoso e seco, praticamente se tinha controlado o incêndio é que a fatalidade aconteceu.

Ainda não se conhecem as reais causas do acidente, mas segundo as declarações oficiais, parecem estar ligados a problemas mecânicos da viatura, não obstante ser relativamente nova (2021) e o condutor ser experiente. A concentração de homens e recursos, esforços que torna a missão militar eficaz, cria a possibilidade de em caso de acidente as consequências serem realmente desastrosas. Acontece em todos os exércitos, grandes ou pequenos, sofisticados ou simples. Daí a importância de se ter capacidade de organização e logística adequada e, quando algo acontece, fazer os inquéritos rigorosos para se saber das reais causas, dar a conhecer os resultados, tirar as devidas ilações e promover as melhores práticas.

O que não se pode apagar é a enorme tristeza que envolve toda a gente quando vidas são inesperadamente ceifadas nessas circunstâncias. Eram militares, mas não estavam num teatro de guerra e a probabilidade de morte era longínqua. O serviço, que com entusiamo e generosidade prestavam à comunidade, não lhes devia ter custado a vida. A profunda consternação em que o país caiu, vem dessa constatação simples. Deve ser total e genuína a solidariedade de toda a nação para com os familiares e amigos, os companheiros da tropa e com a instituição nacional única de cidadania que são as Forças Armadas. Compete aos mais altos representantes transmitir isso sem ambiguidade ou aproveitamento político.

O luto nacional deve servir para os homenagear, juntar-se às famílias neste momento de dor e incentivar as forças armadas, os homens e mulheres nas suas fileiras, os profissionais e os conscritos, a continuar a prestar o serviço que o país deles espera. Como sempre, o país quer contar com a prontidão das tropas em todos os momentos de dificuldades, sejam eles de pandemia, erupção vulcânica, busca e salvamento no mar e incêndios florestais, desastres ambientais e fiscalização dos mares. Nestes dias de tristeza colectiva a última coisa que se devia ver repetido é o ambiente competitivo que opõe actores políticos e partidos para saber quem aparece mais, quem foi o primeiro a propor, quem está mais compungido pela dor, etc, etc.

Infelizmente, a tentação é grande e com uma ponta de cinismo de uns e a hipocrisia de outros lá se vai perdendo mais uma oportunidade de a nação mostrar-se una e mais forte para continuar a ultrapassar adversidades e enfrentar os desafios da democracia, da modernidade e do desenvolvimento. Os tempos actuais com as suas incertezas quanto ao futuro e as múltiplas crises que se retroalimentam deviam levar ao reforço do que une a comunidade, tanto ao nível local como ao nível nacional, para se poder ser livre e plural e usar o dissenso e encontrar as melhoras soluções para o país. A pandemia da covid-19 pela sua natureza de ameaça quase existencial podia talvez ter desencadeado esse processo de aproximar todos.

Mas, aparentemente, foram mais poderosas as forças centrífugas que estão a trabalhar para reforçar o individualismo em detrimento da comunidade, para preferir o protagonismo pessoal e não o serviço público e optar pelo populismo com prejuízo para a credibilidade das instituições e o primado da lei. O desgaste político e social é real e visível na forma como é tratado tudo o que diz respeito às câmaras municipais, ao parlamento, ao governo, aos tribunais e ao presidente da república. Impera partidarismos, clubismos e paixões pessoais em detrimento do que poderia ser uma procura da verdade, das melhores vias para resolver problemas e da reafirmação de um consenso sobre questões fundamentais que reafirmem a comunidade política-nacional como tal. As últimas sondagens do Afrobarómetro dão conta desse desgaste institucional com reflexo na confiança, no civismo e na capacidade de mobilização da vontade nacional para construir um futuro com mais prosperidade.

É interessante que nas sondagens as Forças Armadas é a instituição de maior confiança dos caboverdianos. O conhecimento deste facto devia levar a que a pretexto das dificuldades do momento não fossem submetidas às disputas habituais entre os diferentes actores políticos e, em consequência, ao tipo de desgaste que outras instituições da república têm sido alvo nos últimos tempos. Ninguém ganhará com isso e no fim do dia só ficarão mais frágeis as ligações que ligam todos nós.

Lamentavelmente parece que os tempos não são de reforço de uma identidade comum e de procura de maior cooperação entre as pessoas. A preferência aparentemente é, como disse Alexander Hamilton nos Federalist Papers para se criar uma “torrente de paixões furiosas e malignas”. Contraria isso o exemplo daqueles militares que até ao termo das suas vidas procuraram generosamente servir a sua comunidade e as suas gentes.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1114 de 5 de Abril de 2023

segunda-feira, abril 03, 2023

Lideranças transformacionais precisam-se

 

O tema liderança recebeu grande cobertura mediática na semana passada. Foi tema de uma cimeira que contou com comunicações do presidente da república e do primeiro-ministro para além de outras personalidades, de masterclasses e tertúlias. Compreende-se que a questão esteja em voga em todo o mundo com todas as transformações em curso a começar por mudanças tectónicas na geopolítica mundial e incluindo alterações climáticas, transição energética e digitalização acelerada. Devia ser o momento ideal para o surgimento de líderes que, parafraseando o PR, fossem inteligentes, visionários e catalisadores de processos. Infelizmente, não tem sido assim na generalidade dos países e pior ainda nos países menos desenvolvidos onde mais falta fazem.

A atenção do mundo tem estado nos últimos dias focada nas medidas a tomar para evitar que dificuldades no sector bancário levem à contaminação sistémica de todo o sector financeiro e eventual diminuição do crédito disponível. O aumento rápido das taxas de juro teve efeito inesperado que vem repercutindo sobre toda a economia em especial sobre o sector bancário. Do FMI e do BCE já vieram avisos sobre o perigo que representa para todos e que é agravado, no chamado Sul Global, pela dívida acumulada por muitos países. Ou seja, às crises existentes e ainda não ultrapassadas como é a luta para baixar a inflação está-se a somar mais uma outra que vai tornar mais difícil combatê-la sem induzir uma travagem significativa no crescimento global. E tudo isso acontece quando o emergente quadro geopolítico de fundo, marcado pela guerra na Ucrânia e pelas alianças político-militares antagónicas em ascensão, vem contribuindo para exacerbar os efeitos dessas crises. A recente visita do presidente chinês a Moscovo e em simultâneo da do primeiro-ministro japonês a Kiev e a próxima reunião da NATO incluindo países do Indo-Pacífico são elucidativas a esse respeito.

Navegar neste mar de incertezas, imprevistos e novos desafios exige um nível de liderança que, como diz Brian Klaas, autor do livro “Corruptíveis”, devia ser fornecida por gente motivada pelo serviço público, generosidade e altruísmo. Na realidade, quem se tem interessado em exercer poder já é centrado na sua própria pessoa, tem como primordial a ambição do poder e toma como bitola a sua conveniência na avaliação das opções , escamoteando a verdade e os factos. É evidente que nessas condições dificilmente se vai conseguir produzir liderança transformacional, fazer reformas e mudar atitudes que realmente podem contar para a criação de riqueza e sua redistribuição de forma a haver ganhos para todos e não excluir ninguém. Manter-se no poder e dele usufruir para se fazer reeleger e se colocar na posição de garantir o apoio e a vassalagem de outros passou a ser a marca de Muitos. Principalmente quando se desdobra em frases feitas, faz uso permanente do novo jargão introduzido pelas instituições internacionais e proclama que aposta em inovação, está de facto a praticar a arte de tudo mudar para que tudo fique como está.

Em países como Portugal, esse ficar aquém na transformação do país, paga-se na falta de convergência com os outros países da União Europeia e no ficar na cauda da Europa ultrapassado até pelos recém-entrados. Em países como São Tomé e Príncipe, a falta de confiança numa liderança transformativa mostra-se em indicadores como os vindos a público nos últimos dias que põem em 80% o número de jovens que querem sair do país em direcção a Portugal. Da mesma forma, em Cabo Verde um dado similar quanto à emigração já sentido na diminuição da população poderá estar a revelar as reduzidas oportunidades do país e a pouca esperança que a prazo as coisas mudem. No caso de Portugal, as críticas apontam a falta de vontade ou de capacidade para fazer o aproveitamento adequado dos fundos disponibilizados pela União Europeia, sendo o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) o último, e operar as mudanças necessárias para aumentar a competitividade e a produtividade do país. Em Cabo Verde, como na generalidade dos países em desenvolvimento, os fundos disponibilizados em formato de ajuda ao desenvolvimento também não resultam em pôr o país no terreno seguro do crescimento económico e da sustentabilidade com base numa capacidade endógena de criação de riqueza.

Daí a desesperança que se vai instalando particularmente entre as camadas jovens e que sustenta movimentos migratórios em direcção à Europa e aos Estados Unidos. Para as lideranças nacionais nota-se em muitos casos a acomodação ao modelo sustentado pelas múltiplas transferências dos países desenvolvidos traduzida em Cabo Verde na adopção confirmada pelo primeiro-ministro, na conferência anual sobre política externa, de um “Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável 2022/2026” que vai erradicar a pobreza extrema até 2026 e uma “Agenda Ambição Cabo Verde 2030”. Precisamente o que tem sido preconizado pelas Nações Unidas e outras organizações multilaterais. O problema com essas prescrições é que não há memória de algum país se ter desenvolvido com base nelas. Aliás, já com quase 50 anos de independência e como recipiente da ajuda internacional, Cabo Verde tem suficiente experiência dos múltiplos planos de desenvolvimento e de luta contra a pobreza que foram implementados e cujos resultados ficaram muito aquém dos pretendidos.

A produção de uma liderança transformacional que não se deixa apanhar pelas estratégias com base nos recursos de fora não é fácil de se conseguir. O modelo de desenvolvimento que tais estratégias normalmente suportam reproduz a dependência da sociedade em relação ao Estado e ajuda uma elite mais próxima do sector estatal a manter-se no poder. Uma mudança no sentido de uma viragem para se criar um ambiente propício à iniciativa individual e à criação de riqueza e consequente maior autonomia e sustentabilidade do emprego e do rendimento encontra sempre resistência. Curiosamente é o que acontece quando, ao mesmo tempo que se deixa entender que prosperidade e emprego estão ao alcance de todos, porque todos podem ser empreendedores, startups têm financiamento e talentos são muitos, permite-se que informalidade e concorrência desleal esvaziem iniciativas e criem dificuldades para a consolidação e expansão de empresas nascentes. A opção transformacional seria a que resultaria num ambiente de negócios onde fosse visível uma ordem económica e social com regras aceites e cumpridas por todos.

Também essa opção seria a que capitalizasse sobre o conhecimento da realidade do país e soubesse potenciar as vantagens e fraquezas numa perspectiva de futuro. Imagine-se onde o país poderia estar se há muito tivesse reconhecido que vivia as consequências de alterações climáticas e apostado em tecnologias, produtos e processos de poupança de água. No mesmo sentido, se, enquanto Estado oceânico, tivesse feito uma aposta mais abrangente e compreensiva na economia azul. Também, se, considerando o potencial do país em energia eólica e solar, de há muito tivesse enverado estrategicamente para as energias renováveis. Ou ainda, se, para a prestação eficiente e eficaz de um conjunto de serviços para todos num país insular e com população dispersa, tivesse tomado como fundamental um vigoroso e criativo investimento na digitalização. Israel e Estónia foram por esse caminho e têm sido ricamente compensadas por isso, agora que o resto do mundo mais precisa desse know how. Infelizmente, em Cabo Verde prevaleceu o modelo dos projectos financiados, seguindo essencialmente a agenda dos doadores e não uma aposta estratégica do país. Agora que todos falam de clima, energias renováveis, economia azul e verde e de digitalização, espera-se que não se está simplesmente a aproveitar mais uma fonte de ajuda no modelo tradicional e que em mira estão realmente objectivos transformacionais.

Hábitos arreigados, porém, são difíceis de perder particularmente se resultam de atavismos ideológicos, fantasias teimosamente mantidas ou nostalgia de um passado desconhecido. Como se pode exercer liderança transformacional se se persiste em olhar para o país na perspectiva simplista e ideologicamente conotada que exalta o papel da mulher cabo-verdiana como criadora da língua materna, protagonista de revoltas populares (homi faca, mulher matchado) e heroína de uma guerra de libertação na Guiné-Bissau. Sem libertar o país de narrativas ideológicas não há como cortar as amarras que têm impedido que as sucessivas lideranças na governação retirem o país de modelos de dependência e precariedade e consigam fazer as reformas que tornam possível a criação de riqueza e permitem vislumbrar prosperidade futura para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.

segunda-feira, março 27, 2023

A tragédia dos partidos

 O ambiente político começa a aquecer e os partidos preparam-se para “arrumar a casa” e posicionar-se para o período pré-eleitoral a iniciar em meados do corrente ano. No MpD ainda vai-se escolher a nova liderança e, como será uma eleição disputada, só depois de Maio próximo é que poderá começar a preparar-se para os embates futuros. No PAICV e UCID já com a liderança acertada, pelos menos para a próxima eleição, a incógnita a resolver será de se saber quem depois dos resultados das autárquicas estará em melhor condição para liderar nas eleições seguintes. Neste quesito já o actual primeiro-ministro se posicionou para ser o candidato do seu partido para um terceiro mandato, mas estando as autárquicas pelo meio nada pode ser dado como certo. Um resultado menos favorável, diminuição do número de câmaras ou perda de câmaras emblemáticas, poderá condicionar a decisão para continuar na liderança do partido e ser futuro candidato.

No último trimestre de 2024 deverão realizar-se as eleições autárquicas para, com a diferença de cerca de ano e meio, se avançar com as legislativas. A proximidade das duas eleições partidárias empresta uma outra importância à preparação para o novo ciclo eleitoral considerando que, em geral, os resultados dos diferentes partidos nas autárquicas afectam a percepção das pessoas quanto às probabilidades de vitória ou derrota nas legislativas com o impacto maior a ser suportado pelo partido no governo em caso de revés. Infelizmente, para o país não parece que haja consciência que se está a viver tempos extraordinários que exigem um outro repensar do país e uma nova disponibilidade para pertencer e servir a comunidade.

A crise nas câmaras da Praia e de S. Vicente demonstram até que ponto as lideranças nacionais dos partidos ficam cativas de protagonismos nas câmaras municipais que são mais tributárias da personalidade dos presidentes e da forma marcadamente pessoal como exercem o poder camarário do que resultado de uma visão política diferente. Atropelos feitos ao estatuto dos municípios tanto no funcionamento dos órgãos colegiais como no processo de aprovação do orçamento municipal e do plano de actividades, já referenciados pelo Tribunal de Contas e pela Inspecção Geral das Finanças, não merecem reparo das lideranças partidárias. Nem tão-pouco se procura promover diálogo para ultrapassar bloqueios.

A questão que se coloca aos partidos nessas situações é até que ponto a solidariedade política sobrepõe-se à lealdade devida ao cumprimento da Constituição e às leis por todos os actores políticos. Ainda uma outra questão é se com solidariedade a populistas nas câmaras não se está a abrir caminho para o populismo triunfar ao nível nacional com as consequências que se conhecem de descredibilização das instituições, incompetência e atraso no desenvolvimento. As próximas eleições deverão ser esclarecedoras a esse respeito.

Anos atrás quando ainda não se falava da tripla crise da Covid-19, da alta inflação e da guerra na Ucrânia já se tinha identificado um mal-estar nos países democráticos que ameaçava retirar legitimidade aos seus sistemas políticos. Era mais um sintoma do que se viria a chamar de crise da democracia no pós-crise financeira de 2008 e que traduzia as deficiências sentidas na representação e participação política, no sistema de partidos cada vez menos capaz de apresentar alternativas reais de governação e na erosão de instituições como os média e o sistema judicial. A emergência do populismo e da extrema direita em muitos países como reacção a essa “malaise” precipitou e aprofundou ainda mais a crise nas democracias.

Ao longo desse processo abriu-se caminho para a chegada ao poder de personalidades como Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasil e provocaram-se estragos múltiplos nos partidos políticos onde passaram a ser normal manifestações de ambição pura e de narcisismo deixando em muitos casos sinais evidentes de falta de humildade e de competência política. A evolução da esfera pública para um ambiente de troca de ideias e informação diversa quase sem mediadores e sujeito a comportamentos de rebanho e aberto a fenómenos de viralização de rumores, modismos e cancelamentos, que, entretanto, se verificou, certamente que contribuiu para isso. Uma evolução para a qual foi instrumental a massificação dos smartphones que deram acesso generalizado às redes sociais, plataformas e médias sociais e com isso empoderaram muitos que nunca o seriam sem o facebook, twitter instagram ou viber.

Em consequência, a forma de ascensão nos partidos mudou e perderam-se oportunidades de desenvolvimento de sensibilidades políticas que traziam pluralismo e renovação aos partidos ao mesmo tempo que criavam laços de lealdade que perduravam e permitiam governantes implementar projectos coerentes de governação. Passou a reinar a lealdade e obediência ao chefe. Cabo Verde não foi excepção e vê-se no estado em que actualmente se encontram os partidos no sistema político.

É interessante notar que a crise de representação nas democracias levou os partidos a se abrirem mais para a sociedade e a introduzir e adoptar práticas como primárias na escolha de candidatos e eleição directa do líder do partido. Não é evidente que se ganhou muito com essas inovações considerando que não conseguiram conter o descrédito dos partidos a ponto de, em vários países democráticos, partidos nacionais de grande envergadura acabaram por encolher (Portugal, Espanha) e em alguns casos quase desaparecer (França, e Itália, Grécia). Também ficaram mais expostos ao populismo e ao aparecimento de líderes com tendências autocráticas e a promessa de novas ideias para a governação não se concretizou. Pelo contrário, em muitos casos ficou a forte impressão de incompetência como resultado de se querer mudar as regras do jogo institucional, de não aplicar o princípio da separação de poderes e de se fugir à responsabilização e à prestação de contas.

Em Cabo Verde, também a introdução de eleição directa dos líderes dos partidos não trouxe vantagem. Teve o efeito de concentração do poder no líder em detrimento dos outros órgãos a começar pelas convenções e congressos. Na ausência de visões estratégicas para o país que poderiam surgir de vivo debate nos órgãos colegiais partidários e também com os militantes e a sociedade, cada vez mais a estratégia de governação parece uma cópia decalcada da agenda das Nações Unidas, anteriormente “os Desafios de Desenvolvimento do Milénio” e actualmente “a Ambição 2030”. Entretanto as crises vão acontecendo numa dinâmica de policrise onde uma crise bancária poderá vir juntar-se às existentes e constituir-se um risco real ao qual poderá ainda seguir eventual aperto no crédito com consequências globais no crescimento da economia mundial.

Sobreviver e prosperar como país nestes tempos difíceis exige muito mais do que os partidos parecem dispostos a dar, transformados como estão essencialmente em máquinas de conquista do poder. A malaise da democracia continua sem fim à vista quando nem as regras do jogo democrático se mostram dispostos a cumprir para além da conveniência política do momento e até se ensaia pôr em causa o próprio Tribunal Constitucional. A diminuição da população que o INE detectou no último censo devia servir de aviso porque pode indiciar que há muitos que já votam com os pés procurando os caminhos da emigração. A utilidade dos partidos na democracia deve ser reafirmada e a via para isso deverá passar por desenvolver uma vida interna mais rica e plural e ser capaz de lançar um olhar global sobre o país e a sua trajectória história que potencie o melhor que as suas gentes conseguiram ser e produzir. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.

segunda-feira, março 20, 2023

Tribunal Constitucional, o árbitro final

 

A reacção de alguns actores políticos face ao acórdão n.º 17/2023 do Tribunal Constitucional (TC), que considerou constitucional a resolução da Assembleia Nacional autorizando a detenção do deputado Amadeu Oliveira para efeito de interrogatório judicial, não tem sido particularmente construtiva. De facto, reagir a uma decisão do TC com declaração política no parlamento e pedido de audiência ao presidente da república não é o que se espera de quem com responsabilidade deve velar pela integridade do sistema político suportado pelo princípio da separação e interdependência dos poderes.

O Tribunal Constitucional é o órgão supremo da justiça constitucional no país e, enquanto tal, é o regulador do processo político-constitucional. Como dizem os constitucionalistas, a começar pelos obreiros da Constituição americana Madison e Hamilton, numa democracia liberal e constitucional não se pode fazer a interpretação da Constituição depender do tumulto e conflito do processo político nem permitir que todas as questões constitucionais fossem decididas no âmbito da barganha política. Daí a necessidade da existência de um tribunal formado por juízes independentes que, segundo John Marshall, juiz presidente do supremo tribunal dos Estados Unidos, tido como o fundador do “judicial review”, deve “enfaticamente dizer o que a Lei é”. E nesse sentido a sua decisão é virtualmente final.

O acatar da decisão judicial, porém, não tem que significar para os outros poderes inibir-se ou limitar-se a manifestações públicas, às vezes patéticas, que só descredibilizam o sistema ou o deixam exposto a ataques dos descontentes e inimigos da democracia. Os deputados podem, por exemplo, ter a iniciativa de rever o regimento da assembleia nacional e tornar a actuação da Comissão Permanente mais conforme ao que está na Constituição. Em matéria de gestão de mandatos dos deputados pode-se ir em sede de revisão dos estatutos dos deputados para uma solução que, a exemplo do que existe em outras paragens, exige para autorização para a suspensão de mandato uma maioria absoluta de votos por escrutínio secreto no plenário da assembleia nacional. Aliás, ela já existe nos estatutos actuais para os casos de autorização de prosseguimento de procedimento criminal (nº 4 do artigo 11º) e bastaria alargar para todas as autorizações de levantamento da imunidade. Também podia-se legislar para que com os pedidos vindos do poder judicial se suspender o tempo de prescrição do procedimento criminal e na passagem de uma legislatura para outra não permitir que caducassem.

Seguir pelo caminho de legislar ou mesmo de introduzir projectos de revisão constitucional serviria para credibilizar o parlamento não permitindo que a imunidade parlamentar fosse confundida com impunidade ou que a imagem de ser joguete de outros poderes passasse. Infelizmente, a via por que aparentemente se quer ir é a de contestar a decisão do TC, que se devia tomar como final em matéria de interpretação constitucional, com acusações até de estar a rever informalmente a Constituição. E tudo por uma prática institucional, há mais de trinta anos estabelecida, que atribui à Comissão Permanente da Assembleia Nacional, funcionando entre as reuniões plenárias e sessões legislativas, a gestão do mandato dos deputados.

Quantas vezes a Comissão Permanente já deu autorização para deputados serem ouvidos como declarantes, testemunhas e até como arguidos nos meses entre Outubro e Julho em que decorre a sessão legislativa. Quantas vezes autorizou a saída do país do presidente da república. Até já autorizou o PR a declarar pela primeira vez o estado de emergência a 28 de Março de 2020. Em todas as situações sempre houve possibilidade de recurso para a plenária e no caso da autorização do estado de emergência foi posteriormente ratificada pela plenária.

Com uma prática tão consolidada de uso de várias competências entre as reuniões e as sessões plenárias durante três décadas não se vê que haja costume contra a Constituição, ou costume limitador de direitos fundamentais ou mesmo de polémica aberta sobre o papel da Comissão Permanente. O que se vê é a reacção de um partido contra as instituições porque perdeu uma jogada política de alinhamento com um discurso populista e contra o sistema judicial que acreditou podia ter-lhe dado mais deputados, deputados em mais de um círculo e número de deputados suficiente para criar um grupo parlamentar. Repete-se o padrão de tomar como os principais alvos no questionamento da democracia liberal o sistema de justiça e o parlamento e é curioso que em boa parte das vezes são os próprios partidos os principais promotores dessa descredibilização das instituições.

No parlamento a degradação do discurso político tem sido agravada com a introdução cada vez mais frequente de questiúnculas municipais em debates que deviam ser de políticas nacionais. De facto, nem os deputados nacionais são representantes das câmaras municipais, nem a assembleia nacional tem a tutela sobre os municípios e muito menos a tutela de mérito. Em consequência todos perdem. Não se respeita a autonomia dos municípios que têm os seus próprios órgãos de poder político devidamente eleitos e responsáveis perante os respectivos munícipes, desperdiça-se o tempo parlamentar, alimenta-se um protagonismo deslocado de deputados que na realidade não representam municípios e cria-se mais oportunidade de crispação entre os partidos ao se ter todos a se esforçarem por dar cobertura política às câmaras municipais onde são maioria.

Acusações de corrupção mútuas tanto no passado como no presente alargadas também às câmaras municipais contribuem para degradar o discurso político e tornar as posições ainda mais irreconciliáveis. No cômputo global tais acusações de falta de transparência e não prestação de contas acabam por não corresponder à imagem que o país projecta em vários rankings internacionais sobre corrupção e governança, mas não deixa de afectar negativamente o ambiente político. E o resultado é que os partidos cada vez menos se mostram disponíveis para equacionar e resolver os problemas reais do país. Tendem a agravá-los como acontece nos dois maiores municípios onde se mostram incapazes de influenciar os seus representantes nos órgãos de poder local de forma a terminar com a crise institucional instalada e funcionarem dentro da legalidade, respeitando os procedimentos de há muito estabelecidos.

A Cabo Verde, ainda a sofrer o impacto da tripla crise causada pelas secas, pandemia e guerra na Ucrânia e preocupado com um futuro de incertezas, o que menos precisa é de um quadro de enfraquecimento das suas instituições e da sua liderança devido a excesso de protagonismo, ambição desenfreada e insuficiente comprometimento com a democracia, o Estado de Direito e a procura do bem comum. Evitar que o Tribunal Constitucional também se transforme em alvo de ataques é fundamental para que o país mesmo em ambiente de sobressaltos e crispação tenha as referências para se equilibrar e prosseguir o caminho de consolidação da sua democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1111 de 15 de Março de 2023.

segunda-feira, março 13, 2023

Cultura estatizada

 Na semana passada, a propósito de um parecer do Instituto do Património Cultural (IPC) sobre um projecto de lei na assembleia nacional a classificar a língua portuguesa como património nacional, o país, estupefacto, passou a saber que afinal nem os deputados nacionais nem a assembleia nacional têm competência para isso.Segundo o ministro, a iniciativa só pode partir do ministério da cultura e do IPC. Não se sabe é onde fica o princípio de que o parlamento pode legislar sobre toda e qualquer matéria, exceptuando o que é de reserva exclusiva do governo, e que no processo pode revogar qualquer dispositivo legal contrário, designadamente o que eventualmente se encontrar nos estatutos do IPC. Um outro aspecto que não se compreende é qual a razão para o alvoroço sobre considerar a língua portuguesa como património quando a na lei de bases do Património Cultural nº 102/III/1990, em que o decreto regulamentar nº 3/2020 de 17 Janeiro que cria o actual IPC, se enquadra explicitamente inclui “a língua nacional e a oficial” entre os bens imateriais que devem ser preservados, defendidos e valorizados (artigo 3º, alínea d).

É ainda curioso que três meses depois, em Abril de 2020, através da lei da A.N. 85/IX/2020 que aprova o Regime Jurídico de Protecção e Valorização do Património Cultural, finalmente se revogou a lei de bases de 1990 com o argumento, entre outros, de no articulado estar plasmado o “carácter estatizante da cultura”, ou seja, de na prática se governamentalizar a cultura. Passados quase três anos parece que não se sentiu a necessidade de mudar os estatutos do IPC para “desgovernamentalizar” e adequar-se à nova lei e o resultado é a interpretação que que só o IPC pode identificar, documentar, inventariar a classificação de bens a património imaterial, com exclusão até da própria Assembleia Nacional. Nem se conseguiu flexibilizar essa postura rígida com a abertura já presente na nova lei (artigo 17º) de o processo de classificação de bens culturais também poder ser desencadeado “pelas administrações locais ou por qualquer pessoa singular ou colectiva”, cabendo ao ministério prestar o apoio técnico requerido.

A estatização da cultura nacional pela via da monopolização governamental do que deve ser considerada cultura cabo-verdiana, história de Cabo Verde e património é uma realidade incontornável que a lei referida de Abril de 2020 pretende inflectir. Os seus efeitos notam-se, por exemplo, na insipiência no ensino da história do país, que é feito à mistura com a cultura cabo-verdiana a todos os níveis do sistema do ensino e também na ausência de departamentos e cursos de história nas universidades. Nas duas últimas décadas a estatização ganhou um outro ímpeto com a criação do Instituto de Investigação e Património Cultural, em 2004, e depois do IPC, em 2014, com atribuições na investigação nos domínios da história, sociologia, antropologia, linguística e arqueologia com vista à promoção e divulgação do que nos estatutos referiam-se como a “própria História da Nação” e “estabelecer cientificamente os verdadeiros contornos da antropologia cabo-verdiana”.

Ou seja, estudos que normalmente deviam ser feitos em meios académicos com autonomia própria das universidades e liberdade intelectual eram entregues a instituições governamentais com o objectivo de posterior divulgação junto dos canais tradicionais como escolas e comunicação social e eventual condicionamento de agentes e eventos culturais. Não estranha que com esse tipo de dirigismo do Estado em matéria de investigação histórica e cultural, contrariando o princípio constitucional de que o Estado não “programa a educação e o ensino segundo directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”, se esteja a cavalgar ondas identitárias polarizadoras da sociedade a partir das quais se quer ver relações de dominador e dominado e se promove o sentimento de vitimização. O conflito aberto entre o crioulo e o português é uma manifestação clara disso.

Muito dessas dinâmicas polarizadoras não deveriam ser esperadas em Cabo Verde, um arquipélago onde vários séculos antes da independência desenvolveu consciência de nação e não tem divisões de natureza rácica, étnica ou linguística. De facto, no quadro democrático actual, globalmente ninguém é preterido no acesso a cargos políticos e outros cargos públicos por razões de tonalidade da pele, religião ou origem social e ninguém duvida que oportunidades de carreira profissional ou empresariais estão abertos a todos sem discriminação. A dificuldade que, porém, persiste e que é fracturante foi introduzida no acto da proclamação da independência com a afirmação que no âmbito do projecto do PAIGC da Unidade Guiné/ Cabo Verde se escolheu o destino africano para o povo as ilhas.

Em consequência, como o professor doutor Gabriel Fernandes explica no seu livro “Em busca da Nação” pag. 202: No novo contexto, em que a política, mais do que a cultura, é o que passa a nortear sua luta emancipatória, os cabo-verdianos não se concebem a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas sim de fora, da sua compartilhada situação de africanos e dominados”. E continua, “…os actores políticos cabo-verdianos acabaram por exacerbar as diferenças internas abrindo um fosso entre os próprios cabo-verdianos, doravante percebidos, não em termos culturais-unitários, como parte integrante de uma entidade peculiar, mas sim político-dualísticos, sob o rótulo de anticolonialista ou de colaboracionista”. Hoje, já se sabe que que o projecto da unidade tinha ficado completamente comprometida com a morte de Amilcar Cabral e prisão dos cabo-verdianos em Conacri, mas como esse facto, de acordo com as declarações, em 1990, na ilha do Sal, de um alto dirigente do PAICV, foi ocultado aos cabo-verdianos o seu impacto devastador na sociedade cabo-verdiana continua a fazer-se sentir até hoje.

Toda a política cultural estatizante ou governamentalizada e a apetência para a doutrinação em particular de crianças e jovens via o sistema de ensino, a comunicação social pública, instituições do Estado e até aulas magnas proferidas por actores políticos continuam. O que se pode chamar de uma idolatria do Amilcar Cabral e da luta de libertação acompanhado de fervor na “reafricanização dos espíritos” prossegue com os sucessivos governos independentemente da cor partidária sem que se tenha em conta os seus efeitos perniciosos de polarização da sociedade, de restrição da liberdade intelectual e do despojar do país da plenitude da sua história.

A esperança que o 13 de Janeiro poderia corrigir o grave desvio verificado em 1975 não se concretizou. Parte das razões da população para a rejeição da ditadura de partido único perdeu-se pelo caminho. O episódio inusitado à volta da classificação da língua portuguesa confrontando governo e deputados é o exemplo de como se pode ficar refém do passado e condenar-se a um círculo vicioso onde se alimentam mitos, dificuldades reais acumulam-se e problemas tornam-se progressivamente intratáveis. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1110 de 8 de Março de 2023.

Desafiar mitos para se chegar a um futuro democrático

 

O confronto sobre as políticas de transporte seja marítimo, seja aéreo tem aumentado de intensidade e de virulência à medida que os problemas vão se agravando e possibilidades de resolução à altura das expectativas criadas se tornam cada vez mais remotas.E é assim porque, como não se consegue discutir o presente e o futuro, vasculha-se o passado da governação dos dois partidos do arco do poder enquanto as perdas se acumulam tornando os problemas praticamente intratáveis. Hoje são os transportes e também a habitação e o programa Casa para Todos que têm ocupado muito do debate político nas últimas sessões do parlamento. Amanhã e depois chegará a vez de outros sectores como a agricultura, a pesca, a energia, segurança, educação, saúde etc. a serem submetidos ao mesmo tipo de discurso crispado e estéril que simplesmente vai adiando a abordagem séria dos problemas e a discussão de eventuais soluções.

Varrer problemas para debaixo do proverbial tapete sem o conhecimento prévio das suas causas e sem ponderar devidamente sobre as consequências de não acção ou de abordagem não suportada por uma visão estratégica torna-os a prazo extremamente difícil de tratar e resolver. Sem uma cultura de se apoiar nos factos para fazer a análise da realidade do país e para se debater perspectivas plurais de como estrategicamente agir para alterar o estado de coisas, corre-se o risco de se ter uma democracia em que a imagem do político cada vez mais se aproxima da do “vendedor de ilusões”. Vários factores, incluindo tabus em relação ao conhecimento do passado, reminiscências de ideologias de há muito datadas e partidarização fracturante do próprio regime político, não permitem que a democracia enquanto conjunto de procedimentos se revele como a via para se chegar à verdade partindo do princípio que ninguém a detém em exclusivo. Em tais circunstâncias verdade é conveniência de cada um e fica impossível seguir o conselho do historiador e autor do livro “Sobre a Tirania”, Timothy Snyder, que “é preciso aprender a história, desafiar os mitos para se chegar a um futuro democrático”.

O facto da intratabilidade de muitos problemas com que o país se confronta estar a se revelar com maior acuidade nos últimos anos que também têm sido de policrise torna ainda mais urgente que o país arrepie caminho do que tem sido a sua forma de fazer política. De facto, a sequência de três anos de uma crise pandémica, alta inflação e guerra na Ucrânia devia ter tido o efeito transformativo na forma de actuar da liderança do país e da sua classe política. Infelizmente, o que se notou foi o acentuar dos aspectos performativos da actuação dos titulares dos órgãos de soberania, em detrimento de substância, amplificados por uma presença não poucas vezes excessiva dos próprios nas redes sociais.

As consequências vêem-se na crispação política a exacerbar-se ainda mais, na crise institucional que já quase paralisa os dois maiores municípios do país, no baixar do nível dos trabalhos parlamentares e nas crescentes fricções com o presidente da república. Também se manifestam na dificuldade em confrontar as fortes limitações de país arquipélago, a perder população, com uma reduzida estrutura produtiva e uma história de precariedade que a dependência do turismo em 25% do PIB só realça. Querer resolver problemas do transporte aéreo ou marítimo sem ter presente estas realidades é o que de há muito vem sendo feito nas múltiplas tentativas de reorganização do sector e o resultado vê-se nas dívidas acumuladas e na dificuldade até em garantir o mínimo. Algo similar, mas menos visível, talvez não por muito tempo, acontece noutros sectores como se pressente nas recentes críticas dirigidas aos sectores da segurança, saúde e educação.

O que não parece afectado pelo estado da política no país é o optimismo que emana de certos sectores da governação que põe como objectivo mobilizar 5 mil milhões de euros, duas vezes e meia o valor do PIB, junto de parceiros públicos e privados até 2030 e que para isso organiza-se uma conferência de parceiros na ilha da Boa Vista em finais de Abril, como já se tinha feito em Paris, em 2018, e outras vezes na ilha do Sal. De acordo com o vice-primeiro-ministro e ministro de finanças a transição energética, climática, a economia circular são temas que, no fundo, acabam por ‘facilmente’ convencer parceiros a injectarem recursos para que sejam concretizados.

O problema com esses expedientes, que já tiveram exemplos similares no passado movidos com agendas da altura, é que no fundo muito pouco acaba por se realizar: elefantes brancos proliferam; a dívida pública aumenta e qualquer choque externo põe a nu as vulnerabilidades do país e a precariedade das populações. Viu-se isso recentemente com a crise provocada pela seca a partir de 2017 que deixou claro o fraco retorno dos enormes investimentos que tinham sido feitos a partir de 2008 em estradas, barragens e Casa para Todos. Com o fim do período de carência em 2022 aumentou em cerca de 9 milhões de contos o serviço da dívida contraída.

A repetição periódica dessas situações incluindo prejuízos sucessivos e cumulativos de natureza económica e social indiciam que algo está errado na abordagem das questões de desenvolvimento e que provavelmente há uma desconformidade entre a realidade perspectivada por políticos e governantes e os dados concretos do país. Cabo Verde, sequestrado que foi por circunstâncias históricas que acompanharam o desmantelamento do império colonial português, parece estar enredado em contos, mitos e narrativas que não deixam o país revelar-se na plenitude da sua história e do processo secular de construção de uma identidade própria.

Sem conhecimento integral da real história do país, recursos que podiam ser capitalizados para o desenvolvimento não são reconhecidos, alertas quanto aos percalços de desenvolvimento num país pequeno e arquipelágico não são escutados e conflitos artificiais podem ser criados. Neste particular, o conflito que se instalou entre o crioulo e a língua portuguesa é o exemplo de como às enormes dificuldades de um país como Cabo Verde se pode somar artificialmente mais um entrave ao seu desenvolvimento. Todos os cabo-verdianos falam o crioulo e pelo seu uso em cerimónias oficiais e momentos solenes pelo presidente da república, pelo governo e pelos deputados vê-se que não é ameaçada nem ostracizada.

A cabo-verdianidade, porém, não é expressa somente em crioulo como comprova todo o espólio literário que foi instrumental para a emergência da consciência da nação e que na sua quase totalidade resulta do uso criativo do português. Se conflito existencial entre as duas línguas não se verificava antes, não se compreende que quase cinquenta anos depois e com toda a gente a falar crioulo o presidente da república se sinta na necessidade de declarar que “N ta ben sta na linha di frénti di konbáti pa ofisializason plénu di nos Kriolu”. O posicionamento do PR levanta uma série de questões. Para começar no sistema constitucional cabo-verdiano só os deputados têm iniciativa em matéria de revisão constitucional. Sendo representante da unidade da nação e guardião da Constituição vigente não se vê como é que o PR vai ser parte no debate público e proceder para influenciar deputados que também representam os partidos no parlamento. Por outro lado, se houver revisão constitucional e qualquer que for a direcção tomada pelo legislador constituinte o PR não pode recusar a promulgação das leis de revisão (Artº 291 da CRCV).

De facto, nas circunstâncias e nos termos em que se referiu, o posicionamento do PR foi desnecessário: o crioulo só ainda não é oficial porque não se consensualizou uma versão estandardizada e escrita e desde de 1999 que há um comando constitucional a obrigar o Estado a criar as condições nesse sentido. Também foi pernicioso porque, pela linguagem utilizada, alimenta-se a conflitualidade linguística com consequência para disposição dos alunos em aprender o português e serem proficientes na língua oficial do país enquanto cidadãos plenos. Uma conflitualidade que não se pode negar considerando a hostilidade dirigida por certos sectores contra a Escola Portuguesa de Cabo Verde porque procura fazer o óbvio que é criar um meio imersivo para mais rápida aprendizagem da língua e suprir o facto que praticamente fora da escola só se fala o crioulo.

Neste início do segundo ano da guerra na Ucrânia, em que incertezas e imprevistos toldam a imagem do que pode vir à frente, o foco devia estar em conduzir o país com base segura, sem realidades ficcionadas, e pôr a democracia a funcionar de forma a encontrar soluções duradoiras para os problemas de desenvolvimento. Humildade, competência e procura da verdade deviam caracterizar a actuação dos actores de forma a se diminuir os conflitos e, com confiança e solidariedade se enfrentar os grandes desafios que o país tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1109 de 1 de Março de 2023.

segunda-feira, fevereiro 06, 2023

Casa comum

 As últimas previsões de crescimento económico mundial do FMI para 2023 melhoraram, mas continuam aquém do que seria o normal desejável. O ano continua nebuloso com várias incertezas designadamente quanto ao impacto da guerra na Ucrânia, ao comportamento da inflação e aos efeitos da pandemia da covid-19 na China. O fim da política da covid zero na China, o inverno menos rigoroso na Europa com impacto nos preços de energia e os estímulos à economia verde nos Estados Unidos terão contribuído para a melhoria registada acima do previsto em Outubro. Não obstante, os especialistas não excluem a possibilidade de uma recessão mundial provocada pelo recrudescimento e alastramento da guerra na Europa ou então induzida pelas tentativas dos bancos centrais de controlar a inflação com altas na taxa de juro ou mesmo resultando de mais um surto epidémico.

Para Cabo Verde, entretanto, a previsão que a Europa poderá evitar a recessão já é boa notícia no que pode sinalizar do aumento do fluxo turístico e das exportações de bens e serviços. No mesmo sentido irá a baixa de inflação esperada, considerando que no país a inflação é essencialmente importada e naturalmente dependente da taxa que prevalece no seu principal parceiro económico que é a União Europeia. O FMI no relatório sobre Cabo Verde publicado a 24 de Janeiro prevê crescimento de 10.9% para 2022 e 4,4% para 2023. É provável que com os novos dados de actividade mais vigorosa na Europa se venha a ter melhores resultados.

O país sofreu uma forte contracção da sua economia em 2020 e, segundo o FMI no relatório referido, só era expectável que atingisse o PIB de 2019 nos finais de 2022 e que ultrapassasse as receitas do turismo do mesmo ano em 2025. As taxas elevadas do PIB (7% em 2021, 10,5% em 2022) sob estímulo da procura turística devem-se, como bem apontou o Governador do BCV, na entrevista a este jornal, ao facto de o país estar em fase de recuperação da profunda recessão de 2020 e de só agora estar a aproximar-se do seu potencial de crescimento. A baixa na taxa de crescimento que se vai seguir nos próximos anos só pode ser combatida por esforços conjugados para aumentar o potencial com investimentos, designadamente em capital humano e reformas que diminuam os custos de contexto em particular os de factores (electricidade e água).

A compreensão deste facto é fundamental para se evitar que se fique simplesmente pelo “foguetório” das taxas do PIB mais altas de sempre que tem a sua contraparte na reivindicação de aumento geral de salários cuja consequência poderia ser de piorar a situação, abrindo caminho para uma espiral inflacionária com impacto maior nas pessoas com menos rendimentos e nas mais vulneráveis. De facto, o país tem que procurar recuperar os anos perdidos com a pandemia, seja em termos de produção de riqueza, seja na forma de dívida pública e privada acumulada que terá que pagar. Isso não poderá ser feita se não houver uma consciência global da necessidade de solidariedade, da importância de poupar e investir com qualidade e de agir com competência, responsabilidade e transparência para mitigar as dificuldades existentes derivadas da pandemia e das outras que vão surgindo com as crises sucessivas.

Infelizmente não é o que sobressai dos confrontos no espaço público. Aí na maioria dos casos assiste-se ao enumerar de coisas feitas sem que se perceba uma grande preocupação com a demonstração dos resultados que depois são contrapostas por críticas e reivindicações que também não têm em devida conta os recursos existentes e as implicações futuras para o país e para as populações. Sobressai o efeito de espectáculo, a oportunidade para protagonismo e a resistência ao diálogo construtivo e até racional. Disso tudo depois sobram os problemas concretos, por exemplo, de decidir como ajudar efectivamente as pessoas face aos aumentos de alimentos básicos, como incentivar as estruturas públicas e privadas a fazer a transição energética para diminuir os custos da electricidade e água e como mobilizar a sociedade para o esforço urgente e imperativo de elevar o nível do capital humano.

A actual policrise pelas urgências que cria deveria levar a uma outra forma de enfrentar os problemas do país. Como diz a economista Mariana Mazzucato, em artigo recente publicado no Project Syndicate, na governação não se deve ficar só pelo fornecimento de bens públicos, mas ir mais além para a ideia do bem comum que requer o estabelecimento juntos do objectivo e o alinhar dos riscos e ganhos. Na nova abordagem ao “o que fazer” deve-se adicionar “como fazer” e cada passo do processo deve ser quase tão importante como o resultado final. O Papa Francisco na sua encíclica Laudato Si: uma Casa comum aconselha que se vá no mesmo sentido quando se refere à necessidade de partilhar objectivos e de trabalhar em conjunto para os realizar.

De outra forma, pode-se acabar por ficar com um país em que, perante a constatação de que recursos são escassos e há muitas incertezas pelo meio, todos se empurram para chegar à frente e chegando lá apoderar-se do que conseguirem arrebatar. Daí que proliferem acusações de corrupção, nepotismo e clientelismo de vários tipos. Publicação de relatórios internacionais com indicadores de corrupção, transparência e nível de governança são momentos de grande disputa e pretexto para cada uma das partes provar o que tem denunciado do outro. Com todos esses exercícios mina-se a confiança cívica e nas instituições e descredibiliza-se a política. Com uma maior consciência da Casa Comum é possível inflectir a actual tendência.

Ainda que bem mesmo com todas essas deficiências a democracia em Cabo Verde tem dado provas de resiliência em situações de crise pandémica, económica e social como ficou provado no último ciclo eleitoral de 2020-21. Três eleições foram organizadas, os resultados aceites e a transferência de poder realizou-se impecavelmente. E isso acaba por calibrar as coisas quanto à percepção que se tem do país. Sem deixar de apontar problemas vários no funcionamento do sistema político, a maioria dos rankings internacionais da democracia dão conta desse nível de realização da democracia cabo-verdiana que coloca o país entre os países mais livres.

O que faz falta é potenciar esse ambiente democrático, que a maioria da população em inquéritos sucessivos de opinião diz preferir, para conseguir desenvolver o nível de diálogo e de partilha de objectivos que efectivamente faça do país a casa comum que todos no fundo reconhecem e em que ninguém será excluído e todos terão a oportunidade de se realizarem e prosperar.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1105 de 1 de Fevereiro de 2023.

segunda-feira, janeiro 30, 2023

Culto de personalidade não tem lugar em democracias

 

​O que através de várias intervenções públicas de titulares de órgãos de soberania e de outras entidades, ao longo de meses, já se tinha tornado previsível acabou por se confirmar na semana passada com as comemorações do quinquagésimo aniversário de Amílcar Cabral. O Estado de Cabo Verde parece já ter assumido o culto de Cabral, o culto da personalidade do líder do PAIGC assassinado na Guiné-Conacri pelos próprios companheiros de partido a 20 de Janeiro de 1973. Um culto que, à semelhança de outros cultos de personalidade, em particular nos séculos XX e XXI, caracteriza-se, segundo o sociólogo Adrian Popon, por demonstrações públicas, quantitativamente exageradas e qualitativamente extravagantes, de louvor ao líder.

Foi o que se assistiu nestes últimos dias de frenesim à volta de Cabral que se viu coroado no discurso do presidente da república que o homenageia entre muitas outras coisas como visionário, pedagogo, estudioso, cientista social, especialista, formador, humanista, pensador, diplomata, soldado das causas da ONU, teórico e prático, político pragmático, defensor da igualdade de género, defensor do direito internacional e militante contra a pobreza. Para uma outra ocasião terão ainda ficado as qualidades de estratego militar e de poeta. Com os olhos postos no centésimo aniversário do nascimento de Cabral em Setembro de 2024 já foi logo anunciado que todo o período até lá vai ser marcado por múltiplas e variadas iniciativas de homenagem ao herói.

A questão que se coloca é se esse tipo de homenagem que passa por projectar a imagem idealizada e quase messiânica de uma personalidade política é própria de um Estado de Direito Democrático assente nos princípios da soberania popular e no pluralismo de expressão. De facto, uma operação do género só pode ser mantida pela via da propaganda e exposição mediática, onde não é significativa qualquer dissenso e onde há sistemática falsificação da história e da cultura de uma sociedade. Só dessa forma é que se consegue manter viva uma perspectiva história linear que inexoravelmente desemboca no líder e que permite que se proclame que “renascemos com Cabral enquanto comunidade política” e que ele seja ainda a “fonte de inspiração para enfrentarmos os desafios do nosso tempo”. Não se pode deixar de notar o tom quase religioso dos cultos de personalidade que, embora seculares, vão se socorrer de uma espécie de messianismo para justificar a intemporalidade do pensamento e da acção do líder.

No século passado, depois de Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha, Estaline na União Soviética, Tito na Jugoslávia, Mao Tsé-Tung na China, Péron na Argentina, os cultos de personalidade proliferaram-se por vários outros países com regimes autoritários, totalitários e de partido único. Actualmente só subsistem em alguns deles e tendem a renascer em regimes progressivamente autocráticos ou em derivas iliberais pronunciadas. Cabo Verde poderá querer definir para onde quer ir com o ressuscitar de práticas e ideologias que frontalmente colidem com o sistema de princípios e valores instituídos na Constituição. Também quererá saber das implicações de insistir num culto de Cabral quando a Guiné-Bissau, de onde advêm todas as referências, de há muito que vem atenuando o impacto político e ideológico da luta pela independência e, significativamente, na semana passada, aboliu o feriado nacional de 23 de Janeiro, dedicado ao dia do início da luta de libertação.

Cinquenta anos depois da morte de Cabral e de tudo o que na Guiné e em Cabo Verde se passou, devia-se estar em condições de ver com objectividade o que realmente aí aconteceu. Opta-se por utilizar a efeméride para reviver o culto, não se sabe com que fins para além dos alimentados pelos que, ainda vivos, banham na sua glória. E isso à custa de tudo e de todos. De facto, o que se pode ver hoje em retrospectiva é que nessa fatídica noite foi desferido um golpe fatal ao projecto da Unidade Guiné-Cabo Verde engendrado por Amílcar Cabral. A simultânea prisão de todos os cabo-verdiano em Conacri numa operação conduzida por combatentes guineenses com a cumplicidade que quase todos os outros guerrilheiros aí estacionados deixou isso bem claro.

A gravidade do golpe foi obscurecida no esforço subsequente para conter os estragos no PAIGC e convencer os cabo-verdianos a ficar. Foi posta a circular a mensagem que a morte de Cabral resultou de “Três tiros da PIDE” e elegeu-se um cabo-verdiano, o Aristides Pereira, como substituto de Cabral para dirigir o movimento de libertação. Tudo indica que no momento tal arranjo convinha a todos, seja ao regime do Sekou Touré, seja aos guineenses que deixaram cair a pretensão de Nino Vieira de substituir Cabral e aos cabo-verdianos que não desistiram do projecto. O PAIGC não se resumia à uma futura unidade Guiné-Cabo Verde, era também a reivindicação da representatividade dos povos dos dois territórios com exclusão de quaisquer outros grupos políticos e a exigência da independência sob a direcção única do partido. Para muitos deles muita coisa estava em jogo.

Uma espécie de casamento de conveniência motivado pela ideia de conquista do poder terá selado o compromisso que só viria a terminar com o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 na Guiné. Nessa data, finalmente, reconheceu-se que o projecto da unidade Guiné-Cabo Verde afinal tinha sido morto no dia 20 de Janeiro apesar da propaganda em sentido contrário feita junto dos povos dos dois países. O custo de tudo isso em termos de liberdade, justiça e oportunidades perdidas foi suportado pelos povos que nos 15 anos seguintes viveram em regime de partido único. Cabo Verde com a democracia após o 13 de Janeiro conseguiu prosperar e abrir outras possibilidades de vida aos seus cidadãos. A Guiné com muita instabilidade e a meio de golpes e contragolpes já por várias vezes esteve perto de ser considerado um Estado falhado. Ao longo de décadas por causa de ressentimentos e desconfianças mútuas a relação entre os dois Estados não ganhou a normalidade que seria de esperar nem se conseguiu explorar o potencial que uma maior proximidade no comércio e noutros sectores poderia propiciar.

A grande questão que se coloca é como pode ser relevante para esta fase do país com outro sistema de valores procurar inspiração nos protagonistas de um projecto político que nas suas várias componentes fracassou de forma tão trágica. Intenções iniciais tidas como boas não podem justificar violências indescritíveis, décadas de guerra civil e atraso brutal no desenvolvimento no pós-independência. A democracia pela sua própria natureza reclama uma ética de responsabilidade em que governantes periodicamente submetidos a voto popular livre e plural prestam contas e responsabilizam-se pelas políticas implementadas e pelas decisões tomadas.

Pôr o país em rota de colisão com esses valores cria bloqueios que aumentam a polarização e a crispação política, diminui a capacidade nacional de enfrentar os seus cada vez mais complexos problemas socioeconómicos e agudiza a situação de dependência das pessoas em relação ao Estado. Uma evolução que por sua vez aumentaria os riscos de agravamento das desigualdades e também da pobreza e marginalidade, ao mesmo tempo que acelera a emigração e as migrações entre as ilhas. Não é o momento para isso.

Em S. Vicente, na Cimeira dos Oceanos, ficou claro que não vai ser fácil conseguir o apoio desejável para enfrentar os grandes desafios representados pelas alterações climáticas, pela transição energética e pela adopção do digital. É por isso fundamental que toda a energia e atenção da nação se focalize em fazer o melhor do que for mobilizado e disponibilizado. Mas tal não será possível fazer se se deixar agravar a tendência notada no inquérito do Afrobarómetro no que indicia da percepção das pessoas quanto à corrupção, da descrença nas instituições e do sentimento de insegurança.

Inflectir a situação existente não passa pela renovação de mitos e instituição do culto de personalidade. O país já sabe de experiência própria que não resulta. A via para se ultrapassar o cinismo e a desconfiança passa sim pelo exercício da cidadania plena e por se ter uma sociedade civil autónoma e interventiva.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1104 de 25 de Janeiro de 2023.

segunda-feira, janeiro 23, 2023

Ficar livre para compreender o passado e construir o futuro

 Por altura das comemorações do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia ouviram-se reclamações e queixas quanto ao funcionamento da democracia em Cabo Verde vindas da generalidade dos actores políticos e particularmente do Presidente da República no seu discurso na Sessão Solene da Assembleia Nacional. Tirando de lado a constatação de que eleições periódicas são realizadas de forma livre e justa e os resultados são aceites pelas partes acompanhados da transferência pacífica do poder para o partido vencedor e que estabilidade política reina no país normalmente governado por maiorias absolutas que se alternam, tanto ao nível nacional como autárquico, tudo o resto parece não andar bem. Fala-se da dificuldade em conseguir consensos, da necessidade de dissipar o clima de crispação e de contribuir para o diálogo e da importância do respeito pelos adversários e pelas minorias conjunturais. Em resumo, apela-se para uma cultura democrática que permita que se possa divergir com elegância, respeito e consideração.

Também para a sociedade civil propõe-se mais vigor e autonomia, evitar a censura e autocensura e fazer mais debates construtivos com participação activa de individualidades, das classes profissionais e das universidades cabendo à academia um papel especial nos estudos e na investigação para responder aos problemas do país. Sem isso, é convicção geral que a democracia, a prazo, fica mais frágil e sujeita a tentações de vária ordem que podem configurar derivas iliberais e autocráticas. E entrementes, por falta de debate democrático vivo e construtivo, de condições para credibilização progressiva das instituições e de um ambiente de confiança indispensável, o país fica ainda mais vulnerável face à situação de policrise que o mundo atravessa em que múltiplas crises interagem de forma complexa e imprevista, não deixando muito espaço e tempo para uma reacção efectiva.

Apesar dos alertas e dos apelos não parece, porém, que o ambiente sociopolítico do país vá mudar. Nos anos anteriores, na celebração dos dias nacionais, mensagens similares foram passadas, mas os comportamentos não se alteraram. Veio a pandemia da covid-19 e depois a inflação e a invasão da Ucrânia e a atitude em geral, seja dos actores política, seja dos vários elementos da sociedade civil continuou na mesma senda. De diferente nota-se a degradação do discurso político e o resvalar para o subjectivismo no argumento que impede que se tenham factos em conta e que a procura da verdade seja um objectivo central e consensual nas democracias. Na sociedade, a percepção é que aumenta o sentimento de insegurança, normalizam-se certos tipos de violência e o tecido social é fragilizado com a multiplicidade de problemas que afectam as famílias, incluindo rendimentos, habitação e o cuidar dos filhos. Acrescenta-se a isso o aumento da percepção da corrupção no inquérito do Afrobarómetro 2019-2022 hoje trazido a público.

Face ao deteriorar das condições existentes e à aparente incapacidade de as contornar, mesmo em situação crítica de múltiplas crises, só se pode concluir que as causas serão de natureza profundamente estrutural. Curiosamente tem-se falado repetidamente nos últimos tempos da chamada autocensura da comunicação social e dos jornalistas. Tomada como consequência da partidarização da comunicação social ou da governamentalização da rádio e da televisão pública é, de facto, como mostram os relatórios anuais dos Repórteres sem Fronteiras, um fenómeno presente durante os sucessivos governos independentemente da cor partidária. Parece mais ser um sintoma de algum bloqueio na sociedade cabo-verdiana que tira fulgor e dinâmica ao processo democrático dificultando o diálogo, o escrutínio das políticas e a responsabilização dos actores políticos.

Um outro sintoma é a percepção da fraca participação das universidades, dos professores e investigadores e das classes profissionais na discussão e procura de soluções para os problemas do arquipélago. Para o país que apregoa que tem cerca de dez universidades, várias centenas de mestres e doutores e milhares de alunos nos diferentes níveis do ensino superior é demasiado ténue a presença na esfera pública de personalidades com formação científica e académica. O resultado é que o debate das políticas é prejudicado porque limitado ao discurso raso e conveniente dos partidos e actores políticos. Aliás, o apelo do presidente da república na sua mensagem de fim de ano para que as universidades como centros de saber estabeleçam uma relação de proximidade com as comunidades e ajudem na resolução dos problemas vai no sentido de se inflectir a situação actual. De facto, não é claramente perceptível o retorno em termos de conhecimento que o país está a receber do enorme investimento feito no ensino superior pelo Estado, pelas famílias e pelos jovens estudantes.

A autocensura dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social e o fraco impacto das universidades e seus agentes na sociedade poderão estar a traduzir o sentimento geral em Cabo Verde de que ao expressar ideias no espaço público está-se a tomar partido. Ou então a correr o risco de ser identificado com um dos partidos dentro do quadro bipolar que tem caracterizado a democracia cabo-verdiana. A falta de um consenso profundo quanto ao sistema de valores que está na base da Constituição de 1992 cria um antagonismo insanável entre os dois partidos que é particularmente visível nas intervenções dos partidos nas comemorações dos dias nacionais. E é esse tipo de confronto que alimenta a crispação política e limita efectivamente, em termos de expressão de ideias e de liberdade intelectual, quem não esteja já directamente envolvido em actividades político-partidárias.

O PAICV, não obstante ter ganho três eleições legislativas e várias outras municipais, afirmando-se como um dos dois grandes partidos do regime democrático cabo-verdiano, sente-se por alguma razão obrigado a defender valores, instituições e narrativas do regime de partido único. No novo paradigma representado pela Constituição de 1992, essa tomada de posição resultaria necessariamente em choques e incompatibilidades com consequências para o processo de consolidação democrática. O consenso dos partidos à volta da Constituição é essencial para o florescer das democracias como historicamente se viu em Portugal no eixo PSD/PS, em Espanha no eixo PP/PSOE, em França no eixo RPR/PS ou na Itália no eixo DC/PS. Quando o consenso é posto em causa como aconteceu recentemente na América de Trump ou no Brasil de Bolsonaro a crispação sobe de tom, a polarização é radical e o diálogo público, a expressão de ideias e a liberdade intelectual, acabam por ser altamente prejudicados.

Cabo Verde com o mundo rodeado de incertezas e a lidar com as suas fragilidades não pode quedar-se num estado de permanente choque de paradigmas. Por seis vezes através do voto livre e plural já reconfirmou a sua opção pelo sistema de valores existente na Constituição de 1992. Em completa liberdade deve poder investigar e conhecer o seu passado de mais de cinco séculos, afirmar a sua especificidade enquanto nação e traçar as linhas do seu futuro sem ser sobrecarregado por narrativas de um período de menos de vinte anos produzidas num outro país, a Guiné-Bissau, e que serviram de justificação a um poder totalitário. Para que finalmente os seus filhos parem de fazer autocensura, deixem as suas ideias desabrochar e potenciem, na construção do futuro, a força e criatividade da vivência resiliente nas ilhas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1103 de 18 de Janeiro de 2023.

segunda-feira, janeiro 16, 2023

Em defesa da democracia, celebrar o 13 de Janeiro

 

O ano 2022 trouxe boas notícias para a democracia com a contenção pela via eleitoral de movimentos populistas em vários países com destaque para a França, Estados Unidos e Brasil. A democracia liberal ganhou também um grande alento com a solidariedade mundial demonstrada ao povo ucraniano pela coragem na luta pela sua liberdade, integridade territorial e autonomia na escolha do seu futuro. Já o ano 2023, logo no seu início com os acontecimentos de Brasília do dia 8 de Janeiro, veio relembrar com particular estridência que a democracia ainda tem muitos inimigos e que o descontentamento que grassa em franjas significativas da população em relação ao funcionamento das instituições e a actuação da classe política pode ser utilizado para a enfraquecer ou mesmo destruir.

A dois dias de celebração do 13 de Janeiro, “Dia da Liberdade e da Democracia”, é fundamental que se tenha presente a importância de se salvaguardar a democracia e o seu sistema de valores. Isso é particularmente urgente quando sistemas rivais e diametralmente opostos em matéria de respeito pela dignidade humana, pluralismo, separação dos poderes e o primado da lei ainda são brandidos como recomendáveis ou mesmo superiores. O desafio nos tempos actuais feito à democracia liberal não se limita às criticas dos descontentes que sempre teve ao nível nacional. Vai mais longe com ataques às instituições-chave do Estado de Direito democrático, como se viu agora no Brasil e há dois anos atrás nos Estados Unidos da América, e com ramificações incluindo financiamentos e outros apoios internacionais num quadro que estará a desenhar-se de rivalidade entre as democracias e as autocracias.

Hoje é facto assente que Winston Churchill tinha razão quando disse que “a democracia é pior forma de governo à excepção de todos os outros experimentados ao longo da história”. Para os cabo-verdianos que iniciaram da sua livre vontade, bem expressa nas urnas há 32 anos atrás a experiência com a democracia, a frase de Churchill confirma-se plenamente. Apesar das suas insuficiências, é facto que a prosperidade acompanhada de liberdade e de autoestima que se ganhou com a democracia e a transição para a economia de mercado não tem paralelo com o cinzentismo da vida no regime de partido único e o crescimento raso do PIB que caracterizou os seus derradeiros anos.

Historicamente as democracias têm provado que são mais capazes de potenciar os recursos naturais e humanos do país para criar riqueza e fazer uma redistribuição mais equitativa. Na África, por exemplo o Botswana, com os seus diamantes e a sua democracia, destacou-se sempre nas melhores posições em todos os rankings enquanto outros países com grandes recursos minerais e petrolíferos sobre endividam-se, apresentam grandes desigualdades sociais e níveis elevados de corrupção. Já na maioria esmagadora dos países que adoptaram regimes autocráticos não se verificou o desenvolvimento desejável ou expectável.

Só aconteceu em alguns países como Singapura e China que sustentaram durante décadas taxas de crescimento próximo de dois dígitos e agora parece que Ruanda e o Vietname estarão a ir pelo mesmo caminho. São casos raros em que de alguma forma os regimes viram o crescimento acelerado como factor de legitimação do regime. Em Cabo Verde, a autocracia também não funcionou talvez porque a base de legitimidade era outra e durou até quando o povo teve oportunidade de livremente fazer a escolha dos seus governantes.

Estão, pois, muito equivocados os renascentes saudosistas do regime de partido único que pretendem hoje resolver os problemas económicos do país, designadamente dos transportes, abastecimento e energia recorrendo às fórmulas estatizadas do antigamente que já na época eram ineficientes e no contexto actual não têm qualquer cabimento. Do mesmo modo se enganam os que parecem sugerir que a existência de milícias e tribunais de zona, órgãos revolucionários de base local próprios do regime anterior, poderia prevenir problemas de violência e criminalidade nas comunidades. A verdade é que não se pode avançar construtivamente no debate sobre a economia nacional contrapondo sistematicamente fórmulas antigas de governação e pretensos resultados obtidos à realidade presente.

Também no plano social não se consegue encarar devidamente o impacto negativo no tecido social do país de décadas de políticas que levaram à atomização da sociedade, ao aumento da dependência das pessoas em relação ao Estado, à perda da confiança interpessoal e a correspondente diminuição do capital social e do civismo. E sem isso pode-se alocar mais e mais recursos, mas é mais provável que os resultados fiquem aquém do desejado como tem acontecido. O mais complicado é que nem mesmo o espectáculo de, na sequência de megaoperações policiais, se ver milhares de armas brancas confiscadas em particular aos jovens, de se constatar a posse ilegal de centenas de armas de fogo em buscas e de se descobrir nas pequenas encomendas mais de oito mil balas que seriam para venda ilegal parece despertar para um diálogo mais profundo sobre o que claramente são as causas do problema e encontrar a abordagem mais compreensiva e eficaz para os resolver. Ilusões sobre o passado não podem constituir-se em obstáculo para o debate que deve ser feito.

A democracia tem os seus problemas e as suas imperfeições e nem sempre parece estar à altura das suas promessas, em particular quando se trata de levar prosperidade a todos. Apesar de tudo, como se pôde constatar durante a pandemia da Covid-19, é o regime que, quando enfrenta desafios da mais variada ordem e gravidade, permite mais criatividade e inovação na procura de soluções e o que mais fácil permite identificar erros cometidos e mudar para políticas que funcionam. Para que possa revelar todas suas virtualidades e estar à altura do que todos esperam do sistema democrático é fundamental que o seu núcleo central constituído por instituições, normas e regras procedimentais seja respeitado, protegido e seguido por todos, especialmente pelos seus titulares.

O choque sentido mundialmente aquando dos acontecimentos de Brasília traduz o sentimento de profunda inquietação que se seguiria ao desmoronar das instituições que todos têm por asseguradas. Esquece-se demasiadas vezes que para evitar isso é fundamental que todos cumpram com as suas competências, com a integridade e carácter de quem serve o público e não se serve das suas funções para ganho pessoal. Do Brasil ainda vieram outros avisos. Um deles que corrobora o que já se tinha verificado nos Estados Unidos quanto à importância do sistema judicial na protecção da democracia nos momentos críticos. Um outro também fundamental é papel das forças armadas nas democracias. Não são nem anteriores ao Estado, nem estão acima do Estado, ou tutelam a democracia. São defensoras da ordem constitucional vigente e subordinam-se ao poder civil e como tal devem ser imunes aos apelos de grupos extremistas, saudosistas ou revisionistas nos embates contra a democracia.

Ainda uma questão importante é o papel do presidente da república. Órgão singular, o PR é eleito directamente pelo povo, como bem diz António Barreto num artigo do jornal Público de 7 de Janeiro “para acrescentar legitimidade e solidez ao edifício do Estado democrático. Não para vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar”. Nestes momentos de crise da democracia, em que para além dos descontentes há que ter em conta inimigos, não há talvez nada mais fundamental do que essa função de manter a integridade do Estado de Direito Democrático.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1102 de 11 de Janeiro  de 2023.