Em declarações à imprensa o presidente da república José Maria Neves disse que espera que, ao que chamou de “disputa de protagonismo” entre o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, não faça escola em Cabo Verde. Pelas declarações que fez a seguir, a propósito de fundos para apoiar jornalistas e órgãos de comunicação social na cobertura de visitas presidenciais e do governo, fica-se com forte impressão de que aqui também já há essa disputa.
Nota-se em matérias aparentemente menores discutidas na praça pública como recursos orçamentais alocados aos órgãos de soberania e a propósito de verbas para viagens, mas também nas políticas governativas que até foram foco das mensagens presidenciais dirigidas ao país. O tom não é muito diferente do que é usado noutros debates políticos no país em que as teclas tocadas são as usuais de discriminação, exclusão e vitimização.
Em Portugal, a disputa atingiu um ponto clarificador quando a sugestão pública do PR para o PM demitir um ministro foi também expressa e publicamente negada. Na sequência o PR acabou por não avançar com “a bomba atómica” da dissolução do parlamento que só se justificaria com um não normal funcionamento das instituições e, por outro lado, o país ficou a par da uma vontade mais firme e explícita do PM de pôr travão à ingerência presidencial em matérias da governação. Não obstante as promessas do PR em manter com rédea curta o governo, a verdade é que toda a ideia da magistratura de influência até agora exercida, provavelmente terá que ser reformulada. Há quem diga que praticamente acabou quando, por disputas de protagonismo, o que antes era dito, sugerido ou recusado no recato dos encontros do PR e do PM já não têm a mesma receptividade de ambas partes.
Diz-se muitas vezes que em sistemas de governo nos quais o presidente da república é eleito directamente por sufrágio universal, mas não governa e o governo que ele nomeia só é politicamente responsável perante o parlamento, a relação entre o PR e o PM é de geometria variável. A existência de uma maioria absoluta a apoiar o governo limita o poder de influenciação do PR enquanto governos minoritários e mesmo coligações mais ou menos frágeis abrem outras possibilidades de intervenção e protagonismo presidencial. A disputa em Portugal nos termos em que se verificou, aconteceu praticamente após um ano de governo maioritário depois de seis anos de governos minoritários. O mais normal é que mais tarde ou mais cedo houvesse um momento de choque seguido de reajuste.
Em Cabo Verde onde sempre houve governos maioritários seria de esperar que as bases da relação entre os dois órgãos de soberania já estivessem normalizadas. Na ausência de governos minoritários e sem os, quase livres, poderes de dissolução do parlamento e de demissão do governo que o PR português detém, o mais normal é que em Cabo Verde se tivesse refinado essa magistratura discreta, mas eficaz que daria para melhores relações entre os dois órgãos de soberania. Mesmo a coexistência de presidente da república e de governo oriundos de diferentes origens partidárias até agora não se tinha mostrado propício para tensões fora do ordinário. A disputa de protagonismo actual sai do padrão talvez porque equilíbrios foram percepcionados como tendo sido rompidos devido a sucessivas crises que afligiram o país e novas realidades políticas, económicas e sociais que se impuseram.
De facto, outras razões para além das normais tensões dos órgãos de soberania poderão estar a alimentar as disputas de protagonismo tendo em conta os seus efeitos nas confrontações eleitorais futuras. Em Portugal, a perspectiva da chamada bazuca financeira, ou seja, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) permitiu ao presidente da república justificar mesmo no novo quadro de um governo maioritário um seguimento de perto das políticas da governação na base que é fundamental para o país aplicar bem os fundos comunitários. É convicção geral que do bom uso que se fizer dos investimentos do PRR dependerá a possibilidade de Portugal inflectir a actual tendência do país de continuar a ser ultrapassado pelos novos membros da União Europeia e criar as bases da prosperidade futura. Com o PR a predispor-se para garantir que isso será feito já joga um importante papel político para os sectores de opinião que consideram que o actual governo não é dado a reformas de fundo e é mais virado para políticas com foco principal em manter uma base social de apoio ao poder actual e ganhar eleições.
Em Cabo Verde, a disputa já não está tanto a traduzir visões diferentes do futuro do país, mas antes os interesses de sectores distintos de uma classe política que já toda ela parece ter assumido como estratégia de desenvolvimento algo que não se distingue muito da agenda das Nações Unidas e das organizações multilaterais. O mais normal seria que houvesse a maior tranquilidade na relação entre os dois órgãos de soberania considerando que o actual PR está num primeiro mandato e lida com um governo maioritário. As coisas mudam quando, em momentos cruciais como eleição da Mesa da Assembleia Nacional, aprovação do Programa do Governo e Orçamento do Estado, o governo sinaliza fragilidades na sua maioria parlamentar.
Perante isso, o PR envolve-se em contactos com os partidos para garantir estabilidade e aprovação de instrumentos fundamentais como o Orçamento do Estado (2021) e ganha um protagonismo inesperado. Mas, como foi primeiro-ministro durante quinze anos e deixou de o ser há pouco mais de seis anos, qualquer protagonismo crítico mais pronunciado, particularmente incindindo sobre políticas governativas, imediatamente são tomadas como críticas que só poderiam vir da oposição. Daí é um passo para o PR ser visto como chefe da oposição tanto pelo partido no governo como também pela própria oposição partidária que acaba por sincronizar as suas intervenções no parlamento e na comunicação social com os seus pronunciamentos.
A disputa de protagonismo não só vai fazer escola como já cá está e com tonalidades complicadas porque, ao se tomar o PR como chefe da oposição, esvazia-se no processo o papel central de árbitro e moderador do sistema político e perdem-se as vantagens que podiam advir de uma magistratura de influência exercida por uma presidência suprapartidária. Mais complicado fica o sistema político que já vem sofrendo das ineficiências criadas pelas disputas de protagonismo entre o governo e as câmaras municipais e que agora se vê juntar a disputa com o presidente da república.
Quando o país precisa focar para fazer face a sucessivas crises e sabe-se que existem riscos expressivos que podem travar a recuperação, como deixou bem claro a última missão do FMI, é fundamental que todos compreendam que o mandato que receberam nas eleições democráticas é para servir o povo e o país e não para se servirem. Ninguém quer continuar a assistir à exibição de egos e ao cortejo de vaidades em que muito da vida política no país se transformou.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1119 de 10 de Maio de 2023.