Recorrentemente na comunicação social aparecem relatos de irregularidades e decisões tomadas no financiamento de projectos e obras com base em relatórios diversos feitos por entidades públicas de inspecção ou de fiscalização. Nas últimas duas semanas vieram à baila dados ligados à investigação de financiamentos do Fundo do Ambiente e do Fundo do Turismo verificados nos últimos anos. Imediatamente toda a esfera pública, incluindo a comunicação social e as redes sociais, ficou rubra de denúncias e contra denúncias dos actores políticos e de múltiplas manifestações de indignação de certos sectores da sociedade. Em momentos outros no passado-recente também relatos similares tinham envolvido fundos, municípios e associações comunitárias seguidos sempre do aumento de crispação política no país.
Tais relatos são alimentados por fontes de informação que, por razões várias, resolveram levar ao conhecimento público elementos da inspecção antes de oficialmente terem sido homologados. Razões essas que poderão incluir a percepção que há demora exagerada em se dar continuidade ao processo de inspecção desencadeado, ou que há bloqueio em se avançar com o mesmo. Também não é de se pôr de lado a vontade de denunciar por dever moral em casos que indiciem corrupção ou mesmo algum interesse subjectivo de natureza política. Em qualquer das circunstâncias o efeito das denúncias cresce proporcionalmente com a renitência das autoridades em reconhecer o processo em andamento e com o facto de não se ter agido com a celeridade necessária para melhorar as práticas e conter os estragos.
No caso presente, mais uma vez viram-se as consequências da falta de acção ou da falta de assunção pelo governo das suas responsabilidades em tempo próprio. Acusações mútuas são feitas em sucessivas conferências de imprensa e o tempo parlamentar é dominado no período das questões gerais ou de antes da ordem do dia por denúncias e suspeições que vão buscar ao passado que todos já tiveram a oportunidade de protagonizar considerando que já houve duas alternâncias nos trinta e dois anos de democracia. Infelizmente, ninguém fica realmente esclarecido quanto às irregularidades denunciadas e às entidades envolvidas e, pior ainda, não se fica em posição de avançar com reformas que previnem que situações similares não venham a acontecer no futuro. Aliás, na essência, o que se denuncia hoje faz parte de um déjà vu. Aconteceu antes e se não for alterado o que lhes é subjacente irá repetir-se no futuro.
Cabo Verde não é um país que apresenta altos níveis de corrupção. Entre 180 países situa-se na posição 35ª no ano 2022. Alguma corrupção que poderá ter é confirmada pela irregularidades e desvios que de tempos em tempos são trazidas a público por denúncias como as referidas ou por fuga de informação. A questão que se coloca é como combatê-la tendo em conta que se revela persistente em certas circunstâncias e formatos de intervenção pública. O facto de se ter tomado como sinónimo de governar e fazer política é estar em campanha eleitoral permanente criou uma necessidade premente de todas as forças políticas de manter e expandir o eleitorado favorável. E num país de precariedade e vulnerabilidades várias esse esforço, não poucas vezes, redunda na criação de relações de clientela e na exploração de dependências mais ou menos alimentadas por irregularidades e desvios.
A dificuldade em acabar com esse estado de coisas é porque se trata do modus operandi preferido. Condenaçâo dessas artimanhas surge apenas quando alguém ficou exposto e foi apanhado e é dirigida mais para desgastar o adversário do que para promover boas práticas e uma ética superior. Naturalmente que os alvos principais são quem no momento governa o país ou está à frente das câmaras municipais porque têm mais meios à disposição. Para as forças políticas que estão na oposição, outras táticas, designadamente a cooptação de organizações sociais e comunitárias, estão disponíveis na mesma linha de clientelismo e de reprodução de dependências. Por isso é que, na sequência das denúncias, ficam pelas farpas trocadas e pelos ganhos políticos directos ou os resultantes do desgaste do adversário.
Mesmo no parlamento, onde há mecanismos de fiscalização para esclarecer a Nação sobre o funcionamento dos fundos públicos, não se aproveita a oportunidade para convocar as comissões especializadas competentes e fazer audição dos gestores dos fundos e de outras partes envolventes nos projectos financiados, nem para se escrutinar as práticas existentes e questionar os ministros da tutela. Prefere-se ficar pelos exercícios de arremesso político em que se transformou muito daquilo que devia ser trabalho parlamentar construtivo, suportado por um contraditório salutar.
Deixa-se predominar a lógica da campanha permanente que faz dos deputados activistas que, ao invés de se dirigirem à plenária da Assembleia Nacional enquanto representantes da nação, como é próprio do exercício do mandato, se dizem portadores de recados e falam directamente para “os que estão lá em casa”. E sem esquecer dos que optam por estar na “plataforma”, como se fosse admissível participar nos trabalhos parlamentares fora do plenário e até votar quando o voto deve ser sempre presencial porque só assim é que o presidente e a mesa da assembleia nacional podem garantir que o deputado está a exercer livremente o seu mandato.
A democracia prevê mandatos eleitos e uma maioria para governar com vista ao interesse geral por tempo determinado ao fim do qual se presta contas ao eleitorado. Transformar o tempo de mandato em campanha eleitoral permanente e usar recursos públicos para garantir um eleitorado leal diminui extraordinariamente a qualidade da democracia. Vê-se pelos repetidos casos de denúncias de irregularidades e desvios de fundos nas sucessivas legislaturas que é ao nível local e comunitário que mais as tropelias acontecem.
A fragilidade das instituições de controlo, a tendência para o caciquismo local e a cumplicidade das autoridades centrais conjugam-se para viabilizar a campanha permanente. Mas a sua manutenção nas mais variadas formas depende da cumplicidade do governo em manter parados casos em fase avançada de investigação. Também conta com a omissão de outros poderes, a começar pelo parlamento, que prescinde de competência própria em sede de fiscalização do governo e da administração do Estado para pôr cobro a práticas que põem em causa a prossecução do interesse geral.
Accountability significa que é-se responsável a todo o tempo perante todo o povo e não em relação a uma parte que pode vir a ser potencial eleitorado. As normas e os procedimentos em todo o funcionamento do Estado e da sua administração central e local existem para garantir que assim seja. Com a instituição da campanha eleitoral permanente essa garantia é uma pura quimera. Até se conseguir ultrapassar este “consenso” quanto ao que significa governar e fazer política vai-se ter que aguentar com as denúncias periódicas, a gritaria que se segue e a paz morna que perdura até à erupção seguinte.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1124 de 14 de Junho de 2023.