segunda-feira, julho 17, 2023

Apelos levados pelo vento

 

Na sua intervenção nas cerimónias comemorativas do dia 5 de Julho o presidente da república trouxe à baila mais uma vez a questão da não partidarização da Administração Pública. É uma matéria recorrente nos discursos de outros titulares de órgãos de soberania, dos partidos políticos e de personalidades, académicos e activistas sociais.Todos parecem estar de acordo que o problema da partidarização existe, mas aparentemente ninguém sabe como ultrapassá-lo porque, apesar dos partidos se alternarem na governação do país, os seus efeitos não desaparecem, nem se atenuam. Como solução vai-se sugerindo entre outras acções a obrigatoriedade de concursos públicos para os cargos na administração do Estado, mas, enquanto panaceia, é evidente que essa medida não satisfaz, porquanto as denúncias de partidarismo na função pública continuam.

A chamada de atenção do PR, quarenta e oito anos após a independência e trinta anos depois da adopção de uma Constituição democrática talvez seja um sinal de que se vai tornando cada vez mais difícil ignorar as consequências do país ter uma “administração pública sobre a qual recai a desconfiança de não funcionar de acordo com princípios de justiça, isenção e imparcialidade e de igualdade de tratamento de todos os utentes”, como prevê a Constituição da República. E também que em acréscimo não há garantia que os funcionários e demais agentes do Estado são pessoalmente “beneficiados ou prejudicados ou se beneficiam ou prejudicam outrem em virtude das suas opções partidárias”. De facto, um Estado que funciona com tais constrangimentos, com impacto inevitável na sua eficiência e eficácia, não deixa de acarretar custos consideráveis para a sociedade e para a economia, afectando negativamente a competitividade do país.

Pôr cobro a esta situação devia ser uma prioridade fundamental quando o foco é desenvolver o país e a realidade é difícil e complexa e os recursos são escassos. Num momento crucial da ascensão à independência, Singapura, também uma realidade insular, erigiu através do seu líder Lee Kuan Yew como objectivos fundamentais o comprometimento com a meritocracia e a luta contra a corrupção. Nem todos podem repetir o feito de Singapura de passar de um rendimento per capita de 517 dólares em 1965 para 59 mil dólares em 2020, mas é um facto que isso só foi possível com uma administração pública competente e eficaz e a utilizar de forma eficiente os recursos públicos. Vários exemplos por todos os continentes têm demonstrado a importância para o desenvolvimento de um país de um serviço público com base em critérios meritocráticos e uma ética e um ethos a condizer, em que o utente não têm que se colocar na posição de quem está a receber favores e até mesmo de mostrar-se politicamente grato.

Infelizmente não é o que se conseguiu erigir ainda em Cabo Verde. Com a independência em 1975 a administração pública que se pretendeu construir foi a que melhor se adequava ao regime de partido/Estado. O critério de base era aderência aos princípios do partido único e naturalmente que a carreira na administração pública teria que se orientar mais pela fidelidade ao regime do que por considerações de competência técnica e profissional. Com o advento da democracia, 15 anos depois, o problema que se colocou ao novo governo era como conciliar a cultura de militância partidária dos funcionários herdada do outro regime com a necessidade de cumprir o seu programa sufragado nas urnas. A dificuldade aumentou com a liberdade de exercício de direitos políticos quase sem limites garantida aos funcionários públicos pela Constituição de 1992. Não é de estranhar que na ausência de constrangimentos efectivos houvesse a desconfiança que o fervor partidário em determinadas situações pudesse sobrepor-se ao sentido de dever enquanto funcionário público e que, em reacção, com a colocação de quadros de confiança política se procurasse minimizar os riscos.

A dificuldade com essa solução é que, como veio a se verificar, ficou quase impossível construir uma administração pública competente, experiente, com memória institucional e com outros valores e outra cultura ao nível que seria desejável para responder com a maior eficácia aos desafios de desenvolvimento do país. As alternâncias no governo acabaram por normalizar as nomeações e as carreiras na base partidária, mas ainda sem eliminar as vantagens iniciais dos que mais tempo tiveram no aparelho do Estado, facto que continua a alimentar ressentimentos de parte a parte e a desconfiança que bloqueia as tentativas de adopção de critérios meritocráticos. A grande apetência por cargos públicos acirrada por alguma precariedade de outros sectores de actividade e pela continuada ascendência do papel do Estado no domínio socioeconómico favorece a crispação política e retroalimenta todos os impulsos para não se chegar a compromissos que pudessem alterar a situação existente.

Apesar das denúncias de partidarismo na administração pública e dos apelos à despartidarização toma-se de alguma forma como normal a situação existente porque em boa medida responde à ideia do exercício de poder com base em clientelas, fazendo favores, garantindo acessos e reproduzindo dependências várias. A cumplicidade é geral como se pode constatar pelos conteúdos transmitidos na rádio e na televisão, pelo número de eventos em que autoridades nacionais e locais doam alguma coisa e as pessoas mostram-se gratas frente às câmaras e aos microfones. Num ambiente de campanha permanente e lutas por ganhos eleitorais futuros quando se fala de despartidarização está-se, de facto, a querer pôr em cheque quem está, no momento e no local em posição de dar, mas não a forma como está a exercer o poder.

As críticas aí, assim como com as denúncias sobre os resultados das inspecções aos fundos do turismo e do ambiente, são fundamentalmente para conseguir vantagem política sobre o adversário. Não para pôr em causa o sistema que permite que falhas similares tenham acontecido no passado, estejam a acontecer no presente e voltem a verificar-se no futuro. Aliás, percebe-se perfeitamente que muitos desses jogos de poder acontecem no lidar com os municípios e o normal seria melhorar e tornar mais rigorosos os processos decisórios e de fiscalização e controlo nos órgãos do poder local e na administração local. Pelo contrário, nota-se uma preocupação para aumentar ainda mais os poderes dos presidentes das câmaras municipais contribuindo eventualmente para mais exemplos de caciquismo local.

A incongruência é reveladora de como o tema da partidarização é tomada pelas forças políticas em presença como simples pretexto para ganhos tácticos contra o adversário e não para se juntar esforços e construir o Estado e a Administração Pública que o país precisa para enfrentar os extraordinários desafios do seu desenvolvimento. Na mesma linha vai a moção de censura ao governo que foi apresentada esta terça–feira. À partida não terá no parlamento a maioria necessária para ser aprovada, mas de qualquer maneira vai cumprir o seu propósito. No texto repetem-se todos os velhos clichés ideológicos e os argumentos e supostos factos que os sustentam ou justificam simplesmente para tentar conseguir ganhar alguns pontos políticos. O debate político não vai elevar o seu nível, o país não fica melhor preparado para enfrentar os desafios e afirma-se mais uma vez que não há nenhuma base para construir os acordos e compromissos para fazer o país avançar. Os apelos de despartidarização da administração pública serão mais uma vez levados pelo vento. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 10, 2023

5 de Julho, celebrar a República e a Democracia

 

Passados 48 anos após a independência nacional o 5 de Julho deve ser o dia em que a comunidade política nacional, enquanto república soberana, reafirma que as suas bases são a dignidade humana e a vontade popular. E que entre os seus objectivos fundamentais estão a inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos fundamentais, a igualdade de todos os cidadãos sem qualquer tipo de discriminação, a realização da democracia plena e de uma sociedade livre, justa e solidária, e ainda a criação de condições para a realização pessoal e participação efectiva de cada cidadão.

Com a celebração do 5 de Julho deve-se procurar reforçar a unidade da nação para poder enfrentar, num ambiente de pluralismo e de diversidade de interesses, os extraordinários desafios que se colocam no presente e no futuro próximo. O que não deve ser é a oportunidade para se pôr em causa os valores da república e da democracia e para validar anos de ditadura e os projectos de poder de um grupo e seus protagonistas.

A verdade é que o 5 Julho, a república, enquanto produto de uma situação histórica específica de desmoronamento tardio de um império colonial e em que movimentos de libertação reivindicavam exclusivo direito de representar povos e a legitimidade histórica para governar, levou tempo para cumprir as suas promessas de liberdade, de autogoverno e de cidadania plena. Só 15 anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 é que, recuperado o protagonismo popular, se amarraram os alicerces da república na Constituição de 1992 e se reacendeu a esperança num futuro de prosperidade. Para trás então ficou o tempo dos obstáculos à iniciativa individual e desenvolvimento da pessoa humana, de ausência da participação efectiva e de constrangimentos na relação com o mundo. Também se abriu o caminho para libertar o país do peso de ideologias que justificaram aventuras insensatas como a unidade com a Guiné, que procuraram estatizar tudo na economia e na sociedade e que tomaram a legitimidade histórica como fonte primária do poder.

Chegado ao dia de hoje, é preciso ter em perspectiva o caminho percorrido, as insuficiências existentes e em que medida está-se a utilizar o potencial despoletado pela democracia, pelo Estado de Direito e pela livre iniciativa e maior autonomia de acção das pessoas para manter acesa a esperança. Alguns sinais preocupantes, designadamente a perda de população revelada no último Censo e a pressão cada vez maior de uma parte da população, em particular dos jovens em emigrar para a Europa e para os Estados Unidos, sugerem que não se está a fazer o melhor. É verdade que nas últimas três décadas mais do que se triplicou o rendimento per capita do país, mas, por outro lado, as desigualdades sociais aumentaram e bolsas de pobreza subsistiram apesar de programas repetidos dirigidos para combater as vulnerabilidades das populações.

Não se conseguiu modernizar suficientemente a agricultura para fazer o melhor uso da água e da terra arável disponível, nem se conseguiu desenvolver canais de escoamento dos produtos agrícolas para um melhor aproveitamento do mercado nacional, já naturalmente fragmentado nas ilhas, nem do novo mercado criado pela procura externa via turismo. A população que deixa os campos e as ilhas mais agrícolas à procura de emprego não é absorvida por unidades indústrias porque a industrialização, por razões ideológicas, veio tarde e posteriormente não resistiu às mudanças nas cadeias de valor. O turismo afirmou-se como motor da economia, mas, sem uma estratégia consistente e um comprometimento nacional com a actividade turística, continua dominado por alguns operadores e cria milhares de postos de trabalho, mas de baixos salários com o agravante dos trabalhadores, na maioria vindos de outras ilhas, arcarem com o custo das insuficiências existentes em infraestruturas e habitação.

Outros sectores, que foram alvo de projectos estratégicos dos sucessivos governos apresentados na forma de clusters, hubs e plataformas, não tiveram o retorno prometido apesar dos grandes investimentos feitos. Acabaram por contribuir para o aumento substancial da dívida pública conjuntamente com o crédito conseguido para financiar um conjunto de infraestruturas que também em boa medida ficaram subutilizadas. A pesca que podia beneficiar da vocação secular das ilhas e da instalação de grandes conserveiras com mercado certo na União Europeia também não foi foco de uma estratégia para aumento da capacidade de captura com impacto em produtos que mais peso têm nas exportações do país.

A percepção da população que as medidas políticas ficaram aquém do prometido em termos de dinâmica da economia e de criação de emprego cria alguma ansiedade, agravada pela expectativa de mobilidade social dos jovens e das suas famílias que resulta da massificação do ensino primário e secundário e da disponibilidade crescente de ensino superior no país. Perante isso o trabalho no Estado surge como o mais seguro devido à precariedade que rodeia os outros sectores. Mas a cada vez menor oferta de empregos no Estado e na administração acaba por provocar a corrida feroz aos lugares na função pública seguindo linhas partidárias e consequente ambiente político mais crispado e menos compromissório. Para muitos que não conseguem de uma forma ou outra singrar nesse ambiente resta o sector informal que cresce rapidamente, particularmente depois das crises sucessivas dos últimos anos, ou a possibilidade de emigrar como se pode ver pela pressão cada vez mais notória para conseguir vistos para a Europa. E a promoção de um empreendedorismo massificado não provou que é a panaceia para a falta de emprego e de oportunidades.

Claramente que as opções que se colocam a muitos cabo-verdianos e principalmente aos jovens não as mais consentâneas com as grandes promessas da república e com a esperança de uma vida melhor. A celebração do 5 de Julho deve também ter como objectivo renovar o comprometimento de todos e em particular dos governantes para mobilizar a energia e a vontade da colectividade na procura de soluções para os grandes desafios e para renovar a confiança no futuro. As crises sucessivas foram um forte estímulo para se mudar a atitude geral no sentido de uma mais “perfeita união” como diria Abraham Lincoln. Infelizmente não tiveram o impacto esperado e nota-se isso na tendência crescente para o divisionismo interno, para a descredibilização das instituições, para a falta de civismo e criminalidade.

O espectáculo que se vem assistindo na França nos últimos dias vem relembrar que emigrar para Europa também não é uma opção segura e tende a tornar-se pior ou pela reacção a incidentes similares ou pelo aproveitamento que políticos de outros países, caso do Primeiro-ministro polaco, fazem dos acontecimentos. Tudo isso vem relembrar a importância de se acreditar no Cabo Verde de esperança como cantava Norberto Tavares e da urgente necessidade de, e na república democrática que hoje todos celebram no 5 de Julho, se ultrapassar os obstáculos que ainda impedem a realização plena das suas promessas. 

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1127 de 05 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 03, 2023

Tempo para debater o papel do Estado

 

No dia 28 de Junho iniciou-se a segunda sessão plenária do mês com o debate com o Primeiro-ministro sobre “os negócios do Estado e a protecção do interesse público” proposto pelo maior partido da oposição.Vindo na esteira do imbróglio à volta das inspecções ao Fundo do Ambiente e ao Fundo do Turismo, o mais certo é que rapidamente o debate irá degradar-se pelas habituais acusações e as incursões ao passado que não deixam ninguém incólume. Por causa disso, normalmente desses debates só resulta o aumento do stock do cinismo nacional relativamente à política e aos políticos. Fica por avaliar, por exemplo, o quanto que o país já evoluiu na institucionalização dos seus mecanismos de responsabilização e prestação de contas nas últimas três décadas de democracia.

Também não se faz o suficiente por identificar os sectores da vida nacional onde o nível de acountability é mais baixo, a fiscalização política é mais frágil e a cultura política e administrativa favorece a falta de rigor no uso dos recursos públicos apesar das pistas que serão deixadas ao longo do debate. Prefere-se ficar por suspeições de corrupção que vão reforçar narrativas da existência de dois campos opostos: um que se reclama de estar num plano moral superior e diz querer preservar os recursos do Estados em nome do interesse público e outro que é acusado de querer delapidá-los em negócios que favorecem, acima de tudo, interesses privados.

É evidente que nesse tipo de confrontos põe-se de lado qualquer discussão compreensiva sobre o que deve ser o papel do Estado numa pequena economia insular e arquipelágica como Cabo Verde. Designadamente, não se procura descortinar que dimensão deverá ter o sector estatal e em que áreas económicas envolver-se. Ou como articular uma intervenção qualificada do Estado com a promoção do sector privado nacional e a atracção de investimento estrangeiro. Ou ainda como construir um sector público e administrativo que, regendo-se pelos princípios de eficiência e eficácia, contribua para a diminuição dos custos de contexto e também um sector público empresarial que mantenha a um nível adequado certos custos como os de energia, água e transportes.

Numa realidade como a cabo-verdiana, de uma pequena estrutura produtiva e um mercado minúsculo e fragmentado onde economias de escala não existem e falhas de mercado são inevitáveis, não é tarefa fácil determinar qual a dimensão e o papel certo do Estado. Como em qualquer democracia sempre vai haver um campo a propor mais Estado e outro a querer posturas menos intervencionistas. O debate fundamental que daí resulta, traduzido nos embates eleitorais em alternâncias na governação, serve para adaptar a condução da política económica aos desafios do momento e periodicamente fazer as correcções que se mostrarem necessárias. Diminui-se a utilidade do debate quando uma das partes trata propostas de diminuição da intervenção estatal vindas de outros actores políticos como inimigas do interesse público.

Ora, sabe-se de experiência directa duas coisas muito importantes: uma que ter o Estado a dominar toda a economia não é garantia que se está a proteger o interesse público. Ao estatizar tudo sacrifica-se em simultâneo a liberdade e a iniciativa individual e, por aí, a capacidade de inovação e produtividade de qualquer país. Uma outra consequência é que se limita o acesso aos recursos externos para financiamento da economia e não se consegue chegar aos mercados, constrangendo severamente as possibilidades do país se desenvolver. O crescimento verificado em Cabo Verde nos últimos trinta e dois anos na sequência da desestatização da sua economia, com todas as suas vicissitudes, testemunha a necessidade de se encontrar o equilíbrio adequado entre o público e o privado. E não é só uma questão que se coloca a economias frágeis como a cabo-verdiana.

A discussão à volta da intervenção do Estado na economia reentrou recentemente na ordem do dia na generalidade dos países democráticos. Os múltiplos problemas de circulação criados pela pandemia da Covid-19 e as perturbações graves na cadeia de abastecimentos de produtos essenciais e estratégicos obrigaram a repensar a integração na economia mundial numa perspectiva mais de resiliência do que de eficiência. Neste sentido, políticas de onshoring e de friend-shoring têm sido propostas por governos dos Estados Unidos e da União Europeia que, aliadas a iniciativas de financiamento de sectores estratégicos chamadas de “política industrial”, procuram dar um outro sentido à globalização.

Com isso, quer-se diminuir os riscos (de-risking) ligados às mudanças geopolíticas precipitadas pela invasão da Ucrânia pela Rússia e pelas tensões entre a China e o Estados Unidos. Também quer-se dar uma resposta a alguma desindustrialização e consequente erosão da classe média e aumento das desigualdades sociais que a globalização na base da procura de eficiência tinha gerado nas últimas décadas. Para muitos observadores, o novo intervencionismo do Estado traduzido na Europa entre outras iniciativas pela “bazuca financeira” e nos Estados Unidos pela lei das infraestruturas e pelo investimento nos semicondutores acaba por simbolizar uma nova era que se está a abrir e que põe fim à chamada globalização neoliberal iniciada nos anos noventa.

Repensar o país para os novos tempos é fundamental. No quadro mundial que se desenha há que procurar o melhor papel para o Estado de forma a ser não um entrave, mas sim um promotor e facilitador da economia de base privada que deverá criar prosperidade para todos. Para isso, preconceitos ideológicos de antigamente devem ser ultrapassados designadamente os que não vêem possibilidade de convergência entre o interesse público e o interesse individual e também os que consideram que qualquer redefinição do papel do Estado abre portas à corrupção. Aliás neste quesito era bom relembrar que, como diz o Lord Acton, o poder corrompe, mas que o poder absoluto corrompe absolutamente. Ou seja, mesmo que aparentemente invisível, está lá bem presente e tem custos, de uma forma ou de outra.

Em democracia, e com uma economia de mercado, querendo pode-se assumir colectivamente um comprometimento geral para a construção da indispensável máquina do Estado competente e eficiente e com cultura de serviço público que o país precisa. E para combater a corrupção, ciente das deficiências ainda existentes, em parte derivadas de uma cultura política de crispação permanente que urge ultrapassar e que alimenta desconfiança, devia-se agir com firmeza e determinação para aprimorar os mecanismos de controlo e prestação de contas. Com isso, o país ganharia com os custos mais baixos, maior confiança e atraindo mais investimento.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1126 de 28 de Junho de 2023.

sábado, junho 24, 2023

Evitar correr para os extremos

 A tendência para o extremar de posições sobre as mais diferentes matérias tem vindo a tornar-se uma característica cada vez mais pronunciada das democracias. As consequências vêem-se designadamente na crescente polarização política, na crispação política permanente, nas guerras culturais que sobem de tom e na ascensão da extrema-direita a par de uma esquerda mais focada em questões identitárias. Transversais à tradicional divisão entre direita e esquerda, percebem-se ainda movimentos que alguns caracterizam de quase niilistas personalizados por figuras aproximadamente do tipo de Donald Trump, narcisísticas, sem preocupação com a verdade e viradas para atacar as instituições e a ordem constitucional vigente. Apesar de conhecidos os estragos causados nas instituições e as marcas deixadas na sociedade, não se notam sinais de reversão do fenómeno.

Em Cabo Verde também já se fazem sentir esses males que atacam as democracias e as ameaçam de morte lenta. Falta serenidade e ponderação necessária na abordagem dos problemas que se colocam ao país. Todos os pretextos são bons para alimentar a crispação. A ferocidade com que se trocam acusações, no caso presente, as questões à volta dos relatórios de inspecção aos fundos do turismo e do ambiente, às vezes até dá a impressão que o edifício democrático está a ir abaixo por falta de transparência, não prestação de contas e corrupção. Para calibrar nem mesmo parece servir a percepção dos outros como a expressa na última reunião do GAO que aponta problemas, mas vê progressos ou então experimentações inovadoras como o acordo firmado ontem, dia 20 de Junho, com Portugal para o financiamento do fundo climático e ambiental na base da reconversão da dívida.

Pelo contrário, nota-se a tendência para alargar a conflitualidade política arrastando para o centro do confronto político dos partidos que é o parlamento não só a problemática das câmaras municipais, que já é indevidamente muito presente nos trabalhos parlamentares, como também o próprio presidente da república. A proposta de chamar à comissão parlamentar de inquérito a pessoa do presidente da república enquanto ex-primeiro-ministro além de absolutamente inédita não tem provavelmente qualquer enquadramento constitucional (artigo 147º, n.2 alínea b). Não sendo o PR responsável perante o parlamento, nem parte na governação do país, só se cria mais ruído político no sistema contemplando a hipótese de ele se apresentar nas vestes de um ex-PM numa CPI. Aliás, o mesmo se aplica à ideia de ouvir um ex-primeiro-ministro de Portugal em sede do referido inquérito parlamentar.

No mesmo sentido vão as tentativas de envolver o PR na contestação do acórdão do Tribunal Constitucional que decidiu pela constitucionalidade da resolução da Assembleia Nacional que autorizou a detenção de um deputado para ser submetido a interrogatório judicial. Sabe-se perfeitamente que o princípio da separação dos poderes não permite interferência dos outros órgãos de soberania nas decisões dos tribunais. Também é sabido que os acórdãos do TC têm força obrigatória geral. Perante isso, mudanças no quadro jurídico-constitucional e legal só podem ser feitas com leis da Assembleia Nacional em sede de revisão constitucional ou através de legislação ordinária. Fazer uma petição ao PR para convocar uma sessão extraordinária do parlamento com o objectivo de discutir os efeitos do acórdão não parece ser a melhor via, principalmente se é para perguntar se a Constituição se mantém no topo das leis do país e se já se pode alterar os limites materiais de revisão constitucional.

A haver uma petição o mais normal é que fosse dirigida à Assembleia Nacional para propor aos deputados e aos grupos parlamentares que legislassem para clarificar normas e procedimentos respeitantes à imunidade dos deputados e, se for necessário, proceder a uma revisão constitucional. E não pedir um debate que mais parece uma reapreciação da decisão do TC que supostamente teria introduzido normas costumeiras supraconstitucionais e alterado os limites materiais da revisão. Até porque se for uma reapreciação, de acordo com o regime jurídico do exercício do direito de petição, deverá ser liminarmente indeferida. Imagine-se o clamor que virá a seguir se for o PR a indeferir ou se o parlamento convocado extraordinariamente considerar que não é da sua competência reapreciar decisões dos tribunais. A dúvida que fica é se não é precisamente isso o que se pretende provocar.

Há já algum tempo que se tornaram visíveis as tentativas de transformar o descontentamento justificado com a morosidade da justiça em hostilidade dirigida ao poder judicial e em contestação da integridade dos juízes e procuradores. É um fenómeno que acompanhado de descredibilização do parlamento já vinha acontecendo em outras democracias e normalmente acabava por desembocar em derivas iliberais que sacrificaram a liberdade de expressão e de imprensa, o pluralismo e a independência dos tribunais. É um perigo que Cabo Verde como qualquer outra democracia não está isento até porque os sinais são evidentes nas tensões de há dois anos atrás com o foco nos tribunais judiciais e com ataques a magistrados. Há um ano atrás o foco virou para o parlamento com a questão da imunidade do deputado e agora quer-se envolver o PR num imbróglio que tem no seu centro uma decisão do Tribunal Constitucional.

Quando certos desafios são colocados às democracias a história recente é clara relativamente à importância de se garantir a independência dos tribunais. É só relembrar o papel que o poder judicial teve recentemente no Brasil, mas também nos Estados Unidos e no Reino Unido para pôr termo a aventuras iliberais que colocaram seriamente em perigo as instituições democráticas. Se esses países não poderiam dar-se ao luxo de perder a estabilidade devido a fragilidades induzidas nas instituições, Cabo Verde muito menos. É preciso conter a tentação de correr para os extremos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1125 de 21 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 19, 2023

Campanha permanente desqualifica a democracia

 

Recorrentemente na comunicação social aparecem relatos de irregularidades e decisões tomadas no financiamento de projectos e obras com base em relatórios diversos feitos por entidades públicas de inspecção ou de fiscalização. Nas últimas duas semanas vieram à baila dados ligados à investigação de financiamentos do Fundo do Ambiente e do Fundo do Turismo verificados nos últimos anos. Imediatamente toda a esfera pública, incluindo a comunicação social e as redes sociais, ficou rubra de denúncias e contra denúncias dos actores políticos e de múltiplas manifestações de indignação de certos sectores da sociedade. Em momentos outros no passado-recente também relatos similares tinham envolvido fundos, municípios e associações comunitárias seguidos sempre do aumento de crispação política no país.

Tais relatos são alimentados por fontes de informação que, por razões várias, resolveram levar ao conhecimento público elementos da inspecção antes de oficialmente terem sido homologados. Razões essas que poderão incluir a percepção que há demora exagerada em se dar continuidade ao processo de inspecção desencadeado, ou que há bloqueio em se avançar com o mesmo. Também não é de se pôr de lado a vontade de denunciar por dever moral em casos que indiciem corrupção ou mesmo algum interesse subjectivo de natureza política. Em qualquer das circunstâncias o efeito das denúncias cresce proporcionalmente com a renitência das autoridades em reconhecer o processo em andamento e com o facto de não se ter agido com a celeridade necessária para melhorar as práticas e conter os estragos.

No caso presente, mais uma vez viram-se as consequências da falta de acção ou da falta de assunção pelo governo das suas responsabilidades em tempo próprio. Acusações mútuas são feitas em sucessivas conferências de imprensa e o tempo parlamentar é dominado no período das questões gerais ou de antes da ordem do dia por denúncias e suspeições que vão buscar ao passado que todos já tiveram a oportunidade de protagonizar considerando que já houve duas alternâncias nos trinta e dois anos de democracia. Infelizmente, ninguém fica realmente esclarecido quanto às irregularidades denunciadas e às entidades envolvidas e, pior ainda, não se fica em posição de avançar com reformas que previnem que situações similares não venham a acontecer no futuro. Aliás, na essência, o que se denuncia hoje faz parte de um déjà vu. Aconteceu antes e se não for alterado o que lhes é subjacente irá repetir-se no futuro.

Cabo Verde não é um país que apresenta altos níveis de corrupção. Entre 180 países situa-se na posição 35ª no ano 2022. Alguma corrupção que poderá ter é confirmada pela irregularidades e desvios que de tempos em tempos são trazidas a público por denúncias como as referidas ou por fuga de informação. A questão que se coloca é como combatê-la tendo em conta que se revela persistente em certas circunstâncias e formatos de intervenção pública. O facto de se ter tomado como sinónimo de governar e fazer política é estar em campanha eleitoral permanente criou uma necessidade premente de todas as forças políticas de manter e expandir o eleitorado favorável. E num país de precariedade e vulnerabilidades várias esse esforço, não poucas vezes, redunda na criação de relações de clientela e na exploração de dependências mais ou menos alimentadas por irregularidades e desvios.

A dificuldade em acabar com esse estado de coisas é porque se trata do modus operandi preferido. Condenaçâo dessas artimanhas surge apenas quando alguém ficou exposto e foi apanhado e é dirigida mais para desgastar o adversário do que para promover boas práticas e uma ética superior. Naturalmente que os alvos principais são quem no momento governa o país ou está à frente das câmaras municipais porque têm mais meios à disposição. Para as forças políticas que estão na oposição, outras táticas, designadamente a cooptação de organizações sociais e comunitárias, estão disponíveis na mesma linha de clientelismo e de reprodução de dependências. Por isso é que, na sequência das denúncias, ficam pelas farpas trocadas e pelos ganhos políticos directos ou os resultantes do desgaste do adversário.

Mesmo no parlamento, onde há mecanismos de fiscalização para esclarecer a Nação sobre o funcionamento dos fundos públicos, não se aproveita a oportunidade para convocar as comissões especializadas competentes e fazer audição dos gestores dos fundos e de outras partes envolventes nos projectos financiados, nem para se escrutinar as práticas existentes e questionar os ministros da tutela. Prefere-se ficar pelos exercícios de arremesso político em que se transformou muito daquilo que devia ser trabalho parlamentar construtivo, suportado por um contraditório salutar.

Deixa-se predominar a lógica da campanha permanente que faz dos deputados activistas que, ao invés de se dirigirem à plenária da Assembleia Nacional enquanto representantes da nação, como é próprio do exercício do mandato, se dizem portadores de recados e falam directamente para “os que estão lá em casa”. E sem esquecer dos que optam por estar na “plataforma”, como se fosse admissível participar nos trabalhos parlamentares fora do plenário e até votar quando o voto deve ser sempre presencial porque só assim é que o presidente e a mesa da assembleia nacional podem garantir que o deputado está a exercer livremente o seu mandato.

A democracia prevê mandatos eleitos e uma maioria para governar com vista ao interesse geral por tempo determinado ao fim do qual se presta contas ao eleitorado. Transformar o tempo de mandato em campanha eleitoral permanente e usar recursos públicos para garantir um eleitorado leal diminui extraordinariamente a qualidade da democracia. Vê-se pelos repetidos casos de denúncias de irregularidades e desvios de fundos nas sucessivas legislaturas que é ao nível local e comunitário que mais as tropelias acontecem.

A fragilidade das instituições de controlo, a tendência para o caciquismo local e a cumplicidade das autoridades centrais conjugam-se para viabilizar a campanha permanente. Mas a sua manutenção nas mais variadas formas depende da cumplicidade do governo em manter parados casos em fase avançada de investigação. Também conta com a omissão de outros poderes, a começar pelo parlamento, que prescinde de competência própria em sede de fiscalização do governo e da administração do Estado para pôr cobro a práticas que põem em causa a prossecução do interesse geral.

Accountability significa que é-se responsável a todo o tempo perante todo o povo e não em relação a uma parte que pode vir a ser potencial eleitorado. As normas e os procedimentos em todo o funcionamento do Estado e da sua administração central e local existem para garantir que assim seja. Com a instituição da campanha eleitoral permanente essa garantia é uma pura quimera. Até se conseguir ultrapassar este “consenso” quanto ao que significa governar e fazer política vai-se ter que aguentar com as denúncias periódicas, a gritaria que se segue e a paz morna que perdura até à erupção seguinte.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1124 de 14 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 12, 2023

Arrancou a nova temporada política

 É perceptível para todos que o tempo político mudou. A postura e a acção diária política das forças políticas das câmaras municipais, dos grupos parlamentares e do governo já prenunciam o início do novo ciclo político.

As próximas eleições autárquicas deverão realizar-se daqui a 15 meses no último trimestre de 2024, mas as preparações para a pré-campanha já estão em andamento. Ainda não se passaram dois anos que terminou o último ciclo eleitoral com as eleições presidenciais de Outubro de 2021 e o país já se mobiliza para embates político-partidários focados na alternância nos órgãos autárquicos e no governo.

O problema com esse antecipar da luta pelo poder é a tendência geral para se extremar posições e diminuir as possibilidades de negociações, compromissos e acordos. Com isso fica difícil chegar a consensos sobre questões fundamentais e fazer as reformas urgentes de adaptação ao mundo precisamente quando este está a sofrer convulsões geopolíticas de grande envergadura postas em marcha pela invasão da Ucrânia. E, em simultâneo, alterações profundas, movidas pela rivalidade estratégica entre os Estados Unidos da América e a China, notam-se no mapa das relações económicas no mundo, à medida que países assumem novos papéis e novas vocações e se reconstituem cadeias de valor e redes de abastecimento ao nível global.

Já se tinham desperdiçados os anos de crises múltiplas (secas sucessivas, covid-19, a alta inflação sobre o preço dos combustíveis e dos produtos alimentares e a guerra na Ucrânia) para se repensar o país e criar vontade necessária para o posicionar no mundo actual que claramente se anunciava mais complexo e exigente. A acalmia pós-ciclo eleitoral 2020/21 não serviu para ensaiar uma mudança de atitude porque continuou-se fiel ao que se convencionou como fazer política em Cabo Verde que é de manter o país em permanente campanha eleitoral. A polarização que daí resulta, acompanhada da crispação constante entre as forças políticas e entre as câmaras municipais e o governo não deixa muito espaço para a sociedade participar sem que seja tolhida na sua autonomia e os indivíduos intervirem sem serem rotulados e identificados como partes na luta política em curso.

O resultado é que só se vê e se ouve falar é de visitas incessantes de governantes, de deputados, de presidentes de câmara e dirigentes locais e nacionais dos partidos políticos por todos os pontos do país. Também se concentra nas queixas de abandono, de discriminação e não cumprimento de promessas eleitorais. Não faltam ainda acusações e suspeições de corrupção dirigidas a instituições e personalidades ao nível local e governamental e manifestações de frustração e mesmo de ressentimento vindas das populações e das organizações da sociedade civil. O nível de ruído na esfera pública, amplificado pela comunicação social e cada vez mais ainda pelas redes sociais, acaba por inviabilizar qualquer possibilidade de diálogo que se podia ter em relação ao futuro na actual conjuntura mundial em que mudanças estruturais se anunciam, algumas facilidades desapareceram, desafios vários se colocam, incertezas são muitas e não faltam imprevistos.

Os temas são recorrentes, mas como se pode constatar nas últimas semanas, actualmente incidem sobre os transportes marítimos, aéreos, segurança e criminalidade e o sistema de saúde. Seja qual for a matéria da qual se supõe que num dado momento se pode extrair maior capital político ou servir de arma de arremesso, a verdade é que não há debate sério. Há mais pose e postura política e também oportunidade de expor o adversário político. Não há o aprofundar de questões, desde logo para não afrontar interesses instalados, corporativos ou outros, e em muitos casos nota-se uma espécie de cumplicidade cruzada em não trazer elementos que podiam clarificar a situação e até mesmo resolvê-la, ou ultrapassá-la. O problema é que muitas vezes pôr as coisas na devida perspectiva e sem receio de revelar todas as suas componentes retiraria razões para se manter a crispação que afinal todos têm interesse em perpetuar.

Assiste-se repetidamente a confrontos que não acontecem porque se está a bater por uma ideia ou por um objectivo. É mais para saber quem está de um lado e quem pode ser apontado como adversário ou até como inimigo. A necessidade de afirmação ideológica e/ou identitária e de expor o outro sobrepõe-se a um eventual interesse em resolver uma questão ou mesmo de se criar uma oportunidade para a demonstração de convergência numa questão vital para a comunidade ou para o país. Chegado a esse ponto, a política deixa de ser a forma privilegiada para se identificar, equacionar e encontrar as melhores soluções para os problemas da sociedade para se tornar um simples jogo de conquistar o poder de um grupo.

Segue-se naturalmente a descredibilização da política, das instituições democráticas e dos partidos que cada vez mais são tidos como organizações onde o ideal de servir o país conjugado com uma visão e um projecto político foi substituído pela ambição pura de poder. O espectáculo das lutas intrapartidárias ao longo das quais se nota crescentemente a importância das demonstrações de submissão ao líder em detrimento de quaisquer outros critérios, designadamente de competência, é desanimador. Se uma organização partidária não consegue reunir no seu seio os melhores para pensar o país, para desenvolver estratégias de intervenção e para agir com competência política na sua implementação, um impasse no desenvolvimento pode instalar-se. Mesmo que haja possibilidade de alternância no governo, pode não existir alternativas políticas reais capazes de corrigir erros e mudar o rumo do país.

A pobreza do debate político a que se assiste todos os dias e em que se substituem argumentos válidos, esclarecedores e construtivos por propaganda e ataques virulentos dirigidos aos adversários indicia bem o estado dos partidos que nos seus congressos e convenções já não discutem ideias \e estratégias. Ficam simplesmente pela proclamação do Chefe. Nestas circunstâncias abrir a “temporada” para o novo ciclo eleitoral significa apenas que o processo para cada um se colocar em melhor posição no novo ciclo vai acelerar. Entretanto, qualquer discussão séria sobre o futuro do país será adiada.

Num livro recentemente publicado “Fim dos tempos: elites, contra-elites e o caminho para a desintegração política” o antropólogo Peter Turchin diz que historicamente de entre todas as causas de crise política grave nas sociedades humanas destaca-se em primeiro lugar a que conjuga o empobrecimento das populações com o número reduzido de posições de elite em relação ao número dos que aspiram a chegar ao poder. A luta virulenta que se instala para a conquista desses lugares pode ser devastadora. Para a evitar há que honesta e realisticamente pensar e servir o país de modo a criar riqueza que permita reverter o empobrecimento e criar oportunidades outras, que não exclusivamente cargos políticos, para os que aspiram a notabilizar-se na sociedade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1123 de 7 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 05, 2023

Sintomas de um mesmo mal social

 

A questão energética é um dos mais importantes desafios que se colocam a Cabo Verde neste momento. E é assim tanto ao nível da sua sustentabilidade como também da criação de condições para se proceder à transição energética. Uma mudança que se impõe hoje a todos os países por variadíssimas razões entre as quais o potencial catastrófico das alterações climáticas em curso. Em Cabo Verde a transição para as energias renováveis já devia estar num estado muito mais avançado. Infelizmente não está. Tem um sector energético altamente deficitário, perdas horrendas por roubo de energia em particular na Praia e ineficiências outras por falta de investimentos designadamente na rede pública.

A condição de país arquipelágico, remoto e a sofrer durante séculos as agruras de um clima hostil e imprevisível devia ter sido incentivo suficiente para uma actuação estratégica dos sucessivos governos no sentido de uso criativo das tecnologias existentes e desenvolvimento das melhores práticas de eficiência energética e de mobilização, produção e utilização da água. De facto, há muito que deviam ter sido feitas as apostas certas para responder aos desafios que Cabo Verde sempre enfrentou e que tendencialmente são similares aos que muitos outros países passaram a enfrentar actualmente.

Se essa tivesse sido a via escolhida, hoje o conhecimento e as competências adquiridos e os serviços criados podiam constituir vantagem no intercâmbio com os outros países, com ganhos para Cabo Verde. Não se estaria a debater com a possibilidade de não se puder fazer com sustentabilidade a transição energética em caso de não se resolver os casos de perdas, de roubo de energia e de actuação criminal de forma organizada no sector, como foi sublinhado em dois momentos na comunicação social pelo ministro da indústria, comércio e energia e pelo PCA da Electra.

Devia pesar sobre a necessidade de políticas consistentes e de uma visão mais larga no sector um factor de urgência que é a questão do custo dos factores energia e água na actividade económica e do seu impacto na competitividade do país. O facto de se pagar preços de energia dos mais altos do mundo não foi, porém, suficiente incentivo para se focar na resolução de um problema central da economia que levado a bom porto implicaria a exploração de recursos em energias renováveis abundantes no país. Deixou-se, pelo contrário, que ineficiências aumentassem progressivamente e atingissem valores de cerca de 114 Gigawatts-hora em perdas de energia correspondente a 24,6% da produção nacional. Para isso terá contribuído a falta de um plano de investimento consistente na produção e na rede de transporte e distribuição acompanhado de dificuldades de cobrança e acções deliberadas de roubo de energia para venda e para consumo.

A complicar as coisas veio uma outra constatação. Ao reconhecer que as perdas maiores verificam-se na Praia e na ilha de Santiago (34,5%) e que os prejuízos nos resultados globais da empresa situam-se na Electra Sul, não obstante as várias equipas de fiscalização organizadas para tentar combater os problemas de roubo e fraude, acabou-se por chamar a atenção para situação social grave que se vive na ilha e na capital. De facto, há por um lado um problema da autoridade do Estado em que mesmo com leis punitivas não se consegue impedir nem dissuadir o roubo de energia. Por outro lado, como é reconhecido pela Electra, não se rouba energia só por falta de rendimento ou por falha da empresa em estabelecer ligações, mas também como acto deliberado de pessoas com rendimento e estatuto social e de unidades produtivas com grande consumo de energia.

Como diz o PCA da Electra “é um crime cada vez mais organizado, as pessoas estão a revender energia roubada, é um crime que lesa não só a ELECTRA, mas toda a economia. Temos operadores económicos, padarias, hotéis, empresas de frio, temos a classe média em Palmarejo”. Aparentemente nesses casos os mecanismos de pressão e dissuasão social não parecem funcionar. Não se nota qualquer sanção para quem assim se comporta, sobrecarregando todos os consumidores com tarifas mais altas por incorporarem as perdas na rede pública. Mas quando se conjuga essa constatação com a percepção de ausência de autoridade, traduzida numa presença menos perceptível da polícia, no aumento de actividades não licenciadas e mesmo ilegais ou clandestinas na frente de todos, começa a indiciar uma degenerescência social e cívica que acaba por manifestar-se de várias formas.

Entre outras consequências, afecta as relações interpessoais ao minar a confiança, potencia o uso de violência na resolução dos problemas, incentiva a criação de pequenas comunidades ou gangs onde particularmente os mais novos procuram obter um sentimento de pertença e abre caminho para delinquência aberta e violenta. A presença de ilícitos perigosos como drogas “pesadas” e o acesso a armas de fogo podem tornar explosiva um ambiente desses. Os vários surtos de crime no país e em particular na capital e os exemplos de criminalidade violenta que já se estão a espalhar também para outras ilhas deviam ser vistos como sinais de alerta para uma situação social que só tende a piorar, afectando tudo e todos. O que se pode já notar é que tem o potencial de tirar tranquilidade às pessoas, mexer com a economia, afastar turismo e investidores, aumentar custos em particular com a segurança e os serviços de saúde e afectar os jovens no seu crescimento e desempenho escolar.

Por isso mesmo ninguém devia procurar alhear-se do que está a passar. A extrema violência nos assaltos e o roubo descarado de energia denunciado pela Electra são sintomas claros do mesmo mal social que grassa pelo país. É uma realidade que interpela a todos e que para ser ultrapassada deverá exigir a mobilização da sociedade e um esforço concertado para se manter o país unido à volta de um sistema de valores consensual, inspirado na Constituição da República, e de uma visão compreensiva do futuro que potencie os recursos do país e as oportunidades emergentes. Em causa está o próprio futuro do país e a sua capacidade de vencer perante a adversidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1122 de 31 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 29, 2023

Renovar a esperança

 O governo escolheu fazer um balanço de dois anos de governação neste que é o seu segundo mandato na liderança do país. A data coincide grosso modo com a declaração do fim da emergência mundial criada pela covid-19 e com a recuperação da economia para os níveis de 2019. O Primeiro-ministro na sua alocução ao país fez questão de proclamar que “Salvamos vidas. Protegemos empregos, rendimentos e empresas. Investimos na recuperação e na retoma económica”. O tom quase propagandístico das mensagens, com enfase na auto-glorificação pelo conseguido, acaba por ser uma espada de dois gumes.

Se por um lado promete vantagem ao governo numa perspectiva de ganho político-eleitoral, por outro abre caminho para reivindicações de vários sectores da sociedade e em particular as populações mais vulneráveis que também querem ser compensados pelos sacrifícios, rendimentos e oportunidades perdidas. As críticas da oposição, em resposta, além de disputar o mérito e a qualidade das soluções encontradas pelo governo, procuram canalizar as reivindicações das populações, amplificá-las e exigir que sejam cumpridas imediatamente. E justificam dizendo que se o país está a crescer em média 12% ao ano, como proclama o governo, então que os efeitos desse crescimento sejam sentidos por todos de forma equitativa.

É mais um debate em que uns e outros não se ouvem e não há acordo praticamente sobre nada. O resultado é que dificilmente se vai manter a perspectiva real do que foram realmente estes anos de crises sucessivas e interligadas e o quanto é que se está longe de as ultrapassar. Tão cedo não se vai ter noção dos estragos permanentes causados ao nível pessoal e familiar, em termos designadamente de rendimento nas escolas, carreiras profissionais e saúde mental, mas também social ao nível da coesão nas comunidades, postura cívica e sentido de pertença. As erupções de violência, o uso de armas de fogo a atracção dos gangs sobre os mais jovens continuarão a pôr a sociedade em sobressalto sem que se chegue a acordo sobre como lidar com esses fenómenos.

Enquanto o discurso público for dominado pelo tipo de irrealismo quanto aos objectivos e aos meios que se vê, por exemplo, na abordagem de problemas como a produção agrícola, os transportes aéreos e marítimos e a luta contra a pobreza dificilmente vai-se deixar de cometer os mesmíssimos erros do passado. Para o governo, que faz o balanço com triunfalismos, positividade e good vibes, e para oposição, que sobe a fasquia nas reivindicações sem preocupação com os custos, tudo aparentemente se resume a ir empurrando o país com a barriga. A diferença numa avaliação futura é que as frustrações serão maiores porque as expectativas foram elevadas a outro patamar, os custos maiores porque, com sucessivos fracassos ou ineficiências várias, as dívidas acumularam-se, as instituições e a própria democracia fragilizaram-se porque se mostram incapazes de inflectir o processo de perda de credibilidade.

Não é de hoje que se procura apostar na agricultura com mobilização de água e agronegócios, ou se procura abrir voos da TACV para se ligar à diáspora e desenvolver um hub aéreo e se implementam programas de luta contra a pobreza. Fez-se no passado várias vezes e os resultados são de todos conhecidos em termos de empobrecimento progressivo do meio rural acompanhado de perda de população, aumento da dívida pública e crescimento da pobreza extrema nas cinturas urbanas. Agora promete-se fazer basicamente o mesmo num futuro próximo com água dessalinizada, com mais aviões e barcos, com empreendedorismo massificado e pensão social mais abrangente e espera-se que os resultados sejam diferentes. Caso para perguntar se a definição de insanidade atribuída a Albert Einstein se vai aplicar.

Winston Churchill num momento difícil da II Guerra Mundial teria dito que nunca se deve deixar uma boa crise ser desperdiçada. Infelizmente não foi só uma crise, mas várias crises que Cabo Verde deixou desperdiçar. O que já vinha acontecendo desde de 2017 com as secas sucessivas juntou-se em 2020 uma crise pandémica sem precedentes que, pelo enorme impacto global e local que teve, podia ser a grande oportunidade para o país repensar as suas opções, rever a sua forma de fazer política e mudar a atitude. Passou ao lado.

A generosidade do resto do mundo que se seguiu na forma de ajuda financeira, vacinas e equipamentos, ao tranquilizar os espíritos, retirou motivação para mudar. Em acréscimo, ao reforçar o papel já tradicional do Estado na reciclagem da ajuda externa, com o seu efeito concomitante de reproduzir o espírito de dependência que favorece esquemas de poder em detrimento da autonomia e iniciativa da sociedade e das pessoas, acabou por inibir ainda mais a vontade de fazer diferente. Não estranha que depois que a policrise se complicou com o aumento da inflação, a invasão da Ucrânia e o aumento brusco dos preços de alimentos e combustíveis ainda não se notam na sociedade indícios de debate sobre a nova realidade global. Um dia, porém, o país terá que repensar o seu futuro num mundo que claramente está em mudanças profundas tanto em termos geopolíticos como económicos.

Os foguetes lançados no balanço dos dois anos e as críticas azedas da oposição acontecem num ambiente que ainda se espera pela bonança prometida nos projectos de mudança climática, transição energética, digitalização e economia azul para que, no essencial, tudo se mantenha igual. E como até agora aconteceu, ficam adiados os esforços no sentido de revigorar o espírito de solidariedade que o país tanto precisa para diminuir a crispação política, aumentar a confiança interpessoal e reforçar a credibilidade das instituições.

Um bom passo em frente seria deixar de lado o optimismo, a positividade e good vibes de quem simplesmente acredita que as coisas vão dar certo, crença essa que pode resvalar para o irrealismo. Em troca, cultivar a esperança que parte da convicção de que com os pés bem ficados na terra se pode agir de forma estratégica e solidária para assegurar que se vai atingir os objectivos desejados com ganhos para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1121 de 24 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 22, 2023

Polarização que dificulta o avanço do país

 

Polarização política, confrontos partidários estéreis e falta de consenso em questões-chave da vida dos países têm sido cada vez mais vistos como sinais de grave crise da generalidade das democracias.

O debate político, crescentemente sequestrado por questões mais próximas das identidades partidárias do que da substância das políticas públicas, ajuda a vincar a ideia que “tudo é política” e que com tudo se pode fazer política. No ambiente assim criado em que sentimentos tendem a prevalecer sobre os factos dificilmente se consegue esquivar do rótulo de pertencer a uma facção ou outra. A grande habilidade é sempre encontrar temas que alimentam essa polarização reforçando o sentido de pertença de uns e identificando outros como adversários ou inimigos.

Claro que não se pode manter uma situação dessas sem que haja custos para a qualidade da vida política e para o nível de participação da sociedade civil na discussão das grandes questões do país. Há ainda um outro custo importante que são as instituições que ficam resistentes a reformas e cativas de interesses que se revêem e se legitimam nas questões fracturantes. De qualquer forma, o que se nota é que, a par da polarização que empobrece a vida política e enfraquece a vontade de encontrar soluções para um presente e futuro diferentes, há o frequente retorno a questiúnculas que sempre que invocadas reforçam a marca ideológica de uns em contraposição a outros.

Um exemplo recente desses retornos que amiudamente acontecem na democracia cabo-verdiana é a controvérsia à volta da iniciativa diplomática do governo junto de Marrocos. Pelas reacções nos media e nas redes sociais percebe-se que foi uma oportunidade para vincar credenciais de “libertadores”, supostos defensores do princípio de autodeterminação e independência, versus os “outros” “ligados a outros interesses”. Era a polarização a trabalhar com o seu motor de sempre. Pareceu não interessar que o governo anterior procurou normalizar a relação com Marrocos, a exemplo da maioria dos países africanos e da própria União Africana (2007),  deixando congelada a questão do Saara Ocidental. Também se esquece que em matéria do direito dos povos há quem não pode ser exemplo porque quando devia ser a vez de Cabo Verde de exercer o seu direito à autodeterminação, no pós-25 de Abril de 1974, a palavra de ordem era “Não ao referendo, independência já, mas com o PAIGC”.

No mesmo sentido convergem outros momentos como os que se seguiram à discussão e aprovação do SOFA, o acórdão favorável do Tribunal Constitucional e a sua ratificação pelo presidente da república. Deixa-se no ar que interesses do país poderão não estar a ser servidos pelo governo acompanhado de um quê de antiamericanismo que cola bem com roupagens de anti-imperialismo do passado. Mais uma vez a tentação do reforço das credenciais ideológicas se sobrepõe. Não se vê qualquer contradição com posições de governo anterior que autorizou exercícios da NATO em Junho/Julho de 2006, celebrou SOFAs com a NATO e a Espanha, recebeu ex-prisioneiros do Guantánamo em 2010 e assinou acordo de parceria militar com os Estados Unidos em 2015.

Aparentemente nessa investida não é de exigir coerência governativa. Veja-se, por exemplo, a politica de reaproximação da África e a recomendação recente de estimular o desenvolvimento da cooperação com os países vizinhos. Depois de quase cinquenta anos após a independência não se vê alterações na estrutura das relações comerciais que poderiam sugerir que houve progresso significativo e nem se vê sinais que poderá haver avanços no futuro próximo. A opção pela África, porém, continua não como parte de uma estratégia governativa de desenvolvimento, mas para se manter uma identidade ideológica que dá fundamento à polarização política mesmo que os interesses do país não sejam realmente bem servidos no processo.

Num outro sentido, a reafricanização dos espíritos que também sustenta a polarização encontrou, na suposta defesa do crioulo, um terreno propício para os autênticos e os resistentes se demarcarem dos outros eventualmente lusotropicalistas, macaronésios ou simplesmente duvidosos. A verdade é que todos os cabo-verdianos falam o crioulo e não há perigo de nenhuma criança deixar de aprender a sua língua materna. Não obstante isso, e o facto de ao mais nível do Estado os titulares dos órgãos de soberania se expressarem em crioulo, criou-se a ideia que ela é desprestigiada e secundarizada. O objectivo aí é claro de mobilizar paixões supostamente para a causa da oficialização quando já existe desde 1999 a directiva constitucional para se criar as condições para estar em paridade com o português, a começar pela padronização enquanto língua formal e escrita. Curiosamente nem um jornal se procurou criar para habituar as pessoas a ler em crioulo como acontece em Aruba e Curaçau.

Os custos da polarização que certos sectores se empenham em reproduzir acabam por atingir as instituições do país com consequências nem sempre visíveis ou previsíveis. No caso do projecto lei sobre a língua portuguesa, apresentado na Assembleia Nacional, viu-se um ministro e um instituto público a extravasar as suas competências num confronto com uma maioria de votos de deputados a favor mesmo que insuficiente para passar a lei. A efectiva estatização da cultura claramente reconhecida no preâmbulo do regime jurídico do património cultural, mas não assumidamente extirpada das competências da instituição, representa de facto o entrincheiramento da política de reafricanização dos espíritos. Uma política que vem do regime de Partido Único e que se mantém imperturbável na democracia na qual o Estado, constitucionalmente, está impedido de impor correntes estéticas, ideológicas e filosóficas ao país e aos cidadãos. Desse choque entre dois sistemas de valores vem muito da paixão, do ressentimento e da nostalgia que alimenta a polarização política e cultural que dificulta o avanço do país.

Há dias, e a propósito da tragédia na Serra de Malagueta em que morreram oito militares num acidente de viação, algumas vozes, algumas delas surpreendentes por que já tinham ocupado posições ministeriais no sector, fizeram-se ouvir a pedir um debate alargado sobre o papel das forças armadas, a necessidade do serviço militar obrigatório e as missões que deve ou pode desempenhar. Realmente há muito que isso devia ter sido feito. Em primeiro lugar porque sendo Cabo Verde um país arquipélago de 10 ilhas e ilhéus as suas forças militares deviam ser concebidas de forma a responderam às ameaças e emergências e desafios que se colocam a um país insular. Não foi o que aconteceu porque se quis que as forçar armadas reproduzissem uma cultura de uma luta de libertação em que nunca participou e tivesse como objectivo principal a segurança interna do regime.

Em consequência, mesmo no período democrático, a polarização política serviu para assegurar que reformas de fundo, mais consentâneas com a natureza dos constrangimentos e ameaças do país, não fossem levadas adiante. Muito menos qualquer debate na transformação das forças armadas que tirasse os comandantes dos seus pedestais e mexesse com as suas datas revolucionárias. Os custos estão à vista de todos, mas mesmo quando se propõe debate, da forma enviesada com que é colocada, fica no ar a ideia que, de facto, o que se quer manter é a tensão que permite que a polarização se perpetue. Ou seja, quer-se, parafraseando Giuseppe de Lampedusa, que se dê sinais de mudança para que tudo fique na mesma. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1120 de 17 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 15, 2023

Disputa de protagonismo

 

Em declarações à imprensa o presidente da república José Maria Neves disse que espera que, ao que chamou de “disputa de protagonismo” entre o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, não faça escola em Cabo Verde. Pelas declarações que fez a seguir, a propósito de fundos para apoiar jornalistas e órgãos de comunicação social na cobertura de visitas presidenciais e do governo, fica-se com forte impressão de que aqui também já há essa disputa.

Nota-se em matérias aparentemente menores discutidas na praça pública como recursos orçamentais alocados aos órgãos de soberania e a propósito de verbas para viagens, mas também nas políticas governativas que até foram foco das mensagens presidenciais dirigidas ao país. O tom não é muito diferente do que é usado noutros debates políticos no país em que as teclas tocadas são as usuais de discriminação, exclusão e vitimização.

Em Portugal, a disputa atingiu um ponto clarificador quando a sugestão pública do PR para o PM demitir um ministro foi também expressa e publicamente negada. Na sequência o PR acabou por não avançar com “a bomba atómica” da dissolução do parlamento que só se justificaria com um não normal funcionamento das instituições e, por outro lado, o país ficou a par da uma vontade mais firme e explícita do PM de pôr travão à ingerência presidencial em matérias da governação. Não obstante as promessas do PR em manter com rédea curta o governo, a verdade é que toda a ideia da magistratura de influência até agora exercida, provavelmente terá que ser reformulada. Há quem diga que praticamente acabou quando, por disputas de protagonismo, o que antes era dito, sugerido ou recusado no recato dos encontros do PR e do PM já não têm a mesma receptividade de ambas partes.

Diz-se muitas vezes que em sistemas de governo nos quais o presidente da república é eleito directamente por sufrágio universal, mas não governa e o governo que ele nomeia só é politicamente responsável perante o parlamento, a relação entre o PR e o PM é de geometria variável. A existência de uma maioria absoluta a apoiar o governo limita o poder de influenciação do PR enquanto governos minoritários e mesmo coligações mais ou menos frágeis abrem outras possibilidades de intervenção e protagonismo presidencial. A disputa em Portugal nos termos em que se verificou, aconteceu praticamente após um ano de governo maioritário depois de seis anos de governos minoritários. O mais normal é que mais tarde ou mais cedo houvesse um momento de choque seguido de reajuste.

Em Cabo Verde onde sempre houve governos maioritários seria de esperar que as bases da relação entre os dois órgãos de soberania já estivessem normalizadas. Na ausência de governos minoritários e sem os, quase livres, poderes de dissolução do parlamento e de demissão do governo que o PR português detém, o mais normal é que em Cabo Verde se tivesse refinado essa magistratura discreta, mas eficaz que daria para melhores relações entre os dois órgãos de soberania. Mesmo a coexistência de presidente da república e de governo oriundos de diferentes origens partidárias até agora não se tinha mostrado propício para tensões fora do ordinário. A disputa de protagonismo actual sai do padrão talvez porque equilíbrios foram percepcionados como tendo sido rompidos devido a sucessivas crises que afligiram o país e novas realidades políticas, económicas e sociais que se impuseram.

De facto, outras razões para além das normais tensões dos órgãos de soberania poderão estar a alimentar as disputas de protagonismo tendo em conta os seus efeitos nas confrontações eleitorais futuras. Em Portugal, a perspectiva da chamada bazuca financeira, ou seja, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) permitiu ao presidente da república justificar mesmo no novo quadro de um governo maioritário um seguimento de perto das políticas da governação na base que é fundamental para o país aplicar bem os fundos comunitários. É convicção geral que do bom uso que se fizer dos investimentos do PRR dependerá a possibilidade de Portugal inflectir a actual tendência do país de continuar a ser ultrapassado pelos novos membros da União Europeia e criar as bases da prosperidade futura. Com o PR a predispor-se para garantir que isso será feito já joga um importante papel político para os sectores de opinião que consideram que o actual governo não é dado a reformas de fundo e é mais virado para políticas com foco principal em manter uma base social de apoio ao poder actual e ganhar eleições.

Em Cabo Verde, a disputa já não está tanto a traduzir visões diferentes do futuro do país, mas antes os interesses de sectores distintos de uma classe política que já toda ela parece ter assumido como estratégia de desenvolvimento algo que não se distingue muito da agenda das Nações Unidas e das organizações multilaterais. O mais normal seria que houvesse a maior tranquilidade na relação entre os dois órgãos de soberania considerando que o actual PR está num primeiro mandato e lida com um governo maioritário. As coisas mudam quando, em momentos cruciais como eleição da Mesa da Assembleia Nacional, aprovação do Programa do Governo e Orçamento do Estado, o governo sinaliza fragilidades na sua maioria parlamentar.

Perante isso, o PR envolve-se em contactos com os partidos para garantir estabilidade e aprovação de instrumentos fundamentais como o Orçamento do Estado (2021) e ganha um protagonismo inesperado. Mas, como foi primeiro-ministro durante quinze anos e deixou de o ser há pouco mais de seis anos, qualquer protagonismo crítico mais pronunciado, particularmente incindindo sobre políticas governativas, imediatamente são tomadas como críticas que só poderiam vir da oposição. Daí é um passo para o PR ser visto como chefe da oposição tanto pelo partido no governo como também pela própria oposição partidária que acaba por sincronizar as suas intervenções no parlamento e na comunicação social com os seus pronunciamentos.

A disputa de protagonismo não só vai fazer escola como já cá está e com tonalidades complicadas porque, ao se tomar o PR como chefe da oposição, esvazia-se no processo o papel central de árbitro e moderador do sistema político e perdem-se as vantagens que podiam advir de uma magistratura de influência exercida por uma presidência suprapartidária. Mais complicado fica o sistema político que já vem sofrendo das ineficiências criadas pelas disputas de protagonismo entre o governo e as câmaras municipais e que agora se vê juntar a disputa com o presidente da república.

Quando o país precisa focar para fazer face a sucessivas crises e sabe-se que existem riscos expressivos que podem travar a recuperação, como deixou bem claro a última missão do FMI, é fundamental que todos compreendam que o mandato que receberam nas eleições democráticas é para servir o povo e o país e não para se servirem. Ninguém quer continuar a assistir à exibição de egos e ao cortejo de vaidades em que muito da vida política no país se transformou. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1119 de 10 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 08, 2023

Pela liberdade de imprensa

 

Comemora-se, hoje, 3 de Maio, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, uma data que deve focar a atenção de todos no que há de mais essencial para se garantir liberdade e democracia. Ter essa garantia significa que, como disse James Madison, “o povo não será privado ou abreviado de seu direito de falar ou publicar seus sentimentos” e que não será coarctada “a liberdade de criticar e se opor ao governo”, como bem lembrou George Orwell.

Também significa estar-se ciente, na linha de Albert Camus, que “a imprensa livre pode ser boa ou má, mas que sem liberdade não será outra coisa senão má” e que, por isso há que, a exemplo de Alexis de Tocqueville, “a amar por consideração aos males que ela evita muito mais do que pelo bem que faz”.

Cabo Verde actualmente na posição 36 entre 188 países no ranking (2022) dos Repórteres sem Fronteiras (RSF) é, segundo aquela organização, um país onde os profissionais do jornalismo podem exercer livremente, mas que a autocensura é generalizada. A contradição é explicada pela posição hegemónica dos órgãos do sector público no cômputo geral da comunicação social, pelo seu peso excessivo sobre o mercado publicitário e pelas vantagens que oferece na contratação de jornalistas. Acresce-se ainda “uma cultura de sigilo e as restrições do Estado no acesso a informações do interesse público.

O fenómeno da autocensura tem sido identificado pelos RFS ao longo de décadas e nos diferentes governos, não desaparecendo com a alternância dos partidos no poder. Provavelmente será mais complexo do que parece e poderá estar a revelar um fenómeno mais geral marcado pela fragilidade da sociedade civil, por uma cultura de dependência, pela falta pensamento crítico e autónomo e por uma relação com a verdade e a realidade dos factos baseada na conveniência do momento. Ou talvez traduza o medo colectivo reminiscente de um medo de outrora, mas que perdura, de, parafraseando John Kennedy, deixar o povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto de ideias, privilegiando pelo contrário narrativas ideológicas polarizantes da sociedade e promovendo tabus.

O ambiente de crispação não só política como institucional e cultural que daí resulta serve como forte inibidor da busca pela verdade que a liberdade de expressão, de informar e de imprensa devia proporcionar. Nos debates na esfera pública nota-se como as partes se quedam nas suas posições rígidas, ou como negam factos evidentes ou, de forma aparentemente contraditória, como às vezes são cúmplices na secundarização ou mesmo na ocultação de elementos que poderiam clarificar uma situação. Prefere-se eternizar o conflito colocando a identificação e lealdade partidária à frente do interesse público. E para preencher ou explicar o que não é dito, especula-se quanto aos interesses em jogo e insinua-se que há corrupção.

Não é de estranhar que os profissionais da comunicação social como, aliás, os servidores públicos, académicos e grupos de interesses empresariais, profissionais e outros vejam um tal ambiente quase como um campo minado que se deve atravessar com muito cuidado. Compreende-se assim por que a autocensura não acontece apenas entre os jornalistas e por que paralelamente o stock de cinismo na comunidade cresce e a confiança nas pessoas e nas instituições cai na mesma proporção. As declarações da presidente da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC), que atribuiu a um “conflito que que opôs os órgãos e jornalistas ao poder judicial” a queda de Cabo Verde, em 2022, de 9 pontos no ranking da Liberdade de Imprensa dos Repórteres sem Fronteiras, podem ser interpretadas como um alerta contra esse estado de coisas.

A reacção do Procurador Geral da República (PGR) foi considerar inadmissível a posição da ARC, um órgão colegial eleito por uma maioria qualificada de dois terços dos deputados e que tem, como uma das suas competências constitucionalmente estabelecidas, garantir o direito à informação e à liberdade de imprensa. Alguma cortesia institucional deveria ser esperada na interacção entre os dois órgãos públicos. É verdade que ninguém está acima da Lei e que o Ministério Público deve ter todas as condições para investigar crimes e esclarecer situações que causam apreensão e angústia na opinião pública. Difícil fica porém compreender que da investigação de um caso de morte de um indivíduo, crivado de balas segundo o PGR numa entrevista à TCV no dia 2 de Fevereiro de 2022 num encontro com forças policiais, só terminada oito anos depois, se tenha concluído pelo arquivamento do processo por se ter encontrado “prova bastante” de legítima defesa enquanto jornalistas e órgãos de comunicação são constituídos arguidos por “desobediência qualificada” por terem trazido o caso à ribalta depois de tantos anos.

Casos de violência aparentemente desproporcional envolvendo polícias e cidadãos são motivo de preocupação em todo o mundo. O caso de George Floyd e de outros similares envolvendo inocentes, mas também alegados criminosos quando vêm a público, na maior parte das vezes por espectadores ou investigação jornalística, obrigam a resposta rápida das autoridades para tranquilizar a opinião pública e reforçar a confiança da população que a polícia procura sempre agir com sentido de proporcionalidade. Suspendem os policiais envolvidos, fazem inquéritos internos, pedem auditoria externa em certos casos, informam o público das conclusões e das medidas para melhorar práticas. Também há casos que vão para os tribunais e daí resultam absolvições, mas também condenações.

Não se pode é deixar arrastar situações do género por anos seguidos sem qualquer informação, sem sinais de medidas tomadas para mudar práticas e sem assunção de responsabilidade. Mostra que o Estado de Direito funciona sempre que vem a público situações que também causaram apreensão na opinião pública como foi o caso do polícia morto alegadamente pelo colega que já foi julgado, mas, de acordo com o Santiago Magazine, vai-se repetir o julgamento na primeira instância. Ter-se-ia, segundo o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, cometido um erro notório na análise das provas. É reconfortante ver o sistema a funcionar independentemente dos resultados.

Mas quando não funciona ou se mostra autista é fundamental que a comunicação social e seus profissionais sejam ousados e não se deixem amarrar pela autocensura, nem por receio de acções judiciais. Sabe-se que a Liberdade de expressão e de informação é a rainha das liberdades, mas não é absoluta. Aos tribunais cabe fazer caso a caso a devida ponderação dos vários direitos. A liberdade de imprensa é prejudicada sempre que há a percepção de que se está a agir enviesadamente em relação ao mensageiro quando, no que respeita à mensagem, não se mostra urgência em que ela chegue, clara e completa, ao público, para tranquilidade de todos e maior confiança nas instituições.

Melhorar Cabo Verde no ranking da liberdade de imprensa passa por diminuir o peso do sector público na comunicação social e por desanuviar o ambiente de crispação no país ao mesmo tempo que se perde o medo de deixar o povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto. É nesse sentidode que todos devem trabalhar para garantir liberdade e democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1118 de 3 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 01, 2023

Erros de cálculo

 

A semana passada foi terrível para o governo. A precedê-la havia o anúncio da assinatura de uma adenda ao contrato de concessão de transportes marítimos que finalmente viria colocar o serviço no caminho certo. A realidade que se seguiu à publicação e divulgação do novo acordo gerou descontentamento generalizado e ameaça de caos no sector. Em particular na rota S.Vicente/ Santo Antão o impacto das novas tarifas foi estrondoso e levou a reacções fortes da população, dos operadores e das forças da oposição.

Não só ficou clara a importância do tráfego marítimo na vida das duas ilhas que realmente constituem uma região económica como também se pôde constatar que o não reconhecimento dessa realidade faz cometer “erros de cálculo” que custam caro às pessoas e à economia e desgastam politicamente o governo.

Somando isso a outros “erros de cálculo” na adequação das opções nas linhas marítimas que ligam as ilhas compreende-se o fogo cruzado intenso em que o governo repentinamente se viu exposto depois da assinatura formal do acordo por dois ministros e pela empresa concessionária, quando a expectativa era outra e muito diferente. O rápido marcha-atrás nas medidas tomadas poderá servir para conter o desgaste político, mas não vai resolver os problemas de fundo. Claramente que há problemas com o modelo de concessão escolhido e parece não haver a melhor articulação entre as medidas de política e a dinâmica económica das ilhas como ficou aparente na ligação S.Vicente/Santo Antão. Também falta clarificar o que pode ser reservado a outros operadores, qual o futuro para a armação nacional e que papel para o Estado que até já assumiu comprar quatro barcos num futuro próximo. Equacionar e agir em relação a tudo isto não vai ser fácil, considerando o nível de descrédito na opinião pública que os últimos acontecimentos acabaram por revelar.

Cabo Verde tem constrangimentos incontornáveis como são a sua condição de arquipélago com 9 ilhas relativamente distantes umas das outras e condições de navigabilidade em oceano aberto muitas vezes severas. Acrescentando a isso a pequena população e a fraca estrutura produtiva do país dificilmente se poderá contar com a possibilidade de rentabilizar os transportes marítimos num sistema de serviço público regular e cobrando tarifas acessíveis sem uma forte subsidiação do Estado. É o que acontece nos outros arquipélagos da Macaronésia como, por exemplo, nos Açores onde subsídios para transportes aéreos chegam aos 140 milhões de euros e para os transportes marítimos atingem 9 a 10 milhões de euros. No país essa realidade não é assumida clara e frontalmente.

Governos sucessivos e partidos que se alternam na oposição esforçam-se por escamotear a realidade ou com subsidiação intransparente ou com afirmações duvidosas que tudo depende de políticas certas e uma boa gestão. Alimentam-se ilusões que as ilhas podem ter barcos a aportar todos os dias ou até que barcos podem pernoitar nas mais isoladas para responder a eventuais situações de emergência. Em consequência, indo de expediente em expediente, para responder a situações que vão surgindo de transporte marítimo de passageiros, particularmente nos últimos tempos em que a circulação aérea ficou mais difícil e mais cara, aumentam-se as ineficiências e naturalmente os custos de operação.

A par disso cresce o descontentamento do público e também as denúncias politicamente motivadas que por sua vez levam à intervenção directa do governo. Intervenções essas que geralmente criam mais ineficiências e custos, agravando o círculo vicioso existente. O resultado disso vê-se no montante de subsidiação indemnizatória que se paga anualmente que por duas vezes (2020-2022) ultrapassou um milhão de contos. A intenção do governo em financiar a compra de quatro barcos para quebrar o círculo vicioso, quando originalmente previa-se que seria a empresa concessionária a adquirir barcos num total de cinco, dá uma ideia da espiral descendente que foi traçada seguindo por esse caminho. Devia ser evidente que se vai tarde na reflexão sobre como reverter uma situação que tende a ficar pior porque se acumulam ineficiências e seus custos e apresenta-se cada vez mais complexa porque é mais profundo o descrédito das populações. A tentação é, como se vê também nos transportes aéreos, de seguir pelos mesmos caminhos adoptando estratégias desenhadas antes das crises e, não obstante fiascos como da associação com a Icelandair, esperar que realmente “desta vez” vai dar certo. É a corrida atrás de ilusões.

A semana terrível do governo cabo-verdiano com a questão dos transportes marítimos tem similaridades com os tempos difíceis que governos de outras democracias vêm passando. Há o exemplo mais recente dos problemas em Portugal da TAP, das pensões na França e das crises sucessivas de governos no Reino Unido ou das tribulações na política americana. As crises múltiplas dos últimos anos acabaram por revelar o quão intratáveis se tornaram problemas como transporte, habitação, aumentos do custo de vida, em particular de alimentação, acesso a serviços de saúde e falhas no sistema educativo. Com o enfraquecimento das instituições, com o maior “ruído” das redes sociais e fragilidades do sistema de partidos e da democracia representativa, a tarefa dos governos democráticos tem-se complicado extraordinariamente.

A opção pela política-espectáculo, a tentação de políticos se comportarem como celebridades e a preferência por medidas de política populistas têm conjugado para tornar ainda pior a situação mesmo quando por algum tempo essa via pareça ser a melhor para conquistar e se manter no poder. Já o que vem de arrasto, que são as exigências crescentes de transparência, o escrutínio apertado em bom número de casos e a tensão permanente criada via redes sociais, que muitas vezes parece o “vociferar da turba”, tendem, por seu lado, a fragilizar a governação, fixando-a na gestão do momento, sem a devida ponderação na realização de objectivos mais alargados e mais virada para suscitar paixões e afectos. É o terreno propício para, de facto, não se cumprirem mandatos, no sentido de se fazer as reformas de fundo que credibilizam instituições, reforçam o capital humano e criam condições para aumentar a competitividade e produtividade. Pelo contrário, enfatiza a concentração em como manter-se no poder e procurar reeleição.

Romper com esse círculo vicioso significa entre outras coisas agir activamente para que os problemas não se acumulem, a dívida pública não atinja valores insustentáveis e a frustração e o ressentimento não se transformem no combustível que alimenta a máquina política no país. Para isso é fundamental governar com verdade, com realismo e pragmatismo e ter presente o tempo do mandato para desenvolver estratégias, mobilizar vontades e encadear medidas políticas de forma a atingir ao fim dos cinco anos os objectivos que se preconizou e deixar alicerces seguros para continuação da construção do futuro.

Hoje fala-se muito na pressão das redes sociais que não deixam que se concentre com tempo, ponderação e sabedoria na melhor forma de resolver os problemas do país. É, porém, responsabilidade dos governantes não se renderem às forças que procuraram tornar inoperacional a democracia representativa. Aliás, seria bom que os activistas nas redes sociais estivessem cientes que essa forma de participação só é possível nas democracias liberais porque nelas é que não se corta a internet e não se constrói sistemas de segurança na internet (firewall) para bloquear conteúdos considerados inaceitáveis pelo Estado.

No meio das pressões que têm que ser feitas, opiniões que devem ser emitidas e chamadas à acção que podem ser feitas via internet, há que considerar que tudo isso só faz sentido se é para garantir a todos “segurança, oportunidade, prosperidade e dignidade”. Como diz Martin Wolf no seu último livro “A crise do capitalismo democrático” esses devem ser os objectivos fundamentais de toda a governação. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 24, 2023

Basta de tiro no pé

 

A Assembleia Nacional deu como aprovado na generalidade, no dia 14 de Abril, o projecto de lei que classifica a língua portuguesa como património cultural e imaterial de Cabo Verde com 27 votos a favor e 26 contra. A nota justificativa que acompanha o projecto lei começa por apresentar a língua portuguesa como parte integrante e estruturante da história, da sociedade e da identidade cabo-verdiana para depois concluir que não se pode ficar “indiferente a sinais de fadiga” na sua utilização que vão em contramão com a valorização que devia merecer como língua de comunicação interna e língua internacional do Estado de Cabo Verde.

O projecto de lei ainda terá que ser aprovado na especialidade e na globalidade antes de ser enviado ao presidente da república para promulgação. A controvérsia que se instalou sobre a maioria exigida na deliberação provavelmente não vai desaparecer e poderá ressurgir num outro momento do processo legislativo. De facto, de acordo com o nº 2 do artigo 161º da Constituição e 131º do regimento da AN os projectos e propostas de lei são aprovados por maioria absoluta dos deputados presentes. A aprovação por maioria simples, ou seja, sem contar os votos nulos, em branco e as abstenções como determina o nº 3 do artigo 121º da Constituição é, segundo os constitucionalistas, apenas um princípio subsidiário que cede quando a Constituição dispõe de forma diferente e determina que a maioria é absoluta, é de dois terços ou de quatro quintos. A prática parlamentar de sempre tem sido essa e a maioria simples só tem sido adoptada nas resoluções e mesmo nelas só quando a Constituição não estipula uma outra maioria.

De qualquer forma, a declaração do presidente da assembleia nacional a dar por aprovado o projecto de lei já foi de grande significado político. O teor do debate havido e as opções de voto dos deputados revelou o nível de polarização político-ideológica que a questão da língua portuguesa provoca. O ministro da cultura que publicamente se tinha oposto à iniciativa do projecto de lei no debate parlamentar não se fez presente nem o governo manifestou apoio à sua posição. O MpD, partido que suporta o governo, votou maioritariamente no projecto de lei juntamente com a maioria dos deputados da UCID enquanto no PAICV, pelo contrário, só uma pequena minoria foi favorável. Considerando o desenlace, ministros antes de reagirem desabridamente a iniciativas dos deputados e em particular da maioria parlamentar deviam ter em devida conta que, além de responderem perante o primeiro-ministro, são politicamente responsáveis perante o parlamento.

Ao longo do debate ficou evidente a quase impossibilidade de se discutir o estado da língua portuguesa e a necessidade de se elevar o seu nível de proficiência como condição para a cidadania plena, excelência no sistema de ensino, acesso ao conhecimento científico e da história e literatura de Cabo Verde e comunicação efectiva no plano internacional. O contraditório a partir da posição que o crioulo está a ser vítima e que não é suficientemente dignificada como língua materna efectivamente bloqueia o debate e acaba por revelar a polarização típica que se cria nas guerras culturais e identitárias da actualidade.

De facto, não pode ser considerada língua inferior aquela que pode ser utilizada pelo presidente da república, pelos deputados e em qualquer função do Estado, actividade social ou cultural como todos os dias se assiste no país através dos órgãos de comunicação social. O crioulo só tem limitações no seu uso porque ainda não se acordou numa forma estandardizada e na sua expressão escrita. Por isso é que não é língua de ensino, o boletim oficial e outros documentos do Estado não têm uma versão em crioulo nem tão pouco contratos e sentenças judiciais são redigidos em crioulo. A falta de uma versão mais formal da língua também prejudica a comunicação oral em contextos como debates parlamentares, cerimónias oficiais e apresentação de trabalhos académicos que, por razões de protocolo, exigem linguagem mais sofisticada e precisa do que a fala coloquial. O sentimento geral que há alguma degradação nos trabalhos parlamentares provavelmente não estará alheio ao crescente uso do crioulo nos debates sem a formalidade que seria de exigir na linguagem utilizada num órgão de soberania.

Sem ter um padrão do crioulo escrito e aceite pela comunidade nacional não há como ultrapassar a situação actual. Oficializar a língua não resolve o problema: criam-se obrigações custosas para o Estado de disponibilizar informação e serviços em crioulo sem ter os recursos para isso e na ausência de uma língua padronizada. Luxemburgo com todos os seus recursos levou décadas, com tentativas falhadas pelo meio, a padronizar o luxemburguês, mas o nível de utilização na sua forma escrita continua baixo. Ainda a melhor solução é procurar cumprir o comando constitucional que se deve continuar a criar as condições para ter paridade com a língua portuguesa.

Entrementes devia-se evitar criar um ambiente de conflito entre as duas línguas que arraste consigo sentimentos de vitimização, ressentimento e rejeição da língua portuguesa que interferem directamente com a vontade de fazer a sua aprendizagem adequada. Insistir na via que já demonstrou num primeiro embate não ter maioria na assembleia representativa dos cabo-verdianos só estará a prejudicar o presente e o futuro do país pela má vontade que cria nos alunos em relação à língua essencial para aprendizagem e conhecimento. De facto, vai-se para escola fundamentalmente para aprender ler e escrever. Com capacidade de leitura pode-se resolver problemas de matemática, aprender ciências, aceder a toda a literatura publicada e ser um produtor e transmissor de conhecimento. Não sendo uma língua com escrita padronizada é evidente que o crioulo não pode ser ainda uma língua de ensino.

As crianças em geral aprendem as suas respectivas línguas logo nos seus primeiros anos de vida. Depois na escola vão aprender a ler e a escrever e comunicarem-se em linguagem formal e estandardizada. A iniciação na literatura começa também aí. Se a língua materna da criança não é uma língua escrita e como no caso de Cabo Verde é a língua falada por todos e em quase todas as ocasiões, a escola tem um papel suplementar de ensinar a língua do ensino e do conhecimento com um nível de proficiência que garanta sucesso na aprendizagem a todas crianças que nela ingressa. É uma enorme responsabilidade que recai sobre os professores e os pais, mas que a sociedade no seu todo deve assumir. A criação de um ambiente propício para todas as crianças e jovens aprenderem a língua é essencial para garantirem no presente o seu sucesso escolar e depois profissional e também fundamental para o exercício de uma cidadania plena.

Do governo exige-se visão e liderança para que os enormes investimentos feitos na educação não sejam desperdiçados e nem o futuro hipotecado porque não se soube criar a motivação suficiente para elevar o nível de capital humano no país, aumentar competitividade e a produtividade e tornar o país mais atractivo para o investimento externo. Aos jovens não se pode deixar a única opção de querer emigrar para trabalhar em sectores de baixo salário. E tudo porque se permitiu que questiúnculas ideológicas e guerras culturais atrapalhassem o maior investimento que o país pode fazer que é dar uma educação de qualidade às suas gentes.

Imagine-se onde estariam a Singapura com os seus grupos étnicos e as Maurícias com sua história de colónia francesa e depois inglesa se tivessem ficado enredados em questões identitárias que prejudicasse a assunção respectivamente do inglês e do francês e inglês como língua oficial e do ensino. Quase cinquenta anos volvidos após a independência, é preciso que Cabo Verde se compenetre que não tem todo o tempo do mundo para tomar o caminho certo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1116 de 19 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 17, 2023

Evitar o cinismo institucional

 

Na sessão da Assembleia Nacional que começa hoje, dia 12 de Abril, vai-se avançar com a proposta de eleição dos quatro membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) para completar o que deveria ser a total renovação do órgão de gestão da magistratura judicial. Em Novembro último, os juízes tinham eleito os seus quatro representantes e logo no início de Dezembro o presidente da república nomeou um juiz para completar o número de cinco magistrados judiciais entre os nove membros do CSMJ.

A Assembleia Nacional falhara em eleger os seus representantes e, apesar de não se ter verificado a renovação completa do órgão. optou-se por ir à frente com a eleição do seu presidente. Agora, ao mesmo tempo que se procura colmatar a deficiência com a nova eleição na Assembleia Nacional dos restantes quatro membros não magistrados, está-se a avançar com uma proposta de lei de alteração da orgânica do CSMJ que curiosamente vai alterar as regras do seu funcionamento num sentido no mínimo desconcertante.

A actual lei orgânica prevê um cargo de vice-presidente do CSMJ que coadjuva o presidente e que deve ser ocupado por um membro não magistrado eleito pelo órgão. Algo similar acontece no conselho superior da magistratura da Itália, que é considerado por vários autores como o modelo desses órgãos de gestão da magistratura judicial, com o objectivo de garantir ao público transparência, accountability e prestação de contas. O cargo faz, pois, todo o sentido, mas até os dias de hoje, mais de dez anos depois de a lei ter sido publicada, não foi preenchido. Nem mesmo depois do recurso feito para contornar essa norma ter sido considerado improcedente pelo Tribunal Constitucional. Um acórdão datado de 2016 do TC considerou unanimemente que não tinha razão quem questionou a constitucionalidade da norma que estabeleceu que o vice-presidente deve ser escolhido de entre os membros não-magistrados.

Causa, pois, alguma estranheza que numa mudança de 180º e aparentemente em resposta ao acórdão do TC, a proposta de lei que está para discussão e aprovação na Assembleia Nacional, vá determinar que o vice-presidente seja magistrado judicial. Mais, para além de essa alteração aumentar o peso e a influência dos magistrados no conselho também constituirá um reforço do presidente do CSMJ que não só passará a propor para eleição o candidato a vice-presidente como também poderá pedir sua destituição a todo o tempo (nº 4 do artigo 28º da proposta de lei). A discussão sobre o relativo peso dos magistrados e não-magistrados nos conselhos superiores da magistratura não é coisa inócua ou sem importância. A composição diversa desses órgãos é uma questão central para se garantir, por um lado, a autonomia e a independência dos juízes e, por outro, segundo os constitucionalistas, “se atenuar a ausência de legitimação democrática dos juízes enquanto titulares de órgãos de soberania”.

Como essa diversidade se deverá manifestar para o órgão e em que proporção se elege ou se nomeia os seus membros varia com as diferentes soluções encontradas nas democracias. Mesmo no seio de cada uma delas, a configuração tende a evoluir com o tempo. Em Cabo Verde também houve evolução quanto à maioria numérica no CSMJ. Inicialmente, na Constituição de 1992, os indicados pelos órgãos do poder político (três eleitos pela assembleia nacional e os dois nomeados pelo presidente da república) eram maioritários em relação aos magistrados judiciais (2 eleitos pelos juízes: o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Inspector Superior Judicial). Na prática a opção do PR em nomear dois juízes restituía a maioria aos magistrados. Na revisão constitucional de 1999 clarificou-se a intenção do legislador constituinte e estabeleceu-se que os dois membros de nomeação presidencial não podiam ser magistrados ou advogados. Na última revisão de 2010 outra vez, desta feita formalmente, foi invertida a maioria passando a ser 5-4 a favor dos magistrados.

Parafraseando o dito que pessoas investidas com cargos tendem a apegar-se como tenazes ao poder e que esse apego as faz estender o seu poder, aumentar seus direitos e ampliar a esfera da sua própria autoridade, o mais natural é que não se fique por aí. Com as alterações na orgânica do CSMJ apresentadas para discussão e aprovação no parlamento, a proposta de lei em vários artigos dá sinal que se vai no sentido de menor influência dos membros não-magistrados e de maior poder do presidente que também passa a ter voto de qualidade (nº 3 do artigo 34º da proposta de lei).

A questão que se coloca é por que então elegê-los se a capacidade de influenciação na gestão da magistratura judicial é reduzida ao mínimo. Diversidade devia ser a chave para legitimação democrática e contenção de tendências corporativas. O sector da justiça em particular tem estado sob escrutínio mais apertado dos cidadãos e todos querem ver resultados da renovação dos seus órgãos de autogoverno. Se os efeitos não se fazem sentir por limitações várias, podia-se poupar nos custos e evitar os efeitos de fachada que alimentam o cinismo do público em relação às instituições.

Cabo Verde tem várias entidades administrativas independentes, umas nomeadas pelo governo depois de audição parlamentar e outras eleitas pela Assembleia Nacional por maiorias qualificadas de dois terços dos deputados enquanto órgãos externos. O parlamento na sessão a iniciar esta quarta-feira vai eleger candidatos a alguns cargos exteriores e espera-se que renove o mais cedo possível todos os que estão com mandato há muito terminado. O objectivo desejado é que no quadro institucional autónomo e acima das disputas políticas se assegure um ambiente salutar para todo o sistema político que prime pelo cumprimento das regras e por uma cultura de transparência, responsabilização e prestação de contas. Também que salvaguarde os direitos dos indivíduos e os direitos dos consumidores e mantenha funcional uma ordem económica e social facilitadora da iniciativa e da inovação e potenciadora da energia e perseverança de indivíduos e empresas.

São entidades que, pela sua natureza, devem ser competentes, eficazes e afirmativas da sua autonomia em relação aos outros poderes, em particular os económicos e os políticos. Todo o processo de escolha e nomeação dos seus titulares deveria ter isso em devida consideração. Também pela sua natureza e exigências de funcionamento representam custos significativos e na sociedade há a expectativa de um retorno adequado desse investimento. Por isso, não podem ser simplesmente cargos de predilecção de quem só quer privilégios especiais ou moeda de troca de quem quer dispensar favores pessoais ou partidários, nem tão pouco serem escamoteados nos propósitos por que foram criados. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1115 de 12 de Abril de 2023.