Por ocasião do 75º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos o Papa Francisco foi peremptório em afirmar que o compromisso com os direitos humanos nunca acaba. A adopção da declaração a 10 de Dezembro de 1948, logo após a segunda guerra mundial, serviu de base para o desenvolvimento de uma estratégia global para a promoção e protecção dos direitos humanos. A universalização do respeito pelos princípios e valores estabelecidos no documento que daí resultou foi ao encontro do desejo profundo de indivíduos e povos pela liberdade e democracia em todo o mundo.
Décadas depois, nos fins dos anos oitenta e início de anos noventa, contribuiu para a derrocada do império soviético e do comunismo na Europa e, na sua esteira, para a queda em cadeia de regimes autoritários e totalitários em todos os continentes. Foi o momento que também Cabo Verde soube aproveitar e libertar-se de um passado recente de desrespeito pelos direitos humanos englobando os 41 anos de regime salazarista e os quinze anos do regime de partido único após a independência nacional. Com a Constituição de 1992, o país finalmente pôde assumir os princípios e valores que 44 anos tinham sido consagrados na declaração universal dos direitos humanos e passar a reger-se por eles.
Mas como veio agora relembrar o Papa Francisco não é de baixar a guarda porque o documento “é como uma estrada principal na qual foram dados muitos passos em frente, mas muitos ainda faltam e às vezes, infelizmente, voltamos atrás”. De facto, no mundo actual de grandes incertezas, tensões geopolíticas e mesmo guerras numa dimensão que muitos consideravam improvável, não é liquido que continue o alargamento do respeito pelos direitos humanos como optimistamente se postulou quando, no princípio da década de noventa, com a vitória da democracia liberal e da economia de mercado, foi proclamada o Fim da História.
Ameaças vêm de várias direcções, designadamente dos regimes autocráticos que se esforçam por se apresentar como uma ordem alternativa à ordem liberal que também traz desenvolvimento. Também nas próprias democracias são visíveis os perigos para os direitos fundamentais nas derivas iliberais que põem especialmente na mira restrições à liberdade de expressão e de imprensa e à independência dos tribunais. A compressão de direitos que daí resulta fragiliza os cidadãos perante o poder arbitrário e discricionário do Estado, prejudica o jogo democrático e o papel da oposição e até pode chegar ao ponto de só garantir a eleição de um partido hegemónico, eliminando efectivamente a possibilidade de alternância governativa.
Um outro perigo vem da progressiva polarização de posições políticas que tem reforçado os extremos tanto à esquerda como à direita. De facto, contribui para a desvalorização do respeito pelos direitos universais a corrida para identidades cada vez mais redutoras com base na raça e no género ou ainda com base em relações múltiplas do tipo opressor/oprimido que se nota em círculos de esquerda. No mesmo sentido vai a diluição do indivíduo em colectivos nacionalistas visíveis em franjas da direita que se afirmam na hostilidade dirigida a “outros”, sejam eles imigrantes ou minorias étnicas e religiosas.
Na prática os dois extremos tendem a negar a “nossa humanidade comum” que é afirmada na declaração universal dos direitos humanos. Para a democracia, a polarização alimentada pela interacção de extremos que se tocam pode revelar-se destrutiva porque ao privilegiar emoções sobre factos impede consensos em matérias de regime, não incentiva a busca da verdade e dificulta o debate indispensável para a produção de políticas públicas e a realização do interesse geral.
Ainda um risco mais insidioso em que as democracias podem incorrer é o da complacência quanto às garantias do exercício do núcleo fundamental dos direitos civis e políticos que devem sempre existir. Às vezes, procura-se comprimi-los em nome de maior segurança e outras vezes por mero expediente para justificar a ineficácia de corporações estatais em matéria de investigação criminal e administração da justiça. Em certos círculos político-ideológicos faz-se por os preterir a favor dos direitos sociais e de direitos de outras gerações que na óptica deles devem ser prioritários.
A verdade é que a democracia é também o regime do governo limitado porque como dizia James Madison, um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América, “se os homens fossem anjos nenhuma espécie de governo seria necessária”. Ou seja, é preciso habilitar o governo a controlar os governados, mas seguidamente é preciso obrigar o governo a controlar-se a si próprio. E um dos limites a não ser transposto é o que consta dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em Cabo Verde esse limite foi incorporado na ordem jurídica nacional com a adopção da Constituição de 1992.
As mazelas, torturas e até mortes sofridas das autoridades estatais em tempos passados sem ter direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública julgada por um tribunal independente e imparcial só foram possíveis porque não existiam limites ao poder do Estado especialmente o respeito pela dignidade humana e pelos direitos dela indissociáveis. De facto, quando, por quaisquer razões, esses direitos são diluídos ou desaparecem, abusos e atrocidades acontecem e quase sempre em nome de grandes desígnios nacionais como a luta pela independência, segurança e estabilidade governativa.
Mas porque os fins não justificam os meios usados para os atingir, o país pagou pela ausência de limites na governação em falta de liberdade, em desperdício de recursos humanos e outros e em perda de oportunidades e consequente desenvolvimento adiado. Aliás, por esse mundo fora vê-se o sofrimento e muitas vezes o desastre humanitário onde os direitos humanos não são respeitados. Para reverter a situação é preciso que como o Papa Francisco, no domingo, invocando o 75º aniversário da Declaração Universal, apoiar “todos os que, discretamente na vida quotidiana concreta, lutam e falam pessoalmente para defender os direitos dos que não contam”.
Aqui em Cabo Verde, enquanto comunidade de princípios e valores baseados no respeito pela dignidade humana, é fundamental que se continue a garantir o exercício dos direitos fundamentais a todos os cidadãos e a assegurar que o Estado em todos os seus actos, intervenções e celebrações os respeite e fortaleça. O caminho para se ter uma sociedade livre, justa e solidária passa por aí.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1150 de 13 de Dezembro de 2023.