Na cerimónia do Dia da Cidade do Mindelo, no passado 14 de April, a presidente da assembleia municipal chamou a atenção para instabilidade do sector da indústria conserveira na ilha de S.Vicente mostrando preocupação com a protecção dos postos de trabalho existentes. Uma instabilidade que em grande medida provém do facto de, depois de mais uma década após a instalação das fábricas, o país ainda não ter adquirido suficiente capacidade de captura de peixe para as alimentar de matéria-prima. Por causa disso as exportações de conservas dependem de derrogações sucessivas no pagamento de direitos que as tornam competitivas no mercado da União Europeia. Também do volume de vendas dependem os postos de trabalho e a vontade das empresas em continuar a produzir lucrativamente no país.
O problema, aparentemente, é que não se absorveu que a prioridade do país era criar capacidade de captura de peixe e não renovar a derrogação de direitos como parecia sugerir a auto-satisfação dos governantes nos anúncios anuais da dádiva. Na falta de políticas dirigidas e aplicadas tempestivamente no sector, como estaria implícito no quadro da cooperação de “aid for trade”, não se podia esperar um outro impacto em termos de emprego, rendimento e exportações que não fosse de instabilidade. A não clarificação das prioridades e a falta de acção estratégica e planificada, mesmo quando identificadas, têm dessas consequências que deixam no ar a ideia que no país está-se sempre a recomeçar.
De facto, é a impressão com que se fica, sempre que se escutam os debates sobre os diferentes sectores da economia, designadamente sobre a agricultura, a pesca, os transportes, o turismo e a energia e também sobre as reformas a fazer na administração pública, no sector empresarial do Estado e no ensino. Nesse sentido, invoca-se a necessidade de mobilização de água, mas não se acrescenta mais valor com novos produtos, organização e expansão de mercados. Movimentam-se recursos na pesca, mas não se consegue dar o salto para a pesca industrial. Os transportes aéreos e marítimos em termos de custo e serviço ficam aquém do que seria necessário para unificar e potenciar o mercado interno.
Nos debates sobre o turismo a tentação de dispersão para nichos, ainda por se revelarem viáveis, tira o foco do produto que tem possibilidade de expansão rápida e impacto transversal na economia. Evita-se também discutir o excessivo roubo de energia devido em grande parte para não se enfrentar os problemas subjacentes e que têm a ver com falta de civismo, cultura de marginalidade e falhas na afirmação da autoridade do Estado. Com essa omissão não se reconhece suficientemente a importância central de se baixar o preço da electricidade e da água para os consumidores, para as empresas e a competitividade da economia nacional.
Tratando-se de grandes reformas, ainda se está por debater o papel do Estado num país arquipelágico com uma pequena população distribuída por nove ilhas. Um obstáculo é a herança de uma administração centralizada controladora de uma economia estatizada nos primeiros quinze anos pós-independência que não foi ultrapassada. Algo que se mantém porque, entre outras razões, a gestão da ajuda externa conjunta com as organizações multilaterais contribui para reproduzir o peso e a influência do Estado sobre o sector privado e a sociedade no seu todo. Na prática, o Estado ainda se coloca no topo da proverbial cadeia alimentar e não se pode falar totalmente de um sector privado autónomo e uma sociedade não marcada pela dependência estatal. A classe média que os teóricos da democracia veem como fundamental numa democracia consolidada ainda está por se afirmar.
Por isso que as tentativas de reforma da administração do Estado têm ficado aquém do desejável numa perspectiva de melhorar a competitividade do país com a diminuição dos custos de contexto. No sector empresarial estatal as reformas parecem mais seguir a agenda de parceiros internacionais do que a ajudar a suprir falhas de mercado e a apoiar o desenvolvimento do sector privado nacional. A reforma do ensino, no quadro de desenvolvimento do capital humano, ainda está por ter o mais forte comprometimento do Estado e o engajamento de toda a sociedade para ser vista com a maior aposta do país. A herança do igualitarismo, da massificação sem preocupação com a qualidade e da desconfiança em relação ao conhecimento dificultam a emergência da cultura de excelência e de meritocracia que o país precisa.
Quando se trata então de políticas inovadoras não se clarifica o que se pretende, insistindo com expressões grandiosas e chavões como economia azul, economia verde, transição digital e transição energética. A insistência nos meios (linhas de crédito, infraestruturas e formação para empreendedorismo) acaba por obscurecer os objectivos ficando os resultados dos projectos por serem avaliados numa perspectiva de custos e benefícios e de externalidades positivas criadas.
Com uma outra visão menos condicionada pelos projectos que ditam políticas em vez do inverso, talvez Cabo Verde pelas suas características arquipelágicas e carestias diversas e condição remota pudesse se apresentar como um grande laboratório para os problemas que tarde ou cedo quase todo o mundo vai ter designadamente em matéria de alterações climáticas, escassez de água, armazenagem de energia, acesso de pequenas comunidades a serviços públicos e a telemedicina. Talvez por aí se pudesse encontrar soluções inovadores e comercializáveis e não se limitar muitas vezes a ser um cemitério de projectos que apresentados como promissores não sobrevivem ao término do seu financiamento.
A realidade actual é que são perceptíveis “instabilidades” em vários sectores e não só na indústria conserveira. Nos transportes é claramente visível. Socialmente sente-se nos níveis de criminalidade, no excesso de suicídios, na percepção de insegurança que causa angústia e leva à depressão. Já se sente a contaminação noutros sectores como a educação em que as reivindicações dos professores enquanto justas poderão não ter solução total imediata, mas, entretanto, mexem com a eficácia das escolas e afectam os alunos. De outros grupos profissionais poderão vir reivindicações também justas.
A saída desta situação provavelmente terá que passar por se chegar a algum consenso em relação às prioridades-chave do país e num espírito de solidariedade compreender que a democracia não é só de direitos, mas também, como alguém disse, de uma cidadania comprometida com deveres para comunidade e seus valores.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1168 de 17 de Abril de 2024.