quarta-feira, junho 20, 2012

Brincar com coisas sérias



Editorial  Nº 551 • 20 de Junho de 2012



 Brincar com coisas sérias


 Qualquer indivíduo com disponibilidade de capital para inves­tir nos mercados financeiros deve agir em pleno conhecimento da relação entre os ganhos e riscos das aplicações e do que pode acontecer a curto, médio e longo prazo. Na prática tem que “saber cortar nos custos e deixar correr os lucros”. Se a ponderação de todos os factores e circunstâncias é crucial para o investidor in­dividual, mais ainda se revela para o investidor institucional. Para este, a organização do seu plano de investimentos naturalmente tem um pendor mais conservador, concentrando-se em activos mais seguros e logicamente de menor rentabilidade.
A alta visibilidade dos investimentos do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) tem despertado a atenção das pessoas e em particular dos trabalhadores, das organizações sindicais e do patronato. Os fundos do INPS são alimentados por contribuições dos trabalhadores (8%) e dos empregadores (15%) num total de 23% dos salários e é natural que as pessoas fiquem apreensivas em relação a certas aplicações financeiras pelo seu risco intrínseco. O governo não tem dado a devida atenção a esses receios. Pelo contrário, tem mostrado uma vontade de instrumentalização dos fundos do INPS, socorrendo-se da liquidez existente para fazer face a situações difíceis como as da Electra, da Fast Ferry ou a suas próprias necessidades de financiamento interno.
Na Electra foram injectados mais de 500 mil contos para resolver problemas de tesouraria e agora pretende que o INPS, em vez de cobrar a dívida, se torne accionista de uma empresa em situação quase de falência. Na Fast Ferry cupões devidos das obrigações não são pagos ao INPS, mas entretanto a instituição aceita estender a maturação das obrigações e a rever para baixo as taxas de juro inicialmente estabelecidas de 9%. Na emissão, em 2011, de Títulos de Tesouro num total de 2,960 milhões de contos, o INPS compra 2,950 milhões (99,6% dos títulos) confirmando-se de facto como uma espécie de caixa 2 do Estado e retirando qualquer ilusão de existência de um mercado de títulos.
O mercado de capitais tem sofrido fortes solavancos ultima­mente. Cupões não são pagos ou só são pagos a alguns dos de­tentores das obrigações. O mais grave aconteceu com a primeira tranche das obrigações da Electra cuja data de maturação era 14 de Junho e da qual só se pagou a amortização aos pequenos investidores. Propõe-se agora emitir nova dívida com o aval do Estado para pagar os investidores institucionais. Com todas essas manobras, a grande questão é se o aval do Estado continua a merecer o mesmo nível de confiança. No caso da maturação das obrigações da Electra, o Estado esquivou-se a cumprir, optando por renovar o aval para a nova emissão prevista para final de Junho. Alguns investidores queixam-se que soluções similares têm passado em assembleias obrigacionistas por causa do voto crucial do INPS, facto esse que deixa muitos apreensivos de que os seus interesses não estão a ser acautelados.
Espalha-se a percepção de que algo está muito errado na for­ma como o Governo instrumentaliza o INPS. Seja do lado dos representantes dos trabalhadores, seja do lado do patronato e também dos partidos da oposição tem havido pressões para que a voz dos “stakeholders” seja ouvida nas decisões dos órgãos do INPS, em particular no que respeita ao plano de investimentos. Em todo o mundo os fundos da segurança social são geridos de forma segura e conservadora. Em Cabo Verde até obrigações do tipo classificado como lixo “junk”, de alto risco, e taxas elevadas fazem parte do portfolio do INPS. É evidente que se impõe algum controlo das actividades da instituição e alguma contenção na intervenção do Governo. Um maior protagonismo dos parceiros sociais como exigido pelos sindicatos e pelas associações patro­nais é um passo nesse sentido.
A Direcção

quarta-feira, junho 13, 2012

Negligência criminosa?



Nº 550 • 13 de Junho de 2012
Editorial: Negligência criminosa?
É costumeiro dizer-se que “quem se habitua a viver de esmolas dos outros não dá valor ao que porventura tenha ”. Acontece com pessoas, mas também com países. A insistência na reciclagem da ajuda externa como modelo de desenvolvimento dificilmente deixaria de ter consequências graves no comportamento dos governantes e da administração pública e na psique colectiva do povo. Uma delas é precisamente a dificuldade em potencializar os parcos recursos existentes, sejam eles naturais ou humanos, de forma a resultar em crescimento e emprego significativo para a generalidade da população. Os recursos marinhos e particularmente os ligados à pesca são das poucas riquezas naturais de Cabo Verde. O aproveitamento que se faz deles é mínimo não obstante os enormes investimentos feitos ao longo de décadas. Consumiu-se a ajuda externa ligada aos múltiplos projectos do sector, mas os resultados foram sempre pouco significativos e quase nunca sustentáveis. Hoje, o sector das pescas continua sem o peso e projecção que poderia ter no âmbito da economia nacional se tivesse sido objecto de uma intervenção estratégica do governo virada para exportação. Uma intervenção que conduzisse ao aumento da capacidade de captura nacional e a um maior envolvimento da população laboral na transformação do pescado. O Governo, há dias, veio regozijar-se com mais três anos de derrogação dada pela União Europeia à cláusula que exige que as conservas da Frescomar que chegam ao mercado europeu tenham pescado caboverdeano. Pergunta-se como se desperdiçaram os quatro anos anteriores e não se construiu capacidade pesqueira nacional para abastecer uma fábrica conserveira com mercado garantido. O foco principal do Governo, neste como noutros sectores da actividade económica, parece não estar no desenvolvimento empresarial, na criação de riqueza nem no aumento de postos de trabalho. O outro lado de não se prestar a devida atenção aos recursos do país, como potenciadores da economia nacional, é disponibilizá-los a outros por acção ou omissão, sem a devida avaliação e ponderação das consequências actuais e futuras do acto. Caso paradigmático é o Acordo de Pescas com a União Europeia que mereceu a desaprovação de vários sectores da sociedade cabo-verdiana e que finalmente o governo veio timidamente dizer disposto a renegociar algumas cláusulas. O governo agiu nesse caso dando acesso a recursos do país em troca de valores discutíveis. E omitiuse favorecendo os predadores dos recursos quando não organizou a Guarda Costeira de forma a fazer o controlo dos mares e da zona económica e não priorizou a criação de um sistema efectivo de fiscalização dos acordos assinados. As denúncias vindas a público da pesca ilegal do tubarão para extrair as barbatanas exemplifica como acções avulsas e omissões podem levar a abusos com consequências graves para o país. Ao se aceitar uma percentagem de pesca acidental de tubarão (sem ter os meios de a fiscalizar) abriu-se uma fresta para uma actividade de longe mais lucrativa que a simples pesca do atum. Não é à toa que a porta depois foi escancarada. O resultado vê-se nas descargas de várias toneladas de tubarão no Porto Grande de São Vicente e que aparentemente as autoridades ignoraram ou se esquivaram a confirmar até que associações de defesa do ambiente trouxeram os factos para a opinião pública. No imbróglio que se seguiu mais uma vez foi visível a tentativa do governo em fugir à responsabilidade, relativizando a gravidade da situação com frases como “a pesca ilegal faz-se em todo o mundo”. Também, como de costume, as tentativas de desresponsabilização são acompanhadas de fugas em frente e anúncios de iniciativas, designadamente o cluster do mar, criação de núcleos operacionais e observatórios que, pelas experiências passadas, pouco têm contribuído para aquilo que as pessoas realmente precisam: prosperidade com mais negócios, mais empresas e mais empregos.

quarta-feira, junho 06, 2012

Tiro no pé



Editorial  Nº 549 • 6 de Junho de 2012



 Tiro no pé

  A semana anterior foi um desastre para o Governo. Procurou por todas as formas dissuadir os trabalhadores e os sindicatos de se manifestarem e falhou. A nomeação do marido da ministra de Juventude para o cargo de administrador executivo do INPS revelou-se a gota de água que fez transbordar o copo. São insis­tentes os pedidos de demissão da ministra vindos da sociedade normalmente quieta e muda. Algo parece ter mudado definiti­vamente e todos apercebem-se de que o “rei vai nu”.
No conflito com trabalhadores e sindicatos veio à tona a questão central da democracia: representação deve se ser sempre acompanhada da responsabilização. Ganharam-se eleições com promessas concretas entre as quais a do 13º mês e do salário mínimo. Não há como fugir ao prometido sem que haja uma ruptura séria na relação de confiança entre o governante e o cidadão comum. Certas justificações pela quebra de promes­sas roçam a desonestidade e só alimentam um cinismo geral em relação à política e aos políticos. Nestes tempos críticos de procura de soluções colectivas para a crise nenhuma sociedade pode dar-se ao luxo de esgotar ainda mais o seu capital social permitindo que o discurso público seja contaminado por inver­dades deliberadas.
Há uma diferença fundamental entre a Constituição de 1980 e a Constituição da República de 1992. Os direitos dos cidadãos, designadamente, os de expressão, reunião e manifestação não estão subordinados a “razões de Estado” como antigamente. Pelo contrário, a sua existência e afirmação constituem limites inultrapassáveis do poder do Estado. O governo esteve muito mal em erguer o espectro da instabilidade política para dissuadir os cidadãos de exercer o seu direito de contestar e de se indignar por promessas eleitorais reiteradamente feitas e não cumpridas. Tam­bém andou por caminhos duvidosos próximos da demagogia quando invoca o feriado das crianças para, de forma maliciosa, condenar quem convocou ou aderiu à manifestação geral.
A relação do governo com a sociedade sofreu também, quando se tornou evidente que os limites aceitáveis tinham sido ultrapassados na nomeação do cônjuge da ministra de tutela do INPS para administrador executivo dessa instituição pública. A reacção rápida do governo apanhado em falso em conseguir a demissão do recém-nomeado não alterou os dados da questão. O problema não era fundamentalmente seu, mas realmente de quem foi investido de poder político para o nomear. Por isso a resposta de “não comento” da ministra aos jornalistas deixou a todos perplexos. Já se demitiu quem não tem a responsabilidade pela nomeação inapropriada. Espera-se naturalmente que quem de direito assuma a responsabilidade pelo mal feito.
O campo de manobra do Governo dá sinais de estar a diminuir consideravelmente. Erros acumulam-se e as questiúnculas inter­nas do partido que suporta o governo aumentam de intensidade. A população mostra-se cada vez mais céptica às promessas de que, por exemplo, a situação da energia vai melhorar, as pers­pectivas de emprego vão se concretizar e que, de facto, haverá casa para todos. Há uns sentimentos generalizado que, após as autárquicas, e passado o actual esforço de ilusionismo eleitoral, as dificuldades vão mostrar o seu verdadeiro rosto.
A desconfiança que resulta do não cumprimento de promessas eleitorais e da não assunção da responsabilização pelos resul­tados da governação quando se estabelece entre governantes e governados prejudica o país particularmente nos momentos críticos. Nos tempos actuais, urge ter uma governação que prima pela verdade e honestidade para se poder construir a vontade colectiva necessária para vencer os desafios extraordinários que se impõem.
ADirecção

quarta-feira, maio 30, 2012

Saúde em Cabo Verde: que futuro?



Editorial  Nº 548 • 30 de Maio de 2012

 Saúde em Cabo Verde: que futuro?

 A saúde da população, das suas crianças, jovens, adultos e velhos constitui um pilar fundamental da vitalidade e produ­tividade de qualquer economia e um marco da qualidade de vida atingido pela sociedade. Garantir cuidados de saúde a todos implica construir sistemas de solidariedade transversais e intergeracionais que sejam sustentáveis, eficazes e vistos por todos como abrangentes e justos. Ao Estado cabe um papel importante em assegurar-se que o sistema cumpre com os ob­jectivos traçados e que todos contribuem na medida das suas posses e rendimentos.
Por todas as paragens vem-se verificando o agravamento dos custos dos cuidados de saúde. A esperança de vida é maior, avanços tecnológicos permitem diagnósticos e intervenções mé­dicas mais sofisticados e doenças outrora consideradas terminais tornam-se mais “geríveis” permitindo uma velhice prolongada e com qualidade de vida.
Nos países desenvolvidos, as contribuições para o sistema de saúde têm diminuindo a passo com a redução da população produtiva criando um défice que põe em perigo a sua susten­tabilidade. Veio a crise, milhões foram parar no desemprego e a situação passou a ser crítica. Muitos já não têm os cuidados habituais porque não têm meios para as comparticipações nos custos ou deixaram de estar cobertos em resultado do desem­prego prolongado.
Nos países em desenvolvimento a eficácia na luta contra as doenças infecciosas aumentou extraordinariamente a esperança de vida e criou uma situação que alguns chamam de transição epidemiológica. As doenças mais comuns passam a ser as cardo vasculares, as diabetes, as doenças degenerativas e os cancros. Doenças essas que, podendo não ser fatais, exigem tratamentos custosos durante décadas. Ou seja, passa-se a ter um perfil de doenças próprio dos países desenvolvidos, mas sem o poder económico deles para fazer face aos custos decorrentes.
Em Cabo Verde já se tornam evidentes as dificuldades em manter o sistema de saúde ao nível das exigências da população. Mais difícil ainda será colocar o sistema à altura de responder com eficácia à nova fase marcada pela predominância das do­enças crónicas. O crescimento do país tem-se mantido abaixo do seu potencial e não tem resultado na criação de empregos que aumentem as contribuições para a segurança social e fazem crescer o número de indivíduos e famílias cobertos em situação de doença. Soma-se a isso o agravamento do custo de vida com os sucessivos aumentos de bens de primeira necessidade, trans­portes, energia e água que cortou no rendimento disponível das famílias dificultando-lhes a comparticipação nos custos de saúdes e nas taxas moderadoras.
Para o mundo desenvolvido, por razões de envelhecimento da população, a diminuição dos custos de saúde é fundamental para garantir a sustentabilidade do sistema e manter a competitividade pela via de controlo dos custos ligados ao trabalho. Para os países em desenvolvimento, com a sua população jovem, o esforço deve centrar-se no crescimento da economia com criação de emprego que beneficie todos com segurança social.
O governo tem a responsabilidade de orientar estrategica­mente o sistema de saúde de forma a que sirva todos os cabo­verdianos. Mas não só: Cabo Verde a poucas horas da Europa tem possibilidade de desenvolver um turismo que também tenha como um dos sustentáculos os cuidados de saúde, particular­mente dirigidos para as pessoas mais idosas. Dessa forma talvez matasse vários coelhos de uma cajadada: ter turismo sustentável, formar jovens em profissões com futuro e garantir à população cuidados de saúde de qualidade.
Direcção

quarta-feira, maio 23, 2012

Por onde pára a cidadania?



Editorial Nº 547 • 23 de Maio de 2012


 Por onde pára a cidadania?

 Uma bandeira de cidadania foi desfraldada nas eleições presi­denciais. Procurava justificar candidaturas que fugiam ao controlo dos partidos numas eleições que por desígnio constitucional são suprapartidárias. A instrumentalização do conceito não impediu que suscitasse aderência entusiástica em certos sectores na socie­dade e algum constrangimento com laivos de agressividade em algum partido político. Mas foi sol de pouco dura. Rapidamente voltou-se à postura habitual de fraca participação política dos cidadãos e de passividade cívica.
As eleições autárquicas já estão à porta e mais uma vez a oportunidade para uma certa intervenção cívica será muito pro­vavelmente escamoteada. A Constituição e a lei eleitoral abrem a possibilidade de cidadãos apresentarem listas para a câmara e assembleia municipais. A inexistência de um monopólio dos partidos na apresentação de candidaturas nos municípios abre a possibilidade de participação directa dos cidadãos. Até agora, po­rém, tais hipóteses foram mal aproveitadas ou mesmo distorcidas. Nalguns casos, a apresentação de listas por grupos de cidadãos não passaram de candidaturas camufladas dos partidos. Noutros casos, ou foi uma reacção em dissidência do partido ou ainda uma tentativa de forjar um novo partido.
Supõe-se que a abertura das listas a munícipes não militan­tes tem como objectivo, além de incentivar participação cívica, atenuar o efeito das confrontações partidárias nas decisões que a administração da autarquia tem de tomar e nos compromissos e consensos a que é obrigada a chegar para melhor servir os uten­tes. Bloqueios, indefinições e procrastinações em várias matérias resultam quando se escolhe o terreno municipal como campo para os confrontos entre o governo e a oposição nas questões de governação do país.
Neste particular, nota-se que numa espiral crescente, o governo vem legislando e tomando medidas de política que cada vez mais diminuiem o escopo de actuação dos órgãos municipais eleitos. Se não é limitando nas atribuições, é minguando nos recursos disponibilizados. Um estratagema muito utilizado que já foi alvo de denúncias várias é pôr as câmaras municipais a competir com associações comunitárias e ONGs diversas pelo acesso a recursos públicos. O governo ostensivamente faz por ignorar que a câmara municipal e a assembleia municipal são órgãos de poder político e nunca podem comparar-se a órgãos de organizações privadas que só podem ser representativos dos seus membros e velar pelos seus interesses.
A autonomia municipal é um dos princípios do Estado de direito democrático. Suporta-se no reconhecimento de que as populações têm interesses específicos que não coincidem perfeita­mente com os interesses nacionais nem com os de outras regiões. Para fazer valer e proteger esses interesses dá-se-lhes o direito de eleger os seus órgãos próprios. Problemas surgem quando o governo age como se não acreditasse no pluralismo dos centros de poder que a própria constituição impõe e envolve as câmaras num jogo em que ninguém ganha. A centralização avança cada vez mais, cresce a insatisfação nas ilhas e a capital sofre em termos de segurança, saneamento, habitação, energia com o crescimento galopante da população.
Um maior protagonismo de um movimento de cidadania apro­veitando as oportunidades para uma intervenção cívico-política oferecida pelo sistema eleitoral talvez tivesse o efeito de desengajar a tarefa de vencer os desafios locais das grandes contendas nacio­nais. Na falta desse travão da sociedade civil é de perguntar: de que vale organizar eleições autárquicas, gastar centenas de milhares de contos nas campanhas e no processo eleitoral se logo a seguir os órgãos eleitos são postos em causa em constantes disputas com ministérios, serviços desconcentrados e associações muitas vezes partidarizadas financiadas pelo Estado.
A Direcção