sexta-feira, abril 04, 2014

Campus Universitário: Praia ou São Vicente?

Há alguns meses circularam notícias dando conta da intenção do governo chinês em construir um campus universitário em Cabo Verde. Em análise estariam duas possíveis localizações para o campus: S. Vicente ou Praia. O Embaixador da China veio depois a público confirmar que a decisão caiu para o lado da Praia. A percepção de que a escolha feita, mas ainda não assumida pelo governo, já causava algum mal-estar, ficou claro na passada terça-feira durante o período dedicado a perguntas ao governo na Assembleia Nacional.
Questionado pelos deputados, o ministro do Ensino Superior explicou que o número de alunos actualmente no secundário na ilha de Santiago, 62 por cento do total, contra 13 por cento em S. Vicente, justificava que a opção fosse Praia. Segundo ele, os custos para alunos e famílias no prosseguimento dos estudos universitários seriam menores. O critério populacional reinou supremo na explanação do ministro. Em perguntas suplementares, a generalidade dos deputados dos partidos com assento parlamentar fizeram o governo saber da sua discordância.
Já em outros momentos, designadamente de localização da Escola de Hotelaria cuja missão principal entendia-se que era formar mão-de-obra para os hotéis ligados ao turismo devia ser a ilha do Sal. Parecia óbvio que assim fosse, considerando que escolas vocacionais devem situar-se na vizinhança das actividades económicas que vão servir. Dessa forma garantem-se sinergias que favorecem a formação e a inovação no sector e o desenvolvimento de uma cultura e de um ethos próprio da profissão nos futuros trabalhadores. A escola ficou na Praia. Aplicou-se o critério da população.
Cabo Verde é um país arquipélago com nove ilhas habitadas. Esta realidade, por um lado, obriga a constrangimentos vários e acarreta custos derivados da multiplicação de investimentos públicos para responder a necessidades similares. Por outro lado, cria uma interface mais rica na relação com o mundo e enriquece a nação com a diversidade de experienciais e as especificidades de cada ilha. Estratégias nos mais variados domínios da vida da nação devem ter em devida conta a necessidade de manter as ilhas com dinâmicas económica, social e cultural de forma a contribuírem efectivamente para fazer o país mais rico. Decisões com base em critérios únicos e simplistas como número de habitantes e capitalidade são de evitar.
O centralismo tende a gerar mais centralismo. Num momento em que se apregoa que pela via da governação electrónica, e-government, tudo pode ficar interconectado não é imediatamente compreensível porque grande parte das estruturas do Estado tem que se localizar na capital. A concentração de recursos que isso inevitavelmente acarreta não deixa de afectar negativamente o interior de Santiago e as outras ilhas. Um sentimento de marginalização e abandono tende a instalar-se particularmente se há quebra na dinâmica económica por enfraquecimento das relações com o exterior, seguida de saída dos jovens e definhamento das elites locais. A convergência de opiniões de todos os sujeitos parlamentares que se verificou na última sessão da Assembleia Nacional quanto à composição do Conselho de Desenvolvimento Regional, dois representantes por cada ilha, foi sintomática. Mostra que prevalece a posição de que as vozes das ilhas devem fazer-se ouvir.
A universidade não é mais uma escola a acrescentar à frequência do ensino básico e do liceu. Historicamente e em todas as sociedades as universidades têm funções outras, mais elevadas, de ser, por excelência, centros de saber, centros de criação científica e artística e espaços privilegiados de expressão da liberdade intelectual. Onde se localiza, a forma como se organiza e a autonomia que reclama não é arbitrária. Procura potenciar no máximo as condições que lhe permitem cumprir as suas múltiplas missões funções em prol do saber e proporcionar aos estudantes e professores experiências e intercâmbios os mais profícuos e variados. Ainda procura valer-se da comunidade circundante para ter impacto o mais abrangente possível na comunidade nacional e exercer influência nos assuntos cruciais que preocupam o país. Quando a cidade e a universidade acertam na sua relação, os efeitos nas duas entidades reforçam-se mutuamente. A vida na cidade fica mais rica com o número e qualidade dos procuram o saber e a experiência académica oferecida e a universidade por sua vez ganha em prestígio e a capacidade de contratar os melhores professores e investigadores e recrutar os melhores alunos.  
Localizar um Campus universitário não é escolha para ser feita com base num único critério. Vários factores devem ser ponderados. Um não menos importante deve ser propiciar ao estudante natural de cada ilha a possibilidade de se relacionar nos anos de universidade com realidades e pessoas de todas as ilhas e de poder se rever na diversidade e riqueza de experiências que enformam a nação cabo-verdiana. O Ministro deixa entender que o assunto da localização do Campus pode não estar fechado. Seria de todo aconselhado que o governo fizesse uma discussão aberta sobre onde melhor localizá-lo e explicar a estratégia nacional que justifica a escolha feita.

   Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de  2 de Abril de 2014

quarta-feira, março 26, 2014

Sustentabilidade




Expresso das ilhas, edição 643 de 26 de Março de 2014

Editorial


A agência de notação financeira FITCH veio mais uma vez baixar o “rating” de Cabo Verde. As razões apontadas foram que a dívida pública está a crescer muito acima do previsto, aumentando o risco de insustentabilidade. A FITCH espera que a dívida se vá situar a 115% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2015 e cresça a 120% em 2017. A agência, embora reconheça que grande parte da dívida é concessional com o respectivo serviço situando-se num nível relativamente baixo de 4,3% das receitas em divisas, considera que o estado das finanças externas é fraca o que torna o país mais susceptível a choques externos. Perspectivas mais positivas dependerão de indícios futuros de que os investimentos em infraestruturas estão a contribuir para o crescimento económico e para um desenvolvimento alargado do sector privado.
As reacções de sectores próximos do governo como se vêm tornado hábito foram de desvalorizar a baixa no rating da FITCH. A justificação é sempre a alta concessionalidade da dívida e o tempo longo que o país o irá amortizar, factos que a FITCH não ignora, mas que não alteram a percepção do risco ligado à existência de uma dívida pública elevada. Se falharem as previsões de crescimento da economia, mesmo com o actual serviço de dívida, a situação poderá tornar-se crítica. E os sinais não são animadores.
As centenas de milhões de euros postos nas obras por todas as ilhas não conseguem fazer a economia ir além de um crescimento anémico. A FITCH põe a taxa média de crescimento nos últimos 5 anos em 1,5%. O investimento privado nacional e estrangeiro que deveria substituir o financiamento público da economia ainda não se mostrou de forma significativa. Manter só o Estado a dinamizar a economia não parece alternativa viável a prazo. Cabo Verde vai graduar-se a país de rendimento médio e, em consequência, o acesso a financiamentos concessionais ficará mais difícil. Por outro lado, mais endividamento externo aumentará o risco soberano com reflexos na confiança dos investidores e operadores económicos. O círculo vicioso que tal cenário poderá representar tem que ser rompido nalgum ponto.
A preocupação com a sustentabilidade deverá ganhar mais peso em relação à atenção que se põe na procura de novos financiamentos. Estes, na falta de um conjunto de medidas viradas para potenciar investimentos realizados, começam a apresentar resultados decrescentes e ainda ajudam a aumentar a dívida existente. É um facto, por exemplo, que asfaltar mais estradas não traz grandes benefícios adicionais se entretanto não se melhorou a produtividade, não se diminuíram custos com factores como a água e a energia, não se desenvolveram meios de transporte num quadro de um mercado unificado e a prestação dos serviços públicos não mudou radicalmente a sua postura no sentido de maior eficiência e eficácia. Importa, por isso, para dar sustentabilidade à economia, imprimir um outro dinamismo ao sector privado como via já provada para fazer o país crescer a taxas elevadas e criar emprego de qualidade. 
Confiança é essencial no mundo actual. Existe a percepção generalizada que Cabo Verde tem uma democracia funcional onde vigora o primado da lei. Há que complementar isso com a certeza de um engajamento genuíno e consequente da governação do país no sentido da criação de um ambiente de negócios catalisador de um sector privado dinâmico capaz. Avaliações como a da FITCH ou de outras organizações de referência não podem ser simplesmente postas de lado por aparentes rasgos de coragem, voluntarismo ou esforço em passar imagem de positivo. Não se pode ignorar que são levadas em devida conta por todos os investidores e operadores económicos que ponderam entrar no mercado cabo-verdiano.
O país precisa crescer, precisa exportar e precisa criar emprego. Só com esta base sólida é que os cabo-verdianos poderão sentir que os níveis de rendimentos já existentes, os ganhos em qualidade de vida já obtidos e as metas atingidas no quadro dos objectivos do milénio serão sustentados e melhorados. Ninguém vive indefinidamente de actividades altamente subsidiadas como as da agricultura, particularmente se for em produtos de fraco valor acrescentado. Nem tão pouco de exportações como as do pescado se elas dependerem, quanto a competitividade, do sistema de preferências oferecidos por países amigos. As políticas no curto, médio e longo prazo devem ser articuladas para assegurar a sustentabilidade.
Dos governos espera-se que criem as condições para que os cidadãos com a sua energia, criatividade e espírito empreendedor se assumam como agentes centrais nesse processo, enquanto legitimamente procuram a realização pessoal e prosperidade para si próprios e família. Ninguém quer governo que se veja como agente económico principal e induza dependência nas pessoas e na sociedade daquilo que consegue angariar da generosidade dos outros.


quarta-feira, março 19, 2014

Acordo de readmissão: os equívocos




Expresso das ilhas, edição 642 de 19 de Março 2014

Editorial

O “Acordo de Readmissão de Pessoas que Residem sem Autorização” com a União Europeia vai ser ratificado na próxima semana pela Assembleia Nacional. Com o voto dos parlamentares cabo-verdianos terminará o processo iniciado em 2007 com a Parceria para a Mobilidade, uma proposta da UE a dois pequenos países, Moldávia no Leste europeu e a Cabo Verde na costa ocidental africana, visando a resolução dos problemas de imigração ilegal no seu território. Na mesma sessão do Parlamente estará para ratificação também o acordo de facilitação de vistos, negociado em simultâneo com o acordo de readmissão, como incentivo para a sua aprovação e adopção.
Acordos de readmissão constituem de facto acordos de expulsão de imigrantes ilegais com recurso a procedimentos administrativos acelerados. Não são por isso bem aceites pelas populações onde há sempre quem aspire um dia a emigrar ou quem viva de remessas de familiares já emigrados. Compreende-se porque os governos resistem às pressões da UE e a negociações em que se ponderam custos e benefícios e que se arrastam por vários anos. Conforme o interlocutor e a sua força negocial relativa face à EU, assim os países são contemplados por facilidades na circulação dos seus cidadãos na Europa. O ideal é conseguir-se a isenção total de vistos como ficou assente no acordo recente com a Turquia. O mínimo é o que coube a Cabo Verde e que consiste na simples facilitação de vistos para entidades públicas e privadas e personalidades que já de alguma forma conseguiam vistos de curta duração sem muita dificuldade.
Em Cabo Verde o discurso oficial da apresentação da proposta da Parceria para a Mobilidade da EU teve desde do início de forma implícita e as vezes explícita a promessa da livre circulação na Europa. Considerando os milhares de cabo-verdianos já residentes na Europa, e os muitos desejosos de uma oportunidade para emigrar, só se pode imaginar o impacto que tal discurso provocou no país e nas comunidades emigradas. No meio do entusiasmo gerado, fez-se por esquecer o que afinal é fundamental do acordo de readmissão: a luta contra a presença de pessoas sem autorização de residência no espaço comunitário. Com o tempo, o discurso oficial ganhou outras nuances e a isenção de vistos passou para um objectivo a longo prazo mas ainda contemplava-se a emigração legal durante períodos pré-determinados. No arranjo final constata-se que se ficou pelo mínimo, muito aquém do imaginado ou do que a população entendeu que lhe foi dito quando lhe apresentaram a Parceria para a Mobilidade.
Comunidades com milhares de cabo-verdianos existem em vários países da Europa. Como emigrantes sofrem desproporcionalmente os efeitos da crise que assola a Europa desde 2008. Apesar das dificuldades dos últimos tempos, as remessas que enviam para o país, muitas vezes em solidariedade com os familiares, não têm alterado significativamente. Com o desemprego persistente as coisas tendem para o pior e em muitos casos é o próprio estatuto legal enquanto residente que pode ficar em causa. A possibilidade de serem expulsos num processo célere no âmbito de um acordo de readmissão é a surpresa que menos esperariam. Os benefícios de tal acordo dificilmente irão superar os enormes custos que eventualmente os nacionais que já estão no espaço europeu terão que suportar. A relação custo/benefício do acordo deveria ser ponderada publicamente de forma clara e transparente.
Cabo Verde é o primeiro país da África Subsariana que assina um acordo de readmissão com a União Europeia. Negociações com outros países, designadamente com o Senegal, arrastam-se não obstante toda a pressão da União Europeia. Não é de espantar que assim seja. O acordo além de acelerar o processo de expulsão de ilegais nacionais do espaço europeu também obriga a quem o assina a receber cidadãos de países terceiros em situação ilegal quando comprovado que partiram dos seus portos e aeroportos. Claramente que isso cria uma situação extremamente complicada. Se a Europa não consegue convencer os países de origem em os aceitar, quem espera que um país como Cabo Verde o poderá fazer. A Rússia nas negociações do acordo de readmissão com a UE obteve uma moratória de três anos para começar a receber cidadãos estrangeiros. Tempo para se preparar institucionalmente e negociar bilateralmente com os seus países de origem. 
Na próxima semana avança-se para a ratificação do acordo de readmissão sem que estudos e dados concretos sejam conhecidos do público quanto ao impacto que o acordo terá nas comunidades cabo-verdianas na Europa. Não se sabe qual o número de cabo-verdianos que poderão estar ilegais e ser expeditamente reenviados para o país com mulher e filhos menores. Não há previsão do número de estrangeiros em situação ilegal idos de Cabo Verde e que serão recambiados no âmbito do acordo. Ninguém conhece os preparativos, designadamente os institucionais, e os custos necessários já incorridos para se implementar o acordo. É evidente que o governo tem ainda muitas explicações a prestar à nação sobre esta matéria. Ficamos à espera.   

quarta-feira, março 12, 2014

Saltos em frente



 


Expresso das ilhas, edição 641 de 12 de Março de 2014
Editorial

O Primeiro Ministro José Maria Neves anunciou no passado dia 10 de Março um segundo fórum nacional de transformação “para traçar novos rumos para a nação”. O  I Fórum realizou-se em 2003 e foi, segundo ele, um “momento de importância transcendente” e serviu para definir “uma visão de futuro e traçar caminhos”. Hoje considera a missão cumprida com “o ultrapassar da fase de sobrevivência e caminhar para um desenvolvimento sustentado com base na competitividade”. O II Fórum diferentemente do Iº projectar-se-á não por dez anos mas por 15 anos realizando os objectivos de fazer Cabo Verde um país desenvolvido em 2030.
Nestas declarações do Sr. Primeiro Ministro chama logo a atenção o facto de essas datas desses fora transformacionais, 2003 e 2014, não coincidirem com os momentos em que o voto popular sufraga programas de governação. Tão pouco o tempo que exigem para a implementação dos respectivos planos estratégicos, 10 anos para o I Fórum e 15 anos para o IIº coincide com o mandato popular de 5 anos. É evidente que tudo isso briga com a própria noção de democracia no que respeita à legitimidade no exercício do poder: os mandatos fixos, a responsabilização pelos resultados e a prestação de contas, e a alternância na governação. Não se está propriamente no mundo dos “planos quinquenais sucessivos” e dos “grandes saltos em frente”.
 No nosso sistema democrático, o governo no início do mandato apresenta ao Parlamento um programa de governação válido por cinco anos baseado na plataforma eleitoral e nas promessas com que ganhou as eleições. Não se espera que venham criar fora que redefinam o programa aprovado na Assembleia Nacional e estendam o tempo para a consecução de objectivos para além da legislatura. A legitimidade democrática para se realizar o “o quê e como” tem que ser assegurada nos momentos certos. Tentar definir em fórum governamental o que compete de facto ao pleito eleitoral de 2016, não é curial. Apresentado sob a capa de consenso nacional e amparado na muleta do financiamento do Escritório das Nações Unidas poderá ser visto como tentativa de esvaziamento do indispensável debate sobre a situação actual do país e sobre propostas alternativas de governação que precederá à realização das eleições legislativas.
Quer-se também com o anúncio de um II Fórum proclamar que Cabo Verde estará a entrar numa nova etapa já com a devida preparação para ser um país desenvolvido em 2030. De facto, em 2014 Cabo Verde passa a ser considerado país de rendimento médio, significando isso essencialmente redução da ajuda externa e o fim do acesso a empréstimos concessionais. Com a graduação a rendimento médio assume-se que no país já existe estrutura produtiva diversificada, capacidade de atracção de capital directo estrangeiro em volume e qualidade que ultrapassam os fluxos da ajuda externa e credibilidade para se financiar no mercado internacional nos termos comerciais do mercado. A realidade, porém, é que talvez em demasiados casos, países que se graduam, depois vêem-se apanhados numa armadilha caracterizada por crescimento anémico, elevado desemprego e deterioração dos equilíbrios externos, o chamado “middle income trap”.
O ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso numa entrevista recente ao jornal Público alertou para os riscos de mesmo um país colosso como o Brasil ser apanhado nessa armadilha. As razões para isso, segundo ele, estão no facto de não se ter dado continuidade às reformas estruturais e mudanças no ambiente de negócios que tornariam os serviços públicos mais eficientes, o capital humana mais produtivo e a economia globalmente mais competitiva. Adiamento das reformas deveu-se em parte à euforia dos anos dos altos preços das commodities, matérias-primas e produtos agrícolas. A factura veio depois com o baixo crescimento, desemprego e agitação social devido à quebra na expectativa das pessoas.
Em Cabo Verde, a euforia que atrasou reformas tem uma base ainda mais precária. Sustenta-se essencialmente na ajuda externa e no acesso a créditos concessionais que permitiram que o país parecesse moderno em betão e asfalto enquanto a administração pública permanecia ineficiente e hostil à iniciativa privada, deixava-se a base da economia afunilar-se ao turismo e permitia-se que o investimento na educação e na formação dos jovens não contribuísse grandemente para sua empregabilidade. Em consequência, no momento de graduação, a dívida pública situa-se oficialmente em 98% do PIB, o desemprego atinge os 16,8%, o crescimento económico limita-se a 1,5% do PIB e no ranking de Competitividade e do Doing Business, Cabo Verde está respectivamente na posição 122 em 148 países e 121 em 189 países. 
Impõe-se que os cabo-verdianos enfrentem a situação com toda a liberdade para melhor decidirem sobre que orientação futura dar ao país. Isso porém faz-se no período eleitoral próprio. Nenhum fórum dirigido pelo governo deve querer substituir o que deve ser o processo próprio para se debater a governação do país e a escolha de quem o deverá liderar. Fugas em frente para se procurar eximir de responsabilidades, para evitar o debate aberto dos problemas e impedir que propostas alternativas sejam abertamente apresentadas não deviam  merecer apoios ou patrocínios de ninguém.

terça-feira, março 04, 2014

Provocações no Parlamento



A sessão da Assembleia Nacional do mês Fevereiro terminou no meio de recriminações mútuas entre o partido do governo, o PAICV, e maior partido da oposição, o MpD, quanto à forma como os trabalhos parlamentares são conduzidos. À semelhança do que aconteceu em outras situações, o ambiente de tensão acabou por degenerar em incidentes com forte impacto negativo na opinião pública. A frequência com que estes incidentes vêm acontecendo interpela a todos. De facto, é de se perguntar quem poderá estar a beneficiar com a perda de credibilidade do centro do pluralismo no sistema político e da sede da fiscalização contraditória da acção do governo. Também deve-se perguntar se os incidentes resultam espontaneamente do exacerbar das tensões ou serão provocados com o objectivo de causar o maior estrago possível na imagem pública do Parlamento e dos deputados.

Curiosamente nota-se o grande esforço da comunicação política do governo e da sua maioria em culpar os deputados da oposição pelos incidentes. Aponta-se o dedo precisamente aos que aparentemente menos ganham com a perda de prestígio do único palco institucional que têm para se fazerem ouvir, para questionar o governo e para se apresentarem como alternativa de governação. Se a postura dos partidos da oposição em relação às iniciativas do governo se caracterizasse por um sistemático obstrucionismo, talvez a acusação até fizesse sentido. Mas a realidade é outra como se pode facilmente constatar. A generalidade das leis é votada sem voto contra e muitas vezes por unanimidade. Na mesma sessão plenária de Fevereiro, onde se verificaram os incidentes, nem uma única proposta do governo teve votos contra do partido da oposição, o MpD. Nas sessões anteriores, com excepção da lei do orçamento e uma outra lei aconteceu o mesmo. Mesmo leis requerendo maioria de dois terços dos votos passam muitas vezes sem qualquer dificuldade. Pergunta-se então onde está o problema?

Ânimos na Assembleia Nacional, em geral, agitam-se quando se trata da fiscalização dos actos da actividade do governo. E as razões são visíveis para todos. No debate, o governo mostra-se muitas vezes relutante em responder às interpelações da oposição. A maioria que o suporta faz uma espécie de barreira com questionamentos tendencialmente desviantes do tema em debate. Os deputados da oposição pressionados pelo relógio porque têm menos de um terço do tempo total reagem ao silêncio do governo e às pressões dos colegas da maioria. A tensão sobe em espiral e fica criado ambiente propício para actos provocatórios causadores de incidentes graves.

Um alvo favorito das provocações é o Dr. Carlos Veiga, como se viu na semana passada. Assim é porque se insiste em discussões intermináveis no Parlamento sobre a década de noventa. Tais discussões iniciadas na maior parte dos casos pelo governo e a sua maioria têm o condão de desviar completamente o foco do debate. Os sujeitos parlamentares, em vez de se incidirem sobre as questões presentes e futuras do país, entretêm-se a mirar num passado que nunca é o mesmo todas as vezes que se vai visitá-lo com os olhos do presente. Esse exercício estéril tem a agravante de quase sempre desembocar em provocações dirigidas ao Dr. Carlos Veiga pelo seu protagonismo enquanto primeiro-ministro nas grandes transformações políticas e económicas dos anos noventa. E daí nunca sai coisa boa, como se constatou há dias.


A estabilidade do sistema democrático depende em muito do respeito pelos direitos dos indivíduos e das minorias e do pleno exercício pelas instituições das suas competências próprias. Na ausência disso, corre-se o risco do sistema degenerar facilmente numa tirania da maioria. O governo é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional. Não pode fugir ao questionamento dos deputados e ao seu dever de prestação de contas. Quem quer que seja que obstaculiza esse dever básico de os governos se justificarem com resultados a implementação do seu programa e o cumprimento de promessas eleitorais não pode arrogar-se em defensor das instituições da democracia.

O Parlamento como órgão plural e centro do contraditório é fundamental para a democracia. Ao seu presidente, embora originariamente deputado da maioria, exige-se que dirija os trabalhos com isenção e imparcialidade, mas com especial preocupação pela realização plena dos direitos das minorias parlamentares constantes do regimento designadamente os de interpelação e de perguntas ao governo e o de instauração de inquéritos parlamentares. Também deve saber gerir bem a relação entre o governo e o parlamento. O governo é sujeito parlamentar mas não é membro da Assembleia Nacional e tem o dever de prestar contas. O presidente deve procurar conduzir as reuniões plenárias de modo a que a formalidade dos procedimentos e o respeito e a deferência mútuas entre os sujeitos parlamentares garantam maior eficácia aos trabalhos. Não deve deixar qualquer espaço para provocações que, aproveitando-se da tensão normal dos debates, crie incidentes graves. A boa imagem e a eficácia da actividade parlamentar dependem em grande medida da confiança que todos depositarem na capacidade do presidente em assegurar-se que a AN é o órgão legislativo por excelência e o principal fiscalizador da acção do Governo. Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Março de 2014

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

Fetiche pelo betão e alcatrão


A Sessão Plenária de Fevereiro na Assembleia Nacional tem sido dominada pela discussão entre os partidos e o governo sobre as obras públicas no país. O MpD requereu uma interpelação ao governo sobre a gestão e execução de obras públicas de infra-estruturas 2001-2012. O relatório da Comissão de Inquérito requerido pelo PAICV e incidindo sobre um período de mais de vinte anos será debatido pelos deputados. Não há grandes novidades nos argumentos esgrimidos pelas partes. O governo e o partido que o suporta esforçam-se por demonstrar que obras são sinal inequívoco de progresso. Os partidos de oposição contrapõem que os resultados dos enormes investimentos, que já vão em mais de um bilhão de dólares, ficam aquém do anunciado e que o impacto dos mesmos no crescimento económico e na criação do emprego está muito abaixo do satisfatório.

Obras públicas é a grande tentação dos governos. Construir estradas, portos, aeroportos, escolas, hospitais, passa a ideia de um governo com visão, com vitalidade e com capacidade de execução. Os cidadãos e a sociedade são facilmente apanhados no ambiente criado por grandes expectativas e por um futuro prenhe de possibilidades. As várias fases dos projectos, desde do seu anúncio ao país, passando pela engenharia financeira, lançamento de primeira pedra, visitas regulares de governantes até à inauguração com “pompa e circunstância” ajudam a criar no público toda uma aura de transformação e de mudança radical para uma vida melhor. A facilidade como vários desses empreendimentos posteriormente se tornam elefantes brancos, deixa perceber que algo não correu bem. A infraestrutura criada ou não favoreceu alguma vantagem comparativa já existente, ou não permitiu, como desejado, a exploração de recursos naturais, ou não baixou os custos de factores como energia e água, ou não facilitou o acesso a mercados expressivos ou ainda em muito pouco contribuiu para a melhoria da competitividade dos agentes económicos à sua volta. De qualquer forma, as esperanças postas na sua edificação acabam por não se realizar plenamente. Falhas repetidas nesse sentido porém não impedem alguns governos de insistir nas mesmas práticas.

Há quem pense que construir infraestruturas é mais fácil do que criar ambiente institucional adequado para a iniciativa individual e empresarial. Que fazer obras não tem a complicação de lutar contra os interesses instalados em vários pontos nevrálgicos do país que contrariam reformas dirigidas para a maior eficiência e produtividade na administração pública, nas câmaras municipais, na gestão dos portos e aeroportos, nos transportes aéreos e marítimos, na produção de energia e água e nas telecomunicações. Que edificar escolas e liceus não tem as dificuldades e a complexidade das acções necessárias para implementar uma política de qualidade e excelência no ensino. E que inaugurar centros de formação profissional não exige tanto como conceber e executar cursos adequados às necessidades do mercado e afinados para dar maior empregabilidade aos jovens. Os governos insistem nestes métodos porque os ganhos de curto prazo, em grande parte de natureza política e eleitoral, compensam largamente o risco de, a médio e longo prazo, o empreendimento vir a ficar aquém das expectativas e não garantir o retorno necessário para pagar o investimento realizado.

Um Deputado do PAICV afirmou no Parlamento que na inauguração de estradas a alegria dos condutores e das pessoas do povo não as deixava que se preocupassem minimamente com o dinheiro metido nas obras. Brandiu esse argumento contra qualquer eventual objecção da oposição quanto ao processo de financiamento, opções na execução e custo final. Os ganhos políticos de alimentação do fetiche pelo betão e o asfalto são aparentemente tão grandes que cegam perante as duras consequências que políticas semelhantes tiveram recentemente em países como Portugal. Para os portugueses e para a economia portuguesa o reajustamento, na sequência de governos que abusaram do asfalto e do betão para mostrar resultados e paralelamente não fizeram as reformas estruturais que se impunham, tem sido altamente doloroso.

A euforia com as obras em Cabo Verde continua. Como foi dito no Parlamento, hoje todos parecem fiscalizadores de obras: uns a criticar, outros a reivindicar mais e outros ansiosos por inaugurar. O fetiche tomou conta de todos. O exemplo de outros países que depois da euforia passaram por tempos difíceis não quebra o encantamento. Nem tão pouco o facto do bilhão de euros investido em infraestruturas não ter baixado o desemprego, não ter fortalecido o sector empresarial e não ter sido factor de atracção de capital directo estrangeiro. A mágica do momento nem permite que se veja a dívida pública acumulada e os défices públicos que conjuntamente diminuem as opções de futuro para quem quer investir, empreender e de qualquer outra forma contribuir para a prosperidade do país. Espera-se que o reajuste inevitável, que provavelmente se seguirá, não seja dolorosa e que o país encontre os caminhos certos para uma maior produtividade, crescimento e mais emprego.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 26 de Fevereiro de 2014

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Glorificação do partido único



A guerra das datas continua. O líder parlamentar Felisberto Vieira quer que o dia 19 de Fevereiro de “abertura política” do então partido único PAICV seja comemorado a par com o 5 de Julho, dia da independência nacional, e o 13 de Janeiro dia da Liberdade e Democracia. Em conferência de imprensa na terça-feira, dia 18 de Fevereiro, anunciou que o seu partido vai celebrar com várias actividades a data em que se criou “espaço para instauração do regime multipartidário” e convidou todos os cabo-verdianos a assinalarem a efeméride como um dos “momentos marcantes da libertação de Cabo Verde”.


É evidente que o brandir do 19 de Fevereiro como data de celebração nacional visa despojar a sociedade cabo-verdiana do seu protagonismo na queda do regime do partido único e apresentar a liberdade e a democracia conquistadas pelo povo como dádiva de ditadores. A história, porém, não regista agradecimentos pelos que, ao fazer fuga em frente, no intuito de se manterem no poder, soltam forças sociais e políticas que os faz cair do pedestal e prosseguem restaurando direitos fundamentais dos cidadãos e devolvendo o poder soberano ao povo. Vinte anos passados, e já em democracia, não deixa de ser preocupante e inquietante ver o partido do governo insistir na glorificação das manobras de um partido único que na época procurava assegurar a sua sobrevivência num ambiente internacional crescentemente hostil a regimes totalitários e autoritários.


De facto, neste ano de 2014 não se celebram as tentativas feitas pelo Ceausescus, Honeckers e Jaruzelskis para conservar o poder. Nem mesmo Gorbachev é relembrado. Comemoram-se sim os quarenta anos da Revolução das Flores em Portugal. A importância da efeméride está no facto de que o golpe de estado militar do 25 de Abril desencadeou o que o cientista político americano Samuel Huntington chamou da Terceira Vaga da Democracia. Nos vinte anos seguintes muitos regimes autoritários e totalitários seriam substituídos por democracias. Até o inimaginável aconteceria: o derrube do império soviético e do domínio comunista na Europa de Leste.


Cabo Verde como parte do império português sentiu as lufadas de ar fresco trazidas pelo 25 de Abril mas a grande vaga da democracia acabou por passar ao lado. A liberdade respirada no pós-golpe em 1974 rapidamente reduziu-se à medida que o PAIGC autoproclamado único representante do povo da Guiné e Cabo Verde confinava os adversários e posicionava-se para receber sozinho o poder das mãos das autoridades portuguesas. A partir da independência a 5 de Julho de 1975, Liberdade e Pluralismo político foram efectivamente suspensos por um regime ditatorial chamado de partido único até que a vaga de democracia já na sua segunda fase simbolizada pelo derrube do Muro de Berlim em 1989, tornou insustentáveis esses regimes. Nos fins dos anos 80 e inícios dos anos noventa o mundo pôde observar fascinado à queda dos dominós dos regimes e partidos de inspiração leninista em todos os continentes.


Passados todos estes anos, o normal seria que reinasse consenso sobre os princípios e valores liberais e democráticos consagrados na Constituição da República. Certamente que não deveria haver qualquer espaço para elogio de actos do partido único e seus dirigentes que na lógica das coisas só serviam para o perpetuar no poder e manter a sua supremacia sobre os cabo-verdianos enquanto força dirigente da sociedade e do Estado. Insistir no resgate das suas acções e políticas não pode deixar de ter um efeito desestabilizador no país. Vindo de quem está a governar e exerce influência preponderante sobre o Estado, sobre os meios de comunicação social públicos e o sistema educativo do país, acaba por ter um efeito constrangedor no abraçar pleno dos valores da liberdade e da democracia e por brigar com a existência de uma academia livre, designadamente no domínio das ciências políticas e sociais. Neste particular, relembra os efeitos nocivos que nos Estados Unidos certas crenças religiosas e teorias acientíficas sustentadas por alguns grupos políticos têm sobre os indivíduos, a sociedade e o sistema de ensino.


Lá como cá, o ambiente político que se cria com tais fugas à realidade dos factos não é o de consenso como pretende o líder parlamentar ao apelar que se tome como datas nacionais actos de pura sobrevivência do então partido único. Realmente o que se reproduz é um ambiente de crispação e intolerância, de lutas ideológicas sobre temas anacrónicos e guerrilha política permanente. Em Cabo Verde, é só ver o ridículo que é o ataque selvagem sistematicamente feito ao processo de construção das instituições democráticas nos anos noventa enquanto se procuram razões para glorificar as políticas do partido único.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 19 de Fevereiro de 2014 Humberto Cardoso