sexta-feira, janeiro 30, 2015

Mudança de gerações

Felisberto Vieira em declarações na semana passada falou de mudança de gerações no PAICV na sequência da sua derrota face à Janira Hopffer Almada na corrida para presidente desse partido. O apoio dele vinha de actuais dirigentes, deputados e antigos dirigentes. O grosso do suporte da candidatura vencedora era constituído por quadros que embora jovens já ocupam posições importantes na administração pública e noutras entidades públicas e privadas em que o Estado tem fortes interesses. Gente que não esconde a sua ambição de ir mais longe e depressa.
Talvez em reconhecimento desse facto Felisberto Vieira fez da defesa do que chamou “ideais de Cabral” um dos eixos estratégicos da sua campanha. Em vários encontros repetiu “que comprar militantes em troca de favores” não é seguir “os valores e ensinamentos de Cabral”. Não teve muito sucesso aí e perdeu ficando pelos 40 por cento dos votos, uma percentagem que um mês depois no Congresso do partido cairia para 28,8 por cento confirmando o movimento de realinhamento de muitos com a líder eleita. Pelo desfecho do confronto pode-se provavelmente concluir que o que mais move a nova geração de políticos não são tanto os ideais mas antes a ambição de realização rápida. Uma postura que a realidade do país parece favorecer.
A situação socio-económica de Cabo Verde não é a melhor. Ao crescimento raso dos últimos anos e ao desemprego preocupante particularmente dos jovens vem-se juntar a percepção crescente da fragilidade do país face a qualquer crise. Aos problemas com a insegurança e as dificuldades em ter uma justiça célere somam-se as ansiedades com o sistema de transportes inter-ilhas devido a desastres e quási-desastres recentes, dúvidas quanto ao que realmente as crianças e jovens estão a aprender nas escolas, liceus e universidades e preocupações em conseguir benefícios do sistema de saúde em linha com os investimentos feitos. Vias para a realização pessoal e profissional estreitam-se quando há cada vez menos espaço para o sector privado e a carreira noutros sectores está contaminada pela política que dispensa favores, recompensa lealdades e não reconhece o mérito.
Em tal ambiente de oportunidades minguadas em todos os sectores, a captura do Estado e dos acessos e recursos que pode disponibilizar torna-se no grande prémio a cobiçar e a conquistar. Com a economia privada em franca contracção, o Estado agiganta-se no todo nacional e quem o dirige posiciona-se claramente no ”topo da cadeia alimentar”. Sem possibilidade de actividade autónoma, muitos acabam por estabelecer relações de dependência com os detentores do poder e os provedores de benefícios sociais. Abre-se assim o caminho para várias formas de corrupção, entre as quais, a corrupção eleitoral, bastas vezes denunciada.
O fenómeno não é exclusivo de Cabo Verde. Cedo ou tarde acaba por acontecer nos países em que fluxos externos não derivados do esforço nacional sejam eles ajudas, empréstimos baratos ou fundos estruturais a fundo perdido ganham peso na economia nacional. É o que aconteceu com vários dos países do Sul da Europa. Na Grécia atingiu proporções catastróficas precipitando a crise da dívida soberana que tem hoje a Europa de joelhos. Sempre que não se usa estrategicamente a “ajuda” para, num futuro próximo se libertar dela, surgem distorções graves. Em consequência, mais remota fica a possibilidade de ultrapassar a dependência e colocar o país no caminho do crescimento económico e do desenvolvimento sustentável.     
O Sr. Primeiro-Ministro no encontro da semana passada com empresários, pela enésima vez, reconheceu que a administração pública precisa “promover negócios, promover empregos e promover investimentos”. O problema é que o PM já entrou no seu décimo quinto ano a dirigi-la, mas a sensibilidade da administração em relação à actividade das empresas continua basicamente a mesma apesar das repetidas promessas em fazer as mudanças que se impõem para tornar o país competitivo e melhorar o ambiente de negócios. De facto, não é visível que o Estado esteja a ficar mais competente nem que aumente o seu engajamento em prol da iniciativa privada. A situação das empresas nas ruas da amargura, após muitas centenas de milhões de euros em investimento público, é prova disso. Para isso contribui a excessiva partidarização da administração pública que se tem revelado altamente prejudicial não só em termos de mobilização de competências como também da própria articulação do Estado no seguimento e materialização das decisões dos governantes. Vários empresários e investidores queixam-se de bloqueios, ausência de respostas e entraves diversos.   

A ordem natural das coisas é que haja rejuvenescimento das organizações políticas e mudança de geração na direcção das estruturas partidárias e nos círculos de governação do país. Com essa dinâmica espera-se que globalmente se ganhe em competência e se aprimore o sentido de serviço público e não o contrário e só sobeje ambição pura. Governar Cabo Verde deve ser sempre um acto de coragem e de idealismo. No mundo difícil e complexo de hoje governar requer a maior competência possível e a abnegação necessária a favor das gerações actuais e futuras. As eleições de 2016 não devem constituir uma corrida para assegurar os parcos recursos a favor do poder de uma minoria. Deve ser a via para levar os melhores a trabalhar a fim de garantir que todos consigam realizar-se e prosperar num Cabo Verde a crescer e a desenvolver-se. 

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 28 de Janeiro de 2015

sexta-feira, janeiro 23, 2015

Quando a culpa morre solteira

É espantoso o zelo que o governo demonstra na procura de culpados e de bodes expiatórios para tudo o que corre mal no país. Dessa forma evita assumir a sua responsabilidade. Exemplo recente viu-se no discurso do Sr. Primeiro-ministro na apresentação de cumprimentos de Ano Novo ao Presidente da República. Considerou 2014 um ano muito difícil e com “constrangimentos restritivos de crescimento”. Logo de seguida pôs culpa na crise internacional, no ébola, na seca e na erupção do vulcão do Fogo, mas há muito que se tornara evidente que 2014 seria mais um ano de crescimento raso. O FMI no início de Outubro, antes de se fazerem sentir os efeitos do ébola, da seca e do vulcão, tinha revisto em baixa, de 3,2% para 1% do PIB, o crescimento da economia de Cabo Verde para 2014. Na época só a ministra das Finanças teimosamente contestou os dados do FMI. 
Ainda no afã de justificar tudo, o PM, sem mencionar o naufrágio do navio Vicente, foi dizendo no seu discurso que “mudanças climáticas têm provocado substanciais alterações nos nossos mares, com os consequentes perigos para a navegação marítima”. A dúvida que fica é se o barco se afundou com passageiros a bordo, porque os mares estão especialmente perigosos devido hipoteticamente a mudanças climáticas ou porque – como se pode tirar das declarações públicas de pessoas envolvidas, de profissionais da área e de entidades do sector – houve falha efectiva da regulação marítima, do controlo portuário e do sistema de busca e salvamento no país. A dúvida introduzida é suficiente, porém, para, logo à partida, se relativizar a culpa das autoridades envolvidas. 
A não assunção plena das responsabilidades por quem de direito cria problemas graves de governação. Assim é porque na democracia dá-se à maioria saída das eleições o poder de governar por um tempo limitado e no quadro de um programa com objectivos e metas claros e espera-se que cumpra o prometido e que assuma eventuais falhas. Por isso, a relação governo/cidadão não pode ser um jogo de atirar culpa para o passado porque quem ganha o direito de governar fá-lo com a promessa de corrigir os erros do passado e de potenciar o legado recebido. Também quem governa não pode desculpar-se com a suposta inércia ou resistência de outros porque ganhou fazendo acreditar que sabia construir vontade política alargada para realizar os objectivos fundamentais de paz, de prosperidade e de qualidade vida para todos. E a relação governo/sociedade não pode ser a de procurar esvaziar críticas com declarações de que não é possível fazer tudo de uma vez. Obviamente que ninguém espera dos governos que resolvam tudo e de uma vez só. Exige-se porém que cumpram o que prometeram e o que programaram realizar.
Quando os sinais de desresponsabilização se mostram presentes em todas as circunstâncias é de se preocupar muito a sério. De facto, o jogo do gato e do rato quanto à assunção das responsabilidades já não se passa só no Parlamento. Nota-se também quanto à insegurança nas ruas, em acidentes graves como o naufrágio do Vicente e emergências naturais como a erupção do Fogo, para só referir casos recentes. Pergunta-se em que outras circunstâncias menos publicitadas fica-se por este jogo de passar a culpa para o outro e se varrem os problemas para debaixo do tapete só para os ver reaparecer quando menos se espera. 
A cultura da fuga às responsabilidades que não deixa identificar devidamente os problemas e que não permite discuti-los até se encontrar forma de os resolver já há muito que vem causando problemas ao país. É só relembrar o que foram os anos dos problemas graves no sector de energia e água. A culpa foi para todos os lados. Quem devia assumi-la nunca o fez. A realidade é que hoje todos pagam em tarifas exorbitantes os anos de desresponsabilização. O mesmo agora se passa com a segurança. Ao longo dos anos permitiu-se que proliferassem armas nas mãos das pessoas, pouco se fez para conter a cultura de violência e optou-se por uma gestão populista do sector da segurança. Em consequência, o país ficou descalço perante as ameaças crescentes que vieram de fora ou emergiram nas cinturas urbanas país.
Em outras vertentes centrais para o futuro como a economia, a educação e a cultura de desresponsabilização gerou o que todos vêm no desemprego aflitivo e na inadequação da educação às necessidades do mercado. Mesmo quando um sector como o turismo se mostra promissor, porque procurado por investidores estrangeiros e alimentado por uma procura externa abastada, não consegue focalizar completamente a atenção do governo. O BCV numa das suas últimas publicações constata que já se verifica uma perda da dinâmica da procura turística em Cabo Verde por duas razões: a primeira porque o Norte de África está se a recuperar e Cabo Verde não soube utilizar a oportunidade para se tornar realmente competitivo; a segunda razão porque o Estado optou por assumir o papel de rentista que ameaça sufocar a galinha dos ovos de ouro.

O relatório do BCV dá conta que a tributação mais pesada com o aumento do IVA para 15 por cento e a criação da taxa turística contribuíram para tornar o destino Cabo Verde menos competitivo. Já se sabia que isso podia acontecer. Mas, como é habitual, não se confrontou este e outros problemas que afectam o turismo porque as críticas devem ser ignoradas. Também se o sector for afectado negativamente e os investimentos não forem realizados, empregos não forem criados e receitas diminuíram ninguém vai querer ser responsabilizado. Em Cabo Verde a culpa morre sempre solteira.  

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 21 de janeiro de 2015 

sexta-feira, janeiro 16, 2015

Viva a Liberdade de expressão

O Mundo assistiu nos últimos dias a extraordinárias manifestações de apoio à Liberdade e à Democracia. O assalto no dia 7 de Janeiro à sede do Charlie Hebdo e o frio assassinato de cartoonistas, jornalistas e polícias, perpetrados por terroristas a reclamar do Islão, provocou uma reacção geral de choque e repúdio. Todos interpretaram essa horrendo como um golpe directo desferido contra a rainha das liberdades: a liberdade de expressão do pensamento e a liberdade de imprensa. A possibilidade de um indivíduo poder se exprimir sem quaisquer peias, sanções ou represálias está no cerne de todo o sistema de valores sobre o qual se assenta o edifício civilizacional moderno que, fora algumas excepções, todos hoje se reclamam de pertencer. O sentimento geral na sequência da tragédia de Paris é apanhado de forma certeira na frase atribuída a Voltaire:  "Eu desaprovo o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo" 
O direito à liberdade de expressão de pensamento consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1789 proclamada após a Revolução Francesa, foi consagrada duzentos anos atrás na primeira emenda da Constituição americana e desde então encima o catálogo dos direitos fundamentais nas constituições democráticas. Cabo Verde, com a Constituição de 1992, passou a integrar esse comboio civilizacional posto em movimento desde o século XVIII pelo Iluminismo e que hoje, apesar das tentações totalitárias do fascismo e do comunismo e de derivas autoritárias de vária ordem, já tem a bordo uma boa parte da humanidade num número significativo de países em todo o mundo.
 O avanço aparentemente imparável das liberdades não significa porém que desapareceram os seus muitos inimigos. Também não significa que os descontentes acabaram por acomodar-se à nova realidade da democracia e do pluralismo. Os acontecimentos de Paris vêem demonstrar até que ponto alguns estão dispostos a ir para precisamente limitar esse direito. Até procuram justificar-se e atrair simpatia para as suas causas apresentando uma lista de ofensas que supostamente jornalistas e cartoonistas fazem às suas crenças, símbolos e religião. Ainda bem que as manifestações por todo mundo empunharam a bandeira “Je suis Charlie” para dar uma resposta frontal a esse tipo de argumentos. Vieram dizer que mesmo que o conteúdo produzido seja de mau gosto, ou mostre pouco senso e seja eventualmente ofensivo, ninguém tem o direito de impedir a sua expressão, muito menos de violentamente procurar suprimi-la ou de calar os autores. Num famoso acórdão (Falwell v Flynt) do Supremo Tribunal dos Estados Unidos  sobre a liberdade de expressão em que em causa estava curiosamente uma caricatura, a posição unanime dos juízes foi que “o facto da sociedade considerar ofensiva certo tipo de discurso ou de expressão não é razão suficiente para suprimi-la”. Pelo contrário, por que é opinião deve merecer “protecção constitucional”.
As democracias acreditam que o bem comum e o interesse público são atingidos na  livre troca de ideias porque como diz o Juiz Holmes o melhor teste da verdade é o poder de um pensamento de ser aceite em competição com outros no mercado de ideias. É evidente que estas posições já caldeadas nas democracias mais antigas ainda deparam com o cepticismo e mesmo hostilidade de quem considera o unanimismo, a procura permanente de consensos e os apelos patrioteiros como via de “ganhar tempo” e atingir rapidamente os objectivos. A realidade histórica, porém, demonstra que quem realmente consegue atingir os objectivos de paz, justiça e prosperidade são as democracias onde reina a liberdade e o pluralismo.
A experiência cabo-verdiana no pós 13 de Janeiro de 1991 também já deu provas do enorme potencial que pode advir de se ter uma sociedade mais aberta, mais ligada ao mundo e em que todos, esforçando-se por realizar as suas aspiração, contribuem para o progresso do país. O impulso para a modernidade e para o desenvolvimento que se verificou com a liberdade e a democracia não se compara com os tempos de unicidade de pensamento e de acção do regime de partido único. Mesmo assim ainda se ouvem vozes na sociedade a questionar o pluralismo, a deplorar a dinâmica governo/oposição e a favorecer a propaganda estatal em detrimento da livre troca de ideias no espaço público. Pressente-se que não desapareceu completamente o condicionamento do espírito ganho outrora quando vigorou uma linha do Partido –  havia ouvidos atentos onde menos se esperava para garantir o pensamento único e até se chegou a criminalizar o “boato”.
Na comemoração de mais um aniversário do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, é bom relembrar a importância crucial da defesa da liberdade de expressão do pensamento e da liberdade de imprensa para a vitalidade da sociedade no seu todo. Aproveita-se a oportunidade para manifestar solidariedade para com as vítimas dos atentados de Paris. Também é momento para reconhecer que um dos objectivos nos ataques à liberdade de expressão é induzir autocensura na comunicação social. A identificação do problema em Cabo Verde nos relatórios de várias organizações internacionais sugere que persistem constrangimentos ao seu exercício. Os ataques mais ou menos velados ao pluralismo, ao parlamentarismo e ao exercício do contraditório devem cessar. Inibe-se a livre troca de ideias, afirmam-se conveniências com prejuízo para a verdade e o factos e aumenta a intolerância, a crispação política e a polarização social: tudo o que se quer evitar para se ter liberdade, segurança e prosperidade. 


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 14 de Janeiro de 2015

sexta-feira, janeiro 09, 2015

Segurança, o bem essencial

Na passagem do ano 2014 para 2015 a segurança moveu-se firmemente para o topo das prioridades do país. O atentado contra o filho do Primeiro Ministro veio confirmar um padrão de confronto com o Estado que já se tinha manifestado antes em ameaças e mesmo violência contra magistrados e recentemente culminou com o assassinato da mãe de uma inspectora da polícia judicial. Para o Governo, em comunicado emitido no início da semana, não há dúvidas de que tais acções têm origem na criminalidade organizada e com conexões transfronteiriças e que configuram ataques às instituições do Estado de Direito e à Segurança Nacional.
Há muito que os cidadãos e várias forças da sociedade vinham pressionando as autoridades para que a segurança, a ordem e a tranquilidade pública fossem assumidas plenamente por quem tem a responsabilidade primeira de as garantir a todos: o Estado. A ansiedade pública face à criminalidade respondia-se muitas vezes com estatísticas que pretendiam provar que os níveis de criminalidade estavam a baixar. Outras vezes dizia-se que era uma questão de percepção sem real tradução na realidade da vida social. Recentemente pôs-se enfase na responsabilidade pessoal de “não circular por certos sítios e sozinhos”  e na responsabilidade familiar em não produzir ambiente propiciador do surgimento de thugs e gangs.
No entretanto, o país vinha assistindo à escalada de violência com o proliferar de homicídios em aparentes “ajustes de contas” entre gangs e narcotraficantes e com a utilização de armas de fogo nos assaltos chamados de caçubodi. Nota-se que que cada vez mais a violência não se limita a ameaçar com arma de fogo. Já se vai mais longe e aponta-se à cabeça aumentando extraordinariamente o perigo de um pequeno assalto se transformar numa tragédia como aconteceu recentemente em Pensamento. Por outro lado, a opção simplesmente por uma resposta “musculada” da polícia e pela intervenção do exército, a exemplo do que se constatou noutras paragens, poderá não ter sido a melhor para conter o crescendo de violência. Não foi capaz de pôr cobro à insegurança reinante e transmitir confiança às pessoas e às comunidades. Os delinquentes continuam armados não obstante as operações de “parar e revistar” feitos a milhares de pessoas. E o “stop and frisk”, embora não se traduza em número significativo de armas apreendidas, deixam no seu rasto ressentimento e hostilidade das comunidades, aprofundando a desconfiança mútua e diminuindo o grau de colaboração essencial ao trabalho da polícia.
É evidente que a violência interna é, em parte, alimentada e potenciada por factores externos. A inclusão de Cabo Verde nas rotas do narcotráfico em direcção ao mercado europeu não podia deixar de afectar o país e a sociedade. Surgiram intermediários e facilitadores de toda espécie, muito capital foi lavado e inevitavelmente desenvolveu-se um mercado interno mesmo que de pequena dimensão. O crime grande e pequeno instalou-se e a estrutura da segurança existente, apesar de absorver cada vez mais recursos públicos, tem-se mostrado incapaz de o conter.
A cooperação internacional com as autoridades europeias e americanas tem sido muito útil no combate aos crimes do tráfico e de lavagem de capitais. No âmbito da operação Lancha Voadora, em 2010, foram apreendidas 1,5 toneladas de cocaína no valor calculado de mais 100 milhões de dólares. Recentemente foram apanhados 500 quilos provavelmente com o valor de várias dezenas de milhões de dólares. Pelos valores envolvidos, é evidente que há um elemento de risco para o país, tanto em termos de eventual retaliação do crime organizado como também no julgar e manter em prisão os acusados e os culpados do crime de tráfico de drogas e de lavagem de capitais. O governo deve assegurar-se de que esse risco é devidamente avaliado e que a cooperação com os outros países na luta contra a droga também inclua a capacitação efectiva para se defender de eventuais retaliações vindas de interior ou do exterior.

O desafio ao Estado e às suas instituições lançado pelo mundo do crime tem que ser confrontado com firmeza e com uma liderança esclarecida. Não deve ficar qualquer dúvida sobre quem deve garantir a segurança e a ordem e a tranquilidade pública. É fundamental abandonar o hábito de varrer os problemas para debaixo do tapete e fingir que não existem, ou são invenção dos outros ou resultam de percepções deslocadas da realidade. No Plano Estratégico de Segurança Interna publicado em Agosto último vêem-se as falhas graves na coordenação das forças e entidades que fazem a estrutura de segurança do país. Urge ultrapassar tudo isso e produzir resultados. Que 2015 traga um Cabo Verde mais seguro, na liberdade e na democracia. 

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 7 de Janeiro de 2015

quarta-feira, dezembro 17, 2014

O Poder também corrompe



EDIÇÃO 681 DO DIA 17 DE DEZEMBRO DE 2014

Cabo Verde passa da posição 41º para 42º em 174 países no último Índice de Percepção de Corrupção publicado pela Transparência Internacional em Dezembro de 2014. Não é uma má posição, mas para muitos não traduz a realidade da corrupção existente no país. O próprio ministro da Justiça em intervenção recente admitiu que a corrupção pode estar acima do índice referido. O que falta, diz ele, é a coragem para a denunciar.
Referências mais ou menos explícitas a casos de corrupção são normalmente feitas em ambiente de combate político e eleitoral. O mesmo fenómeno nota-se cada vez mais nas disputas internas dos partidos. Recentemente, no âmbito da luta pela liderança no PAICV, houve acusações de utilização de sacos de cimento, bolsas de estudo, centros de emprego e de juventude, cestas básicas em troca de votos. Em eleições anteriores, legislativas, autárquicas e até presidenciais surgiram acusações similares que indiciam o uso de recursos do Estado para aliciar e beneficiar apoiantes. O facto dessas denúncias não se verificarem só na luta interpartidária mas também intrapartidária mostra que o fenómeno de utilização dos recursos públicos para ganhar influência e poder político é mais comum do que se esperava.
Nesta óptica, a corrupção em Cabo Verde não seria tão visível ou palpável porque não é fundamentalmente virada para o enriquecimento de certos indivíduos e respectivas famílias. O desvio dos recursos do Estado teria como objectivo principal a recompensa da lealdade política e a sedução de novos apoiantes. Naturalmente que no processo os “desviantes” ou “teimosos” acabam por sofrer, sendo discriminados no acesso ao emprego, a reparações de habitação, a ofertas de verguinhas de ferro, de sacos de cimento e outras benesses.
Várias razões certamente existirão para explicar por que o silêncio sobre esta corrupção só é realmente quebrado em momentos críticos dos confrontos políticos partidários. Entre elas estarão o receio de antagonizar os poderes estabelecidos, a convicção de que é legítimo favorecer apoiantes com recursos do Estado e a disposição à partida de fazer o mesmo, quando em posição de poder e em controlo dos recursos colectivos. O espectáculo diário na televisão de cerimónias onde doadores ( primeiro-ministro, ministros, presidentes de câmara e outras entidades) contemplam e presenteiam recipientes gratos pelas habitações, pensões,  cestas básicas, kits escolares etc, não deixa de emprestar todo um ar de legitimidade a esta cultura e forma de estar e de fazer política.
Num artigo recente publicado neste jornal, o colunista português Doutor Rui Ramos chama a atenção para um fenómeno que se torna cada vez mais vulgar em países em que o controlo do Estado se apresenta como fonte maior ou quase única de privilégio, de status e de poder político. Nessas circunstâncias, segundo ele, o Estado é usado de forma implacável a favor de um partido ou de uma facção. Assim, o equilíbrio orçamental é muito bonito, mas é preciso não hesitar em multiplicar os contractos, parcerias, subsídios, e empregos que suscitam simpatias, fidelidades e contrapartidas; a transparência é excelente, mas é proibido ter escrúpulos quando se trata de explorar a promiscuidade, as facilidades e as trocas de favores para alargar redes de influência e torná-las mais espessas; a separação de poderes é comovedora, mas é impensável vacilar perante a possibilidade de conjugar ministérios, bancos e tribunais na protecção dos amigos e na perseguição dos inimigos. Acrescenta ainda que, no ambiente criado, o político com mais-valia para o partido ou facção é aquele que demonstrar maior aptidão neste género de exercícios. E é claro que a integridade pessoal não conta muito aí.
Cabo Verde apresenta as marcas de um país com uma economia baseada na reciclagem da ajuda externa. A ajuda não serviu para lançar o país no caminho do desenvolvimento sustentável. O crescimento económico é raso, o desemprego situa-se a um nível demasiado elevado, e o sector privado nacional está de rastos. A exemplo dos sistemas rentistas, o Estado posiciona-se no topo da cadeia alimentar sustentada por fluxos externos em donativos e empréstimos concessionais. A grande tentação é capturá-lo e utilizá-lo para se manter no poder. No processo compromete-se completamente a eficiência da acção governativa, seja ao nível local ou nacional.
A corrupção que resulta do facto de o Estado falhar no cumprimento do dever de servir todo e qualquer cidadão com isenção e imparcialidade sem descriminação ou favoritismo tem um impacto perverso no tecido social. Atomiza a sociedade, alimenta rivalidades e invejas e desincentiva o espírito de cooperação entre pessoas indispensável para a criação de riqueza. À frustração junta-se o conformismo e o sentimento de impotência numa mistura perigosa com implicações sociais graves designadamente nos níveis de crime.
Há pois que resgatar o Estado das mãos de quem o instrumentaliza muitas vezes arrogando-se no direito de decidir por todos qual o melhor caminho a seguir. Estagnação económica tem sido o que historicamente resulta dessas opções. É de não se esquecer que como Kant diz –  o paternalismo é o maior dos despotismos imagináveis.  O poder assim corrompido coloca-se na linha de frente contra o desenvolvimento e a cidadania. 

quarta-feira, dezembro 10, 2014

BCV, Quo Vadis?



Edição 680 de 10 de Dezembro

Na semana passada, dia 6 de Dezembro, saiu finalmente o Relatório de Política Monetária do Banco de Cabo Verde de Novembro de 2014. Normalmente publicado nas primeiras semanas de Novembro, o relatório do BCV tem contribuído ao longo dos anos com os seus dados e as suas análises para o enriquecimento do debate económico e político entre o governo, partidos políticos, parceiros sociais e a sociedade em geral que antecede a discussão do Orçamento do Estado na Assembleia Nacional. Este ano primou pela ausência. Só apareceu depois do debate parlamentar, no mesmo dia em que o governador designado pelo governo era ouvido na A. N.  
2014 tem sido um ano atribulado no banco central. Problemas laborais sérios afligiram a instituição nos meses que antecederam o fim do mandato de Dr. Carlos Burgo. A gestão, pelo governo, da substituição do governador revelou-se calamitosa. Na audição parlamentar, o governador designado confidenciou ao parlamento que a situação financeira do BCV é “algo difícil” e que o “fundo de pensões do banco poderá não ser sustentável”. Não parece alheia aos problemas do BCV a relação tensa com o Governo e particularmente com o ministério das finanças que se desenvolveu nos últimos anos. Tem sido notória a divergência de posições das duas instituições quanto à real situação económica do país e as suas perspectivas. No embate, a Ministra das finanças em 2011, na sequência da publicação de um relatório de política monetária, não se coibiu de dizer publicamente, referindo-se ao governador do BCV, que não iria ensinar missa ao vigário.
Facto é que os dados do crescimento económico do país têm ficado muito aquém das previsões do ministério das Finanças e mais próximas das do BCV. Os alertas do BCV quanto às consequências da política orçamental expansionista confirmaram-se na diminuição das reservas e consequente tomada de medidas restritivas do crédito interno que afectaram as empresas, a procura interna e a economia nacional em 2012 e 2013. E o crédito à economia não voltou a ter a dinâmica anterior mesmo quando na sequência da recuperação das reservas para o nível exigido pelo acordo cambial com o euro o BCV afrouxou nos seus controlos da banca nacional. Os bancos mesmo com liquidez mostram-se avessos à concessão do crédito ao sector privado e justificam-se com o crescimento anémico da economia e a divida pública de mais de 100% do PIB que pode configurar riscos macroeconómicos e financeiros futuros.
O desconforto do governo com as posições do BCV ficaram evidentes no anúncio do ex-ministro Humberto Brito para governador. A ministra das finanças anunciou que Cabo Verde precisava melhorar a articulação política, orçamental e fiscal e que Humberto Brito com um percurso de mergulho na economia real tinha o perfil ideal para ocupar o cargo no banco central. O pouco cuidado do governo em lidar o com banco central ficou evidente quase imediatamente. Considerando as exigências de idoneidade, de independência e de competência técnica que cada vez mais em todo mundo se exige dos “central bankers” é evidente que a proposta do governo caiu muito mal. O governo estava a nomear um político que tinha sido demitido da pasta de Energia em pleno momento de crise de fornecimento de electricidade e água na capital e noutros pontos do território nacional. Avançar essa personalidade poucos dias depois para uma posição central na condução da política monetária e na supervisão do sistema bancário que deve inspirar confiança no sistema económico e financeiro não é muito inteligente. 
A inépcia na gestão desse processo continuou com a indicação de uma nova personalidade, o Dr. João Serra. Primeiro, confessa-se que afinal foi a primeira escolha e depois finge-se esquecer que muito recentemente o indigitado deixara a presidência da Sociedade de Desenvolvimento da Boavista e Maio envolvido numa polémica que opunha membros do conselho da administração e onde não faltavam acusações de má gestão. Segundo, o governo para se justificar perante os críticos da primeira nomeação a governador solicita um parecer ao Procurado Geral da República para se certificar se o BCV rege-se pela lei das autoridades reguladoras ou simplesmente pela sua lei orgânica. O parecer do PGR favorece a posição do governo em como deve aplicar-se a lei orgânica do BCV, mas estranhamente o governo ignora o parecer e aplica a lei de autoridades reguladoras que exige que os administradores nomeados sejam ouvidos em audição pelas comissões parlamentares competentes. O parlamento aceita, apesar de não existir qualquer precedente nesta matéria. Contudo, não é a comissão de finanças que ouve o governador, mas sim a comissão dos assuntos constitucionais.
Nos próximos dias deverá sair a nomeação do governado do BCV, quase quatro meses depois do fim o mandato do último titular. A questão que fica é o quão a instituição banco central ficou beliscada pela gestão esdrúxula de uma substituição que deveria ser melhor preparada e executada para não ferir a imagem de confiança que deve sempre poder projectar. No mundo globalizado de hoje, a solidez institucional de entidades como o banco central e a sua independência face a interesses políticos de curto prazo dos governos é sempre um activo valioso do país que interessa preservar. Pena que o governo na sua ânsia da fazer todos ler pela sua cartilha não pára mesmo perante a possibilidade de comprometer o percurso de autonomia a independência que todos esperam ver percorrido com sucesso no BCV.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

Erupção: Ilações a tirar



Edição 679 de 3 de Dezembro de 2014


Nestes dias, que se arrastam desde 23 de Novembro, a erupção do vulcão do Fogo tem sido seguida com atenção por todos os cabo-verdianos, uma atenção não poucas vezes marcada pela ansiedade e mesmo angústia perante a destruição das casas e dos meios de vida de mais um milhar de habitantes na Chã das Caldeiras. Felizmente não houve perdas de vida e uma parte significativa dos bens, pertences e gado da população foi efectivamente resgatada. Para isso contribuiu extraordinariamente o esforço abnegado de militares e polícias aí destacados e de populares que se ofereceram para ajudar. Depois de alguns episódios iniciais de vandalismo e de reacções epidérmicas das autoridades perante a resistência das pessoas em ser evacuadas, o processo de realojamento das pessoas tem prosseguido com o apoio da Cruz Vermelha de Cabo Verde e com gestos de solidariedade que vêm de todas as ilhas e da diáspora.
A situação de catástrofe vivida na ilha do Fogo deve ser motivo de uma reflexão mais profunda sobre os riscos que podem colocar-se a um país arquipélago, montanhoso e vulcânico e sobre a capacidade institucional e operacional de resposta em caso de concretização dos mesmos. Na manhã de domingo do dia 23 de Novembro o governo declarou situação de contingência. Estava-se perante o que na Resolução nº 10/2010 se considerou: “O risco mais perigoso em Cabo Verde é o risco vulcânico/sísmico”. Na sequência devia-se implementar o Plano de Contingência para o Fogo, que a lei prevê existir, sob a coordenação do Serviço Nacional de Protecção Civil. O problema é que de acordo com o diagnóstico feito no Relatório de Segurança Interna publicado no BO de 26 de Agosto de 2014: “o Serviço de Protecção Civil está desadequado para o cumprimento das suas missões, não existem indícios de articulação funcional e operacional com os comandos regionais, com excepção da Boavista, e não foram apresentados planos de emergência e de contingência para as Ilhas”. Talvez por ter-se dado conta dessas falhas que o governo, a toque de caixa, criou o gabinete de crise para “coordenar a acção governativa”. E para dirigir esse gabinete teve que se socorrer do brigadeiro Antero Matos, ex-conselheiro de segurança nacional, que se encontra há alguns meses na reforma. Significativamente o Primeiro-ministro não passou essa responsabilidade constitucional, que lhe cabe nestas circunstâncias, para o ministro que tem a tutela da Protecção Civil como prevê a resolução acima citada. 
Várias fraquezas institucionais e operacionais do país tornaram-se visíveis ao longo desta emergência na ilha do fogo. Através do pedido de ajuda a Portugal procurou-se colmatar algumas delas designadamente no domínio das comunicações com os telefones via satélites, de apoio aéreo de proximidade com helicópteros e mesmo de uma base de apoio naval em caso de evacuação a uma escala maior. A fragata portuguesa foi a resposta portuguesa. Pode-se dizer que dificilmente Cabo Verde poderá ter meios a essa escala para responder a situações de catástrofe futuras. É verdade que sempre deverá contar com a cooperação com outros países. Facto é, porém, que alguns meios próprios terão que existir para dar respostas a situações que não podem esperar pela vinda de fora de um barco, de um helicóptero ou de um telefone via satélite.
Recentemente o país viveu situações de emergência no mar, designadamente o afundamento do navio Mosteru e o encalhe de Pentalina que só não se tornaram catastróficas porque se verificaram junto à costa e na vizinhança de aldeias piscatórias. Os pescadores com os seus botes puderam resgatar as pessoas do mar. Na sequência da erupção do vulcão os primeiros meios de socorro foram levados para o fogo no rebocador Damão, como se esperaria que acontecesse há quarenta ou cinquenta anos atrás. A pergunta que fica é: onde está a Guarda Costeira que devia estar equipada com barcos e helicópteros a altura de fazer busca e salvamento e fornecer a base logística para se socorrer qualquer ilha em situação de emergência? O governo reconhece as insuficiências existentes, faz promessas, mas a capacidade de resposta do país mantem-se basicamente a mesma de décadas passadas. Urge alterar este estado de coisas. Não se deve esperar que aconteça algo terrível para se tomarem as medidas que se impõem. Mesmo o desaparecimento recente do navio Rotterdam com todos os seus tripulantes não conseguiu forçar uma mudança de atitude.
Cabo Verde tem que assegurar uma capacidade mínima mas efectiva de resposta a qualquer situação de crise ou catástrofe. Num país arquipélago devia ser óbvio que, para isso, é fundamental ter uma guarda costeira capaz de fiscalizar o espaço aéreo e marítimo, controlar a exploração económicas dos mares, fazer busca e salvamento e evitar que as ilhas sejam uma base para o tráfico e contrabando. Aparentemente os governantes têm outras prioridades.
De qualquer forma o Estado continua com responsabilidades de garantir, a todo o momento, a segurança das ilhas e mares e de assegurar que os recursos do país e a solidariedade de todos poderá chegar a qualquer ponto do território nacional. E com a gestão da Fir Oceânica e outras responsabilidades internacionais nesta região deverá habilitar-se para o cumprimento pleno das suas obrigações. É fundamental pôr a Protecção Civil e a Guarda Costeira à altura dessas responsabilidades.