sexta-feira, agosto 07, 2015

Efectividade comprometida



A intervenção de cerca de mais de vinte minutos da Dra. Janira Hopffer Almada durante o debate sobre o Estado da Nação despertou atenção pelo seu carácter anómalo. Não foi discurso da Ministra do Emprego e da Juventude. Pretendeu ser algo mais. Para qualquer observador a intenção era dar protagonismo à presidente do Paicv. Só que na Assembleia Nacional e no debate sobre o Estado da Nação o destaque é para a intervenção do primeiro-ministro cujo governo é politicamente responsável perante o Parlamento. O facto porém de o ter feito e também do que depois se seguiu de quase despedida do PM, em plena sessão parlamentar, e ainda a mais de sete meses do fim da legislatura, não abona muito a favor do “regular funcionamento das instituições” que todos esperam e desejam.
A público tem chegado por várias vias indícios de tensões nas relações entre a nova liderança do Paicv, o seu grupo parlamentar e o governo. Este jornal em editorial por várias chamou a atenção para a necessidade de clarificação dessas relações. O nosso sistema de governo tem um primeiro-ministro nomeado pelo presidente da república sob proposta do partido vencedor das eleições. O novo governo só assume plenas funções depois de o parlamento ter aprovado uma moção de confiança por maioria absoluta dos deputados. Se no decorrer da legislatura há uma mudança na liderança do partido que suporta o governo ou uma outra alteração nas condições iniciais do mandato, o mais normal é que se enverede por um processo de reconfirmação do governo e da sua relação com a sua base parlamentar. Assim evitam-se quaisquer dúvidas quanto à sua legitimidade e assegura-se o normal funcionamento das instituições. Ninguém terá dúvidas onde reside o poder.
Ao não proceder desta forma, o sistema político sujeita-se a “ruídos” que com o passar do tempo tendem a ficar piores. Em Março deste ano o país assistiu ao espectáculo do posicionamento público da nova líder do Paicv e dos seus próximos no partido contra posições do grupo parlamentar maioritário e do próprio primeiro-ministro mesmo depois de a lei sobre o estatuto dos titulares de cargos políticos ter sido aprovada por unanimidade na AN. A questão para o sistema político não são as diferenças de opinião e a falta de alinhamento pontual nas estruturas partidárias. De facto, o que perturba é a forma como foram arejadas publicamente com ganhos para o populismo e para as forças anti-partido e anti-pluralismo e com perda e humilhação para o parlamento cabo-verdiano. 
Mesmo depois de tudo o que se passou não houve preocupação de seguir os procedimentos previstos na Constituição para relegitimar o governo. Informalmente a presidente do Paicv reafirmou a sua confiança no Dr. José Maria Neves enquanto primeiro-ministro e o líder parlamentar no seu discursos do 5 de Julho reiterou também a confiança da maioria parlamentar no governo. É evidente que seguir simplesmente por essas vias não é suficiente. Se momentaneamente traz alguma acalmia no seio do  partido, a realidade é que o governo sem uma moção de confiança e sem o programa  actualizado não tem a energia, o foco e a coesão interna que os momentos difíceis do país exigem. Quase que fica em formato de “governo de gestão”, com uma agenda que mais parece ser uma agenda eleitoral e sempre sujeita a sobressaltos causados por quem anseia antes de tempo governar ou já mostrar peso político. É só ver o que se passa no INPS e na TACV. Ruídos persistem e notam-se disputas por protagonismos nos actos do Estado. A coroar, o insólito como foi descrito acima acontece no debate sobre o estado da Nação.
Depois da “dispidida” do PM, que governo vai se ter? Um governo mais engajado na campanha eleitoral e com mais protagonismo da futura candidata do partido ao cargo de PM? Um PM em “modo” de saída a par com ministros ansiosos por chegar ao fim do seu tempo no governo? E o país como fica nesta corrida disparada para o poder que está a acontecer antes do tempo?
Uma das particularidades da democracia é o mandato certo. A renovação do mandato acontece num momento pré-estabelecido e em que por um tempo limitado alternativas são apresentadas e as disputas eleitorais têm lugar. Com este sistema garante-se a possibilidade de alternância, mas evita-se que a sociedade esteja a todo o momento sob as tensões extremadas do período eleitoral. Há tempo para governar e há tempo para campanha. Cria-se uma disfunção grave quando em vez de governar, ou seja, de trabalhar para o bem comum, se envereda pela campanha em que os interesses partidários se sobrepõem e condicionam tudo o resto. Ter o governo quase um ano antes das eleições numa postura em que a agenda eleitoral parece prevalecer sobre tudo o resto não é bom nem para o país nem para a democracia. Ao Presidente da República cabe o papel de assegurar o regular funcionamento das instituições. Depois do advento do populismo e do afundamento do Parlamento não podemos ter governo a meio gás, com ministros sem alento e a funcionar como veículo de interesses eleitorais. 
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Agosto de 2015 

segunda-feira, agosto 03, 2015

Debate do Estado da Nação 2015



Cabo Verde está a chegar ao fim do 3º mandato do governo de José Maria Neves com níveis de crescimento da economia dos mais baixos de sempre. Uma média de 1,4%  nos últimos cinco anos. Os níveis de desemprego também são dos mais altos. Oficialmente acima dos 15,8% mas com cada mais gente a abandonar qualquer esperança de conseguir trabalho. As perspectivas futuras não são animadoras.
Curiosamente há 25 anos atrás encontrávamos numa situação parecida. Depois de quinze anos do governo do PAICV a economia estagnava. O crescimento em 1990 foi de 0%. Também então os dirigentes não sabiam explicar. Não tinham a bengala da crise na Europa. José Brito, o então ministro da Cooperação, quando questionado na Assembleia Nacional Popular por que é que S.Vicente estava parado respondeu: “Já esgotámos grande parte das grandes infraestruturas que temos de criar. O problema de S.Vicente agora é de valorizar o que já investimos, o problema é de capacidade de fazer funcionar”. Esta parece ser a sina dos governos do Paicv. Até podem fazer obras. Com financiamentos de doadores, fazem obras. Quando os donativos diminuem, endividam o país e fazem obras. Os resultados prometidos, porém ninguém os vê. Os clusters não se materializam, os hubs não se constituem e os centro de negócios internacionais parecem miragens no deserto. Apesar dos investimentos, a sensação é que o país está parado. Parafraseando o engenheiro José Brito, não conseguem fazer funcionar essas infraestruturas. Por isso não são factor de maior produção de riqueza, de aumento de rendimentos para as pessoas e de expansão do tecido empresarial no país.   
Porque essa inabilidade dos governos do Paicv? Inabilidade constatada há 25 anos atrás e demonstrada outra vez hoje nestes anos de crescimento anémico da economia nacional apesar dos investimentos em mais de 600 milhões de contos.   A resposta só pode estar no ADN do PAICV. O PAICV é, como qualquer partido político, uma organização de poder. Mas é diferente dos outros por duas razões principais: acha-se dono do país e coloca-se na posição de credor eterno da gratidão do povo. Quer o povo na posição de devedor da gratidão e, por isso, quando governa, procura reproduzir o espírito de dependência e enredar as pessoas nas malhas do assistencialismo.
Para o Paicv exercer poder significa fundamentalmente controlar tudo. Particularmente quem pode dar e quem pode receber. A partidarização na administração pública, na relação com todas as organizações da sociedade, e na comunicação com o país não é obra do acaso. Espelha perfeitamente essa vontade de controlo. Vontade tão forte que sempre que forçado a escolher entre desenvolvimento ou controlo, escolhe controlo.
Um exemplo paradigmático aconteceu em 2007. Em Maio desse ano, na sequência de uma reunião do Conselho de Ministros especializado de economia em São Vicente, o então ministro José Brito anunciou investimentos de mais de um bilhão de dólares para a ilha. Pouco tempo depois ficou claro que tudo ia ficar em águas de bacalhau. A possibilidade de as câmaras do Sal, de S. Vicente e do Porto Novo virem a ter receitas extraordinárias pela venda de terrenos para os resort e hotéis antes das eleições autárquicas de 2008 foi motivo suficiente para que o governo com uma directiva suspendesse nas conservatórias o registo das propriedades. Até quem já tinha registado os terrenos como foi o caso da empresa Salamansa Sands viu o seu projecto bloqueado. A insegurança jurídica que se seguiu paralisou muitos outros projectos. Depois veio a crise e o momento foi-se. Muito do que podia ter sido feito não foi, com prejuízo directo para as populações das ilhas de Santo Antão, São Vicente e Sal e também para todo o país. Prevaleceu o desejo de controlo. 
Com esta atitude de sacrificar o país no altar do poder, o PAICV faz de Cabo Verde o campeão na perda de oportunidades. Quando uma aparece, a postura é a clássica do rentista. Procura-se tirar à cabeça todos os benefícios, particularmente os políticos. Depois do show off mediático, os investidores têm que lidar com a administração pública que o Sr. Primeiro-ministro já caracterizou de pouco sensível para com o sector privado e um dos principais factores do mau ambiente de negócios. O mais provável é que a administração pública simplesmente esteja a reflectir os valores de quem o dirige há quinze anos. De qualquer forma, se o investidor sobreviver aos atrasos, bloqueios e outras manigâncias da administração e começar a operar, vai-se deparar logo com outras faces do estado rentista. Caso recente é o turismo cabo-verdiano antes de se afirmar e atingir um fluxo de turistas respeitável começou a inflectir no seu crescimento devido ao peso de impostos e taxas. Pode-se estar a matar a galinha dos ovos de ouro, mas ninguém liga. A nação tem problemas sérios e o futuro não é claro.
Quinze anos depois as fragilidades do país mostram-se como bem revela o Banco de Cabo Verde no seu relatório anual: “elevados custos de contexto e de nível de risco nos projectos empresariais; défice de skills de gestão e de orientação para o negócio de grande parte dos empreendedores nacionais; desfasamento técnico-profissional entre a procura e a oferta de emprego; défice de infraestrutura e de produtos financeiros para micro e pequenos negócios; défice de infraestrutura apropriada (principalmente de transportes) que possibilite o aumento da economia de escala dos investimentos empresariais pela via da exportação”. Fragilidades que segundo o mesmo relatório condicionam a capacidade do país de beneficiar de uma eventual recuperação económica da Europa.
Para agravar mais a situação, o governo distraiu-se e distraiu o país com outras coisas. Enquanto a ministra das Finanças fazia a sua corrida para o BAD e o Primeiro-ministro entrava em campanha antecipada para as legislativas com a sua presença em quase todos os actos, grandes ou pequenos deste país, o Estado dava sinais graves de incompetência em várias situações: na gestão do pós-erupção na ilha do Fogo, no naufrágio do navio Vicente, na gestão do programa de Casa para Todos, no conflito laboral na Polícia Judiciária e na procura de um rumo certo para a TACV. Muitos outros problemas provavelmente estarão escondidos debaixo do tapete. A atitude do governo de se desresponsabilizar e de desvalorizar ou esconder os problemas sempre que confrontado com as consequências dos mesmos é extremamente nociva e perigosa. Não ajuda a sociedade cabo-verdiana a tomar consciência dos seus verdadeiros problemas e a desenvolver o diálogo livre e plural necessário para encontrar soluções.
Assim como no fim dos primeiros quinze anos do governo, o Paicv demonstrou que não sabia como fazer para que o país deixasse de gatinhar e aprender a correr em direcção ao desenvolvimento – algo que só viria a acontecer com a liberdade, democracia e o estado de direito. De novo, já num contexto diferente, está a deixar o país de gatas. Mal consegue andar ao ritmo de 1,4 por cento em média e está sobrecarregado com uma dívida pública que duplicou nos últimos cinco anos e já atinge o sétimo lugar das maiores dívidas públicas do mundo. É evidente que algo de profundamente errado está na forma de governar do Paicv. O partido tem consciência disso mas quer ganhar as próximas eleições. Na escolha do seu presidente em Dezembro de 2014 fez uma opção clara: entre escolher o Dr. Felisberto Vieiro que fazia campanha com referência aos valores de Cabral, o partido maioritariamente preferiu quem tinha demonstrado especial competência em, citando o Dr. Felisberto Vieira, usar verguinhas, bolsas de estudo e kits escolares para comprar votos. A mensagem do Paicv ao eleger a Dra. Janira Almada como presidente é inequívoca: sabemos que não vamos ganhar fazendo o país crescer a dois dígitos e baixando o desemprego para um dígito como outrora prometemos. Mas podemos ganhar usando os recursos do Estado para enredar o máximo possível de pessoas, particularmente jovens e vulneráveis numa malha em que por lealdade, gratidão ou mesmo coacção vão dar-nos o seu voto. Se alguém duvida de que esta estratégia está a ser seguida é só ver a televisão e seguir a Dra. Janira Almada a implementá-la todos dias. 
É evidente que Cabo Verde não vai ganhar nada com isso. É mau uso dos recursos do Estado. É destruir o caracter de um povo, submetê-lo ao assistencialismo e a outros esquemas degradantes de dependência.
A nação hoje mais do que nunca precisa de um governo que realmente acredita num Cabo Verde viável. Um governo que acredita que o cabo-verdiano exercendo sem peias a sua liberdade, afirmando a sua autonomia como pessoa e como cidadão, fazendo uso da sua criatividade e da sua energia e com os olhos postos na procura da sua felicidade, vai poder construir o desenvolvimento sustentado em Cabo Verde. Um governo que se preste a servir o país e se prontifique a criar as condições para que todos e cada um dêem um máximo de si para que Cabo Verde seja livre e próspero. Se outros o conseguiram, também nós o faremos.

*Intervenção na Assembleia Nacional, esta sexta-feira, 31, no último debate sobre o  estado da Nação desta legislatura.
* Deputado da Nação

quarta-feira, julho 29, 2015

Estado da Nação: Preocupante



O Banco de Cabo Verde (BCV) no seu Relatório Anual publicado no dia 23 de Julho deixa transparecer que, devido às fragilidades endógenas da economia nacional, o efeito de contágio de uma eventual recuperação da área do Euro será condicionado. Ou seja, não há certeza que Cabo Verde poderá aproveitar completamente uma maior dinâmica económica dos seus parceiros europeus. As razões apontadas pelo BCV são bastante significativas: “elevados custos de contexto e de nível de risco nos projectos empresa­riais; défice de skills de gestão e de orientação para o negócio de grande parte dos empreendedores nacio­nais; desfasamento técnico-profissional entre a procura e a oferta de emprego; défice de infraestrutura e de produtos financeiros para micro e pequenos negócios; défice de infraestrutura apropriada (principal­mente de transportes) que possibilite o aumento da economia de escala dos investimentos empresariais pela via da exportação”.
Dessas constatações do BCV pode-se concluir que, em grande parte, a chamada “agenda de transformação do governo” não atingiu os objectivos pretendidos. A administração pública continua a ser ineficaz e insensível na sua relação com os utentes, em geral, e com o mundo dos negócios, em particular. O sector privado nacional não passou ainda da sua fase incipiente. A educação e a formação não estão em sintonia com as necessidades do mercado de trabalho. Não se encontraram ainda mecanismos e vias adequadas para financiar pequenas e médias empresas. As infraestruturas construídas não foram as melhores ou as prioritárias se a intenção era ajudar a ganhar escala via exportações. Como diz o relatório do BCV, Cabo Verde só poderá ganhar com o spillover de uma maior dinâmica da economia europeia se for capaz de aumentar consideravelmente a seu capacidade produtiva e a sua resiliência, e isso foi profundamente posta em causa pelas insuficiências ou inadequação das políticas seguidas até agora. 
Entretanto, o país já atingiu ou mesmo ultrapassou os limites da dívida que pode ser sustentada. Dificilmente poderá continuar a endividar-se para fazer face aos défices ainda grandes que existem em termos de infraestruturas ou às insuficiências nos sectores de capacitação do capital humano ou nas reformas da administração na perspectiva de diminuição dos custos de contexto e de transacções. Com o investimento público limitado nos próximos tempos e o investimento privado desincentivado por vários factores, o país sujeita-se a anos de crescimento raso. Um quadro que torna ainda mais difícil servir a dívida existente, correndo-se o risco de falência quando esta ideia já não é mais um tabu, tendo em conta o que se passou nos últimos anos na Grécia.
Para os cidadãos em geral há a percepção de que apesar de se viver um frenesim de inaugurações, de lançamentos e de visitas pelas ilhas, as coisas não estão bem. Dez anos depois de serem anunciados os clusters ainda estão por se constituir e se tornarem no dínamo que, juntando empresas, universidades e mercados, gerariam crescimento económico e emprego massivo e de qualidade. Mesmo o turismo, que por todos é visto como o grande motor da economia, não consegue lograr os níveis de crescimento desejados. Há quem considere que é mau o ambiente de negócios no país e veja nisso a causa principal da aparente incapacidade de aproveitar oportunidades e de fazer fruir a iniciativa privada. Especificamente no domínio do turismo, economistas como o Doutor João Estevão, numa entrevista recente ao jornal A Nação, é claro em dizer que o sector tem crescido sob a pressão da procura mas que faltam propostasdo lado da oferta para aproveitar as complementaridades potenciais e transformá-las em oportunidades de investimento e de crescimento económico. Acrescenta ainda que o emprego em particular sofre com o declínio da actividade transformadora. Se indústrias existissem muitos dos jovens com escolarização secundária poderiam ser absorvidos, ajudando a criar um sector mais intenso em tecnologia e informação com ganhos para o país em termos de competitividade e de capacidade exportadora.
O desânimo e a frustração de muitos que estão no desemprego e dos outros muitos que engrossaram o número da população activa não ajudam em manter o espírito civil, a confiança e a solidariedade tão necessários para se poder guindar com garra os caminhos do desenvolvimento. Com isso cresce o sentimento de insegurança, aumenta o fosso social e aprofunda-se a desconfiança para com os governantes, os políticos e as instituições. A tentação de exercer o poder num estado de permanente eleitoralismo, de lutas permanentes para impor verdades convenientes e leituras históricas únicas, agravam a situação. O controlo sobre as pessoas que isso normalmente pressupõe, leva à adopção de políticas que favorecem o assistencialismo a dependência e com isso naturalmente mais frustração, rivalidades, discriminação e até violência. 
É evidente que há que fazer um outro caminho. Cabo Verde está numa encruzilhada enquanto país de rendimento médio. A sua evidente falta de preparação para enfrentar os rigores do mercado internacional e aí florescer no comércio entre as nações deve ser devidamente ponderada e os constrangimentos contornados ou limitados. Acreditar em Cabo Verde, na sua viabilidade como país, deve ser algo mais do que aretórica repetida nas cerimónias do 5 de Julho.

       Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 29 de Julho de 2015     

sexta-feira, julho 17, 2015

A História não valida injustiças



Recentemente no elogio fúnebre das várias vítimas de crimes raciais no Estados Unidos o presidente Obama foi peremptório ao afirmar: a história não pode ser uma espada para validar injustiças ou um escudo contra o progresso. Deve ser sim um manual para se saber como evitar repetir os erros do passado e como quebrar o ciclo. O aviso de Obama devia servir bem para temperar o fervor com que o Estado cabo-verdiano parece estar a abraçar a História contada pelos construtores do regime do partido único. Uma história feita à medida de alguns interessados em projectar uma imagem quase messiânica que os põe acima de quaisquer criticismos, presentes ou futuros. Paradoxalmente, o Estado que aceita isso é o mesmo que todos os anos pelo 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, serve-se de todos os subterfúgios para não celebrar com a solenidade exigida esses dois princípios e valores consagrados na Constituição da República. 
 O espírito prevalecente hoje em Cabo Verde é de respeito pelo pluralismo, de defesa pacífica de todas as ideias e de reconhecimento da igualdade de todos os cidadãos. Ninguém considera legítimo a utilização da violência para impor convicções políticas e estabelecer regimes contrários à liberdade e à dignidade das pessoas. Os símbolos nacionais, os monumentos e quaisquer outros objectos comemorativos devem ser tomados como pontos de encontro da comunidade nacional e venerados por tal. Não podem ser pontos de confronto, de ofensa e agravo. A memória democrática de como se chegou à liberdade deve ser preservada. Assim como devem ser reconhecidas as vítimas do regime repressivo que teve os seus pontos altos nas prisões de Maio/Junho de 1977 e de Agosto de 1981 em S. Vicente e S. Antão e noutras ilhas. Também não se pode esconder quem eram os principais responsáveis pela direcção do Estado. 
A generalidade dos países que deixaram a ditadura para trás procuram dar provas do renovado gosto pela liberdade. Um dos gestos simbólicos de maior importância são as condecorações feitas pelo presidente da república. A coerência dos actos de reconhecimento da nação pela luta pela liberdade e consolidação das instituições democráticas normalmente requer que se criem novas medalhas e novas ordens honoríficas. Em Portugal, com a III República, deixou-se a Ordem do Império, e criou-se a Ordem da Liberdade para homenagear quem se notabiliza na luta pela democracia e pela sua consolidação. Na Espanha democrática criou-se a Ordem de Mérito da Constituição e medalhas da liberdade encontram-se por todos os países democráticos tanto os novos como a Estónia como os antigos a exemplo dos Estados Unidos e da França. A própria Rússia deixou para trás a Ordem de Lenine que vinha da antiga União Soviética.
A opção até agora feita em Cabo Verde de não criar outras ordens honoríficas faz com que o país fique só com as ordens criadas durante o regime de partido único. As emendas feitas em 1996 às leis de 1985 e 1987 que criaram as actuais ordens procuraram dar um escopo maior ao processo de escolha de possíveis condecorados. Não deixa porém de fazer falta uma ordem da liberdade e da democracia mais consonante com os princípios e valores da Constituição. Sem falar no embaraço de se ter com a Guiné-Bissau a ordem de Amílcar Cabral como a máxima condecoração do Estado de Cabo Verde. Por outro lado, tanto para quem condecora como para quem é condecorado uma medalha da liberdade sem quaisquer outras conotações partidárias e ideológicas seria mais fácil de dar e de receber.
As condecorações são distinções feitas em nome da Nação. Naturalmente que se espera que não sejam nem banalizadas, nem instrumentalizadas. Contribui para uma impressão negativa o número aparentemente excessivo de pessoas distinguidas quando a expectativa geral é que a distinção deve ser rara e selectiva. Também não ajuda quando já não é só o Presidente da República mas também o Primeiro Ministro que aparece a colocar medalhas, num caso a dezenas de personalidades (jornalistas) e noutro caso a centenas de pessoas (combatentes). 
 A febre de homenagens atinge o rubro de cinco anos nas comemorações da independência nacional que até agora têm coincidido com os anos pré-eleitoriais. Este facto não ajuda em nada a dissipar a impressão de alguma instrumentalização eleitoral desses actos, o que, a confirmar-se, não bonifica ninguém. A extensão por largos meses das comemorações exacerba a situação e valida a percepção de eleitoralismo. No ambiente de contínua interpretação histórica em que se enfatiza o momento da independência ficam esquecidos os que depois sofreram com o regime pós- independência. A injustiça de ontem continua a repetir-se. Não seria assim se a independência fosse vista como indissoluvelmente ligada à liberdade, à democracia e ao Estado de Direito.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 15 de Julho de 2015

sexta-feira, julho 10, 2015

5 de Julho continua partidarizado



Comemorou-se no fim-de-semana passado os 40 anos de independência. Comemorações mais exuberantes do que em outros anos porque se trata de um número redondo (40) mas nem por isso menos partidarizada. Pelo contrário, 2015 é um ano pré-eleitoral e tudo o que pode ser transformado em espectáculo político sujeita-se a ser capturado por agendas partidárias. O arrastar das comemorações por vários meses tende a agravar o fenómeno. É grande a tentação de dar protagonismo central nos actos a sujeitos políticos como o primeiro-ministro, ministros e presidentes de câmara, todos eles altamente motivados em potenciar no máximo as suas aparições. A polarização que daí resulta acaba por prejudicar o espírito de comunhão e de união do povo cabo-verdiano que se pretende recriar e renovar em todos os festejos do 5 de Julho.
 A tendência crescente de, no Dia da Independência, focar os holofotes nos dirigentes do PAIGC, que a 5 de Julho de 1975 se apresentaram como libertadores e no momento seguinte pontificaram como construtores do regime ditatorial que iria vigorar por mais quinze anos, cria uma tensão a vários títulos insanável. A realidade é que a democracia é incompatível com exercícios de exaltação de figuras históricas que incorporaram um regime nos antípodas dos seus valores e princípios de liberdade, de pluralismo, do primado da lei e da legitimação popular do Poder. Quando apesar disso se insiste em ir por esse caminho forjam-se compromissos que fragilizam as referências do regime democrático e afectam o jogo democrático, a possibilidade de alternância política e a capacidade de debater o futuro. Perde-se muita energia na procura de conciliação com o passado irreconciliável.
Mesmo quando se pensa que se conseguiu alguma “paz com a História”, logo aparece um protagonista político a reclamar para si todo “o legado da luta libertação nacional, os valores de Cabral e a construção do Estado” como fez a presidente do PAICV num encontro de militantes no dia 2 de Julho. Com o quê é que ficam os excluídos desse legado? Toda a gente percebe que essa reafirmação faz parte de um jogo político no presente que como qualquer manobra política quer agigantar um partido em relação aos outros. Como deverão os outros reagir? A paz com a História esboroa no momento seguinte porque se percebe que afinal certas interpretações favorecem só a alguns e eles não se coíbem de usar a vantagem para fazer política. Em vez de se renovar a união no 5 Julho aprofunda-se o fosso e a paz com a Históriarevela-se inteiramente ilusória.
Sinal claro dessa tensão até agora inultrapassável é a relação com a Bandeira Nacional. Pelo que se vê em todas as festividades do 5 Julho há muita ambiguidade quanto à bandeira nacional. Normalmente não é tão evidente mas no dia da independência revela-se claramente. A bandeira antiga que era essencialmente a bandeira do PAIGC com pequenos ajustes, como, aliás, era a da Guiné-Bissau, é brandida em círculos como a autêntica numa atitude que configura ultraje para com a bandeira nacional consagrada na Constituição da República. Neste 5 Julho o conflito à volta do memorial do Amilcar Cabral serviu de trampolim para em vários círculos e mesmo na Assembleia Nacional surgisse quem, neste caso um deputado do PAICV, pusesse em causa os símbolos nacionais, o hino e bandeira. Preferiria talvez que que se mantivesse a bandeira do PAIGC e o hino da Guiné-Bissau. Ficou claro que para essas pessoas é a sua história que conta. Os outros que persigam a paz ilusória que lhes é oferecida no momento.
No 5 de Julho, os discursos oficiais, à parte raras notas de dissonância, exaltam normalmente os libertadores e a história que protagonizam, louvam a nação e enaltecem o seu caracter. Quando apontam-se falhas tudo é relativizado em relação ao considerado os grandes ganhos conseguidos.  Repetem o mote de todos os anos: valeu a pena a independência. Não há uma preocupação de calibrar na avaliação do país. Não se compara com outras experiências insulares similares com praticamente o mesmo tempo como país independente, as Maurícias (47 anos) e as Seychelles (39 anos), mas com rendimento per capita três e quatro vezes superior a Cabo Verde. Nem se assume que se passou 15 anos perdidos em filosofias económicas que favoreciam a substituição de importações, hostilizavam o turismo e não se sentiam inclinados a construir uma base de exportações de bens e serviços. O país ficou relativamente para trás e ainda parece estar num colete-de-forças que não o deixa crescer, não aumenta o emprego e arrisca a cortar-lhe respiração com o peso da dívida.
Neste fim-de-semana todos os olhares estiveram fixos na crise grega. Neste mundo de hoje de globalização ninguém pode pretender que fica imune, ou pode blindar-se contra esses problemas. É fundamental que em Cabo Verde a atitude geral mude e a relação com a economia global que pode potenciar  o crescimento económico e aumentar rapidamente os empregos seja aprofundada.  A chaga do assistencialismo e da dependência do Estado deve ser combatida e ao mesmo que renovada a consciência e a participação cívica de todos. A história não é coutada dos políticos e deve ser deixada aos historiadores e outros académicos para a investigar e a contextualizar. Lembrar sempre que Marx já dizia quando a história se repete fá-lo na forma de farsa.
Editorial do jornal Expressso das Ilhas de 8 de Julho de 2015

sexta-feira, julho 03, 2015

Custos da política de avestruz



Depois de muita pressão do público na comunicação social, das intervenções de deputados pela emigração de todos os partidos políticos e de uma viva discussão na Assembleia Nacional, finalmente o governo resolveu reagir à problemática criada pela decisão da TACV em impor as novas e caras tarifas inter-ilhas e nas rotas para o exterior. Vários dias de protesto do público, de sinais claros do braço de ferro entre a TACV e autoridade reguladora, a AAC, e da realidade de imposição das novas tarifas não tinham conseguido tirar o governo da sua inércia. Ninguém conseguia que se movesse e se colocasse claramente a favor da legalidade na relação entre a entidade reguladora e a empresa regulada e se mostrasse disponível, e pronto, para dar orientação estratégica para uma empresa pública, a única que existe no sector dos transportes aéreos e por conseguinte o principal instrumento das políticas do governo nesse sector chave da economia nacional. Pelo contrário assistia-se a um espectáculo em que às vezes o governo parecia querer desviar as culpas para os outros, outras vezes mostrava-se renitente ou impotente para intervir na empresa tutelada e ainda em certos momentos até fingia que tudo isso não lhe dizia directamente respeito e que o eventual conflito entre as partes deveria ser dirimido nos tribunais.
Infelizmente o que aconteceu na semana passada no sector dos transportes aéreos não é um caso raro. Situações similares vêm acontecendo com preocupante frequência em vários outros sectores da vida nacional. Recentemente o naufrágio do navio Vicente pôs a nu o descomando que afligia o sector marítimo. Durante anos era evidente que o sistema existente de ligação marítima entre as ilhas padecia de vários males. Sem regulação adequada os operadores sentiam-se livres para escolherem as suas rotas, para determinarem a frequência das viagens e cobrar preços exorbitantes na movimentação de cargas entre as ilhas. Com a preocupação de poupar tendiam a comprar barcos velhos, alguns não se mostravam muito rigorosos na manutenção e até havia quem, na procura de lucro fácil, forçasse a tripulação a fechar os olhos a exigências de segurança. Naufrágios consecutivos de navios como Mosteru, Barlavento, Pentalina e Roterdão deviam ter constituído um alerta para as autoridades. O mesmo alerta deveria ter sido o estado em que se encontravam navios como o Praia D’Aguada e o 13 de Janeiro quando deram entrada na CABNAVE para reparações.
Só nos últimos meses é que se nota a azáfama do governo em adoptar estratégias para os transportes marítimos com a definição de rotas e aventando a possibilidade de concessões e subsídios para os transportes marítimos. Mesmo a capacidade em busca e salvamento só agora começou a merecer o devido tratamento. Foi preciso que acontecesse o acidente com o navio Vicente, com perdas de vida, para que o governo saltasse para a acção. Naufrágios anteriores não tiveram esse mesmo efeito catalisador. Mesmo assim, como aliás todo o país pôde presenciar, não há uma clara e imediata responsibilização pelo desastre e pelas perdas de vida. Pelo contrário, procuram-se bodes expiatórios e vai-se ao ponto de acusar governos de décadas passadas pelo acontecido. 
Porque não se assumem frontalmente os problemas, e no tempo certo, as soluções encontradas para os problemas pecam muitas vezes por serem desadequadas, mais caras e de sustentabilidade duvidosa. Nesse sentido é paradigmática a solução encontrada nos catamarans da Cabo Verde Fast Ferry para o transporte marítimo como se viu na análise da empresa feita neste jornal no seu número de 17 de Junho 2014. Na energia, o calvário percorrido com a Electra ao longo de vários anos só ganhou algum alívio à custa das tarifas de electricidade e água das mais caras do mundo. Nos transportes aéreos, a gestão desastrosa dos TACV ao longo de anos obriga a que se pratiquem tarifas excessivamente elevadas. A empresa até pode aliviar o seu sufoco financeiro mas a que custos: a circulação entre as ilhas diminui com grande impacto na economia e o turismo interno que podia beneficiar várias ilhas e diversificar o pacote turístico do país torna-se extremamente difícil. As pesadas tarifas nas rotas étnicas para as nossas comunidades emigradas deixam transparecer uma miopia impressionante. O emigrante, com toda a sua relação afectiva com familiares e amigos, é potencialmente um visitante ou turista dos mais valiosos e com maior impacto na economia local. São Vicente, em vários períodos do ano, é prova eloquente desse facto. Restringir o fluxo potencial de emigrantes com tarifas aéreas excessivas não pode ser boa política.
Em outros sectores como Segurança, Saúde e Educação ou em programas como o denominado “Casa para Todos” notam-se as ineficiências, o desperdício de recursos e a ineficácia. A atitude prevalecente de passar a culpa para outro, ou de negar a existência do problema ou minimiza-lo considerando-o má-fé dos outros não dá bons resultados. Pode conduzir a tragédias, como se viu, ou então paga-se em custos mais elevados, oportunidades perdidas e sonhos frustrados. Enterrar a cabeça na areia como avestruz não é sinal de liderança. Assim como não é liderança responsável proclamar que se está blindado contra a crise, fingir que se pode ficar incólume perante dívida pública muito acima dos 100% do PIB ou não se preparar para os desafios que os tráficos globais ilegais colocam ao país. Para o bem do país é preciso outra atitude tanto na cidadania como na governação.
 Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 1 de Julho de 2015

sexta-feira, junho 26, 2015

A administração pública que merecemos



Nas últimas semanas sucederam-se vários actos de celebração daquilo que o governo convencionou chamar de 40 anos da Administração Pública cabo-verdiana. Às conferências, cerimónias de imposição de medalhas certamente vão seguir outras homenagens dirigidas aos funcionários públicos dos diferentes sectores do Estado com direito a publicação no B.O. Na actual atmosfera pré-eleitoral é de se legitimamente perguntar se se trata realmente do reconhecimento do “alto nível” de serviço público prestado pelo conjunto da administração pública ou se trata de acções de sedução dos funcionários tendo em conta o considerável peso eleitoral que presumivelmente tem num país em que o Estado é quase tudo.
Reconhecimento inequívoco não parece ser. O Primeiro-ministro em várias intervenções vem insistindo na “necessidade de se combater o “partidarismo” e as desigualdades de tratamento nos serviços e repartições” e de se ter uma administração mais amiga das empresas, maisamiga dos cidadãos e mais amiga do desenvolvimento. Tais palavras proferidas por quem não está de fora e pelo contrário preside o governo que dirige a administração pública directa, superintende os institutos públicos e exerce tutela sobre as entidades administrativas autónomas, incluindo os municípios, não deixam margens para dúvida. De facto, dificilmente se compreende que o governo ainda esteja a apelar à despartidarização, àimpessoalização e à uma atitude mais virada para a produtividade e para o bem comum. A Constituição de 1992 obriga  os servidores públicos a agir com especial respeito pelos princípios da justiça, da isenção, da imparcialidade e da igualdade de tratamento e da luta pelo interesse comum. Mais de vinte anos depois é de se perguntar o que andaram a fazer os sucessivos governos.
Desconcertante, por outro lado, é o PM que mesmo perante este quadro insiste em enaltecer os ganhos e a evolução positiva da administração pública nos últimos anos. O que se pode concluir é que não estaria a avaliar pelos critérios dos chamados 4E, eficiência, eficácia, equidade e efectividade. Das suas palavras anteriormente citadas pode-se depreender que a administração pública não está à altura desejada nem quanto aos princípios e valores, nem quanto à contribuição para o desenvolvimento considerando que é um dos factores para o mau ambiente de negócios em Cabo Verde. Mas se apesar disso consegue fazer avaliação positiva é porque outros critérios e valores estão a sobrepor-se: a partidarização estará a beneficiar alguém; a discriminação é instrumento de uns poucos e o bloqueio dos negócios deve interessar quem não se sente muito confortável com a existência de um sector privado forte e uma sociedade civil autónoma.
A verdade é que não é por falta de reparos, denúncias e críticas ao estado da administração pública que as coisas continuam na mesma, ano após ano. Os efeitos maléficos da partidarização, por exemplo, foram notados em 1988 num artigo de jornal escrito por Renato Cardoso, então Secretário de Estado da Administração Pública. Para ele era claro que a relação Partido/Estado estabelecida no pós-independência tinha transformada  a administração pública no instrumento amorfo das suas orientações comconsequências desastrosas na sua eficácia. Hoje continua-se a falar em despartidarizar mas a partidarização dos cargos persiste apesar dos seus efeitos negativos serem sentidos diariamente. Para muitos observadores, o caso recente do braço de ferro que a TACV mantém com a agência reguladora quanto às tarifas aéreas enquanto o governo fica inactivo só é possível porque o PCA dessa empresa tem o peso político de quem pertence à nova comissão política do partido no governo. Casos do género cujos impasses não são ultrapassáveis por processos conhecidos e transparentes retiram autoridade ao Estado, fazem perder oportunidades ao país e diminuem a confiança de investidores e outros operadores económicos.
A história económica recente dá pistas quanto ao tipo de administração pública que os países escolhem ter. Se são como Singapura, Maurícias ou a actual Ruanda há uma preocupação em ter uma administração pública altamente competente, meritocrática e com uma cultura de serviço que a torna a grande facilitadora da actividade privada não só na atracção de capital externo como também no desenvolvimento de processos de produção voltadas para exportação. Se, pelo contrário, o país cai na tentação de fazer da captação da ajuda externa e da sua disponibilização no país o seu objectivo maior, os resultados são inversos. O Estado já não é mais facilitador, mas coloca-se no topo da cadeia de distribuição, cioso do seu poder, do seu status e a da sua influência. Não abdica facilmente do seu papel de captar fluxos externos diversos e de discricionariamente distribuir recursos, propiciar acessos e influenciar resultados no país.
Fazer ou não as reformas do Estado não é tanto uma questão de vontade, mas sim de opção. O que existe hoje em Cabo Verde resulta de um governo que, por exemplo, sempre tratou o programa de ajudas do MCA com entusiamo enquanto que com o programa AGOA que implica atrair capitais estrangeiros, produzir e exportar para mercados preferenciais nunca mereceu muita atenção dos governantes. É evidente que por mais discursos, proclamações ou promessas de mudar e passar a ser uma administração mais “amiga de negócios” isso não vai acontecer  como até agora não aconteceu. Reformas só poderão ser feitas quando efectivamente o país adoptar uma outra postura quanto ao seu desenvolvimento. E mesmo assim não será fácil.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 2015

sexta-feira, junho 19, 2015

Nada é o que parece ser



Nestes meses pré-eleitorais Cabo Verde vive tempos peculiares. O Primeiro-ministro às vezes apresenta-se como o líder da sua agenda de transformação e esforça-se por mostrar os “ganhos” de quinze anos de governação. Quase em simultâneo põe-se na posição de crítico e fustiga, por exemplo, a administração pública, que ele próprio dirigiu durante os últimos quinze anos, como factor de atraso na criação de um bom ambiente de negócios. Ou apela ao sector privado para substituir o Estado nos investimentos para fazer crescer a economia oblívio da situação actual de enorme dificuldade na generalidade das empresas. Ou ainda queixa-se do elevado desemprego no país convidando a todos a encontrar solução para esse mal que assola o país. Na inauguração da nova linha da Frescomar, na segunda-feira, dia 15, ouviu-se mais uma reedição deste discurso de “Now you see me, now you don´t”. A discutir a partidarização da administração pública no Instituto da Ciências Jurídicas e a falar da regionalização no Paul, foi a mesma coisa. 
Nas democracias a questão da responsabilidade partidária é crucial para a legitimação do poder, para o exercício consciente do direito do voto e também para garantir a possibilidade de alternância. A todo o momento tem que se saber quem é governo, ou seja, quem ganhou pela sua visão e programa de futuro, quem tem um mandato pré-estabelecido para a pôr em prática e quem tem todos os recursos do Estado para a implementar. Do governo espera-se liderança designadamente na criação de condições para que todos tenham a possibilidade de realizar-se como cidadãos plenos e prosperar a nível pessoal, familiar e das colectividades que criam ou a que pertençam. Não se espera que simplesmente faça a “sua parte”, geometricamente varável segundo as suas conveniências, e se ponha em bico dos pés a acusar outros como o sector privado, as câmaras municipais, as famílias e os próprios jovens desempregados por não estarem a cumprir o seu. 
Ao longo do mandato e particularmente no fim do mandato as pessoas querem estar na posição de poder cobrar ou premiar conforme as espectativas criadas foram ou não atingidas. Certamente que não querem ser desviadas por actos de ilusionismo que não deixam ver o que realmente se conseguiu, quem foi o responsável e que saídas existem para os problemas do momento. O facto actual do Primeiro-Ministro não ser o líder do partido que suporta o governa abriu caminho para maiores ambiguidades em matéria de responsabilização política. Viu-se isso perfeitamente na questão do estatuto dos titulares de cargos políticos.
Para o cidadão eleitor, que assiste ao frenesim pré-eleitoral  que passa pela comunicação social particularmente na radio e na televisão em que é protagonista principal o PM  nas suas movimentações incessantes pelas ilhas em lançamentos de primeiras pedras, inaugurações, visitas, aberturas de fóruns  e sessões de auscultação, a situação é mais confusa. Fica-se por saber: está ou não em campanha. É ou não candidato e em que condição. É responsável ou é crítico das políticas dos últimos quinze anos. É pela continuidade das políticas ou é pela renovação como quer se apresentar a nova presidente do seu partido. 
Momentos eleitorais devem ser de clareza de posições. Os cidadãos são chamados para decidir qual a orientação a imprimir nos 5 anos seguintes. Precisam saber qual é a real situação do país, como poderá evoluir na actual conjuntura mundial, e que opções oferecem os agentes políticos para melhor confrontar os desafios do presente e do futuro próximo. Esta exigência da democracia é ainda maior quando o futuro está cheio de incertezas e as fragilidades do país são visíveis no crescimento raso, no elevado desemprego e na cada vez mais pesada dívida pública. O cenário de aprofundamento da crise na União Europeia, o principal parceiro económico de Cabo Verde, devido à possível saída da Grécia, e talvez não só, da zona euro ainda poderá tornar as coisas pior.
Momentos eleitorais são também de responsabilização. O foco da atenção deve estar nos partidos, nas soluções alternativas e nas propostas de governação que apresentam e não fixar-se no jogo de ambições pessoais que muitas vezes estão por trás das listas de deputados. Como bem disse o constitucionalista português Vital Moreira a propósito de de  candidaturas de cidadãos às legislativas: “Não faz sentido permitir a eleição individual de deputados que nas eleições seguintes já podem não ser candidatos e a quem ninguém pode exigir responsabilidades. Uma democracia parlamentar é uma democracia de responsabilidade partidária”. De facto, só aos partidos é que se pode posteriormente punir ou recompensar pelos actos da governação e pelas promessas cumpridas e não cumpridas. Para isso porém é de não admitir que façam da política a arte do ilusionismo e o terreno propício para exercício do cinismo e da hipocrisia. 
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 17 de Junho de 2015