Seguindo pela rádio ou vídeo streaming a discussão da proposta de lei do Orçamento do Estado podia-se ficar com a ideia de que o Governo e a Oposição, o PAICV, estariam a discutir a partir de posições absolutamente antagónicas sem qualquer possibilidade de encontrar terreno comum. Estaria um a propor um modelo de desenvolvimento económico com base no mercado e na dinâmica do sector privado e o outro a defender a continuidade da reciclagem da ajuda externa. Indo além da fachada e das posições extremadas manifestadas ao longo do debate constata-se com alguma surpresa que as coisas não são como parecem: os dois partidos, MpD e PAICV, dizem apostar no sector privado como motor da economia nacional. Mostram reiteradamente a preferência por um Estado isento e imparcial, eficiente e eficaz e também despartidarizado. Todos afirmam querer crescimento com criação de emprego. Diferenças aparentes surgem na enfase posta nos discursos em relação a matérias como inclusão, desigualdade social, autonomia dos indivíduos e dependência de pessoas e comunidades em relação ao Estado.
Coloca-se a questão de saber porque o fosso que os separa é tão grande. As razões certamente deverão ser encontradas na história do país. O PAICV durante os quarenta anos de Cabo Verde independente governou trinta anos, quinze anos iniciais no regime de partido único e quinze anos após os primeiros dez anos de democracia e de experimentação com a economia de mercado e de base privada. Durante grande parte desse tempo foi dominante o modelo de reciclagem de ajuda externa. Só em 2015, em período pré-eleitoral e eleitoral, é que os partidos convergiram em considerar que o país se encontrava numa encruzilhada e que se devia deixar definitivamente para trás o modelo. Mas dependendo de quem ganhasse as eleições, a luta política para se ir além da reciclagem de ajuda poderia ser mais acelerada ou mais arrastada. No processo, a postura de quem ficasse na oposição também contaria.
Ganhou o MpD e não tardou muito que o aparente consenso pré eleições quanto à adopção do novo modelo de desenvolvimento se desvanecesse. De facto, o PAICV pelo seu tempo de governação, história e ideologia confundia-se mais com o modelo anterior. Mesmo quando se põe em posição crítica em relação a ele, porque a ajuda ao desenvolvimento praticamente chegou ao fim e os últimos cinco anos de política económica representaram cinco anos de estagnação, dificilmente consegue dissociar-se de pessoas, grupos de interesses, atitudes e instituições que ascenderam durante a vigência do modelo. Na oposição iria existir sempre o perigo da sua actuação auto limitar-se a pôr resistência a mudanças que mexem com certos interesses e privilégios.
Nota-se isso, por exemplo, na reacção às mudanças na administração pública e no sector empresarial do Estado. Tem menos a ver com uma genuína preocupação com a despartidarização e mais com a protecção de interesses já instalados. Na pressa em demonstrar que o governo não cumpre as promessas de mais crescimento e emprego pode também não estar a ajudar as pessoas e a sociedade em geral a pôr na perspectiva certa as dificuldades do país (dívida pública, falta de competitividade)com origem em opções de política que provadamente só já trazem estagnação e a promessa de manter mais de um terço da população na pobreza. Quando é assim estabelece-se um círculo vicioso de desconfiança, violência verbal e ataques às instituições que a ninguém traz vantagem e faz recuar ainda mais as possibilidades de mudança. Como se viu no debate do Orçamento do Estado, O MpD e o PAICV fixam-se na posição em que há décadas se vêem um ao outro. No jogo parlamentar esquecem que afinal têm matérias convergentes e que há base para trabalhar juntos, salvaguardando sempre o contraditório e a possibilidade de alternância no governo.
A experiência de desenvolvimento de vários países demonstra que em momentos cruciais foi fundamental alguma convergência de objectivos entre os principais partidos. Políticas do chamado “bloco central” foram extremamente importantes em vários países como a Alemanha, Holanda e também Portugal, quando reformas profundas deviam ser feitas com urgência. Também outros países mais próximos em termos de desafios, como as Maurícias e as Seychelles, souberam beneficiar da convergência de objectivos de várias forças políticas para fazer a opção certa no processo de desenvolvimento.
Cabo Verde é que até agora não conseguiu realizar esse feito que o exemplo dos outros demonstra ser de grande importância para se dar o salto necessário. Ao governo, que tem a responsabilidade primeira de conduzir os destinos do país, cabe um papel especial em não deixar que a oposição se acantone e que uma dinâmica de posições extremadas desvie a atenção dos reais problemas do país e da urgência em os confrontar e resolver. Também, neste momento em que nas democracias os partidos estão sob particular escrutínio dos cidadãos e as instituições estão sob ataque de movimentos populistas diversos, o MpD e o PAICV devem evitar cair nos papéis já tradicionais que diminuem a sua imagem aos olhos de todos.
Em 2015 desenhou-se um entendimento de que o país deve procurar outros caminhos para poder desenvolver e prosperar. Há que trabalhar sobre os aspectos centrais desse consenso de forma a garantir a tranquilidade e a confiança necessárias para que na liberdade e no pluralismo se assuma um novo paradigma e se faça subir o país para um outro patamar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 782 de 23 de Novembro de 2016.