sexta-feira, novembro 25, 2016

Exige-se nova atitude dos partidos


Seguindo pela rádio ou vídeo streaming a discussão da proposta de lei do Orçamento do Estado podia-se ficar com a ideia de que o Governo e a Oposição, o PAICV, estariam a discutir a partir de posições absolutamente antagónicas sem qualquer possibilidade de encontrar terreno comum. Estaria um a propor um modelo de desenvolvimento económico com base no mercado e na dinâmica do sector privado e o outro a defender a continuidade da reciclagem da ajuda externa. Indo além da fachada e das posições extremadas manifestadas ao longo do debate constata-se com alguma surpresa que as coisas não são como parecem: os dois partidos, MpD e PAICV, dizem apostar no sector privado como motor da economia nacional. Mostram reiteradamente a preferência por um Estado isento e imparcial, eficiente e eficaz e também despartidarizado. Todos afirmam querer crescimento com criação de emprego. Diferenças aparentes surgem na enfase posta nos discursos em relação a matérias como inclusão, desigualdade social, autonomia dos indivíduos e dependência de pessoas e comunidades em relação ao Estado.
Coloca-se a questão de saber porque o fosso que os separa é tão grande. As razões certamente deverão ser encontradas na história do país. O PAICV durante os quarenta anos de Cabo Verde independente governou trinta anos, quinze anos iniciais no regime de partido único e quinze anos após os primeiros dez anos de democracia e de experimentação com a economia de mercado e de base privada. Durante grande parte desse tempo foi dominante o modelo de reciclagem de ajuda externa. Só em 2015, em período pré-eleitoral e eleitoral, é que os partidos convergiram em considerar que o país se encontrava numa encruzilhada e que se devia deixar definitivamente para trás o modelo. Mas dependendo de quem ganhasse as eleições, a luta política para se ir além da reciclagem de ajuda poderia ser mais acelerada ou mais arrastada. No processo, a postura de quem ficasse na oposição também contaria.
Ganhou o MpD e não tardou muito que o aparente consenso pré eleições quanto à adopção do novo modelo de desenvolvimento se desvanecesse. De facto, o PAICV pelo seu tempo de governação, história e ideologia confundia-se mais com o modelo anterior. Mesmo quando se põe em posição crítica em relação a ele, porque a ajuda ao desenvolvimento praticamente chegou ao fim e os últimos cinco anos de política económica representaram cinco anos de estagnação, dificilmente consegue dissociar-se de pessoas, grupos de interesses, atitudes e instituições que ascenderam durante a vigência do modelo. Na oposição iria existir sempre o perigo da sua actuação auto limitar-se a pôr resistência a mudanças que mexem com certos interesses e privilégios.
 Nota-se isso, por exemplo, na reacção às mudanças na administração pública e no sector empresarial do Estado. Tem menos a ver com uma genuína preocupação com a despartidarização e mais com a protecção de interesses já instalados. Na pressa em demonstrar que o governo não cumpre as promessas de mais crescimento e emprego pode também não estar a ajudar as pessoas e a sociedade em geral a pôr na perspectiva certa as dificuldades do país (dívida pública, falta de competitividade)com origem em opções de política que provadamente só já trazem estagnação e a promessa de manter mais de um terço da população na pobreza. Quando é assim estabelece-se um círculo vicioso de desconfiança, violência verbal e ataques às instituições que a ninguém traz vantagem e faz recuar ainda mais as possibilidades de mudança. Como se viu no debate do Orçamento do Estado, O MpD e o PAICV fixam-se na posição em que há décadas se vêem um ao outro. No jogo parlamentar esquecem que afinal têm matérias convergentes e que há base para trabalhar juntos, salvaguardando sempre o contraditório e a possibilidade de alternância no governo. 
A experiência de desenvolvimento de vários países demonstra que em momentos cruciais foi fundamental alguma convergência de objectivos entre os principais partidos. Políticas do chamado “bloco central” foram extremamente importantes em vários países como a Alemanha, Holanda e também Portugal, quando reformas profundas deviam ser feitas com urgência. Também outros países mais próximos em termos de desafios, como as Maurícias e as Seychelles, souberam beneficiar da convergência de objectivos de várias forças políticas para fazer a opção certa no processo de desenvolvimento. 
Cabo Verde é que até agora não conseguiu realizar esse feito que o exemplo dos outros demonstra ser de grande importância para se dar o salto necessário. Ao governo, que tem a responsabilidade primeira de conduzir os destinos do país, cabe um papel especial em não deixar que a oposição se acantone e que uma dinâmica de posições extremadas desvie a atenção dos reais problemas do país e da urgência em os confrontar e resolver. Também, neste momento em que nas democracias os partidos estão sob particular escrutínio dos cidadãos e as instituições estão sob ataque de movimentos populistas diversos, o MpD e o PAICV devem evitar cair nos papéis já tradicionais que diminuem a sua imagem aos olhos de todos. 
Em 2015 desenhou-se um entendimento de que o país deve procurar outros caminhos para poder desenvolver  e prosperar. Há que trabalhar sobre os aspectos centrais desse consenso de forma a garantir a tranquilidade e a confiança necessárias para que na liberdade e no pluralismo se assuma um novo paradigma e se faça subir o país para um outro patamar.
 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 782 de 23 de Novembro de 2016.

sexta-feira, novembro 18, 2016

Nacionalismo responsável

Recentemente passou na comunicação social a notícia da saída da Ecobus da carreira Assomada/Praia. As razões para isso teriam sido medidas tomadas pelas autoridades locais que efectivamente impediram a empresa de cumprir com os horários fixos de saída da Assomada e de chegada à Praia dos autocarros (hiaces) inviabilizando assim o negócio. Voltou-se ao modelo habitual de negócios em que os hiaces andam à procura de passageiros e não têm horário de saída e nem tão pouco de chegada porque paragens ao longo do caminho dependem de conveniências várias. Já se sabe que os grandes perdedores são todos aqueles que querem usar o seu tempo de forma produtiva nas suas deslocações e esperam que transportes públicos regulados dêem as garantias necessárias para isso em termos de tempo, frequência, segurança e conforto. Não se compreende é a atitude das autoridades que em vez de regular a actividade económica em benefício de uma melhor e mais segura circulação de pessoas e bens acabam por deixar o sector dos transportes interurbanos numa informalidade que prejudica toda a gente.
O exemplo da Ecobus vem particularmente a propósito no momento em que se discute o papel crucial do sector privado na economia, a necessidade de combater a informalidade, a urgência em fazer um uso mais eficiente das infra-estruturas e de outros investimentos públicos e a importância de se ter um empresariado nacional apostado na criação de riqueza. Mostra como a tendência geral é para tudo funcionar à revelia do que é propalado em discursos e posições oficiais. Hoje, décadas passadas, vê-se o Estado ainda preponderante na economia nacional, a actividade informal sempre a crescer, o desperdício e a gestão inadequada de meios e serviços públicos e o empresariado nacional em retirada em quase todos os sectores designadamente, construção civil, comércio, indústria e serviços.
Neste sentido, paradigmático é o que se passa nas ilhas do Sal e da Boavista em que, a par do investimento turístico, cresce a actividade informal e assiste-se ao espectáculo de empresários nacionais a ficar para trás porque não há regulação e não há estratégia dirigida para fazer a procura turística engajar com a economia nacional. Aparentemente o Estado dá-se por contente com as receitas em impostos e taxas que cobra aos turistas, aos operadores e às importações. E a cultura rentista continua a prevalecer sobre o que devia ser uma cultura de criação de riqueza, de criação de emprego e de exportações, não obstante todo o discurso de valorização do empreendedorismo, da competitividade e da inovação.
O novo governo do MpD prometeu fazer diferente. As propostas na lei do Orçamento do Estado de 2017 visam criar uma nova relação das empresas com o fisco que, por um lado, as deixe respirar e, por outro, incentive o investimento ao mesmo tempo que alarga a base tributária, promovendo a formalização de micro e pequenas empresas. Uma outra ajuda para a actividade empresarial será o pretendido estímulo à procura interna através do redireccionamento de partes do Fundo de Ambiente e do Fundo do Turismo para os municípios, as novas politicas de aprovisionamento de bens e serviços do Estado dirigidas às empresas locais, a activação de fundos de garantia e a diminuição de custos de segurança social.
O ressurgir de questões essenciais como os custos de energia e água, que recentemente tiveram aumentos significativos, e também de putativos aumentos de tarifas de transportes marítimos, que já se projectavam para cima de 50%, vieram relembrar que os problemas das empresas e do empresariado caboverdiano não são apenas de natureza fiscal e de financiamento. Até porque nesses domínios o que o governo consegue oferecer não é o que se esperaria no âmbito de um choque fiscal de estímulo ao investimento e às empresas. A pesada dívida pública, de mais 126% do PIB, e o risco orçamental representado pelas empresas públicas como a TACV, IFH e Electra não lhe dão qualquer folga para reduções significativas de carga fiscal. De qualquer forma a reacção tépida dos empresários às propostas do governo deixa transparecer que precisam de algo mais compreensivo. Algo que, por exemplo, faça diminuir os custos dos factores, os custos de contexto, os custos de transporte e de comunicação. Uma estratégia que inverta o processo de retirada do empresariado nacional de vários sectores da economia e activamente promova a sua dinamização através da satisfação de parte significativa da procura gerada pelo turismo e também via a identificação de oportunidades externas de fornecimento de bens e serviços.
Lawrence Summers, da Universidade de Harvard, num artigo de Julho deste ano no Financial Times aconselha aos governos que assumam um nacionalismo responsável no sentido que o bem-estar económico dos seus cidadãos deve ser o principal objectivo e que os acordos internacionais devem ser avaliados não por quantas barreiras deitam a baixo mas sim se com eles os cidadãos nacionais ficam melhor posicionados. O contrário, que ele chama de internacionalismo reflexivo, acaba por marginalizar os que se vêem espoliados da sua actividade e do seu emprego por causa de facilidades dadas a outros e que depois vão engrossar o número de apoiantes de eventuais demagogos como se viu no Brexit e na eleição presidencial americana de 8 de Novembro. Com a adopção de uma estratégia nacional dirigida para a afirmação de um empresariado nacional mesmo no quadro de uma economia aberta evitam-se situações em que a falta de regulação mate a iniciativa empresarial, como parece ter sido o caso da Ecobus e outras situações em que a omissão em matéria de políticas para os sectores deixa em sistemática desvantagem os empresários nacionais. Quando não se tem uma estratégia própria fica-se sujeito à estratégia dos outros.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 781 de 16 de Novembro de 2016.

sexta-feira, novembro 11, 2016

Narrativa e foco

Seis meses após o início do mandato, o governo parece estar “sitiado”, pressionado por exigências de cumprimento de promessas, por especulações sobre possíveis remodelações ministeriais e por acusações de favoritismo e clientelismo. Também alvo de críticas é a aparente omissão em questões importantes como alterações de tarifas de água e energia e eventualmente dos transportes marítimos e outras cruciais como o futuro da TACV e do Programa Casa para Todos. Por outro lado, a persistente sensação de insegurança não ajuda. No global sente-se um desconforto que a se generalizar pode minar a confiança e o entusiamo logo no início do mandato.
Para o governo, contrariar isso tudo não é fácil especialmente quando a situação do país coloca particulares desafios. Com a dívida pública nos 121% do PIB e o crescimento económico só agora, neste ano, a ganhar alguma dinâmica depois de cinco anos de uma economia praticamente estagnada, não se vê com muito espaço orçamental para acomodar certas situações e contornar outras. Muito menos para investir de forma inovadora para abrir caminho e libertar-se da armadilha do fraco desempenho da economia acompanhado do alto desemprego em que o país tinha caído. Apesar desses constrangimentos de partida, o facto é que o governo ainda está no início. Seis meses correspondem simplesmente a um décimo do tempo do mandato de cinco anos. Muita coisa vai acontecer, muita obra poderá ser realizada e muitos dos objectivos prometidos serão certamente atingidos. Para isso porém é preciso uma comunicação permanente com o país e com a sociedade cabo-verdiana, que mantenha a confiança, que permita às pessoas gerirem as suas expectativas e que incentive à mudança de atitude sem a qual dificilmente se poderá garantir a sustentabilidade do desenvolvimento do país.
É um facto já constatado por muitos outros que as eleições não são só sobre o candidato, mas fundamentalmente sobre a visão que se tem do presente e futuro do país, a diferente perspectiva de como abordar a realidade complexa que foi legada e as escolhas dos caminhos a serem trilhados para atingir os objectivos prometidos. O sucesso de quem recebeu o mandato para governar certamente que irá depender bastante da capacidade em ter sempre presente na comunicação com a sociedade a narrativa que inspirou o eleitorado e que lhe permite compreender a cada passo a actuação do governo.  Mas não só: terá que agir com coerência e foco de forma a confirmar a narrativa que mobiliza as vontades e permite a gestão sem grandes sobressaltos das expectativas da população no curto, médio e longo prazo, tanto ao nível pessoal como dos grupos sociais. A opção por uma postura tecnocrática ou que minimiza a abordagem política não deixaria de causar dificuldades acrescidas com quebras de eficácia na governação, perda de capital político necessário para as grandes reformas e impotência progressiva no combate aos interesses que se opõem a mudanças de políticas.
Os últimos quinze anos de governo do PAICV ilustram bem a importância das narrativas. Foram marcados pela grande narrativa da Agenda de Transformação que incluía entre os seus elementos a criação dos Clusters, o programa das infraestruturas, o ressurgimento do mundo rural com as barragens e o programa Casa para Todos. Hoje todos sabem no que isso resultou: os clusters ainda estão por emergir, o programa de infraestruturas não resolveu os problemas de comunicação nem melhorou a competitividade do país, o mundo rural não diminuiu a sua vulnerabilidade e o programa Casa para Todos deixou dívida pesada e pôs de rastos o sector nacional de construção civil e de imobiliária.
Durante todos esses os anos, a narrativa da Agenda de Transformação deu coerência à governação, permitiu fixar e mobilizar apoio político e combater os adversários políticos. Querendo ou não reconhecer acabou por moldar o país designadamente no que respeita à atitude das pessoas, à postura das instituições e à natureza das expectativas. Eventualmente, o insucesso acabou por forçar uma mudança, não significando isso, porém, que simplesmente se desintegrou. Se não for efectivamente contrariada e substituída por uma nova narrativa, a sua persistência na sociedade e nas instituições pode constituir um entrave sério à implementação de novas políticas e à criação de condições para se colocar o país num outro patamar de desenvolvimento.
Um dos obstáculos à afirmação da nova narrativa é a timidez que se nota em fazê-la passar. Contrasta fortemente com a forma sistemática e até com truques de ilusionismo com que anteriormente se sustentou a chamada Agenda de Transformação. À timidez existente veio aliar-se, nos tempos actuais, uma certa relutância em assumir uma ideologia e defender princípios, valores e opções com coerência, decência política e respeito pelas regras. Como se vê no caso de Trump na América e de outros populistas na Europa isso deve-se em boa parte à pressão anti-política e anti-partido que nos dias de hoje o activismo nas redes sociais, e vários movimentos populistas nas democracias, vem colocando sobre os partidos políticos deixando-os á mercê do carisma do chefe “que tudo pode e tudo resolve”.
Há que ultrapassar este mau momento, que ameaça despir os partidos de uma identidade própria, do seu legado e os impede de manter narrativas coerentes, mas diferenciadas, tão fundamentais ao pluralismo e à democracia. Sem falar na fragilidade existencial que em caso de derrota e perda de poder pode revelar-se repentinamente, como está a acontecer actualmente no PAICV, e que enfraquece ainda mais a democracia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 780 de 09 de Novembro de 2016.

sexta-feira, novembro 04, 2016

Votem Hillary Clinton

As eleições presidenciais americanas vão ser já na próxima terça-feira, dia 8 de Novembro. O mundo inteiro aguarda com ansiedade o que poderá ser o resultado do embate entre Hillary Clinton e Donald Trump. É evidente que para a generalidade das pessoas fora dos Estados Unidos uma vitória de Trump teria consequências imprevisíveis e globalmente negativas. Entre os americanos as opiniões dividem-se a tal ponto que a eventual vitória de Hillary pode estar por um fio, não obstante o apoio editorial dos principais jornais, o engajamento na campanha de celebridades das artes e do mundo empresarial e as declarações de suporte de académicos, colunistas e de personalidades tradicionalmente ligadas ao partido republicano. Pelo que está em causa nesta eleição, e considerando os tempos de particular tensão militar em certas regiões do globo, de ameaça do terrorismo e dos desafios que a fragilidade do crescimento económico está a colocar às democracias, parece justificar-se, o que a miúde se diz, meio a brincar, que todos no mundo deveriam poder votar na eleição do presidente americano.
A vitória provável de Hillary Clinton não será porém suficiente para aquietar muito do desassossego entre os defensores da democracia provocado pela emergência e afirmação do fenómeno Trump na política americana. Outras democracias já têm movimentos políticos que, como o de Donald Trump, apostam no medo, na xenofobia e no ressentimento. Podem não ter o mesmo peso, mas servem-se dos mesmos meios. Usam a mentira, a violência verbal e a manipulação de paixões primárias para hostilizar partidos políticos tradicionais, questionar instituições democráticas e esvaziar os princípios e valores de tolerância religiosa, da livre expressão, do pluralismo e do Estado de Direito. Nos Estados Unidos os estragos para a democracia já são evidentes: fala-se no colapso ou implosão do partido republicano; Trump já deixou entender que pode não aceitar os resultados eleitorais em caso de derrota; e tem-se como certo que o nível de obstrução dos trabalhos do Congresso irá atingir novos limiares se os republicanos conservarem a maioria na Casa dos Representantes e no Senado. Com os últimos desenvolvimentos despropositados sobre os emails de Hillary apercebe-se que nem o FBI consegue estar acima da pressão raivosa dos partidários de Trump.
 Diz-se que actualmente a democracia está em crise, que os partidos políticos não são mais representativos e que a política como arte do possível ou “arte de tomar decisões em contextos condicionados” nas palavras do académico Daniel Innerarity, já não consegue enfrentar os desafios do mundo moderno. Para alguns a alternativa para a crise surge então em se encontrar figuras como Trump e outros tantos que se assumem acima da política, acima dos partidos e que vão deixando avisos que poderão não se deixar emaranhar pelas leis e valores existentes para “erguer muros contra estrangeiros, registar pessoas com certas religiões, normalizar o uso da tortura e até prender adversários políticos”.
Tais figuras encontram normalmente respaldo entre aqueles que não acreditam na retoma da economia e na diminuição das desigualdades e entre os que se deixaram frustrar pelas dificuldades em mudar a agenda política apesar da ilusão de empoderamento criada pelas redes sociais. Curioso que, não obstante a retórica anti-partido, é só com a conquista da liderança dos partidos que conseguem dar o salto para o plano nacional e daí para o governo. Mesmo chegados lá não abdicam de se apresentar acima do partido, de expor os seus defeitos de falta de representatividade, de elitismo e de clientelismo e de insistir na imagem do líder como outsider e como puro e autêntico até se chegar ao ponto de culto de personalidade sem precedentes na democracia.
Os partidos põem-se a jeito para serem praticamente assaltados quando, na ânsia de responder às críticas de falta de abertura à sociedade, adoptam processos de escolha da liderança através designadamente de primárias e outras formas descentralizadas de selecção de dirigentes, consideradas mais democráticas. A propósito desta opção o cientista político Ian Shapiro diz que “é uma ideia muita errada de democracia, segundo a qual as escolhas por participação directa a fazem mais democrática quando na realidade o que consegue é dar o poder a minorias mais radicais que dentro dos partidos políticos conseguem fazer vencer os seus candidatos”. Quem assim procede até pode ter no início vantagem com a mobilização de paixões e ressentimentos mas a prazo, conquistando ou não o poder, as consequências para o partido podem vir a revelar-se terríveis. Com a candidatura de Donald Trump o partido republicano já está imerso numa crise profunda e há quem preveja que não irá sobreviver mesmo se ganhar a presidência. E não seria nada de novo. A América no século dezanove já assistiu ao fim de um partido, o partido Whig, após a eleição de um seu candidato Zachary Taylor que era tido como um “outsider” e posicionava-se como anti-partido.
Os partidos tradicionais que durante décadas na Europa e em outros países têm sido  baluartes da estabilidade democrática estão hoje sob a pressão para darem sinais de maior abertura à participação das pessoas e de mais transparência e honestidade na condução dos assuntos públicos. No esforço de adaptação aos novos tempos o pior que lhes pode acontecer é deixarem-se levar por derivas demagógicas e populistas. A crise actual de muitos deles tem a ver com a forma como lidam com as pressões populistas à esquerda e à direita e dentro da sua própria organização. Subordinar-se ao líder sacrificando o partido, a sua identidade, o seu pluralismo interno e a sua organização no processo pode revelar-se fatal.
Nas democracias a responsabilidade política última é sempre partidária e não do líder. Esta é a realidade que também os partidos caboverdianos, PAICV e MpD, deverão ter em devida conta enquanto preparam os respectivos congresso e convenção nacional. Todos já mostraram terem sido influenciados por movimentações populistas. A fragilidade evidente do parlamento nesta legislatura é uma das consequências. Espera-se que a derrota de Donald Trump no dia 8 de Novembro tenha o efeito de travão em toda esta deriva populista e demagógica que ameaça velhas e novas democracias. O Expresso das Ilhas não vota mas recomenda que todos os caboverdianos eleitores nos Estados Unidos votem Hillary Clinton.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 779 de 02 de Novembro de 2016.

sexta-feira, outubro 14, 2016

Desarmar a população

A notícia dos 120 homicídios num ano trazida a público pelo Procurador Geral da República em Setembro último finalmente despertou a sociedade cabo-verdiana para os excessos de violência que ocorrem no país. A informação veio confirmar o sentimento generalizado de insegurança que se renova no dia-a-dia com os relatos de assaltos à mão armada, troca de tiros entre elementos de gangs e ajustes de contas que se saldam em mortes em vários pontos da capital. Piora a situação a percepção de que cada vez mais também a Polícia vem-se tornando o alvo de ataques. Neste panorama preocupante é notório o papel crescente das armas de fogo, seja das fabricadas localmente, as chamadas “boka bedju”, como das armas importadas. A questão na mente de todos é porque não se está a resolver definitiva e eficazmente a questão das armas de fogo nas mãos das pessoas. 
Dados da polícia apontam que nos últimos três anos, 2013, 2014 e 2015 houve respectivamente 21, 22 e 11 homicídios por armas de fogo e, no mesmo período, casos de ofensas corporais também com armas de fogo em número 131, 181 e 76. 80% a 90% dos casos de homicídio e ofensas corporais aconteceram na cidade da Praia, onde também na mesma percentagem se verificaram os casos de ataques a polícias com essas armas em número respectivamente de 17, 9 e 7 nos anos referidos. Curiosamente, em relação à posse ilegal de armas foram nos últimos três anos de 83, 79 e 62 e já não é a Praia onde há o maior número de casos mas sim em Santa Catarina, Santa Cruz e S. Filipe na ilha do Fogo.
Em 2013, o governo fez aprovar na Assembleia Nacional a lei de armas de pequeno calibre e lançou uma campanha de recolha voluntária que falhou. Segundo o actual Ministro da Interna, Paulo Rocha, em declarações à imprensa em Julho último, “a campanha não funcionou”. O problema teria sido de “comunicação”. Quando hoje se espera que a matéria seja retomada, constata-se, na declaração, da passada quinta-feira, dia 6 de Outubro, sobre “o conjunto de medidas de intervenção imediata para a contenção de insegurança” que a questão das armas nas mãos das pessoas não foi contemplada. Uma estranha omissão considerando que um estudo anterior da Afrosondagem datado de 2008 e citado por oficiais da PN situava o número de armas em circulação em Cabo Verde entre 6 mil e 8 mil e que também é hoje mais do que evidente o papel crescente das armas de fogo em homicídios e assaltos. Mesmo a medida que em 2010 o então governo terá idealizado para travar o “abastecimento de determinados tipos de munições” com o objectivo de  conter a produção de armas artesanais não terá resultado. Os “boka béju” continuam a aparecer em cenas de crimes violentos.
O pesquisador Júlio Jacob, autor do Mapa de Violência no Brasil, é peremptório em afirmar  que “não há estudo sério no mundo que não comprove a relação entre posse de arma de fogo e o número de assassinatos num país”. Este facto foi espectacularmente provado há duas décadas no Reino Unido e na Austrália. Na sequência de massacres de dezenas pessoas por atiradores armados, os governos desses países fizeram passar leis que praticamente proibiram as armas de fogo. As taxas de homicídio mas também de suicídio diminuíram consideravelmente com essas medidas de retirar à população o acesso a armas. O mesmo aconteceu no Brasil durante algum tempo depois da entrada em vigor do Estatuto de Desarmamento. Diminuíram casos de mortes por brigas conjugais, conflitos entre vizinhos e por acidentes na manipulação da arma.
Mas como o Brasil também demonstra – a violência voltou depois a aumentar - não se pode ficar só pelo desarmamento para manter baixo o nível de homicídios e de crimes em geral. Há que desenvolver outras políticas tanto no combate ao crime como na sua prevenção. Fundamentalmente há que reafirmar o contrato social e renovar a crença no destino comum com políticas de inclusão, com igualdade de oportunidades e com crescimento e emprego de qualidade. E tudo isso num ambiente em que a justiça funciona, vive-se em segurança e o Estado não é consumido pela corrupção que privilegia uns e trata desigualmente muitos outros.
Grandes desafios se colocam a Cabo Verde em termos de segurança. O índice Mo Ibrahim veio relembrar como a segurança é vital para o país assegurar a competitividade externa necessária ao desenvolvimento da sua economia, a começar pelo turismo. A degradação dos índices de crimes nos últimos anos deve ser um incentivo para se rever profundamente todo o sistema de Segurança. É evidente que com o que se tem, não se está a obter os resultados prometidos e que o país urgentemente precisa. E certamente que não é a despejar meios por cima de problemas que se vai resolvê-los. Foi tentado no passado e não resultou. Há que mudar. Desarmar efectivamente a população pode também ser parte de um bom começo.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 776 de 12 de Outubro de 2016.

sexta-feira, outubro 07, 2016

Abstenção conveniente

Jorge Carlos Fonseca ganhou as eleições presidenciais de 2 de Outubro com 74% dos votos validamente expressos tendo os outros candidatos Albertino Graça e Joaquim Monteiro recebido respectivamente 22,5% e 3,2% dos votos. A abstenção que acabou por atingir o seu maior valor de sempre com 63,4% dos eleitores não deixou de tirar algum lustre à vitória. Com base nesses números de abstenção, opiniões diversas procuraram questionar a legitimidade da eleição, a validade do sistema político e a representatividade do voto. Assumem que a abstenção sinaliza insatisfação dos eleitores com a política, com os políticos e com os partidos e precipitam-se na conclusão de que a democracia representativa está em crise.
É evidente que, vinda de muitos desses fazedores de opinião, a conclusão não é novidade. Estão sempre à espreita de oportunidade para repetir mais uma vez que “a democracia burguesa”, ou seja, a democracia representativa não serve ou tem muitos defeitos e que o melhor seria optar pela  democracia participativa e usar os mecanismos da democracia directa. Desta vez usam os números da abstenção superiores aos dos votantes para pôr em causa os resultados nas urnas. Sem nenhuma base de suporte, fazem da abstenção nas presidenciais uma vontade maioritária em conflito com o sistema político, algo que estranhamente não teria sido notado nas eleições legislativas e autárquicas, poucos meses antes. Muito pelo contrário, o nível de mobilização e participação da população e a tranquilidade ao longo de todo o processo eleitoral demonstraram que os cabo-verdianos reconhecem que o sistema tem alternativas de governação e tem mecanismos para passagem pacífica do poder de um partido para o outro.
Um facto inegável é que a abstenção na eleição presidencial de domingo passado ultrapassou a verificada em eleições passadas. Para se compreender se se trata de uma tendência no comportamento dos eleitores, ou de uma anomalia ou então de fenómeno induzido, há que dar à matéria o devido enquadramento. Aspectos a ter em consideração são, por exemplo, se a eleição presidencial é para o primeiro ou para o segundo mandato em que quase sempre se constata aumento da abstinência. Também se é uma eleição muita disputada não só em termos de número com também de qualidade dos candidatos envolvidos. Ainda, se há ou não grande envolvimento dos partidos na corrida ao voto pelo candidato apoiado. Para alguns observadores, este último facto pesou bastante na eleição de Marcelo Rebelo de Sousa para presidente de Portugal com os piores valores de abstenção de sempre numa primeira volta (51,6%).
Os valores da abstenção variam conforme os casos e conforme as eleições. Normalmente é  menor nas legislativas e aumenta um pouco nas autárquicas e depois cresce significativamente nas presidenciais. É um padrão de comportamento já observado nas eleições em Cabo Verde e também em países como Portugal com sistemas políticos similares. Neste aspecto, o que se passou este ano não tem nada de anormal. Outrossim, se se considerar que seria a mesma base eleitoral que deu vitória ao MpD nas legislativas (à volta de 122 mil) e que arrebatou a quase totalidade das câmaras (à volta de 97 mil votos), a apoiar a eleição de Jorge Carlos Fonseca, os cerca de 92 mil votos por ele obtidos não surpreendem porque caem dentro do que seria expectável numa eleição para um segundo mandato em que a disputa não foi tão qualificada nem a envolvência dos partidos foi intensa. A abstenção cresceu significativamente não com a erosão da sua base mas sim com a ausência de parte significativa da base eleitoral do PAICV que nas três eleições mostrou-se nos cerca de 84 mil votos nas legislativas, nos cerca de 66 mil votos nas autárquicas e, supõe-se, nos cerca de 28 mil votos do candidato presidencial Albertino Graça. Os faltosos provavelmente foram engrossar a abstenção ou por cálculo político ou porque lhes falhou a liderança do partido em apoiar abertamente um candidato ao cargo de presidente da república.
É a segunda vez na história da democracia cabo-verdiana que o PAICV se omite no apoio a um candidato presidencial. Aconteceu em 1996 obrigando o Dr. Mascarenhas Monteiro a concorrer sozinho e fazendo a abstenção disparar para 54,3%. Certamente que em qualquer dos casos houve cálculo político por detrás. Aparentemente neste caso com a pré-candidatura de José Maria Neves a não se concretizar e Cristina Fontes a escolher candidatar-se à Câmara da Praia quis-se deixar o “campo vazio” e evitar que alguém ficasse já em “pole position” para as presidenciais de 2021. Feliz ou infelizmente o campo acabou por não ficar vazio e Albertino Graça pôde atrair uns bons milhares de votos que de outra forma iriam para a abstenção, servindo aí eventualmente de arma de arremesso para deslegitimar a eleição do presidente e fragilizar o sistema político.
 A verdade é que a democracia em Cabo Verde é liberal e constitucional. Não há supostas maiorias na abstenção que invalidem ou deslegitimem actos eleitorais. Como dispõe a Constituição “a soberania pertence ao povo que a exerce pelas formas e nos termos previstos na Constituição”. Por isso mesmo é que se evita tirania de maioria ou hegemonia de um partido insistindo “no exercício do poder pelas formas e nos termos” e não hostilizando o PR que tem a função de fazer cumprir a Constituição. O actual sistema de governo já demonstrou garantir ao país estabilidade política e governativa, alternância política e ambiente necessário para o desenvolvimento. Há que o manter sem sobressaltos desavisados. Como diz o provérbio americano “se não está quebrado, não conserte”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 775 de 05 de Outubro de 2016.

sexta-feira, setembro 30, 2016

Regresso do FMI

A 4 de Março de 2015 o FMI publicou um comunicado da sua missão anual a Cabo Verde ao abrigo do artigo IV. No comunicado ficou-se a saber que o Conselho de do FMI deveria em fins de Maio rever os resultados da consulta feita e dar a conhecer a sua posição final sobre a situação do país. Aparentemente a reunião do CA do FMI nunca aconteceu e até agora, como se pode constatar no site do FMI, nada foi publicada sobre os resultados da consulta ao abrigo do artigo IV referente a 2015. A impressão que se reteve em vários quadrantes foi que houve disputas entre o governo e o FMI quanto aos dados da dívida e que, na sequência, ou a apreciação do relatório não se verificou, ou então Cabo Verde não autorizou a sua publicação na Internet.
 A existência de tensões ou falta de acerto quanto às posições do FMI em relação às políticas dos governos do PAICV não são de “ontem”. Aconteceram anteriormente designadamente em 2012 em que o relatório que alertava para os perigos do Programa Casa para Todos e da gestão da TACV também foi escondido e não foi publicado no site do FMI. Só agora, em 2016, é que com o novo governo se soube da sua existência. Cabo Verde era dos raros países no mundo em que os relatórios do FMI para serem publicados têm que ter autorização prévia das autoridades nacionais.
A relação de Cabo Verde com o FMI mudou desde Janeiro de 2012 quando foi completada a última avaliação do país no âmbito do PSI, “Policy Support Instrument”. Passou a ser feita na base anual da consulta ao abrigo do artigo IV e nessa qualidade a apreciação das políticas do país não tem a abrangência e a profundidade de um PSI. O governo de então quis assim apesar das reticências de instituições como o Banco de Cabo Verde e dos evidentes benefícios que esse mecanismo permite, designadamente no que se traduz em maior confiança de parceiros internacionais e de investidores. Provavelmente o governo queria ter as mãos mais livres para manter a política de ilusionismo enquanto a economia estagnava, e os níveis de emprego não baixavam significativamente e a dívida pública acelerava. A essa pretensão também não deverá estar alheio o conflito aberto que a Ministra de Finanças protagonizou com o Governador do Banco Central em Novembro de 2011 a propósito da reacção do BCV às políticas expansionistas do Governo.
O “regresso” do FMI em 2016 não augura nada de bom depois de todos esses anos de supervisão menos exigente. A dívida pública situa-se em 126% e são significativos os riscos fiscais contingenciais derivados da TACV e da IFH e também de outras empresas do Estado. Ainda se pode fazer o serviço da dívida porque, como diz o FMI, o crédito é concessional. Mas mantendo-se o crescimento baixo da economia, a verificar-se a concretização dos riscos orçamentais e a manter-se a alta do dólar não é de estranhar que mais cedo ou mais tarde se torne mais difícil cumprir com as exigências do serviço da dívida. Para afastar para longe esse cenário de dificuldades, o FMI, nas conclusões da sua última visita, aconselha cortar nas despesas do Estado, aumentar as receitas, lidar decisivamente com a TACV e a IFH e limitar-se apenas aos investimentos públicos que são notoriamente produtivos. Ou seja, aconselha um período de facto de contenção, de maior eficiência e eficácia estatal, de maiores sacrifícios sociais em ordem a se evitar o pior e a manter a esperança de que o investimento directo estrangeiro e a dinâmica empresarial dos operadores nacionais e estrangeiros irão colocar o país num caminho de crescimento económico, mais emprego e mais criação de riqueza.
Neste quadro, não se compreende muito bem porque o PAICV veio regozijar-se com as declarações do FMI. Parece que a liderança desse partido não se apercebe que por detrás da linguagem diplomática usada nos comunicados já há sugestão de medidas severas que podem vir a ser aplicadas em caso de evolução para o pior. Na pressa de se regozijar com o que supostamente é a confirmação das suas políticas não vê que, assim como no passado elas não resultaram, dificilmente a sua continuidade poderia trazer mais crescimento e mais emprego. Também que reverter a situação pode não ser imediata e se houver necessidade de programas especiais do FMI para lidar com a situação não será nada fácil para as pessoas e para o país. Aconteceu noutros países designadamente Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha que também tiveram a sua dose de políticas ilusionistas. Em troca de ajudas financeiras para fazer regressar equilíbrios macroeconómicos tiveram que se colocar sob o regime da troika.
Ninguém quer isso em Cabo Verde. Mas para o evitar é fundamental que se encare os problemas do país como eles são na realidade e no quadro democrático do governo e oposição se encontre o melhor caminho para colocar o país na senda do desenvolvimento. E isso não se faz enterrando a cabeça na areia ou delirando com pretensas glórias passadas.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 774 de 28 de Setembro de 2016.

sexta-feira, setembro 23, 2016

Revogar a norma sobre suspensão de mandato

A suspensão de mandato do presidente da república a partir do momento do anúncio público da sua recandidatura para o cargo continua a criar desconforto por variadas razões. Aconteceu recentemente nas exéquias de Estado do Dr. António Mascarenhas Monteiro, o primeiro presidente da II República, em que o Dr. Jorge Carlos Fonseca, o actual presidente da república, só pôde intervir na qualidade de amigo e por expressa vontade do ilustre falecido. Assim foi porque está suspenso das suas funções por razões eleitorais. Em consequência na cerimónia estavam presentes o presidente da república interino e o actual presidente, o presidente da assembleia nacional e o interino. A questão que se coloca é se os ganhos antecipados com a suspensão de mandado do PR justificam a ausência dos reais titulares dos cargos públicos deste e de outros actos de elevado simbolismo e de importância para a governação e para as relações externas do país.
A suspensão de mandato do presidente da república e de outros titulares de órgãos de soberania e também do procurador-geral da república e do chefe e vice-chefe das forças armadas é determinada pela lei eleitoral em vigor no artigo 383º nº 3. A norma constava do texto original da Constituição de 1992 plasmada no artigo 118º nº 2. Deixou de ali constar a partir da revisão constitucional de 1999 mas manteve-se na lei eleitoral até hoje. Supõe-se que as razões para a sua introdução tenham a ver com o eventual uso dos cargos nos órgãos de soberania ou então nos cargos de PGR e de chefia das tropas para manipular situações e aumentar as probabilidades de ser eleito para o órgão singular, suprapartidário, representativo da toda a nação e moderador do sistema político que é o presidente da república. Provavelmente no desenho do que veria a ser o ordenamento jurídico-político da II República quis-se prevenir que situações de influenciação indesejada das eleições se verificassem. A proximidade das eleições presidenciais e legislativas, normalmente separadas entre um e dois meses, justificava ainda mais essa salvaguarda.
O comando para suspensão de mandato tem sido cumprido nos vários ciclos eleitorais sem grandes sobressaltos com excepção do caso do anúncio de candidatura do Dr. Carlos Veiga no ano 2000. O Presidente Mascarenhas Monteiro cumpriu-o em Dezembro de 1995 quando anunciou a sua recandidatura assim como o fez dez anos depois o Presidente Pedro Pires em Dezembro de 2005. Também nos casos em que os candidatos eram deputados como aconteceu em 2000 com Pedro Pires e com Aristides Lima em 2011; não houve sobressaltos.
A controvérsia só se estalou quando o então Primeiro-ministro Carlos Veiga se declarou publicamente candidato ao cargo de presidente da república. Os que anteriormente o criticavam por exercer o cargo de PM apesar de informalmente se saber das suas intenções de se candidatar a presidente passaram a ser os maiores críticos da sua posição em respeitar o comando da lei eleitoral que impunha a sua suspensão. Em ambas situações viam manipulação político-eleitoral ficando o visado na posição clássica de ser “preso por ter cão e preso por não o ter”. Conclusão: onde mais se esperaria que fosse eficaz – caso do PM que se candidata a PR - a lei não conseguiu evitar que surgissem suspeições de influenciação indevida. Por isso, falhou. 
A revisão constitucional de 2010 veio ditar depois um período de separação de seis meses entre a realização das eleições legislativas e as presidenciais. Por essa via, na prática, acabou com a necessidade de alguém que é primeiro-ministro ou detentor de qualquer outro cargo ser obrigado a suspender o mandato para se candidatar a presidente da república. Seis meses são suficientes para qualquer cidadão que se sinta qualificado para se colocar na posição de potencial candidato a PR se livrar de eventuais amarras partidárias, institucionais ou outras que poderiam obstar a sua candidatura. Esvaziada do seu propósito, a norma da suspensão já não faz sentido. Se até agora não foi extirpada da Lei Eleitoral deverá sê-lo na próxima revisão da lei.
Como dizem os constitucionalistas, a substituição interina do PR deve ser vista como “uma situação de excepção e como situação de breve duração”. Uma das consequências da norma da suspensão de mandato referida é que sempre que um presidente da república se recandidata o país tem que conviver com um PR interino que pode ir até quase três meses enquanto se finaliza todo o processo eleitoral. Considerando que o PR interino está limitado nos seus poderes, é todo o sistema político que pode ressentir-se do facto de não beneficiar do exercício pleno das competências presidenciais e da influência derivada da “qualidade” presidencial que evidentemente só a tem quem é o titular do cargo.
Por todas essas razões é de se revogar o artigo 383º nº. 3 para que em Cabo Verde – como aliás noutras paragens, seja em sistemas políticos presidencialistas como nos Estados Unidos ou semi-presidencialistas como em Portugal ou França – ninguém tenha que suspender seu mandato a partir do anúncio da sua candidatura ou recandidatura para o cargo de presidente da república.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 773 de 21 de Setembro de 2016.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Partida para a corrida presidencial

A campanha para as presidenciais inicia amanhã dia 15 de Setembro. Será a última das três eleições deste novo ciclo político. É a única que terá um carácter suprapartidário mas nem por isso deverá ser tomado como menos importante. Pelo contrário. A eleição do presidente da república é fundamental para se ter a garantia de que o sistema de governo funcionará com o necessário equilíbrio, respeitando os direitos fundamentais do indivíduo, os direitos das minorias e a independência dos tribunais.
Há quem queira passar a ideia de que o cargo de presidente da república é cumulativamente dispensável, custoso e ineficaz. O cargo seria um autêntico corta-fitas que simplesmente causaria mais despesas para o Estado sem que se vislumbrasse os benefícios palpáveis da sua actuação. Sente-se nesse tipo de discurso a atracção pela unicidade do poder e a incompreensão de um princípio basilar de organização do poder político na democracia que é o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania. Para quem faz esse  discurso, o poder que vale á pena ter é o de governar, ou seja, de orientar, controlar e instrumentalizar o aparelho do Estado. Não tem o mesmo valor o poder que funcionalmente no quadro do sistema de governo se faz sentir no exercício do contraditório, na decisão judicial ou na exigência de uma actuação das autoridades conforme a Constituição e a Lei.
A insistência 25 anos depois num discurso que apouca o papel do presidente da república e diminui as eleições presidenciais é mais uma razão para se reforçar o conhecimento da Constituição da República e tudo fazer para consolidar uma cultura e uma prática da Constituição nas instituições públicas. O papel do PR neste aspecto enquanto garante da unidade nacional e guardião da Constituição é imprescindível. A fragilidade de cultura constitucional que permitiu que resquícios de uma cultura de unicidade ou que apetites de poder sem “checks and balances” ainda se mostrassem, desenvolveu-se, entre várias outras razões, porque não houve comprometimento suficientemente forte, perseverante e pro-activo na defesa da Constituição. Só nos últimos cinco anos é que activamente se viu um PR a fazer da Constituição o seu “caderno de encargos”. E isso causou uma diferença enorme.
De facto, dizer que o PR não tem poderes ou então que esses poderes são muito limitados é não querer compreender um sistema de governo que já demonstrou nos seus 25 anos que garante estabilidade política, governos viáveis e alternância política. O PR pode não governar, mas a sua influência não deixa de ser marcante na produção das leis do governo e do parlamento através de mensagens dirigidas, do veto e dos pedidos de fiscalização da constitucionalidade. Titulares de instituições fundamentais da república como o Governo, o Supremo Tribunal da Justiça, o Conselho Superior da Magistratura, o Procurador Geral, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas são nomeados por ele sob proposta do governo. A sua marca está bem presente em todas as peças principais que constituem o puzzle da governação do país. E como moderador do sistema não lhe faltam instrumentos para se assegurar que bloqueios, instabilidades e derivas perigosas não persistem por demasiado tempo.
Também, não sendo de natureza governativa, mas mais “de vigia e garante do cumprimento da Constituição”, a actuação dos PRs tende a ser de “geometria variável” conforme as circunstâncias exijam, ou não, a sua intervenção e em que medida. Vários factores podem condicionar o papel do PR. É diferente, por exemplo, se se trata de um governo minoritário, de um governo de coligação ou de um governo com larga maioria no parlamento. Também a sua actuação em geral difere se está no primeiro ou no segundo e último mandato. Outro aspecto importante é a sua personalidade e a forma como prefere projectar-se enquanto representante da unidade nacional e enquanto eleito directamente pelo povo. Pode querer criar uma vontade nacional voltada para a realização dos grandes objectivos da nação ou para ultrapassar desafios candentes e aproveitar oportunidades. Facto é que muito do que o Presidente vier a revelar-se posteriormente dependerá em grande medida das circunstâncias da sua magistratura e do contexto nacional e também internacional envolvente.
Apesar do cargo ser suprapartidário contam-se sempre entre os candidatos mais fortes personalidades provenientes de sectores políticos próximos dos grandes partidos políticos. É natural que seja assim pela importância que os partidos têm na vida política do país e as oportunidades que oferecem a indivíduos para se projectarem na esfera pública ganhando notoriedade, maturidade política e conseguindo apoiantes. Por isso, estranha quando não se vê candidatos próximos de um grande partido nas eleições presidenciais. Aconteceu em 1996 e volta a acontecer em 2016.
Se no primeiro caso ainda se vivia no rescaldo da transição para a democracia com votações de mais de dois terços para um partido, vinte anos depois não se compreende que não haja candidato apoiado pelo maior partido da oposição. Até parece que deliberadamente se está a deixar deserto o campo presidencial em 2016. Talvez para ninguém ficar em “pole position” para a corrida presidencial de 2021. Se não é uma estratégia do partido estar-se-á  perante pretensões presidências que não querem manifestar-se, mas que já prejudicam a democracia, o país e provavelmente o próprio PAICV. A preocupação com a possibilidade de o MpD se tornar hegemónico com a vitória nas duas últimas eleições devia ter sido um incentivo para a preparação de um candidato forte. Infelizmente para a democracia nem isso conseguiu retirar o PAICV do seu desnorte actual. A boa nova é que “o cumprir e fazer cumprir a Constituição” está no centro das promessas de todos os candidatos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 772 de 14 de Setembro de 2016.