Na semana passada os meios de comunicação social e as redes sociais estiveram saturadas de notícias e posts a descrever, a opinar e a reagir às eleições da mesa de assembleia municipal, primeiro em S. Vicente e depois na Boa Vista.
Controvérsias diversas surgiram à volta da interpretação de vários artigos entre os quais o 67º n.2 , o 68º n.1, e o 81º n.1 a) dos Estatutos dos Municípios que incidem sobre o processo de instalação do órgão autárquico e sob o modo de eleição do presidente, vice- presidente e secretário. Para uns, é claro que o n.2 do artigo 67º estabelece que a “mesa provisória presidida pelo primeiro nome da lista mais votada e secretariado pelos dois membros mais novos” deve proceder “à eleição dos outros membros da mesa”. Para outros, a eleição deve ser feita como se o articulado da norma fosse a mesma do n.1 do artigo 45º da lei portuguesa sobre as autarquias, que diz que a mesa deve presidir a primeira reunião para efeitos de “eleição do presidente e secretários da mesa”.
Esgrimidos todos os argumentos e feitas todas as jogadas políticas e deixando de lado eventuais diferenças na interpretação sistemática da lei, a verdade é que pelos resultados das eleições nas duas ilhas, fica-se com a impressão que algo não bateu certo. Nos dois casos, a força política com a maioria de votos conseguidos nas urnas ficou excluída da mesa da assembleia municipal. Como justificar a falta de correspondência entre a representação na mesa e a configuração das forças políticas saída das eleições quando se sabe que essa é uma regra seguida em todos os órgãos colegiais, a começar pela Assembleia Nacional que distribui os cargos de presidente, vice-presidentes e secretários de acordo com os resultados eleitorais?
Há quem argumente que é a democracia a funcionar no seu pleno, outros que dizem que é um possível ensaio de uma “geringonça” nacional para futuros usos no plano nacional e há quem simplesmente diga que perante a vontade da maioria todos têm que se dobrar. Razões à parte, o mais provável é que se trata de uma jogada política com eventual desgaste de uns e proveito de outros com vista às eleições legislativas que se prevêem para Março próximo. De facto, não se pode realmente falar de uma “geringonça à portuguesa” porque das assembleias municipais não saem soluções de governação dos municípios visto que o órgão executivo, a câmara municipal, é directamente eleito e o presidente da CM é o primeiro da lista mais votada. Por outro lado, é duvidoso que é pelo controlo da mesa da assembleia municipal e exclusão de outros que se melhora o grau de fiscalização da câmara municipal ou se cria o ambiente próprio para os acordos, compromissos e consensos necessários à prossecução dos interesses dos municípios.
Se é legítimo que forças políticas procurem posicionar-se com vantagem para futuros embates eleitorais não é razoável que no processo acções que mais parecem “chicanas políticas” ponham em causa a efectividade dos órgãos eleitos e desvirtuam o sentido do voto dos cidadãos. Já tinha acontecido acontecido algo similar em São Vicente em que na primeira Assembleia Municipal da ilha um representante da força política menos votada nas autárquicas de 1991 foi eleito presidente da mesa pela força do voto maioritário do grupo de cidadãos MPRSV. Ninguém então ganhou com essa jogada política e muito menos o partido que se prestou a isso, como se pode comprovar ainda hoje.
Nas democracias a vontade da maioria só é legítima se exercida no quadro constitucional e legal. Outrossim, é fundamental que haja um consenso alargado sobre a necessidade de cumprimento das normas existentes para que negociações entre os partidos sejam produtivas, os compromissos assumidos sejam honrados e a confiança que mantêm intacto o pacto social e político seja renovada. Para alguns que avaliam o diálogo actual entre as forças políticas como difícil e aconselham ou desejam resultados eleitorais que não garantem maiorias absolutas podem ir já se preparando para grandes sobressaltos. Governos minoritários terão muitas dificuldades num quadro constitucional que exige a aprovação por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções da moção de confiança indispensável para iniciar a governação e não simplesmente a inexistência de uma moção de rejeição como em Portugal. Também dificilmente se poderá governar se as leis têm que ser aprovadas por maiorias absolutas e não com maiorias simples em que abstenções não contam.
É caso para pensar que é preciso ter algum cuidado com os desejos ou sonhos. Uma maior fragmentação do espectro partidário no país poderá não trazer mais diálogo entre as forças políticas mas certamente que resultará em maior instabilidade governativa. Está-se para ver como vai evoluir a “inovação” introduzida na Boa Vista de se permitir a apresentação de candidaturas só num dos dois órgãos do poder local quando aparentemente soluções viáveis de governação requerem presença nos dois. A pergunta que fica é se nos próximos embates eleitorais haverá candidaturas só para as câmaras e outras só para as assembleias.
A cultura política prevalecente de pisar os direitos das minorias sempre que a situação se propiciar não ajuda a que se crie a confiança necessária a um diálogo entre as partes. Por várias razões a alternância política verificada tanto ao nível nacional como ao nível local ainda não se mostrou suficiente educativa a esse respeito. O país, porém, assim como noutras coisas, faz de conta que vive uma outra realidade onde não existem as insuficiências várias em termos de autonomia das pessoas e fragilidades da sociedade civil que deixam a democracia aberta a ataques de demagogos e populistas de toda a espécie. Nem os efeitos da pandemia da Covid-19 se têm revelado capazes de moderar as posições e abrir caminho para o diálogo que vai ser necessário para enfrentar os desafios enormes que o país tem à frente.
Há que arrepiar caminho porque as próximas eleições não devem ser pretexto para uma maior polarização do país. Mais do que nunca o futuro vai depender da convergência de posições que se conseguir produzir neste momento crucial.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 991 de 25 de Novembro de 2020.