quarta-feira, julho 31, 2019

A magia dos milhões

Falar de milhões é uma constante do discurso público em Cabo Verde. Até parece que se não se trouxer à baila os milhões a comunicação política não tem significado. Da boca de governantes ouve-se quase a martelar a referência a milhões de escudos, milhões de contos, milhões de euros e milhões dólares.
São milhões que vêm da ajuda externa, milhões que foram disponibilizados em linhas de crédito, milhões que vão ser investidos e milhões que serão gastos. Pelo número de vezes que são repetidos os anúncios de milhões o mais normal é que se fique com a impressão que de facto há “dinheiro que não acaba”. A repetição justifica-se porque de alguma forma se criou a ideia em Cabo Verde que a principal função do governo é ir buscar dinheiro lá fora para depois distribuir no país. Uma função que historicamente serviu para legitimar o poder e instituir o paternalismo do Estado a partir do qual laços de dependência estabeleceram-se em todas as direcções.
Não espanta pois que seja prevalecente no país a ideia que desenvolver significa, fundamentalmente, mobilizar recursos e fazer obras. Tudo o resto, designadamente melhorar o ambiente de negócios, aumentar a eficácia dos serviços do Estado, apostar na educação, ser proactivo na atracção de investimento externo, densificar o tecido empresarial e promover as exportações não deixa de ter importância pelo menos no discurso, mas na prática é secundarizado. Quanto aos resultados conseguidos depois de aplicados os recursos e feitas as obras não se lhes dispensa demasiada atenção. Aos críticos pode-se sempre dizer que há obra feita e que o governo cumpriu com a sua parte. E também que cabe à sociedade, ao sector privado e, em tempo de alternância, ao novo governo gerir com eficiência e eficácia o que se conseguiu da acção do Estado. Para quem no momento dirige o país o foco estará sempre em conseguir mais recursos e em fazer mais obras. Afinal, acredita-se que a governação é mais avaliada pelo que se anuncia e depois se inaugura do que pelo que o país realiza em matéria de crescimento, emprego e mais prosperidade para todos.
Imagine-se que corrigir as distorções no processo de desenvolvimento e do papel do governo, induzidas durante décadas por tais práticas, não será tarefa fácil. Deixaram marcas na estrutura produtiva do país pouco diversificada e tornada ineficiente pela informalidade e baixa produtividade. E também nas fragilidades do sector privado que dificilmente conseguiu singrar confrontado com custos excessivos de factores, deficiências de transporte, regulação inadequada e mercado exíguo e fragmentado. Vêem-se na cultura administrativa que com o papel dominante do Estado se impôs a toda a sociedade e que, focalizada em processos e procedimentos e quase indiferente a resultados, se revela hostil ao mundo de negócios. E ainda nas expectativas da população que geralmente quando algo acontece nas suas comunidades é porque estão a ser “contempladas” com alguma obra, ou tidas com “ganhadoras” de alguma infraestrutura ou a ser satisfeitas nas suas “reivindicações”. Sendo prevalecentes no Estado, na sociedade e na economia essas distorções levam a uma rigidez e a uma inércia que tornam difícil mudanças rápidas. E isso é particularmente preocupante quando ainda se precisa continuar a mobilizar recursos e a fazer obras e no processo a correr o risco de ser engolido pela máquina existente e nunca poder alterar os procedimentos e a cultura subjacente no sentido desejado.
Sem mudança efectiva e com o andar dos tempos, mesmo com principais indicadores macroeconómicos a se mostrarem estáveis, custos enormes tendem a acumular-se e poderão acabar por afectar a todos. A dívida pública, o défice orçamental, as dificuldades financeiras das empresas públicas, a vulnerabilidade do país a choques externos, o nível elevado dos créditos malparados, a alta taxa de desemprego e o crescimento ainda relativamente baixo considerando a conjuntura externa favorável são alguns dos sinais a se ter em devida conta. Um outro sinal é o custo elevado que se tem que suportar para continuar a ter energia e água sem ruptura e com qualidade, acontecendo o mesmo com os transportes aéreos e já previsto para os transportes marítimos que vão exigir subvenção estatal de 300 mil contos anuais. Em sectores estratégicos para o futuro como são por exemplo a segurança, a educação e a saúde os custos em não se poder ultrapassar a rigidez e a inercia de décadas poderão efectivamente pôr em risco o almejado para o futuro do país. Perante estas realidades a tentação de adiar ou de ignorar os problemas existentes como tem sido a norma até recentemente não é de todo uma opção a considerar.
Uma outra consequência de cada vez mais se tornarem notórias as dificuldades em mudar o país, em conseguir crescer a taxas elevadas e em debelar o desemprego é a de predispor as pessoas para uma espécie de corrida geral para a captura dos recursos disponíveis. E aí é claro que a pressa e a ambição em vencer em detrimento dos outros acabe por lançar pela janela fora os valores da verdade, da justiça e da solidariedade indispensáveis para se ter o nível de cooperação entre as pessoas e todos puderem prosperar. Haverá quem vai se apresentar como vítima e ou como tendo direito a discriminação positiva. Bodes expiatórios vão ser encontrados conforme a conveniência de uns e outros e manifestações de euforia vão ceder lugar a frustrações e mesmo a ressentimos sempre dirigidos a outrem. No mundo de hoje - em que as tecnologias que prometeram tornar as pessoais mais sociais acabaram por as confinar em grupos identitários cada vez mais restritos - dinâmicas do género têm efeitos cada vez mais perversos. No processo perde-se o sentido do todo nacional, toda a questiúncula é colorida pelas rivalidades das ilhas e o desenvolvimento fica comprometido porque é evidente que não vai resultar do somatório da actividade nas ilhas mas fundamentalmente do que o país pode engajar e ganhar de uma relação estreita com a economia mundial.
Da postura do governo irá depender muito se se vai conseguir travar a degeneração deste processo em curso há décadas. Se ficar pelo debitar de milhões e pelas obras que prometem desenvolvimento em vez de engajar-se efectivamente na remoção de obstáculos e na criação de condições para que a máquina económica e produtiva do país possa funcionar, vão se sentir os efeitos do esmorecimento geral, impaciência e falta de confiança da população. As pessoas precisam que se lhes mostre um outro caminho, onde serão realmente protagonistas, em que as dificuldades não estarão escondidas e em que os frutos do esforço colectivo serão de forma justa partilhados por todos. Basta de paternalismos, de passes de mágica e de eleitoralismo divisivo.


Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 921 de 24 de Julho de 2019.

segunda-feira, julho 22, 2019

Será que tem tudo para dar certo?

Pelos dados do INE relativos ao 1º trimestre de 2019 e os dados definitivos de 2017 e projectados de 2018 pode-se ver que o estado da economia nacional continua animador. Isso apesar de se estar ainda muito longe do prometido crescimento médio de 7% no quinquénio 2016/2021.
Cresceu 3,7% em 2017, 5,1 em 2018 e o FMI espera que nos próximos anos a taxa se mantenha nos 5% do PIB. Para a instituição internacional a perspectiva futura do país continua positiva apesar dos riscos da dívida pública, actualmente em níveis dos mais elevados do mundo, e da própria conjuntura económica mundial que dá sinais de algum arrefecimento.
A aprovação pelo FMI na segunda-feira, 15 de Julho, de um Instrumento de Coordenação de Políticas (PCI na sigla inglesa), a pedido de Cabo Verde, para monitorizar reformas e assegurar que metas nos indicadores macroeconómicos sejam cumpridas, vai no sentido de se acrescentar à vontade interna uma pressão do exterior e conseguir que, entre outros, o objectivo da sustentabilidade da dívida seja garantido. Também Cabo Verde ao solicitar esse instrumento sem que fosse obrigado pela necessidade de recorrer aos fundos do FMI quis certamente transmitir um sinal de confiança aos investidores, financiadores e a outros operadores. E natural­mente que espera uma resposta deles com impacto no país em particular na criação de riqueza e no aumento de empregos disponíveis.
O optimismo, que os números de crescimento depois de anos com valores rasteiros parecem autorizar, deve porém ser temperado pela realidade com que as pessoas se deparam no dia-a-dia. Aliás, a impaciência com dificuldades, constrangimentos e promessas não cumpridas já demonstrada nas manifestações de rua em diferentes ilhas e pontos do território nacional é ilustrativa a esse respeito. Deixa entender pelo menos três coisas: uma, que os obstáculos, resistências e inadequações representadas por pessoas, instituições e valores prevalecentes constituem um lastro difícil de se livrar inteiramente; outra, que o presente ritmo de crescimento está aquém do que seria necessário para que realmente afectasse a vida das pessoas: e outra ainda que as políticas poderão não estar à altura da complexidade dos problemas do desenvolvimento. Conseguir elevar o esforço nacional para atingir resultados e melhorar a vida das pessoas é o grande desafio que se coloca a todos no momento actual de vida do país. Não é evidente que se tenha, de facto, ideia da dimensão do desafio.
É curioso como, contra toda a evidência histórica, se insiste em passar a mensagem que o desenvolvimento é um objectivo perfeitamente ao alcance de todos. A verdade é que segundo o FMI entre 180 países só 36 são desenvolvidos ou como classifica o Banco Mundial apenas 81 com mais 12 mil dólares anuais ascendem à posição de países com alto rendimento. Historicamente, crescimento acelerado da economia só se verificou com a industrialização, particularmente a partir do século XIX, e em muitos poucos países. Na última metade do século XX e especialmente nas últimas décadas alguns países conseguiram romper com ciclos de pobreza e baixo crescimento para ascender a condição de países desenvolvidos. Para isso contribuiu imenso o processo de globalização com a abertura dos mercados, as facilidades de circulação do capital e o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e as múltiplas revoluções em matéria de transporte. Mesmo assim os casos de sucesso são poucos e situam-se principalmente no Sudeste asiático. Alguns outros não conseguiram escapar da chamada armadilha do rendimento médio “middle income trap” enquanto muitos, designadamente no continente africano, nem do ciclo da pobreza dão sinais claros de se libertarem.
Perante uma realidade tão dura espanta a ligeireza com que já se tornou habitual em Cabo Verde confrontar a problemática do desenvolvimento. Quantas vezes se ouviu dos governantes e políticos a expressão de que o país, uma ilha ou um município “tem tudo para dar certo”, como se fosse fácil determinar todos os ingredientes do desenvolvimento e através de alguma fórmula mágica produzi-lo quando se mostrasse conveniente. A experiência de avanços e recuos de países ricos em recursos naturais e tão diversos como o Brasil, Angola, Congo, Argentina, Irão e Paquistão demonstra que ninguém de facto “tem tudo para dar certo”. Os que conseguiram realizar a proeza e se tornaram países desenvolvidos foram aqueles que no processo souberam cultivar os valores certos, construir as instituições adequadas e promover o envolvimento massivo das famílias, da sociedade e do Estado numa educação de excelência. Não se deixaram apanhar no ilusionismo das políticas miraculosas, na facilidade que a ajuda externa parece oferecer com soluções à medida e no canto de sereia que é aposta na venda de recursos naturais como o petróleo, diamantes e minerais. Infelizmente não foi o que aconteceu em Cabo Verde.
Nas ilhas, com a pobreza de recursos naturais e a falta de chuvas, a fome e a emigração e também a distância dos grandes centros economicamente dinâmicos, devia imperar um espírito realista e pragmático. Outrossim, a vivência de séculos muitas vezes no limiar da sobrevivência somente pontuado por momentos efémeros de prosperidade devido a chuvas irregulares, interesse externo pontual por facilidades de navegação e alguma procura externa por bens e serviços condicionou a dimensão da população e permitiu a emergência de uma realidade humana e cultural única que podia traduzir-se em vantagens num ambiente económico de interacção com o mundo. O mais normal é que o país potenciasse isso tudo para traçar um caminho para além da pobreza e isolamento como Estado independente. Outros em situações similares como as Maurícias fizeram-no. Abriram-se ao mundo, industrializaram-se e fundamentalmente disponibilizaram-se para se adaptar. Com alterações profundas a verificar-se no comércio mundial souberam passar dos têxteis para a electrónica, depois para o digital e mais tarde para os serviços financeiros e o turismo de grande valor acrescentado.
Cabo Verde apoiado na ajuda ao desenvolvimento que afastava para a longe a ameaça da fome deixou-se levar por muito tempo pelo ilusionismo, seja ela da espera da chuva, da sua importância geoestratégica ou sua riqueza marinha. A factura paga por isso mostra-se nas empresas públicas quase falidas, nos investimentos sem o retorno prometido, na baixa produtividade do trabalho, no desemprego a dois dígitos e no sistema de ensino desadequado para a empregabilidade e para fazer o país competitivo e inovador. Não obstante continua o jogo de promessas de obras que depois não resultam em soluções de desenvolvimento. Para reparar o mal procura-se compensar com novas promessas de obras num círculo vicioso que cria paulatinamente impaciência, frustração e em certos casos ressentimento profundo, com todas as suas consequências. Como é evidente o eleitoralismo dominante na política cabo-verdiana dificulta que se encontre energia e foco para se escapar deste círculo vicioso. Talvez a pressão externa via o instrumento do FMI se revele providencial para que se consiga finalmente fazer as reformas necessárias, manter a disciplina fiscal e diminuir o défice e a dívida pública. Também seja instrumental para ultrapassar as quezílias partidárias e fazer a reforma do ensino que prioritariamente o país precisa. Que assim seja.
Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 920 de 17 de Julho de 2019.

segunda-feira, julho 15, 2019

Não se deixar levar pela divisão

Neste ano de 2019 a comemoração do 5 de Julho, dia da independência, ficou marcada pela habitual cerimónia oficial na Assembleia Nacional e pela manifestação de mais de uma dezena de milhar de populares nas ruas de S. Vicente.
No parlamento os actores políticos aparentemente alheios à situação real sucediam-se nos discursos de auto-congratulação por, supostamente, se ter feito de um país dado como inviável no momento da independência o Cabo Verde de hoje com desenvolvimento sustentável. Nas ruas do Mindelo com os pés no chão as multidões cansadas de discursos sem consequência relembravam o quanto isso tem de ilusório, mostrando as dificuldades quotidianas de existência. O contraste nas posições não ficou por aí. No acto oficial ainda se insistiu nos discursos a homenagear os auto-intitulados obreiros da independência, passando uma esponja pelos 15 anos de ditadura que protagonizaram, deixando cair para segundo plano a necessidade da união de todos os caboverdianos numa comunidade política de liberdade, pluralismo e respeito pela dignidade humana. Já na manifestação, o exercício vigoroso da liberdade garantiu que fosse ouvida a voz dos que temem que o seu presente e futuro continuem a estar comprometidos por opções governativas que em legislaturas alternadas e até agora não se mostraram à altura de produzir os resultados prometidos.
Este encontro díspare de discursos, percepções e expectativas no dia 5 de Julho já se tinha verificado há dois anos atrás em 2017. Também na altura ficou um registo no editorial deste jornal como sendo uma voz da sociedade civil cabo-verdiana que se devia escutar com muita atenção. No seio da classe política e nas reacções do governo a tentação então foi de ver jogadas políticas, desvalorizar as questões colocadas e de praticamente ignorar os desejos de uma franja crescente de cidadãos numa participação política livre de amarras político-partidárias. Outra vez, em 2019, algo atenuado, repetem-se algumas dessas apreciações. É pena que seja assim, porque corre-se o risco de perder mais uma oportunidade de se fazer uma análise aprofundada do fenómeno político cabo-verdiano e de como poderá vir a ser influenciado pelo que se passa em outras democracias. O ciclo eleitoral começa no próximo ano de 2020 com as eleições autárquicas provavelmente separadas das legislativas por seis meses e estas das presidenciais também por seis meses, facto que já por si só define este ciclo como diferente por ser mais fácil o contágio. Se se juntar a isso que vão ser eleições onde pela primeira vez se irá sentir todo o efeito disruptivo das redes sociais, como vem acontecendo em várias democracias desde o referendo do Brexit e da eleição de Trump, tudo leva a crer que irão apresentar características nunca antes vistas. Razão bastante para análises e apreciações mais cuidadas e que não fiquem pelos clichés dos tempos passados.
Um outro aspecto a ter em devida consideração é que essas manifestações não são um simples sintoma de um mal-estar que seria típico de S.Vicente por resultarem de reivindicações só ali feitas. Há quem fale de bairrismo numa espécie de reacção ao centralismo do Estado, mas isso seria redutor. Razões outras e mais transversais em todo o país deverão existir. É o que justificam as manifestações já verificadas noutras ilhas e com exigências similares, mas, obviamente, numa escala mais reduzida pois não têm o nível de concentração urbana e a mesma tradição de agitação política de S. Vicente. Por isso, a haver descontentamento em relação a questões abrangentes como emprego, rendimentos, conectividade e serviço deficiente da administração pública o mais natural é que tenha caracter geral e não fique só por uma ilha. Afinal trata-se de um país e de um estado unitário e não se espera que haja políticas implementadas na perspectiva que vão beneficiar uma ilha e descriminar outras. Investimentos feitos em qualquer ponto do território ganham sentido e legitimidade se tiverem sempre presente o interesse geral. Havendo mal-estar em qualquer ponto do país deve-se analisar para saber que medidas de política ficaram aquém dos resultados propalados em vez de se assumir que com protestos e reivindicações as pessoas estão a reagir a bairrismos e a outros interesses menores.
S. Vicente, por razões designadamente da sua história económica, legado cultural e vivência urbana foi alvo de investimentos em consonância com a sua vocação de elo de ligação do país à economia mundial. Como é uma evidência histórica que os momentos de alguma prosperidade gozada no país estão intimamente ligados à satisfação de alguma procura externa via prestação de serviços ou exportações, tais investimentos faziam sentido e esperava-se um retorno que devia beneficiar todo o país. Não aconteceu em boa medida porque depararam-se com políticas contrárias à abertura ao mundo, não foram articuladas com medidas de políticas noutros sectores e em muitos casos não foram feitos no tempo próprio. O país perdeu com isso e não é por acaso que hoje a sua economia se apresenta pouco diversificada e ainda muito dependente do turismo resultante da procura externa para o “sol e mar” que as ilhas do Sal e da Boa Vista magnificentemente oferecem.
O mal-estar de S.Vicente deve ser assumido como o mal-estar do país no seu todo por ver investimentos nacionais vultuosos feitos ainda sem o retorno desejado na criação de riqueza e empregos desejados. Deve ser uma mola a impulsionar para acção, para se remover os obstáculos e simplificar o processo de decisão estatal, clarificar a política de atracção de investimento externo e apostar fortemente na formação dos recursos humanos. Não é razoável subutilizar investimentos já realizados particularmente quando se sabe que com a dívida pública nos três dígitos há fortes constrangimentos para investimentos do Estado. Pelo contrário, há que os potenciar e por isso há que fazer aposta forte e urgente em S.Vicente.
O país tem que ser sempre visto no seu todo mas como os recursos são escassos devem ser empregues de forma a trazerem o máximo de retorno e criarem o maior número de empregos. Porém, políticas de redistribuição para assegurar a sustentabilidade da diversidade no quadro nacional e decisões no planeamento do investimento na perspectiva de potenciar o país para aproveitar oportunidades futuras não podem ignorar nenhuma ilha. Mais do que nunca a ideia da nação que há mais de um século une todos os cabo-verdianos deve ser a base de sustentação para a construção de um futuro comum e factor fundamental para não permitir que manifestações de frustração e ressentimento e também de bairrismos e impulsos hegemónicos se coloquem no caminho do desenvolvimento e da prosperidade desejados. Não deve haver dúvidas a ninguém que a divisão é, por excelência, o sentimento que a história destas ilhas regista como o mais anti-caboverdiano.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 919 de 10 de Julho de 2019.

segunda-feira, julho 08, 2019

A independência não é matéria de disputa política

Na sexta-feira passada, dia 28 de Junho, a Assembleia Nacional aprovou na generalidade a proposta de lei do Governo que define a pensão financeira a atribuir às vítimas de tortura e maus tractos ocorridos em S. Vicente e S. Antão em 1977 e 1981.
O acto foi um grande acontecimento na medida em que confirmou a centralidade do princípio de respeito pela dignidade humana na relação entre o Estado e os cidadãos como bem estabelece a Constituição de 1992. Ficou claro que havendo situações como as das prisões e torturas de 1977 e 1981 em que cidadãos ficaram completamente indefesos perante o poder do Estado, sofrendo danos físicos, psicológicos e morais no processo, é de elementar justiça que no mínimo recebam reparação do Estado. A responsabilidade civil e objectiva do Estado assim o exige e, por isso mesmo, não colhe trazer para o debate a determinação dos culpados como passo prévio para se decidir a reparação. O Brasil, por exemplo, tem uma lei de amnistia dos agentes da ditadura, mas nem por isso tal facto constitui impedimento para o Estado fazer reparações financeiras aos que sofreram torturas e outros danos durante o regime dos militares.
O debate parlamentar que antecedeu a aprovação da proposta de lei deixou-se levar pelos caminhos mais primários do discurso político. A bancada do PAICV pôs-se na posição impensável num parlamento democrático de defender o regime de partido único, os seus actos e os seus dirigentes. Logo depois já estava a acusar as vítimas de tortura de terem sido agentes contra a independência e a dizer que a haver maus tratos os culpados encontravam-se entre os futuros dirigentes do MpD. Ao longo da discussão do diploma várias outras tácticas foram utilizadas para desvalorizar a matéria. Além de desacreditar as vítimas, ainda se tentou em intervenções sucessivas banalizar o sucedido em 1977 e 1981 aludindo a tortura no regime democrático, questionando o porquê do foco nos acontecimentos de S. Vicente e S. Antão e aliciando pessoas a requerer pensão do Estado por razões espúrias. No ambiente criado, não houve possibilidade real de debate, mas assistiu-se a mais um desses exercícios patéticos de ilusionismo que não resistem minimamente ao crivo dos factos históricos.
As prisões em S. Vicente e S. Antão destacam-se de todos os abusos verificados durante os anos da ditadura por envolver de uma só vez dezenas de pessoas, na generalidade gente transversalmente conhecida e respeitada na sociedade. Incluíam comerciantes, negociantes de bordo, proprietários agrícolas, mecânicos e empregados comerciais. De acordo com Aristides Pereira, no livro de José Vicente Lopes (Minha vida, Nossa história, pág. 248), foi praticamente por uma decisão sua é que as prisões não abrangeram o Dr. Baltasar Lopes da Silva. Pelos alvos escolhidos pode-se perfeitamente inferir que o móbil do então regime seria atingir figuras proeminentes locais numa lógica de consolidação de poder. O que não é muito diferente do que regimes similares fizeram no passado servindo-se também dos mesmos argumentos de uma suposta aliança de elementos da elite local com inimigos externos.
Também pelo âmbito da operação desencadeada nos dois momentos estava-se a testar e a demonstrar o aparato repressivo que desde a independência vinha sendo montado suportado pela legislação que permitia prender durante cinco meses sem culpa formada (decreto-lei 96/76) e um Tribunal Militar (decreto-lei 122/77) que podia julgar civis. Só em Maio de 1990 é que se começou a desmantelar o sistema com a revogação da lei do Boato e do decreto-lei 96/76. Ninguém e muito menos os representantes da nação em sede de discussão de proposta de lei podem negar que esse aparato existiu ou dizer que desconhecem para que fim foi criado. Está presente com os seus objectivos e estrutura nos Boletins Oficiais de 1975-90 e a forma como também actuou na Brava em 1979, na Praia em 1980, em S.Vicente em 1987 está suficientemente reportada nos jornais, revistas e outras publicações do regime. Uma preparação séria para o debate deveria ter implicado pelo menos uma visita aos arquivos da Assembleia Nacional para conhecer o período contemplado no diploma.
Pela mesma linha não se pode dizer, para desculpabilizar o regime, que as prisões, sevícias e torturas eram exemplos de excesso das autoridades. Não, era a ditadura a mostrar a sua verdadeira face. De facto excessos acontecem nas democracias e são reparáveis através de recursos e de acções judiciais de responsabilização do Estado. E é assim porque a democracia liberal funciona num quadro legal constitucional em que os direitos fundamentais constituem um limite ao poder do Estado e é dever do Estado protegê-los através dos mecanismos de separação de poderes e da garantia da independência dos tribunais. Não é o que se passa nas ditaduras, dai que tenha tanta importância a proposta de lei de reparação dos danos sofridos pelas prisões e torturas do partido único. Era a única via para se realizar alguma justiça.
A reacção à lei veio porém mostrar que ainda se procura instrumentalizar a independência nacional para dividir e atingir objectivos políticos como se fazia no tempo do partido único em que a república se legitimava com a causa da independência. Seguindo essa linha, ontem como hoje, há quem ache que pode acusar os outros de ser do contra ao mesmo tempo que se considera acima de qualquer crítica na forma como exerceu ou vê o exercício do poder. Mas com isso o que se consegue é manter a sociedade polarizada e impedida de beneficiar da dinâmica gerada pelo pluralismo de ideias e pelo exercício da cidadania em ambiente de civilidade e confiança. Há pois que assumir em pleno a II República que com Constituição de 92 tem nos seus alicerces o respeito pela dignidade humana, e reconhece a inviolabilidade dos direitos como fundamento da comunidade humana, da paz e da justiça. Nas vésperas do 44º aniversário do Cabo Verde independente, a independência não deve ser matéria de disputa política e nem pode ser motivo de desunião.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 918 de 3 de Julho de 2019.

segunda-feira, julho 01, 2019

Voltar-se para fora, o único caminho

Cabo Verde em momentos de decisão estratégica depara-se sempre com o seu velho e permanente problema de fundo que é o de não ter escala. Não pode moldar o mundo à sua vontade e tem constantemente que se adaptar ao novo.
É um país pequeno, ainda para mais um arquipélago de dez ilhas e com uma pequena população desigualmente distribuída por todo o território nacional. Isso significa que muitas vezes se arrasta com problemas sérios de transportes aéreos e marítimos, que os investimentos em infraestruturas têm que ser em grande parte replicados nas diferentes ilhas, que a produção de factores como energia e água dificilmente consegue ser eficiente e que no processo de decisão sobre qualquer projecto público não será fácil ficar só pela relação custo-benefício. Também que a produção local de bens deverá sempre confrontar-se com a disponibilidade reduzida de terra e água, um mercado interno reduzido e fragmentado e a rigidez de mão-de-obra limitada na sua mobilidade não só por eventuais constrangimentos do código laboral mas também por laços afectivos e compromissos que prendem as pessoas à sua ilha.
Os desafios que esta realidade incontornável representam nem sempre foram devidamente encarados pelos governantes. E pior, o Estado que se propôs criar, subordinou-se mais a ditames ideológicos e a um tipo de exercício de poder que passa por manter as populações dependentes do que a um outro papel que implicasse agir para minorar as falhas e as imperfeições do mercado e ainda conseguir mobilizar procura externa que colmatasse os efeitos de falta de escala no país. O custo das políticas desadequadas é hoje sentido em toda a sua dimensão. Depois de já terem passados os tempos em que a ajuda externa permitia que se escondesse a realidade e se pudesse empurrar com a barriga os problemas do país, ainda se esticou mais a corda por mais algum tempo levando praticamente à falência várias empresas públicas e colocando o país entre os mais endividados do mundo.
O resultado é o quadro que se tem actualmente em que são visíveis por exemplo os problemas sérios com que as pessoas, as empresas e a sociedade se deparam no dia-a-dia em matéria de transportes, energia, habitação e também no que respeita à precariedade de uma população rural que não consegue ir muito além de uma agricultura de subsistência e a migrações internas que esvaziam ilhas e provocam convulsões noutras. Tardou que se procurasse fazer uma viragem nas políticas e na atitude que reorientasse o país para fora da armadilha que a sua pequenez e insularidade o pareciam confinar. A inércia das instituições e a cultura que se instalou de desconfiança em relação ao exterior não têm facilitado a mudança. Ainda bem que apesar de todas as dificuldades, a pressão da procura externa no turismo forçou quase por si próprio a que o sector se tornasse o motor da economia quando praticamente tudo o resto badalado nos múltiplos clusters ficava aquém das expectativas criadas. Mas como algo não planeado e não abraçado de forma inteligente, o impacto do turismo no arrastamento da economia e no número e qualidade dos postos de trabalho criados não tem sido o que provavelmente seria com outras políticas e outra atitude. Trouxe custos materiais ambientais e humanos que podiam ser evitados com uma governação compreensiva e mais proactiva.
Para fazer face ao tempo perdido e diversificar a economia de modo a poder suportar-se em bases mais sólidas há que mover com rigor e determinação mas ciente dos constrangimentos que irão emergir. Não se pode pensar que simplesmente de uma penada é possível limpar crenças arreigadas, quebrar posturas institucionais e mudar atitudes hostis à inovação e à abertura com o mundo. É verdade que o crescimento económico que há dois anos atrás depois de um período de estagnação subiu para o patamar dos 4% e dá sinais de poder sustentar-se acima dos 5%. Mas vai precisar de reformas que melhorem o ambiente de negócios e a competitividade externa do país e de investimentos designadamente na educação e formação para aumentar a produtividade de forma a poder crescer acima dos 7 % e aguentar os choques derivados de eventual quebra na procura externa.
Exemplificam a complexidade das tarefas a executar a curto e médio prazo para se conseguir a almejada diversificação da economia, o processo de resgate e de reestruturação da TACV e o que se está a iniciar agora com a concessão dos aeroportos. O primeiro processo acabou por desembocar na privatização da Cabo Verde Airlines, já provida de um plano de negócios que prevê a criação de HUB na Ilha do Sal. O segundo mostra-se vital para a operacionalização do Hub pois como disse Jens Bjarnason, CEO da nova empresa, em entrevista ao Expresso das Ihas, “dentro de alguns anos, teremos de aumentar o tamanho dos terminais e adicionar mais zonas de estacionamento dos aviões”. O número de aviões pretendido é de 12, mas sabe-se que assim como está o Aeroporto do Sal só poderá comportar 7 ou 8 e há que estar à altura de servir os muitos milhares de passageiros em trânsito e um maior número de aviões em rotações rápidas. De facto o que se quer é ir além da pequenez do mercado nacional e conseguir economias de escala na produção de bens e serviços mobilizando a procura externa.
Para isso tem que haver investimento. Uma hipótese seria o investimento público, mas teria os seus senãos designadamente os níveis elevados de dívida do Estado à volta dos 122,8% do PIB e a dificuldade que se concretizasse no timing certo para servir a expansão do Hub. A opção adoptada foi de privatização acompanhada de novos processos de gestão e ainda de investimentos em equipamentos e na própria expansão do aeroporto para se conseguir um upgrade do Aeroporto do Sal. Mesmo assim subsistem dúvidas. Há quem diga que o problema com a proposta do governo é que aparentemente está-se a exigir que uma mesma empresa seja concessionária de todos os aeroportos e aeródromos do país. Ora sendo todos eles deficitários com excepção dos aeroportos do Sal e da Boa Vista é de se perguntar se não seria preferível para garantir o sucesso do hub concentrar a atenção e recursos do parceiro estratégico na ilha do Sal. Compreende-se que o governo com a concessão de todos queira promover o turismo e reforçar a posição competitiva dos aeroportos nacionais, mas há que definir prioridades. Claramente que o sucesso do hub deveria sobrepor-se ao resto por várias razões entre elas os investimentos feitos, os sacrifícios consentidos para o pôr de pé e as oportunidades de negócio que se perspectivam com a sua dinamização.
Na caminhada para libertar o país dos condicionantes que moldaram toda a sua existência, a opção nunca deve ser virar-se para dentro. Voltar-se para fora tem os seus percalços e nada é garantido à partida, mas é o único caminho possível. Agarrá-lo, debater quais as vias para lá chegar e inteligentemente escolher os atalhos é a postura que melhor serve esse propósito. Fundamental para isso, porém deve ser aposta nacional numa subida radical do nível de educação e de formação, em particular das crianças e jovens.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 917 de 26 de Junho de 2019.

segunda-feira, junho 24, 2019

Nacionalismo inimigo do pluralismo

Várias razões poderão explicar por que o debate político, como se apresenta no parlamento, na comunicação social, nas redes sociais e outros fóruns, ainda não é muito construtivo e tende para o baixo nível resvalando demasiadas vezes para o primário com insultos pessoais e ataques ad hominen.
Uma delas e talvez a mais importante é a separação não assumida entre auto-proclamados patriotas e os outros que se insiste em manter e que contamina quase todo o discurso político. Nas outras democracias o que separa as forças políticas é a diferença esquerda/direita, com a esquerda a privilegiar o princípio da igualdade sobre a liberdade e um maior intervencionismo do Estado e com a direita a pôr enfase na liberdade e a limitar a actuação do Estado ao papel de regulador. Por isso, divergências entre os partidos não se traduzem em antagonismos permanentes e irredutíveis. Encontra-se sempre espaço para diálogo, compromissos e até se pode alcançar consensos sobre matérias de importância estratégia para o país. Em Cabo Verde, pelo contrário, vê-se o que acontece quando na disputa política se recorre directa ou indirectamente a acusações de falta de patriotismo: o ambiente político é quase a todo o tempo de crispação e dificilmente se consegue construir acordos em matérias fundamentais.
Exemplos disso não faltam: Discussões sobre privatização de empresas que deveriam debruçar-se sobre a oportunidade de se eliminar riscos fiscais, atrair investimento directo estrangeiro e obter benefícios abrangentes para a economia facilmente degeneram em acusações de venda da terra. Medidas como as de supressão de vistos com o intuito de aumentar o fluxo turístico rapidamente são apontadas como uma espécie de capitulação perante a Europa colonialista. Iniciativas como as da assinatura do Acordo SOFA tomadas num quadro de cooperação para a segurança são tidas logo à partida como cedência de soberania. Tentativas de colmatar o défice do conhecimento pelos caboverdianos da língua portuguesa com acções de promoção da aprendizagem do português são vistas como diminuição do estatuto do crioulo. Até a atitude de Cabo Verde de simpaticamente acomodar a iniciativa das autoridades portuguesas de comemorar o Dia de Portugal com as suas comunidades residentes no país serviu para acusações de saudosismo. Muitos outros exemplos podiam ser encontrados em que o diálogo necessário para se discutir e resolver problemas é enviesado logo à partida e é sempre pela mesma razão. Alguns acham-se no direito de acusar, julgar e considerar ilegítimos ideias, iniciativas e posicionamentos dos outros estribando-se num suposto estatuto de nacionalistas que exclusivamente reivindicam para si próprios.
Vozes diversas lamentam a falta em Cabo Verde de uma sociedade civil activa, de uma academia interveniente e de uma imprensa de investigação. Mas a verdade é que não há como ter participação cívica desejada com a polarização existente de base em critérios tão emocionalmente carregados. Para qualquer pessoa, intelectual ou simples cidadão, participar no debate público significa em boa medida submeter-se a ser rotulado como pertencendo ou situando-se próximo de um dos campos. Manifestações de cidadãos são invariavelmente vistas como tendo motivações político-partidárias e até opiniões e notícias publicadas podem ser consideradas parte de alguma conspiração gerada nas sedes dos partidos. Nem toda gente está para isso. Não espanta pois que muitos optem por não se envolver na política ou em prosseguir investigação de cariz histórico e sócio cultural que mexa com o pensamento nacionalista prevalecente. Nem tão-pouco que se ache estranho que o conformismo e a falta de espírito crítico imperem mesmo em círculos como os universitários onde a liberdade intelectual, a criatividade e o espírito inovador seriam expectáveis.
Mário Vargas Llosa diz num texto seu sobre o movimento independentista da Catalunha que “só de maneira fugaz e conjuntural é que o nacionalismo é uma ideologia progressista”. Na maior parte do tempo é uma perversão ideológica que se alimenta “do temor ao diferente e ao novo e do medo e do ódio contra o outro”. Também George Orwell no seu célebre ensaio sobre o nacionalismo foi claro ao mostrar que o nacionalismo, diferentemente do patriotismo, é desejo de poder reforçado pela auto ilusão e que o propósito de todo o nacionalista é conseguir mais poder e prestígio não para si próprio mas para a entidade onde escolheu diluir a sua própria individualidade. Talvez seja esse desejo de poder que justifique que mesmo hoje nas vésperas do quadragésimo quarto aniversário do 5 de Julho de 1975, quando é mais que evidente que ninguém põe em causa a independência, há quem insista num discurso nacionalista, pretendendo-se vigilante contra supostos atentados à condição de país independente. Mas, como se viu atrás, isso não acontece sem consequências. Efeitos perversos estão presentes e constituem um enorme entrave ao desenvolvimento e ao processo de consolidação da democracia, na medida em que por um lado impedem políticas com alcance estratégico e por outro enfraquecem e descredibilizam as próprias instituições democráticas.
Inverter a situação não está aparentemente nos propósitos das forças políticas em presença como se pôde comprovar pela enésima vez na última sessão parlamentar. A postura belicista das diferentes bancadas não deixou espaço para uma discussão séria e elucidativa de matérias como a segurança, a educação e o futuro da gestão dos aeroportos. Feliz ou infelizmente os governos em Cabo Verde têm sempre beneficiados de uma maioria parlamentar sólida e a falta de diálogo não tem resultado em bloqueio da governação. Até agora tal eventualidade pôde ser contornada com a vontade da maioria mas não há garantia que será sempre assim em legislaturas futuras. Impõe-se pois ultrapassar este estado de coisas, que já fez o país perder muito tempo e recursos, e focalizar na construção do futuro. Porém, para isso, a política terá de deixar de ser irredutivelmente antagonística para se basear-se no respeito pelas diferenças e poder beneficiar da dinâmica gerada pelo exercício do contraditório em ambiente de pluralismo e de protecção das minorias.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 916 de 19 de Junho de 2019.

segunda-feira, junho 17, 2019

Disputas pelos recursos

Em Cabo Verde, parece que depois de várias tentativas falhadas abriu-se oficialmente a temporada da corrida das ilhas pelos recursos do Estado.
Toda a política parece girar à volta de quem mais oferece para as ilhas, quem mais faz para fixar as pessoas e quem mais empodera as populações. Os deputados da nação estão num processo acelerado de transformação em porta-vozes das ilhas na assembleia nacional. O governo há muito que o seu foco se concentra fundamentalmente nas realizações locais que podem ser estradas de desencravamento, requalificação urbana e programas de desenvolvimento do tipo “uma família, um turista”. Até o presidente da república já promoveu uma reunião do conselho da república para se debruçar sobre assimetrias e desigualdades regionais e fazer recomendações para a fixação da população. No meio disto tudo imagine-se a energia ganha pelos candidatos a populistas com esta nova política de disputa de recursos.
A fixação nas ilhas tende a fazer esquecer a abordagem global que se deve ter na orientação do país. Cabo Verde é um país arquipélago com uma consciência nacional de há muito consolidada. Durante séculos de profunda escassez, de fomes e de relativo isolamento do mundo as ilhas fizeram um percurso sócio-económico e cultural que lhes impregnou uma idiossincrasia própria. A diversidade das experiências não constituiu impedimento para a emergência da consciência da caboverdianidade. Pelo contrário, enriqueceu-a. A relação com o mundo e as transacções comerciais variaram ao longo dos séculos, ora tendo uma ilha como pivot do desenvolvimento, ora outra. Todas acabavam beneficiadas pela prosperidade geral e pelo enriquecimento cultural. Com tal percurso histórico devia ser evidente que uma relação externa por via de exportações de bens e serviços e do turismo teria que ser central para se conseguir um Cabo Verde próspero. Na procura de oportunidades no mundo nenhuma ilha deveria ser secundarizada como eventual interface principal do país com a economia global.
Muita coisa mudou quando no pós-independência se adoptou a política de reciclagem de ajuda externa e o país foi virado para dentro. Houve globalmente crescimento económico provocado por fluxos do exterior, mas a centralização político-administrativa e a natureza estatizante do regime e a sua hostilidade à iniciativa individual e ao investimento externo impediu que as diferentes ilhas ganhassem dinâmica em resposta a solicitações do exterior. A concentração no Estado dos recursos disponibilizados ao país desencadeou migrações internas que fizeram a Capital crescer exponencialmente e abriram caminho para a paulatina decadência das ilhas com pendor rural mais pronunciado. Os inves­timentos públicos finan­ciados pela ajuda externa não conseguiam reflorescer a economia dessas ilhas que para além de enfrentarem constrangimentos de produção e de mercado dificilmente poderiam acomodar a pressão populacional que se seguiu à melhoria nos cuidados de saúde e em outros serviços prestados pelo Estado. O quadro daí emergente de desigualdade entre as ilhas e de assimetrias regionais não é fácil de inverter como se pode constatar em todos estes anos em que se procurou construir uma economia de mercado e se abriu o país para o investimento externo e para o turismo.
A dificuldade em dialogar aprofundamente para compreender a situação pode fazer o país caminhar para soluções mais complicadas e cujo sucesso não é garantido. Na última década, com as migrações internas em direcção às ilhas do Sal e da Boa Vista em resposta à procura externa representada pelo turismo, aumentou a pressão para agir. Já anteriormente existia o fluxo migratório para a cidade da Praia e S. Vicente que, aliás, continua em ritmo acelerado. Com o problema real das ilhas mais rurais a agudizar-se e elas a perderem população, convém não cair na tentação de encontrar uma razão simples para o que está a acontecer: dizer, por exemplo, que a culpa é simplesmente a centralização do Estado e que a solução é um modelo de regionalização aplicável a todas ilhas. Quando se faz isso, está-se a pôr de lado a questão central de qual deve ser o real motor do crescimento económico de Cabo Verde. E historicamente sabe-se que os momentos de prosperidade do arquipélago aconteceram quando foi possível estabelecer algum tipo de relação dinâmica com a economia mundial. A excepção criada pela ajuda externa, por levar a uma economia dependente, não podia ser sustentável nem recomendável.
A via a seguir deve ser preparar o país para aproveitar oportunidades fazendo-o mais competitivo e tornando-o mais produtivo. Deve-se de facto descentralizar o Estado diminuindo os custos de contexto e melhorar significativamente os processos de decisão. O facto de o país ser um arquipélago e as ilhas apresentarem características próprias e de constituírem em termos de população, recursos humanos e base tributária desafios diferentes devia ser um convite para se encontrar formas inovadoras de resposta aos problemas da administração do território sem prejuízo da autonomia municipal constitucionalmente consagrada. Por outro lado, não se pode alimentar a ideia que é possível que todas as ilhas avancem ao mesmo tempo ou cresçam ao mesmo ritmo. Isso em nenhum lado aconteceu. Só era possível no mundo imaginário soviético do desenvolvimento harmonioso com o Gosplan. E sabe-se no que deu. Como em todo o lado, políticas de dinamização da economia que facilitam o acesso dos factores capital e trabalho a recursos naturais devem ser acompanhadas de políticas de solidariedade. A redistribuição, a verificar-se, será na perspectiva de potenciar recursos locais com vista ao aproveitamento futuro num quadro de economia nacional que se quer mais diversificada.
Cabo Verde deve ser visto como mais do que o somatório das suas ilhas. Precisa crescer a taxas muito mais elevadas para se recuperar do atraso inicial e do impacto negativo das oportunidades perdidas devido a políticas marcadas por ideologias datadas. Para isso seria de toda a importância conseguir-se flexibilidade e criatividade na gestão do país arquipélago, facilidade de mobilidade do factor trabalho e sua qualificação e também consensos na necessidade de investir onde os maiores retornos poderão ser conseguidos para o bem de todo o país. Não se pode ver o país como num jogo de soma nula. É verdade que para se desenvolver há que promover a cooperação e solidariedade e isso não se consegue com disputas por recursos num quadro dominado por reivindicações populistas. Mais do que nunca impõe-se que se evite desencadear forças centrífugas na sociedade que movidas por processos identitários tendencialmente cada vez mais paroquiais ameaçem rasgar o tecido social e podem criar fracturas no próprio corpo da nação.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 915 de 12 de Junho de 2019.

segunda-feira, junho 10, 2019

O pau e a cenoura

Amanhã 6 de Junho deverá ser assinado com o Banco Mundial o acordo de ajuda orçamental de 40 milhões de dólares, como foi anunciado pelo próprio primeiro-ministro durante o último debate no parlamento.
Apesar de não ter ficado claro qual a modalidade de dispensa da ajuda, se seria anual ou o montante dividir-se-ia por 4 ou 5 anos, parece que o importante no anúncio é a decisão da retoma da ajuda. Para o PM significa um reconhecimento do esforço do governo em melhorar a economia nacional. Em 2016, no princípio do mandato do actual governo, o Banco Mundial ao suspender a ajuda directa ao orçamento condicionou a sua retoma à melhoria da situação financeira da TACV. Em Maio de 2017 o governo retirou a TACV dos transportes aéreos doméstico e regional e entregou a exploração desses mercados à Binter. Não foi suficientemente para o Banco Mundial. Continuou a insistir que teria que haver uma solução para a TACV internacional que eliminasse riscos orçamentais futuros. Até lá não haveria ajuda. Finalmente em fins de Fevereiro último com a compra de 51% da TACV pela islandesa Lotfteidir parece que o BM já se dá por satisfeito e volta à ajuda.
O que aconteceu visto assim retroactivamente faz lembrar a utilização da técnica do “pau e da cenoura” para conseguir resultados em que a virtude está do lado de quem os usa e os custos são assumidos por quem foi apanhado em falta. A verdade porém não é tão simples. As instituições de Bretton Woods, entre as quais o FMI e o BM, não desconheciam que no período imediatamente anterior se agravara a dívida do país, aumentara o défice orçamental e a economia praticamente se tinha estagnado durante anos seguidos. Nos seus relatórios recomendavam a aceleração de reformas estruturais designadamente da TACV, mas, como dissera a ex-ministra das Finanças à imprensa em 2013, continuavam a reconhecer que a dívida era sustentável a longo prazo. Com a mudança de governo a verificar-se em 2016 as referidas instituições endureceram a sua posição e já exigiam a “liquidação” da TACV. O governo, posto contra a parede, certamente que não foi nas melhores condições que teve que proceder à reestruturação da transportadora aérea e claramente a sua posição negocial sofreu com isso. As soluções encontradas são custosas e padecem de insuficiências várias, mas pelo menos a sangria de fundos públicos foi em grande medida estancada. O serviço de transporte aéreo que porém se espera ter num país arquipélago e relativamente isolado do mundo ainda está aquém do desejável.
Paul Romer, o Prémio Nobel da Economia que foi durante alguns anos economista chefe do Banco Mundial confessou num artigo no jornal Financial Times que falhou em tentar reformar essa instituição. Ele diz que que o banco tem uma missão diplomática mas que diplomacia exige ambiguidade e o que o BM faz para manter conformidade na frente diplomática não é compatível com pesquisas científicas necessárias para a identificação dos problemas e a proposta de soluções. Quer dizer que há que tomar com saudável cepticismo algumas das reformas que propõem. Segundo Romer, poderão ter sido afectadas por “complexas sensibilidades políticas”. Aliás, nenhum país se desenvolveu com as soluções do BM que não poucas vezes mudam conforme uma ou outra corrente económica se torna proeminente. Comentando a actual “paixão” do BM pela inclusão financeira usando tecnologia (fintech) alguém no Financial Times de 24 de Abril lembrou o obvio – que sem rendimento não há inclusão financeira, e sem emprego não há rendimento. Tecnologia por si própria não resolve o problema do desenvolvimento como se fosse algo mágico.
Ter capacidade própria, consistência e convicção é pois fundamental na busca do melhor caminho para chegar ao desenvolvimento . Para isso toda a ajuda deve ser bem-vinda mas ela nunca pode significar ficar na posição em que o diálogo entre parceiros é substituído por incentivos do tipo “pau e cenoura”. Nesse sentido é imprescindível que se aja de forma estratégica para diminuir a dependência tanto em termos de recursos como também de visão, capacidade de produzir e implementar políticas públicas. Infelizmente as décadas de política de reciclagem da ajuda externa consolidaram no país uma cultura de dependência. Em vez de seguir políticas próprias, demasiadas vezes vai-se atrás de projectos propostos por parceiros internacionais porque são a fonte de financiamento. Não se prepara devidamente para expor e defender as opções próprias e definir as prioridades do país. Em nome do desenvolvimento a reciclagem da ajuda tende a tornar-se num fim em si mesmo. O que fundamentalmente passa a importar é o fluxo de recursos criado pelos projectos sem que os resultados ou a sustentabilidade futura dos mesmos estejam no centro da atenção. A preocupação maior é que a um projecto siga um outro num movimento que se quer permanente.
No processo, além dos custos associados à falta de uma visão integradora com acções encadeadas e dirigidas para objectivos bem definidos, acrescentam-se ainda a ineficiência na utilização dos recursos. Tal acontece às vezes por descaso, porque são doados, outras vezes, porque não alavancam recursos existentes e ainda outras vezes porque são desviados em troca de favores políticos e similares. O orçamento do Estado que deve ser financiado fundamentalmente por receitas conseguidas com a contribuição de todos os cidadãos também devia merecer atenção para melhor se poder avaliar o seu impacto e a qualidade das despesas. Infelizmente o que se verifica em demasiadas ocasiões é que parafraseando o Presidente da República muitas das despesas do Estado revelam-se desnecessárias, desadequadas e desproporcionais. A falta de racionalidade na utilização dos recursos e o desperdício evidente que se faz em viagens, eventos e em iniciativas improdutivas dificilmente vão permitir que chegue um dia em que se possa libertar-se da ajuda orçamental de outros países e instituições internacionais. Quer dizer que os custos inerentes, imediatos e a prazo, vão manter-se mesmo quando trazem algum bem.
Regozijar-se com a retoma da ajuda do Banco Mundial só deveria ter razão de ser se fizesse lembrar as dúbias razões que em primeiro lugar levaram à sua suspensão, os sacrifícios feitos depois e os custos assumidos por causa da posição de fragilidade com que se teve de encarar certas situações para voltar ao agrado do BM. Mas não só lembrar. Importa é agir para que a exposição do país às vontades dos outros seja cada vez menor e o país esteja melhor posicionado para prosseguir o seu próprio caminho e cumprir a sua visão de futuro com parcerias menos condicionantes e mais potenciadoras das capacidades e recursos do país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 914 de 5 de Junho de 2019.

segunda-feira, junho 03, 2019

Promessas da economia digital

O conflito com a empresa Oi terminou formalmente no dia 22 com a “recompra” dos 40% das acções que detinha na CVTelecom.
A empresa brasileira teria comprado as acções da Portugal Telecom numa operação que não foi de conhecimento imediato da parte cabo-verdiana. O contencioso que se seguiu depois de passar pelos tribunais cabo-verdianos, com desfecho positivo para os accionistas nacionais, foi levado ao tribunal arbitral de Paris onde tudo leva a crer que Cabo Verde arriscava-se a pagar 120 milhões de dólares à Oi entre indeminizações e outros custos, em vez dos 26 milhões necessários para as reaver. Como acontece nestas situações, o assunto foi mais uma oportunidade de confronto político onde mais se acusou do que se esclareceu. A tentação foi de se reabrir o debate em como a privatização se processou no passado em vez de se concentrar em como agir para dinamizar um sector vital nos tempos de hoje que paradoxalmente em Cabo Verde há anos que dá sinais de dificuldades com contributos baixos e até negativos para o PIB nacional, segundo o Relatório Anual do BCV de 2017.
Os quadros do INE são também claros a mostrar que as telecomunicações, actividades dos serviços relacionados com as tecnologias de Informação é um dos componentes do Produto Interno Bruto que desde de 2009 vêm diminuindo a sua contribuição. A constatação desse facto há muito que devia ter sido um alerta para os governantes. Indicia claramente que não estão a dar os resultados prometidos para o sector que devia ser estratégico para a economia cabo-verdiana tanto como motor de crescimento económico, como criador de empregos em particular para os jovens em todas as ilhas. Têm sido anos e até décadas a falar de Cabo Verde como hub para a economia digital e em fazer de Cabo Verde uma Cyber Island mas parece que se ficou essencialmente no discurso, sem acção consequente. O mesmo não aconteceu, por exemplo, nas Maurícias que despertou para a economia digital nos primeiros anos deste século, praticamente no mesmo momento que Cabo Verde. Actualmente são cerca de 20 mil os postos de trabalho criados no sector das tecnologias de comunicação e informação.
Conseguiram porque souberam agir estrategicamente e fazer os investimentos necessários com a urgência de quem precisa diversificar a economia para continuar a crescer. Não podiam ignorar que o panorama do comércio internacional iria mudar com o fim, em 2005, do Sistema Geral de Preferências (GSP) que permitia acesso fácil aos mercados da Europa. Tinham de diversificar para além das exportações de têxteis e do açúcar para a economia digital, serviços financeiros e turismo de grande valor acrescentado. Economias insulares não podem ficar fixadas no que deu certo no passado. Com recursos naturais limitados e mercado interno extremamente pequenos a grande aposta deve ser na educação e formação profissional para alavancar o único recurso com que realmente podem contar: as pessoas. Se o contributo das pessoas pode ser trabalho à distância e os serviços dirigidos para a procura externa consegue-se ultrapassar os constrangimentos da dimensão, da dispersão territorial e do isolamento em relação aos grandes mercados. É o que conseguiram fazer com os call center, os back offices e todos os serviços que se enquadram nos chamados Business Processing Operations (BPOs). E os ganhos são os já conhecidos.
Em Cabo Verde, no mesmo momento ouviu-se o mesmo discurso da importância da economia digital, da aposta nas tecnologias de informação e comunicação e da necessidade de competências linguísticas designadamente do inglês. O problema é que o discurso não levou ao diálogo útil, à construção de uma vontade com sentido de urgência e de oportunidade e também à implementação de um plano de investimentos estratégico que materializasse a visão nele contido. É verdade que houve muitos e vultosos investimentos designadamente em banda larga, nos serviços do móvel, na governação electrónica, no alargamento do ensino secundário e universitário e na construção de data centers. O problema é que todo esse dinheiro gasto pelo Estado, pelos privados e pelas famílias em educar os seus filhos não está a resultar nos empregos e aumento de rendimentos que foram perspectivados. As empresas de telecomunicações depois de fazerem chegar os seus serviços a toda a população já se ressentem da falta de tráfico que uma economia digital dinâmica e a exportar serviços poderia oferecer. Mesmo inovações no sector poderão tardar em ser adoptadas se a expectativa de retorno dos investimentos necessários ficar aquém do aceitável.
Não é certamente por acaso que só agora é que o país vai adoptar o 4G enquanto o mundo já se prepara para o 5G. Num sector em que as inovações acontecem a ritmo vertiginoso não fazer investimentos em tempo certo pode significar ficar para trás, perder competitividade e desperdiçar oportunidades únicas. Modelos de negócios que outrora funcionaram, deixam de garantir retorno – caso da voz nos velhos Telecom – e provavelmente não é possível nem aconselhável voltar atrás e restabelecer monopólios ou posições dominantes no mercado para garantir sustentabilidade. Importa ao país que realmente tenha uma infraestrutura de comunicações moderna e competitiva. Há entretanto que coordenar esforços e agir estrategicamente e com sentido de urgência para que se crie a economia digital capaz de inverter a situação actual e o sector passar a dar um contributo positivo para o PIB.
Os acontecimentos da semana passada poderão estar a abrir uma nova etapa no sector de telecomunicações em particular se o governo encontrar o parceiro estratégico certo para isso. Importante porém é que se compreenda que se está ainda muito longe da realização das promessas muitas vezes badaladas da economia digital. Seria extraordinário que se materializassem, num país arquipélago como Cabo Verde, considerando os vários constrangimentos da mão-de-obra passiveis de serem ultrapassados com conectividade fiável, estável e a baixo custo. Para isso é fundamental a alavancagem dos recursos humanos do país. Infelizmente é precisamente o que não se conseguiu até hoje como se pode inferir dos níveis de desemprego particularmente dos jovens com estudos secundários e universitários. Impõe-se uma mudança urgente de rumo. São necessários diálogos, compromissos e visão do futuro. É realizando isso que o Poder se legitima.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 913 de 29 de Maio de 2019. 

segunda-feira, maio 27, 2019

Corrupção, o mal a evitar

Acusações de corrupção são das piores armas políticas usadas nas democracias. Deixam saber que não há transparência na condução dos assuntos públicos e que há interesses particulares a serem protegidos em detrimento de bens e serviços que deveriam servir a todos.
Não poucas vezes são a arma de escolha no combate contra as elites ou de arremesso entre as forças políticas na sua luta pelo poder ou ainda para demonizar um adversário. Independentemente do seu grau de correspondência à realidade, o impacto sócio-político de acusações sistemáticas de corrupção é a todos os níveis desastroso. Provocam descrença nas instituições, justificam a desconfiança de muitos em relação aos políticos e alimentam o cinismo sobre o próprio regime democrático. Em termos económicos, ao indiciar que as regras não são iguais, aumenta os custos para os operadores, favorece a concorrência desleal e prejudica o consumidor. Se para qualquer país são enormes os prejuízos de fazer política com acusações mútuas de corrupção, para os países que estão a se enveredar pelos caminhos sinuosos do desenvolvimento são de facto terríveis.
A experiência de vários países demonstra que é possível evitar os efeitos da “política politiqueira” que em tudo vê corrupção com uma cultura de transparência e mecanismos de prestação de contas, com particular atenção a eventuais conflitos de interesses nos processos de decisão, com um sistema judicial eficaz e com uma imprensa livre e uma cidadania activa. A urgência em agir concertadamente para não deixar esse mal se instalar é cada vez maior no mundo de hoje. Mesmo em regimes não democráticos aumenta extraordinariamente a sensibilidade perante casos de corrupção como demonstra a ofensiva anti-corrupção que está a ter lugar em vários países asiáticos como a China, o Vietname e a Malásia. A legitimidade do governo desses países parece cada vez mais depender não só da dinâmica de crescimento que conseguem imprimir como também da sua eficácia em impedir que alguns se apropriem de forma desproporcional e ilegal da riqueza criada por todos.
Nas democracias também nos últimos anos cresceu consideravelmente a intolerância perante quaisquer sinais de corrupção. Basta ver o número de ex-chefes de Estado e de governo que estão ou já foram investigados por corrupção em países como a França, a Itália, Portugal, Espanha e Israel. Na sequência da crise financeira de 2007/2008 e da Grande Recessão ficou o sentimento no grande público que os custos da crise foram sofridos desigualmente pelos mais pobres enquanto uma elite financeira responsável pela crise foi salva e até lucrou com a situação. Esse sentimento de desencanto foi ainda agravado pela aparente incapacidade das elites políticas em encontrar soluções para as piores consequências da globalização que se têm traduzido na perda de trabalho e de rendimentos de milhares de pessoas na Europa e na América. Uma incapacidade que também demonstram em pôr cobro à concentração de riqueza num número cada vez mais restrito dos chamados 1% e em encontrar sistemas de redistribuição criativos que revalidem o actual contrato social e suporte a expectativa de diminuir a desigualdade social reinante. A perspectiva de um papel mais interventivo do Estado nos próximos anos tanto no papel de regulador como também de promotor da economia e de agente da redistribuição de riqueza, essencial para se manter a paz social, diminuir o ressentimento em relação às elites e construir um futuro, obriga a uma maior preocupação com a corrupção e a estar mais atento a políticas que a podem agravar.
Em países em desenvolvimento como Cabo Verde conseguir que o Estado desenvolva esses papéis essenciais que envolvem o fomento da iniciativa privada, a consolidação do tecido empresarial nacional e a atracção do investimento sem se deixar enredar no mar de interesses muitas vezes conflituantes não é tarefa fácil. Países como os do Sudeste asiático que em décadas passadas conseguiram vencer a batalha do desenvolvimento com um forte intervencionismo do Estado na economia e na criação de um sector privado dinâmico não o fizeram sem que num momento ou outro não tivessem sido confrontados por situações que configurem clientelismo, patronagem e nepotismo. Hoje o mundo é muito diferente e a intolerância a quaisquer actos que podem indiciar alguma relação de corrupção pode ser fatal. Mantém-se porém o objectivo central de fazer surgir e consolidar-se um sector empresarial moderno sem que o Estado se deixe apanhar pelos interesses. Saber a todo o momento conciliar esse objectivo com a realidade existente da fragilidade do sector, dos hábitos de dependência do Estado, dos constrangimentos ao empreendedorismo e das insuficiências do mercado não é certamente fácil. Muitos tentaram, poucos conseguiram.
A verdade é que não se consegue construir o ambiente adequado para uma interacção frutífera entre o público e o privado com vista a potenciar o desenvolvimento do país se a política se resumir a acusações de corrupção, se medidas políticas forem vistas sempre através de um prisma de que se quer lesar intencionalmente o interesse do país e se a insistente discussão do passado servir para invalidar qualquer discussão do futuro. O que se tem visto e ouvido nestas últimas semanas no parlamento, nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais sugerem que é nessa direcção que teimosamente se está a querer ir. Que essa é a tendência que se nota em várias democracias, é um facto. Os populismos vivem de indignação, acusações e ressentimentos. Mais uma razão para não se deixar arrastar por tal caminho.
O desenvolvimento de Cabo Verde implica necessariamente uma intervenção estratégica do Estado na construção das bases da sua economia. É supostamente consenso que o crescimento económico terá que contar com um forte contribuição do sector privado que o país puder criar e motivar. Também é verdade que nenhum recurso que através dos impostos tenha sido subtraído ao rendimento das pessoas deva ser utilizado de forma ilegal por qualquer individualidade ou direccionado para interesses particulares. Se assim é, há que construir as bases institucionais, desenvolver a cultura de serviço público e fortalecer os checks and balances do sistema político para que o esforço de desenvolvimento do país não beneficie alguns em detrimentos de outros. Diálogo construtivo em vez de acusações mútuas de corrupção precisa-se para que se possa evitar os percalços de um caminho difícil e não cair numa deriva com consequências graves para o país.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 912 de 22 de Maio de 2019.

segunda-feira, maio 20, 2019

Pressão populista

Na semana passada o foco da atenção foi o Liceu da Várzea. O governo fez saber através de uma portaria que autorizava que o terreno de 12 mil metros quadrados ocupados pelo liceu fosse cedido por 5,8 milhões de dólares às autoridades americanas para completar a área necessária para construir uma embaixada de raiz em Cabo Verde.
A reacção de várias pessoas entidades e sectores de opinião não se fizeram esperar. Condenaram a decisão deixando transparecer nos argumentos apresentados sentimentos de anti-americanismo remanescente de algum anti-imperialismo terceiro mundista. Algo similar já tinha conhecido no ano passado aquando da discussão do Acordo SOFA referente ao estatuto de militares americanos presentes em missão oficial no território nacional. Foi então notória a contaminação do debate pelos mesmos sentimentos, enviesando e tornando menos produtivo o esgrimir dos argumentos pró e contra. Do imbróglio algo inesperado nos dois casos chama a atenção a agressividade com que são avançados certos tipos de argumentos, a preocupação em rotular negativamente quem tem posição diferente e as acusações às vezes frontais de que há quem esteja a submeter-se aos ditames de países estrangeiros.
Interessante que os posicionamentos sobre estes assuntos vindos a público não têm só origens em elementos inorgânicos que se fazem ouvir essencialmente nas redes sociais. Convergem no essencial com os adoptados pelas principais forças políticas da oposição. O resultado é que numa matéria de relacionamento com um estado estrangeiro o governo e a oposição aparecem de costas voltadas e de forma acrimoniosa. Isso em contraste absoluto com a atitude que os sucessivos governos formados por um e outro partido têm assumido ao longo dos tempos em relação aos Estados Unidos da América designadamente em matéria de segurança, de política de ajuda ao desenvolvimento e de luta pela democracia e pelos direitos humanos no mundo e também no âmbito de programas como o MCA de 2005 e o de 2012. Razão para dizer que as motivações das partes nestes assuntos traduzem mais a possibilidade de aproveitamento numa perspectiva político-partidária de matérias, que não poucas vezes se tornam casos por falhas na própria forma do governo de as comunicar, do que realmente uma posição do Estado. Por isso que em geral os países estrangeiros envolvidos em tais imbróglios domésticos nem se incomodam com os arremessos vindos da oposição. O entendimento geral, como recentemente fez notar um alto dignatário europeu referindo-se a dirigentes partidários estrangeiros, é que os líderes quando estão fora do poder podem dizer e fazer o que bem entenderem. Não afecta as relações entre os Estados.
As democracias vivem hoje sob pressão de populismos de vários tipos. Uma característica comum a todos eles é a aposta em políticas identitárias que têm por base a busca da identidade por contraposição ao “outro” visto por Jan-Werner Muller no seu livro de 2016 “O que é o populismo?” como um ente diferente, corrupto ou de alguma forma moralmente inferior. Acrescenta o autor que a pretensão central do populismo é afirmar “que só uma parte do povo é que é realmente o povo”. A sua força motriz é o medo. Por isso é que certos populismos na Europa e nos Estados Unidos ganham força alimentando o medo contra, por exemplo, o imigrante e o islão e outros populismos insistem que o inimigo é a elite cosmopolita e a globalização. Em todos esses casos está-se à procura de um bode expiatório, de razões para odiar e de ameaças para confrontar.
Cabo Verde não está imune a essas tentações populistas. Aliás, o populismo já vinha do regime de partido único e só ganhou uma outra dimensão com o eleitoralismo da democracia. Os efeitos da generalização do uso das redes sociais e as mudanças geracionais nos partidos políticos vieram imprimir uma nova dinâmica ao que já existia e o resultado vê-se na fragilização das instituições com destaque para o parlamento, no empobrecimento do discurso político e no ambiente de maior crispação entre os partidos. Na procura de consolidação de identidades parece que um dos ingredientes que tem provado alguma utilidade, se tivermos em consideração a gritaria em certos círculos contra “bases, complexo militar e tropa americana”, é o espicaçar do sentimento anti-americano. Vê-se o artificialismo disso tudo quando se sabe que esses mesmos círculos não se opuseram, por exemplo, aos exercícios da NATO em 2005, ou à recepção em Cabo Verde de ex-prisioneiros vindos da base de Guantánamo em Cuba ou à assinatura em Washington do acordo em 2015 que faz de Cabo Verde um dos cinco “anchor states” no sistema de segurança dos Estados Unidos nesta região. Para muita gente nesta afirmação de identidades parece que também ajuda a hostilidade à Europa com o pretexto dos vistos, o confronto permanente entre o crioulo e o português que tem feito regredir o ensino da língua portuguesa e o afirmar de uma “africanidade” que ameaça desconstruir a caboverdianidade.
O discurso político nestes últimos dias tem sido dominado pela ideia de que o Liceu da Várzea está à venda, que já se vendeu a TACV e que outras empresas vão seguidamente ser vendidas. Parece que já se descobriu o que poderá alimentar o medo em Cabo Verde. Noutros países aposta-se no medo da imigração descontrolada, mas aqui no país e em certos círculos, talvez seja a ideia de venda do país a forma encontrada de galvanizar um certo tipo de populismo atractivo para sectores que sempre viveram à volta do Estado. Nisso certamente tiveram a ajuda de quem não soube desconstruir narrativas que no bom estilo populista dividia o campo político entre os que amam a terra e os outros. E iniciativas contraproducentes como publicar resolução do governo nomeando 25 empresas estatais e participadas que deviam ser privatizadas só poderiam confirmar a narrativa já existente.
O facto é que esse tipo de discurso tende a bipolarizar ainda mais o espaço político, diminuir consideravelmente as possibilidades de acordo entre as forças políticas em questões-chave para o país e tornar de todo quase impossível discutir qualquer assunto de relevância para o futuro. Também não é o tipo de discurso que convida a acções de forma concertada e estratégica, às vezes mesmo ultrapassando legislaturas para que o futuro do país seja garantido. O populismo vive da divisão mas aprofundando as fracturas na sociedade caboverdiana talvez leve alguém ao poder mas à custa de se sacrificar efectivamente o desenvolvimento do país. Espera-se que esse facto já comprovado por outros seja devidamente interiorizado e que a tempo se arrepie caminho para que o país não seja engolido num populismo que não leva a lado nenhum.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 911 de 15 de Maio de 2019.

segunda-feira, maio 13, 2019

Ainda à procura da normalidade

Quase trinta anos depois de mudança de regime político, Cabo Verde ainda não se vê como um “país normal”. Mas normalidade no sentido de pluralismo, democracia e sociedade aberta era o que realmente todos mostraram querer com o seu voto no dia 13 de Janeiro de 1991 que garantiu a maioria qualificada para se aprovar uma Constituição liberal e democrática.
Com esse gesto as pessoas quiseram exprimir que não mais estavam dispostas a aceitar um pensamento único. Não mais queriam ser tratados como cidadãos de segunda sujeitos ao governo de um grupo dos melhores filhos e deixados indefesos perante a discricionariedade e arbitrariedade das autoridades. E não mais dispunham-se a acatar um regime que coarctava a liberdade, a iniciativa e o espírito crítico. Infelizmente a realidade actual não corresponde completamente ao sonho de então e há mesmo o perigo de inversão da marcha em certos domínios.
É verdade que avanços extraordinários foram feitos na construção da normalidade desejada nos anos seguintes de construção da democracia. Mas também é facto que símbolos, ritos e personagens sobreviventes do regime antigo conseguiram insinuar-se no regime democrático, concomitantemente fazendo ressurgir com uma nova vitalidade a tentação de excluir pensamento outro, de se enaltecer e de servir a si próprio e de dobrar a Lei e as instituições ao seu interesse e conveniência. Antes, quando claramente constituía o núcleo essencial da ideologia do regime, procurava legitimar-se suportando-se no cultivo da gratidão pelo sucesso do processo de independência. Hoje, quando subtilmente impregna o Estado democrático procura justificar-se em exclusão de qualquer outra compreensão do percurso da Nação exigindo respeito pela história que só uns autorizados podem escrever e que obrigatoriamente deve ser passada às novas gerações em todas as escolas do país.
Se dúvida houvesse quanto a isso, a reacção excessiva e estrambólica de pessoas e entidades a um post na página do Facebook do deputado Emanuel Barbosa datado de 29 de Abril (opinando no essencial que por Amilcar Cabral não ser uma figura do Estado, “não se mostra aceitável que as suas fotos estejam afixadas em estabelecimento do Estado”) foi bem clara: o país tem tabus, a Constituição e as leis não se aplicam a todos e há que olhar para o lado antes de exercer o direito à liberdade de expressão. A questão central, levantada pelo deputado, se nos organismos públicos só deve estar a imagem do presidente da república porque constitucionalmente é o órgão de soberania que representa interna e externamente a república e é o garante da unidade do Estado, foi completamente ignorada. Em sentido contrário já muito visível ficou o entendimento de pessoas em certos sectores de que há símbolos nacionais outros que não os constantes do artigo 8º da Constituição e que as leis devem dobrar-se para os acomodar. Caricato no imbróglio foi a liderança do MpD através do secretário-geral demarcar-se da opinião do deputado do seu partido sobre uma figura política central ao legado histórico do seu principal adversário político, uma centralidade que o PAICV não se farta de reivindicar.
Viver num país normal onde se privilegia a liberdade pessoal, se preza a igualdade dos indivíduos e a lei se aplica a todos sem distinção pode para alguns não ser excitante como pelo menos inicialmente parece participar em alguma revolução bolivariana, seguir algum Comandante en Jefe ou extasiar-se perante os ritos patrióticos de multidões como na Coreia do Norte. Mas como venezuelanos, cubanos e coreanos e muitos outros noutros países e noutras eras podem testemunhar a excitação, enquanto durar, consegue-se à custa da perda de dignidade, de autonomia pessoal e de esperança num futuro de prosperidade. O culto de personalidade que é comum a todos esses regimes é a verdade única oficialmente aceite que faz do quotidiano um mundo de mentiras repetidas mil vezes e que precipita e atira as pessoas e a sociedade para o atraso porque elimina-se o espírito crítico, alimenta-se o conformismo, substitui-se a razão pelo sentimento e apela-se a paixões irracionais que criam a ilusão de que tudo é possível e que nada deve ser colocado no caminho da realização do objectivo traçado. Parafraseando Churchill sobre a democracia pode-se dizer que a democracia é o menos excitante dos regimes político, mas é o que um país normal faz que justamente deixa mais espaço para a criatividade e inovação, cria as condições para a produção sustentada de riqueza e abre caminho seguro para a inclusão.
O progressivo avanço simbólico de Amílcar Cabral na vida pública de Cabo Verde democrático não podia ser feito sem custos. A sua figura histórica é indissociável do PAIGC, o partido que liderou a luta de libertação na Guiné e esteve na origem de um regime de partido único na Guiné e outro em Cabo Verde. Como líder e teórico revolucionário esteve na origem da ideologia adoptada nos dois regimes de carácter totalitário. É evidente que forçar o reconhecimento do seu percurso político num contexto democrático de valores situados nos antípodas dessa ideologia cria tensões profundas que estão a ser resolvidas com mais esforço de indoutrinação nas escolas, com mais agressividade na invocação do seu pensamento em cerimónias públicas e com maior intransigência em discutir por exemplo se a sua estátua deveria estar numa rotunda como acontece em Bissau ou em repartições públicas onde legalmente nem o primeiro-ministro está e só é permitida a imagem do presidente da república, como acontece aliás em todas as democracias.
O choque contínuo daí resultante abre caminho para maior intolerância, para o estreitamento do espaço deixado ao espírito crítico e para mais crispação política visto que o PAICV proclama-se partido de Cabral. Contribui também para um esforço redobrado de indoutrinação das crianças algo directamente proibido pela Constituição que impede que o Estado programe a educação e o ensino segundo directrizes várias entre as quais políticas e ideológicas (artigo 50º nº 2 c) da CRCV). A violência verbal que se seguiu ao post no Facebook do deputado Barbosa ilustra bem o ponto em que já se chegou nesta deriva cujo imediato efeito é coarctar as liberdades. Pode complicar ainda mais a situação se na luta entre os partidos pelo eleitorado jovem todos se renderem a uma posição acrítica da forma como historicamente deve ser visto A. Cabral, como já vem acontecendo. Ninguém porém ganhará com isso. A Venezuela do comandante Chávez e agora de Maduro é o exemplo dramático do que não é um país normal.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 910 de 08 de Maio de 2019.

segunda-feira, maio 06, 2019

Mais emprego

Em mais uma celebração do 1º de Maio, Dia do Trabalhador, a atenção vai para a problemática do emprego no mundo de hoje, para a dificuldade generalizada em inverter os dados do desemprego e para o número crescente dos que desistem e se auto-excluem do mercado de trabalho.
Há quase três décadas que a economia mundial está a sofrer mudanças profundas sob o impacto da globalização, da liberalização de capitais e de avanços nas tecnologias de informação e comunicação. No processo, cadeias globais de valor criadas aumentaram exponencialmente a riqueza disponível e retiraram da pobreza centenas de milhões. Devido à dinâmica gerada, postos de trabalho foram destruídos e outros novos surgiram deixando para trás um grande número de perdedores mas abrindo oportunidades para muita gente em todos os continentes. Hoje, para uns a grande questão é como amortecer o choque negativo dessas mudanças designadamente no desemprego e na perda de rendimento sem quebrar a dinâmica económica. Para outros é como não ficar à margem de todo o processo de criação de riqueza e sem possibilidade de agarrar o comboio da prosperidade.
Depois da crise financeira de 2007/2008 e da Grande Recessão que se lhe seguiu os efeitos negativos da globalização acentuaram-se no mundo desenvolvido. Ao mesmo tempo que empregos no sector industrial desapareciam com as novas cadeias de valor, empregos criados no sector de serviços mostravam-se incapazes de os substituir porque as pessoas ou não estavam habilitadas para os exercer ou se revelavam pouco atractivos e pagavam menos. O descontentamento aí gerado passou a ressentimento com a crescente percepção pública da excessiva concentração de riqueza e aumento da desigualdade social. Muito do populismo e do sentimento anti-imigrantes que se vê em crescendo nos Estados Unidos e na Europa tem aí o seu fundamento.
Já no mundo em desenvolvimento há que se referir a pelo menos dois casos distintos. Há o caso da China e de mais outros países asiáticos que são os grandes ganhadores do actual sistema e que assistiram à ascensão de milhões de pessoas à classe média e ao crescimento económico a taxas elevadas de mais de 8% ao ano durante décadas suportada por uma rápida industrialização voltada para as exportações. Há o outro caso de países em desenvolvimento que deixaram a sua economia ficar dependente da exportação de minérios, de petróleo e de produtos agropecuários sem se diversificarem realmente. Além de crescerem com taxas relativamente baixas falharam em criar empregos suficientes e de qualidade em número e rapidez que historicamente só foi possível com a industrialização. Nem a dinâmica dos serviços, nem as promessas da economia do conhecimento enquanto motores de criação de empregos mostram-se capazes de compensar essa lacuna no processo de desenvolvimento desses países. E é a constatação deste facto que crescentemente tem levado muitos deles a reverter as suas políticas.
O problema é que o mundo de hoje, particularmente desde que a China foi aceite na OMC e se tornou na grande base industrial do mundo, não é o mesmo de décadas em que no quadro de sistemas preferenciais e de cotas alguns países asiáticos fizeram a sua caminhada com sucesso via industrialização com base nas exportações. Agora o grande desafio é inserir-se nas cadeias globais de valor e sabe-se que para isso as exigências são múltiplas incluindo custos de contexto, custo de factores e nível de formação dos trabalhadores que devem estar a um nível de poder competir com os oferecidos por outros concorrentes. A ameaça de guerras comerciais, a tentação de adopção de políticas proteccionistas pelas grandes potências e a tensão geopolítica em vários pontos do globo prometem tornar a caminhada que ora se procura iniciar ainda mais difícil e imprevisível. Tanto no passado como no presente os países que conseguiram ganhar com a sua inserção na economia mundial tiveram primeiro de construir um grande consenso interno quanto aos objectivos e as vias de os atingir. Aprenderam a abster-se do populismo e da demagogia nas discussões de política e no exercício do contraditório no quadro democrático para que negociações em questões de fundo do país tivessem alguma chance de sucesso e houvesse confiança para celebrar pactos alargados e firmar acordos pontuais.
Na campanha para as legislativas de Março de 2016 os dois grandes partidos correctamente identificaram o emprego como principal preocupação do povo cabo-verdiano. No debate político a candidatura de Ulisses Correia e Silva prometeu crescimento económico de cerca de 7% ao ano e 45 mil postos de trabalho enquanto a candidatura de Janira Hopffer Almada prometeu 15 a 20 mil empregos por ano. Interessante notar que o facto de todos concordarem ser o emprego o maior desejo das pessoas não leva depois a uma aproximação de posições para que condições sejam criadas e o objectivo de gerar mais postos de trabalho e fazer crescer com vigor e sustentabilidade a economia nacional seja materializado. Prefere-se ficar pela política que faz do adversário um inimigo e um potencial sabotador na realização dos interesses do país. E lida-se com a população tornando-se enquanto deputado da situação ou da oposição em porta-voz das reivindicações que, como disse o líder da UCID durante o debate sobre “Habitação e Habitabilidade”, as pessoas não fariam se tivessem um emprego decente.
O foco portanto devia estar em encontrar as melhores vias e fazer reformas que se impõem para criar empregos seguros e de qualidade e pela via do emprego melhorar a situação de todos. É evidente que alguns irão sempre precisar de ajuda directa e solidária do Estado que estará em melhor posição se tiver uma economia a crescer com vigor redobrado e a criar número significativo de postos de trabalho. Tornar o país mais produtivo e mais competitivo particularmente nesta fase de crescente dificuldade nas relações internacionais exigirá esforços redobrados, novos métodos de actuação dos actores políticos e mais abertura para se fazer as negociações e chegar aos acordos necessários em sectores-chave do país designadamente em matéria de administração pública, segurança, educação e política económica no seu todo.
Governar e fazer oposição já não devia passar pelo número de visitas, auscultações e socializações feitas às populações com a frequência e intensidade que ainda hoje se regista. Para além dos custos inerentes parecem ser actos permanentes de campanha eleitoral disfarçados de contacto com as populações. Fica no ar se os dignos representantes têm tempo depois do frenesim correndo pelas ilhas para estudar e reflectir sobre as questões, para encontrar as vias para as resolver e implementá-las no quadro de políticas devidamente ponderadas. A persistente precariedade e vulnerabilidade das populações põem sérias dúvidas quanto a isso. O mesmo faz o desemprego ainda elevado mesmo em face de maior crescimento económico. Há que mudar na forma de actuação da classe política e dos governantes para se poder lidar efectivamente com os constrangimentos ao desenvolvimento e posicionar melhor o país para aproveitar as oportunidades. Celebrar o 1º de Maio deveria significar a renovação do comprometimento para com a criação de condições para se ter mais empregos e propiciar maior empregabilidade a todos os cabo-verdianos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 909 de 01 de Maio de 2019.