A invasão da Ucrânia pela Rússia a completar quatro semanas amanhã, dia 24, desencadeou uma guerra brutal e destrutiva que não parece ter um fim à vista. A agressão contra a soberania e a integridade territorial da Ucrânia mereceu a condenação da generalidade dos países e provocou uma onda de solidariedade sem precedentes.
A perspectiva do conflito se prolongar ainda por mais tempo e potencialmente tornar-se ainda mais mortífera, seja nas batalhas urbanas para a conquista de cidades, seja num possível alastramento para um ou mais países, é motivo de profunda preocupação, particularmente quando as conversações em curso não deixam saber qual podia ser eventualmente uma saída a contente das partes. Entretanto, para esta sexta-feira, dia 25, o Papa Francisco num acto de profundo significado convidou todas as comunidades de fé a reunirem-se para uma prece pela paz na Ucrânia.
A bravura do povo ucraniano demonstrada na resistência à ofensiva russa e na defesa da liberdade e da democracia tem sido motivo de inspiração para muita gente. Já houve governantes em vários países que fizeram mudanças até há pouco tempo consideradas impensáveis nas políticas de sectores- chave como a energética, as relações externas e a defesa. Várias empresas multinacionais retiraram-se da Rússia por decisão dos seus corpos directivos ou por pressão dos consumidores. Personalidades e organizações da sociedade civil moveram-se decisivamente para bloquear a participação da Rússia em eventos culturais e desportivos. São exemplos de protagonismo surpreendente que fazem lembrar o que Albert Einstein teria dito que “no meio de cada crise encontra-se a grande oportunidade”, mas tendo em atenção o que para John Kennedy a palavra representa em chinês: perigo + oportunidade.
O perigo na crise da guerra da Ucrânia é visível na odisseia forçada de milhões de refugiados que o resto da Europa vai ter que absorver e amparar, na tragédia representada pelos milhares de mortos e pelas cidades destruídas e na possibilidade real de a guerra alastrar-se para outros países, não se excluindo mesmo uma escalada com utilização de armas nucleares. Também o perigo reside no impacto que estarão a ter as sanções económicas, financeiras e também culturais e desportivas lançadas contra a Rússia que efectivamente estão a torná-lo num estado pária e talvez mais perigoso, mas cujos efeitos fazem ricochete sobre quem as promove. É exemplo disso o aumento dos preços dos combustíveis, da energia, dos alimentos e da generalidade dos bens e serviços que na Europa e na América têm contribuído para taxas de inflação de respectivamente 5,9% e 7,9 % que há décadas não se registavam nesses países. Nos países em desenvolvimento a pressão inflacionista é, em muitos casos maior, e o mais natural é que venham a sofrer ainda mais com a elevação das taxas de juro e outras medidas de política monetária que já estão a verificar-se nos países do Ocidente para assegurar a contenção da inflação.
Aproveitar a oportunidade, ou seja, tudo fazer para conseguir resultados positivos ao mesmo tempo que se mantém consciente do perigo deve ser a atitude a adoptar quando se enfrenta qualquer crise. Como disse bem o antigo presidente da câmara municipal de Chicago, Rahm Emanuel, não se deve desperdiçar uma crise. Deve-se aproveitar para realizar coisas que antes não poderiam ser feitas. É o que se nota agora por causa da crise na Ucrânia e do seu impacto no mundo. Tem sido possível avançar com mudanças completamente inesperadas de políticas em vários domínios beneficiando do apoio popular que não se podia adivinhar à partida. Um caso paradigmático é o que está a verificar-se na Alemanha.
Também é o que acontece, como reconhece Francis Fukuyama num ensaio publicado no Financial Times de 4 de Março, quando a agressão russa na Ucrânia veio relembrar as pessoas das consequências de viver em ditaduras iliberais em que não há liberdade, não se respeitam os direitos fundamentais, os governantes não são escolhidos pelo voto livre e plural e não se instituiu a independência dos tribunais e o primado da lei. A complacência, que de algum tempo vem reinando em muitas democracias perante a erosão dos valores liberais sob os ataques do populismo tanto da direita como da esquerda, segundo este cientista político, poderá estar, com o exemplo da coragem dos ucranianos, a ceder lugar a uma maior consciência da importância da defesa dos valores liberais e ao renovar do espírito de 1989-90 que levou à queda de regimes autoritários e totalitários em todos os continentes.
A consciência dos perigos que acompanham as crises nem sempre é clara e presente. Em consequência fica mais difícil reconhecer que se está a caminhar para pontos de não retorno e tomar as medidas necessárias para os evitar. Muito menos há predisposição para identificar realidades emergentes e as oportunidades que podiam ser aproveitadas. Um exemplo claro disso são as alterações climáticas em relação às quais se está ainda longe de adoptar as medidas conjuntas que se impõem para enfrentar uma ameaça à escala planetária. Aliás, nem mesma a pandemia do SARS-CoV-2, com os seus seis milhões de mortos e quase quinhentos milhões de infectados conseguiu-se evitar o egoísmo e a falta de solidariedade e inculcar o sentido de urgência que a situação requeria. A crer na mensagem que o recente filme da Netflix “Não Olhe para Cima” quis passar, também uma colisão com um asteróide não seria suficiente para focar a atenção das pessoas nas ameaças existenciais que poderão surgir. A invasão da Ucrânia veio mostrar que talvez não seja bem assim.
Em Cabo Verde, da mesma forma, as crises sucessivas não têm servido para se procurar identificar as razões por que não se consegue sair do círculo vicioso que reproduz a precariedade e a vulnerabilidade das populações e do país. As crises em geral tomam a forma de secas que podem durar um ou mais anos ou de choques externos como aconteceu com a crise financeira, a pandemia do coronavírus e agora a guerra na Europa. Em geral, os efeitos das crises são mitigados pela ajuda externa e nesse quadro são regularmente implementados programas de luta contra pobreza cujos resultados não se têm revelado sustentáveis. O país com poucos recursos e pequena população não tem conseguido criar uma estrutura produtiva capaz de efectivamente combater o desemprego, não obstante os enormes investimentos feitos e a grande dívida pública acumulada.
Como não se fica a saber das razões, também não se aproveitam as oportunidades que surgem nas crises para se fazer outras abordagens dos problemas do país, encetar reformas e mudar a atitude. Com o passar dos anos, depois de esperanças goradas postas em clusters, hubs, plataformas e outras iniciativas que supostamente seriam o caminho para a prosperidade do país acaba por prevalecer a ideia que é o sector público o único que parece oferecer menos risco e mais estabilidade de rendimentos. O turismo tem peso, mas como a pandemia acabou por provar que é demasiado sensível a choques externos. Não estranha, pois, a que a dependência do Estado tende a aumentar mesmo abarcando o sector privado que supostamente deveria ser o motor da economia e a base de uma sociedade civil autónoma e interventiva.
Com o reforço do sector público, mais dependência do Estado e menos recursos para dividir, poucos incentivos existem para quebrar o círculo vicioso. Reconhecer que se está a governar na crise, a pior das últimas décadas, talvez possa ser um bom ponto de partida para novas abordagens, para convergências mais profícuas e duradoiras e um foco maior no que é prioritário e serve para construir um futuro com mais sustentabilidade. Os tempos e os exemplos que vêm de fora da luta pela liberdade e democracia deixam perceber que é possível a união e a solidariedade necessárias para se ultrapassar qualquer crise.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1060 de 23 de Março de 2022.