segunda-feira, maio 30, 2022

Por um jogo de soma positiva

 

Há um ano atrás tomava posse o novo governo saído das eleições legislativas de 18 de Abril. O país encontrava-se então em meio do surto da variante Delta do Sars-CoV-2, mas já se descortinava algum alívio das graves restrições de 2020 em resposta à pandemia que conduziram à contracção de 14,8% da economia nacional.

No discurso do primeiro-ministro apontava-se como prioridades sociais o emprego, a eliminação da pobreza extrema e a redução da pobreza absoluta e como prioridades económicas o crescimento, o alívio da dívida e a diversificação da economia. Com o desenvolvimento de vacinas e início de vacinação em grande escala, particularmente nos países emissores de turistas, perspectivava-se já um início da retoma que infelizmente não veio a se concretizar na dimensão esperada. Incertezas várias vieram baralhar tudo.

Primeiro surgiu a nova variante Ómicron altamente contagiosa e logo de seguida as tensões geopolíticas na Europa que depois desembocaram na invasão da Ucrânia pela Rússia. Reapareceram as restrições de viagem e os constrangimentos nas várias cadeias de abastecimento tornaram-se piores. O crescimento económico do ano 2021 ficou pelos 7% e as previsões para 2022 já de per si menos optimistas de 2021 sofreram uma quebra para um intervalo (3,5-4,5%) como aliás aconteceu ao nível global e também na generalidade dos países, de acordo com os dados de Abril do FMI/Banco Mundial.

Onde aparentemente não se notou mudança significativa foi nas políticas de antes da pandemia, que a todo o vapor se dá continuidade sem atender à conjuntura, e no tipo de confronto político que degrada o discurso e leva ao imobilismo mesmo perante problemas sérios e urgentes como a segurança. Também sem grandes alterações continuou a abordagem feita a questões essenciais do país que mexem com o futuro e a credibilidade das instituições. Opta-se em geral por varrer os problemas para debaixo do tapete. O próprio governo continua impávido com a mesma estrutura e o mesmo número de membros de há um ano atrás, salvo o reajuste devido a um pedido de demissão, não obstante as mudanças de conjuntura que obrigam a melhorar drasticamente a eficiência na utilização dos meios e recursos e a enviar sinais de contenção e solidariedade para a sociedade.

O facto de até agora não se puder prever como e quando se verá o fim do conflito na Ucrânia só tem aumentado as incertezas em relação ao futuro. No curto prazo já se percebe que todos são afectados pelos aumentos extraordinários dos preços em particular dos bens alimentares e energéticos. E que a verificar-se escassez de produtos em particular dos alimentares as consequências poderão ser desastrosas. Em face de tudo isto o mais natural é que houvesse uma disposição e uma motivação para fazer mudanças seja de comportamento, de políticas e de práticas. Paradoxalmente não é o que tem acontecido. Não se notaram as alterações na atitude das pessoas, instituições e países no sentido de mais cooperação e solidariedade que muitos esperavam ver por causa da pandemia e de outras ameaças como alterações climáticas. Em vários países o paradoxo é motivo de reflexão. Num país com as vulnerabilidades que Cabo Verde apresenta, compreender o que está por detrás do fenómeno é vital.

O mundo está a mudar rapidamente e em direcção difícel de prever. Há uma guerra em andamento que não se sabe como vai terminar ou como impedir que se alastre e sofra uma escalada para algo muito pior. Está-se a procurar isolar politica, económica e financeiramente um país, novas alianças militares tendem a formar-se e ordens económicas distintas podem vir a emergir. As disrupções ou convulsões que vão se processando enquanto o planeta procura outros equilíbrios afectam todos os países e em particular os mais pequenos, insulares, sem recursos naturais e sem economia diversificada. Num tal ambiente optar pelo imobilismo, por continuar a fazer o “mais do mesmo” e por transformar a política numa guerra de posições e num jogo de soma zero é o pior que se pode imaginar. Mas é precisamente por esses caminhos que se tem insistido em ir não obstante a seca, a pandemia, a recessão brutal de 2020, e a guerra na Ucrània e o seu impacto na inflação e na provável escassez de produtos básicos.

Viu-se recentemente a propósito da concessão dos aeroportos à Vinci. As forças políticas e a sociedade podem não discutir outros problemas cruciais do país como a educação, saúde, habitação e segurança, mas quando se trata da implementação de políticas económicas que incluem privatizações todas as paixões vêm à tona. Nessas circunstâncias fica-se com a impressão que não é propriamente a opção de política que se contesta. De facto, aproveita-se do assunto em questão para se renovar a divisão entre os que se assumem como “construtores” das infraestruturas nacionais os que são acusados de “vendedores” desses mesmos bens.

É claro que os supostos vendedores replicam que de facto o país na maior parte dos casos herdou elefantes brancos e dívida pública pesada contraída para os construir. Acrescentam ainda que uma solução possível para se conseguir dar utilidade a algumas dessas infraestruturas, criar riqueza nacional e conseguir receitas para pagar a dívida passa por atrair investimento externo através da venda ou concessão que traga capital, tecnologia, knowhow e mercado para os bens e serviços do país. O problema é quando a concretização desses propósitos falha estrondosamente como aconteceu com a CVA e os islandeses e cria-se o ambiente perfeito para se reproduzir a narrativa dos “vendedores da terra”. Com as paixões acirradas não há como reflectir sobre o que falhou, aprender com os erros e procurar posicionar-se melhor nas iniciativas futuras.

A pandemia e a perda do mercado externo que levou à maior recessão histórica de Cabo Verde e ao desemprego em massa de milhares de pessoas deviam ter sido instrumental para se compreender que Cabo Verde para prosperar terá que atrair investimento externo e mobilizar procura externa para os seus bens e serviços, ou seja, exportar. Todos os países, grandes e pequenos precisam de capital, tecnologia e mercados. Para os quase minúsculos e sem possibilidade de ter economias de escala como Cabo Verde não devia existir qualquer dúvida a esse respeito. Estranhamente, ou talvez não, aqui acredita-se que afinal se pode viver da ajuda externa ou que talvez o país seja “too small to fail”, demasiado pequeno para falir. É só ouvir e ver todos os dias na rádio e na televisão o entusiasmo e as demonstrações de autossatisfação com que são anunciados os milhões a serem investidos no âmbito da cooperação bilateral, multilateral e de instituições financeiras diversas.

Curiosamente, os objectos desses financiamentos sejam eles quais forem, em geral não são alvo das guerras de posições dos actores políticos apesar de em muitas áreas estabelecerem a agenda do país forçando opções de política que não passaram pelo crivo parlamentar. A política assim compartimentalizada permite que se vá avançando “a empurrar com a barriga” sem perturbar interesses instalados ao mesmo tempo que se reserva espaços de combate para luta pura pelo poder, sacrificando no processo o debate construtivo para a consecução do interesse nacional. Se em tempos normais os custos dessa postura dos actores políticos mesmo não sendo imediatamente visíveis acabam por pesar, afectando a credibilidade e eficácia das instituições e minando a confiança das pessoas, em tempos de transformações rápidas, como actualmente, podem ser um fardo terrível e ter efeitos desastrosos. No arrancar de mais um ano de governação, e com o mundo à beira de mudanças profundas, exige-se uma outra atitude e um patriotismo constitucional que não permita que a política se limite aos termos de um jogo de soma zero.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1069 de 25 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 23, 2022

Ano e mandato atípicos

 

Amanhã, 19 de Maio, a Assembleia Nacional que resultou das eleições de 18 de Abril de 2021 completa o primeiro ano de mandato. Nesse dia com a inauguração de uma nova legislatura e logo depois com um novo governo cumpria-se o segundo acto do ciclo eleitoral que tinha arrancado em Outubro com as eleições autárquicas e que iria terminar seis meses depois com as presidenciais.

As eleições tinham assegurado uma maioria absoluta ao MpD que, apesar de menos folgada do que na legislatura anterior, era suficiente para garantir a estabilidade da governação do país. Augurava-se então que, não obstante os problemas sem precedentes criados pela pandemia, num certo sentido e por algum tempo o exercício do mandato seria mais tranquilo, porque menos pressionado por eleições próximas. Infelizmente não é o que se veio a verificar e as razões não têm a ver somente com o aparecimento da variante Ómicron e seu impacto na retoma da economia e com os efeitos de tensões geopolíticas que depois levaram à guerra na Ucrânia.

Logo na sessão inicial e no processo de eleição do presidente e dos outros membros da Mesa da Assembleia Nacional ficou evidente para toda a gente que afinal a maioria saída das eleições não estava tão sólida como seria de esperar. A não aprovação do primeiro candidato a vice-presidente apresentado pelo grupo parlamentar maioritário deixou claro as fracturas internas no seu seio. Semanas depois, na discussão da moção de confiança ao governo era palpável o desconforto perante a possibilidade de não se ter a maioria absoluta necessária para a aprovar. O apoio explícito dos deputados da UCID à moção logo no início da sessão parlamentar ajudou a dissipar as dúvidas, mas a fragilidade da maioria ficou exposta e dificilmente seria recuperada. Aliás, incidentes posteriores como por exemplo na aprovação do Orçamento do Estado vieram demostrar que feridas internas não tinham sido saradas.

Com isso o espaço político que a relegitimação do poder nas urnas teria criado para o governo e a sua maioria e que lhes deveria permitir mais iniciativa, influência e capacidade de congregar vontades rapidamente se esvaziou. Cedeu lugar ao ambiente de crispação e de guerrilha política que existia antes das eleições, como se, para a minoria, a maioria que saiu das urnas não se concretizou. Já para as pessoas que se engajaram de uma forma ou outra nas eleições a crispação renovada foi mais um motivo de frustração porque é como se o seu voto não tivesse servido nem para mudar a postura dos actores políticos. Alguns deles continuavam a comportar-se como se não tivessem ganho e outros como se não tivessem perdido.

A realização das eleições presidenciais seis meses depois não foi muito propício a que se diminuísse o grau de crispação política que logo após as legislativas tinha voltado a instalar-se. Pelo contrário as fracturas reveladas da maioria constituíram incentivo para transformar as eleições presidenciais em mais um embate partidário. A vitória do candidato presidencial originário de quadrantes políticos da oposição acabou por enfraquecer ainda mais a dimensão da vitória nas legislativas e com ela a imagem do governo. As aparentes fragilidades demonstradas na relação com o novo presidente da república também não ajudaram. Se se acrescentar a tudo isso a incapacidade ou falta de vontade em reforçar a unidade e melhorar a prestação da maioria parlamentar e também de ajustar a estrutura governativa às exigências de um mundo a braços com desafios múltiplos, não é de estranhar que o maior partido da oposição mesmo à distância de vários anos das próximas eleições esteja a sinalizar para a sociedade que se prepara para regressar ao poder.

Como na generalidade dos países também em Cabo Verde a crise da democracia é fundamentalmente uma crise de representação e o seu epicentro é o parlamento. Com discursos antipartido e antielitistas quer-se fazer as pessoas acreditar que não são escutadas, nem os seus interesses tidos em consideração e que a solução é seguir cegamente líderes que primam pela autenticidade e ligação às pessoas. Após as eleições legislativas de 2016 a crise claramente que se aprofundou com o populismo e com o pessoalismo na política a dominar na actuação dos partidos. O fenómeno não apenas cabo-verdiano como se vê na eleição de Trump nos EUA, de Bolsonaro no Brasil e da ascensão de populistas na Itália, Hungria, Espanha e outros países europeus. A verdade é que com tudo isso a qualidade do trabalho parlamentar caiu muito comparativamente, dando mais argumentos aos costumeiros inimigos da democracia e do pluralismo. A par disso oferece-se oportunidade de questionar a utilidade do parlamento e de, a exemplo do que se passa nos países com líderes populistas, descredibilizar as instituições tomando como alvos preferenciais o parlamento, o sistema judicial e os médias.

De alguma forma algo mais consciente do desgaste provocado nas instituições e nos partidos políticos já se nota nas tentativas de inflectir o sentido das tendências actuais. No Paicv, na sequência da derrota nas legislativas, elegeu-se um novo líder com um claro mandato para reunir tendências, gerações e experiências para melhor se apresentar como alternativa credível nas eleições de 2026. No MpD, a revelar problemas internos por resolver, há, com o partido no governo, um caso possivelmente inédito, exceptuando nos sistemas parlamentares do tipo inglês, de uma possível disputa da liderança a meio do mandato. Combater as derivas populistas no interior dos partidos, porém não é suficiente. Há que fazer o parlamento exercer as suas competências em particular em relação a outros órgãos de soberania como foi o caso de reavaliação do veto do presidente da república e de eleição no tempo certo de órgãos externos da assembleia nacional para não se estar na situação de ter órgãos com mandatos terminados há quase um ano.

A credibilização do parlamento passa por se ultrapassar a imagem de crispação política existente e mostrar que é possível o exercício do contraditório sem que isso conduza ao bloqueio e à impossibilidade de negociar, construir consensos e firmar acordos em boa fé. Isso é essencial para a estabilidade governativa do país e para se ter de facto uma real fiscalização dos actos da governação. Também é importante para mostrar que ao funcionar com discurso aberto e com contraditório, dados transparentes e com foco no interesse público esta-se a evitar que verdades alternativas, teorias de conspiração e outras distorções da realidade ganhem proeminência na sociedade. Nesse aspecto foi uma falha lamentável na sessão da semana deixar passar a oportunidade de reparar imediatamente o chamado “erro material” detectado no código penal que deixou alguns crimes de corrupção passiva e activa e tráfico de influência com prazos de prescrição baixos. De acordo com a declaração de voto do Paicv a vontade unanimemente expressa do legislador na plenária e em sede da comissão especializada era precisamente no sentido contrário e para elevar para prazos máximos a prescrição desses crimes.

A iniciar um segundo ano de mandato é de toda a importância que a Assembleia Nacional assuma as suas funções como pilar fundamental do sistema de governo e contribua efectivamente para o cumprimento do princípio da separação e a interdependência dos órgãos de soberania. Enquanto órgão de soberania que representa todos os cidadãos na pluralidade das suas opiniões e na diversidade dos seus interesses deve agir decisivamente para se prosseguir com o jogo democrático, a única via para se encontrar soluções para os problemas de hoje e se construir o amanhã sem que a liberdade e a dignidade de todos sejam sacrificadas. O primeiro ano foi em certos aspectos algo atípico. Que o segundo que agora começa se reja pela normalidade democratica para que todos sejam ganhadores. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1068 de 18 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 16, 2022

Reescrever a parceria especial

 Nas mensagens divulgadas no dia 9 de Maio o Presidente da República e o Primeiro-ministro saudaram o Dia da Europa, o dia que celebra a paz e a unidade do continente europeu, e manifestaram a vontade de Cabo Verde de reforçar e aprofundar as relações com a União Europeia.

Na sua mensagem, o PR para além de caracterizar a Europa como parceiro estratégico diz que “está em gestação uma nova ordem mundial e Cabo Verde deve saber reposicionar-se e, desde logo, reescrever a parceria especial com a União Europeia”. Acrescenta ainda que o país deve agir inteligentemente para dar à parceria especial novos contornos, no sentido do seu aprofundamento e adequação aos desafios emergentes na arena internacional, com profundos reflexos num pequeno estado insular como o nosso”.

As mensagens deixam passar alguma apreensão e urgência. Compreende-se que seja assim. O aniversário da Europa que também significativamente quase que coincide com o dia do fim da segunda guerra mundial, 8 de Maio, acontece num momento em que a paz foi quebrada no velho continente com a agressão russa à Ucrânia. Já se vê que a resposta unânime da Europa manifestando solidariedade com luta dos ucranianos na defesa da integridade territorial do seu país e impondo pesadas e abrangentes sanções à Rússia vai ser um ponto de viragem nas políticas europeias com consequências designadamente nas políticas de alargamento e de defesa.

Outras consequências já se estão a verificar nos extraordinários aumentos de energia, de bens alimentares e de vários outros produtos. A prazo, os efeitos da inflação, o impacto da dívida pública e os efeitos dos estrangulamentos nas cadeias de abastecimento vão conjugar para diminuir os rendimentos das pessoas e baixar as taxas de crescimento económico. Em maior dificuldade ficarão os países em desenvolvimento a braços com a manutenção do ritmo da retoma pós-pandémica num ambiente movediço de rearranjo das relações económicas. Num tal contexto confiança e previsibilidade nas cadeias globais de valor e de abastecimento ganham importância fulcral. Crucial será poder prever os contornos dessa nova ordem mundial e saber como reposicionar-se tendo em conta que provavelmente o mundo tornar-se-á mais complexo, por que marcado por rivalidades geopolíticas e pela dinâmica de blocos económicos que obrigam a tomadas de partido e não deixam muito espaço para a ambiguidade e o equívoco nas relações internacionais.

Para Cabo Verde, o Banco Central (BCV), no relatório semestral de política monetária divulgado na semana passada, aponta riscos para a economia associados à escalada da guerra na Ucrânia e o apertar das sanções à Rússia. Neles o BCV inclui a escassez de matérias-primas e cortes na produção de sectores económicos dependentes desses produtos, as consequências de preços de importação muito mais altos e possíveis desabastecimentos e também as incertezas e a falta de confiança criadas que afectariam as decisões de consumo e de investimentos de empresas e pessoas. De acordo com o BCV, os riscos poderão agravar-se mais se a situação da covid-19 na China persistir, se a expectativa de inflação se mantiver e se houver o ressurgimento da pandemia com uma nova variante mais contagiosa e mais letal.

São alertas que deviam levar os actores políticos e a sociedade no seu conjunto a reflectir mais aprofundadamente sobre a conjuntura actual marcada ao nível nacional pela seca, pela pandemia e pela dívida pública e ao nível internacional pelas ondas sísmicas causadas pelos constrangimentos nas cadeias de abastecimento, pela inflação e pela guerra na Ucrânia e por tensões geopolíticas em vários pontos do globo. Até agora não se tem a impressão que foi dada a devida atenção a estas questões, pelo menos no que toca à mudanças de comportamento e de atitude. Continua-se a substituir discussões substantivas de políticas por exercícios de arremesso político e persiste-se com a prática da política-espectáculo e do eleitoralismo permanente. Não se apela suficientemente à solidariedade que os tempos exigem e que podia levar a mais contenção nos comportamentos e gastos, mais ponderação nas reivindicações e maior disponibilidade em encontrar vias e soluções para os múltiplos problemas que afligem o país.

Do BCV, para além dos alertas vêm as recomendações para reduzir o peso da dívida pública priorizando gastos essenciais e para avançar com reformas que resolvem problemas estruturais e aumentam o potencial da economia do país. Uma outra recomendação é que a perda de rendimento da economia seja compartilhada por trabalhadores e empresas para não se entrar numa espiral inflacionária que prejudicaria a todos. Aí, porém, as autoridades teriam que agir com um outro rigor na fiscalização económica para evitar a extracção de lucros excessivos pelas empresas num ambiente de aumento rápido de preços. Os trabalhadores, por seu lado, teriam que conter-se nas reivindicações salariais para se evitar pressão sobre os preços. Para conseguir isso talvez fosse necessário um pacto Estado, patronato e sindicatos para o crescimento e para o emprego. Implicaria provavelmente que os problemas do país e os desafios que se colocam na actual conjuntura fossem assumidos na sua plenitude por todos, ressalvando a diversidade dos pontos de vista e das estratégias a adoptar para os enfrentar. Também implicaria que o passado deixasse de ser objecto de nostalgia e motivo de ressentimento para se poder concentrar no presente e potenciar o que existe com vista à construção de um futuro inclusivo e sustentável.

Realismo e pragmatismo devem caracterizar as políticas de Cabo Verde neste momento particularmente desafiador em que o país, a sair da crise pós-pandémica, enfrenta uma conjuntura internacional de incertezas. Considerando que cerca de 80% das importações e exportações do país é com a Europa e que também daí vem o grosso da ajuda externa, das remessas dos emigrantes e do investimento externo e se situa o ponto de origem do fluxo do turismo que contribui para 25% da economia nacional, faz todo o sentido que seja o principal foco da atenção estratégica do país. Aumentar o potencial do país é fundamental assim como é de suma importância estar atento às mudanças e saber ajustar-se com vantagens.

O aprofundamento da parceria especial com a União Europeia que o PR incentiva no actual momento de viragem da União Europeia tem particular urgência neste momento em se está a sinalizar que a comunhão de valores e princípios democráticos e liberais é fundamental para a solidariedade entre as democracias e vai ganhar mais peso nas relações económicas futuras que se querem mais resilientes. Os tempos recentes da pandemia demonstraram como foi importante para Cabo Verde a solidariedade do Ocidente nas vacinas e na ajuda bilateral e multilateral para que o pior da crise fosse ultrapassado. O futuro próximo está cheio de incertezas e desafios importantes colocados, seja pela ameaça ainda presente do coronavírus e dos constrangimentos no abastecimento, seja pelas alterações climáticas e pela transição energética que para serem ultrapassados exigem que se reforce e se aprofunde a cooperação com outros países, em particular com aqueles com quem se partilham valores e se tem o maior nível de integração económica. Há que ser pertinente e inteligente para ser bem-sucedido. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1067 de 11 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 09, 2022

Mais responsabilidade constitucional

 No debate parlamentar com o Primeiro-ministro sobre Segurança que teve lugar na semana passada aconteceu um acto inédito. O PM fez um requerimento à Mesa da Assembleia Nacional para obrigar os deputados do Paicv a entregar provas das denúncias de escutas telefónicas ilegais e uso indevido de videovigilância.

O próprio PM confessou que não sabe se o governo pode solicitar um requerimento ao parlamento. De facto, o artigo 114º não inclui fazer requerimentos no uso da palavra pelos membros do governo enquanto para os deputados está claramente estabelecido na alínea g) do artigo 111º. Por outro lado, consideram-se requerimentos só os pedidos respeitantes ao processo de apresentação, discussão e votação ou ao funcionamento da reunião (artigo 121º). Não parece que tenham cabimento na dinâmica de um debate em sede de fiscalização política do governo em que “a uma acusação política se responde com uma refutação política”. Mesmo assim foi-se avante com o requerimento, mas ninguém espera que tenha quaisquer efeitos práticos.

Exigir entrega de provas das denúncias só contribuiu para cortar a meio o debate e para o transformar em mais um exercício de arremesso político prejudicando ainda mais a imagem já desgastada do parlamento. É seguir pelo caminho da judicialização da política que de facto atenta contra a liberdade de expressão dos deputados como bem referem vários constitucionalistas e põe em perigo a eficácia do parlamento como órgão de soberania que fiscaliza a acção governativa. Ainda bem que existem as imunidades incluindo a irresponsabilidade civil, criminal e disciplinar do deputado em relação a tudo o que é dito na plenária da assembleia nacional para que os pesos e contrapesos funcionem na democracia e haja accountability, ou seja, a responsabilização e a prestação de contas por todos os actos praticados por quem tem o mandato, os recursos e os meios para governar. Tentar coartar isso é que pode configurar um ataque às instituições democráticas em particular àquela onde os cidadãos estão representados no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.

De facto, dar vazão a queixas ou denúncias de cidadãos de eventual uso ilícito e ilegal de escutas telefónicas ou outros meios de vigilância electrónica no quadro de um debate parlamentar com o PM não devia ser visto como ataque a serviços ou departamentos do Estado como a polícia e serviços de informação que estão sob a direcção ou superintendência do governo da república. Em causa estão direitos fundamentais dos cidadãos para cuja defesa todos os órgãos de soberania numa democracia liberal e constitucional têm especial obrigação de activamente contribuir. E a verdade é que possibilidades de abuso desses meios na investigação criminal e no âmbito da recolha de informações por razões de segurança existem sempre mesmo nas democracias mais maduras e com sistemas de controlo judicial e outros dos mais estritos.

São conhecidos casos que de tempos em tempos vêm a público na América e na Europa de atropelos diversos e que depois levam a inquéritos, revisão dos procedimentos e aprimoramento dos mecanismos de controlo. Recentemente foi revelado o caso de escuta dos telemóveis de ministros em Espanha e um pouco antes de um caso similar de escuta de personalidades da Catalunha que já tinha sido alvo de denúncias da oposição e dos separatistas catalães. No caso de Cabo Verde, em que a democracia é menos madura e em que se está praticamente no início da criação de uma cultura institucional respeitadora dos direitos, é fundamental que da parte do governo haja uma preocupação e uma disposição por fazer os serviços sob sua responsabilidade, cumprir o legalmente estabelecido e estar atento a todas insuficiências, omissões e uso ilícito dos meios disponibilizados. Para além das auditorias que por iniciativa própria deve promover, queixas e denúncias dos cidadãos devem ser investigadas como forma também de avaliar o sistema, tendo sempre em conta que do Estado se espera em primeiro lugar que garanta a segurança, a liberdade e a privacidade de cada cidadão.

Tomar denúncias no parlamento como ataques a departamentos e serviços do estado em vez de aproveitar para esclarecer situações e procedimentos existentes e também de refutar acusações se as houver ou avançar com investigação quando se mostrar necessário retira o aspecto construtivo do que legitimamente se devia esperar do debate entre situação e oposição. Pelo contrário, tende-se a personalizar as críticas feitas e tomá-las como sendo dirigidas aos profissionais do sector, sejam eles polícias, professores, médicos e enfermeiros ou outras classes de funcionários públicos. Na sequência, o que se nota é que o debate degradar-se, passando as partes a competir para mostrar quem é o melhor a proteger essas classes de profissionais em salários, benefícios e meios disponibilizados como se tudo isso se tratasse de uma corrida eleitoral para assegurar votos. Evidentemente que num ambiente assim as razões para o debate perdem-se pelo caminho e as questões reais e urgentes de segurança, de qualidade do ensino, eficácia da justiça, e de resultados de políticas em vários outros sectores passam para o segundo plano.

Recorrentemente as mesmas matérias regressam para o debate e invariavelmente acontece o mesmo. Privilegia-se o apelo a sentimentos e a identidades artificiais, factos não são reconhecidos ou vistos em contexto e no fim o que prevalece é a “cor da camisola” deixando pouco espaço para compromissos e consensos. Infelizmente as alternâncias na governação e na oposição não se têm prestado para melhorar a situação com diminuição da crispação e o firmar de acordos tácitos que permitisse quebrar o círculo vicioso actual. Parece faltar o que alguns chamam de “responsabilidade constitucional” que leva a que se cumpram as regras do jogo democrático para que as virtualidades do pluralismo, da diversidade e do exercício do contraditório se conjugam para realizar o interesse colectivo. Mais forte tem sido a tentação pelo personalismo na política que depois acaba por se traduzir em falhas repetidas no funcionamento de órgãos de poder político ao nível central e local e em protagonismos desajustados de figuras públicas com responsabilidade.

O facto de nem as sucessivas crises, com o seu impacto dramático e até assustador criando muitas incertezas para o futuro, se mostrarem suficientes para mudar o estado de coisas na esfera pública, é realmente preocupante. Ainda não se consegue focar nos desafios que se colocam ao país mesmo quando a conjuntura é terrível e incerta. Também não há atitude de contenção como se pode ver pelos festivais com dinheiro público já anunciados, tornando difícil nutrir o espírito de solidariedade que os tempos actuais exigem. Paradoxalmente, como se nada tivesse acontecido – guerra, aumentos brutais de preços, endividamento rápido do país - parece reinar ainda o eleitoralismo mesmo sem eleições à vista, como se viu na última sessão do parlamento. Em consequência, não se deixa que mesmo os problemas mais candentes e urgentes de Cabo Verde sejam tratados com seriedade e sentido de responsabilidade. Todos, porém, devem reconhecer que a situação do país e do mundo não permite que isso continue. Urge uma mudança de rumo e de atitude.   

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1066 de 4 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 02, 2022

Com a desglobalização em curso passos falsos pagam-se mais caros

 

As reuniões de Abril das instituições de Bretton Woods ficaram marcadas pela más notícias que dominam a actual conjuntura mundial. A previsão do crescimento mundial foi revista em baixa em cerca de 1,3%. Espera-se inflação à volta dos 5,7% nos países desenvolvidos e 8,7% nos países em desenvolvimento e um maior risco de incumprimento no serviço da dívida pública de muitos países, em particular os menos desenvolvidos. Fala-se abertamente do fim da globalização pelo menos na forma como se tem até agora processado e que se caracteriza pela capacidade de bens, pessoas e capital se moverem livremente para onde são mais produtivos. Nesse sentido, a expectativa é que o futuro seja de um mundo bipolar ou multipolar e com maior enfase na regionalização. Também é previsível que, no que alguns já chamam de nova ordem mundial, para além do aumento das tensões globais, haja perdas de eficiência na circulação dos produtos com impacto geral nos preços de bens e serviços.

Para a Secretária do Tesouro dos Estados Unidos da América, Janet Yellen, num discurso proferido uma semana antes das reuniões do FMI e do Banco Mundial (13 de Abril), a emergência de uma nova ordem internacional é já uma realidade incontornável. Por causa da invasão da Ucrânia, as sanções aplicadas à Rússia irão transformá-la num país pária ficando também de fora dessa nova ordem os países cúmplices nas tentativas de contornar as medidas punitivas do mundo ocidental. Segundo Yellen, se com a globalização aconteceu muito do offshoring das empresas no processo de construção das cadeias globais de valor, e mais recentemente as tentações proteccionistas clamaram por onshoring para recuperar postos de trabalho e rendimentos perdidos, agora a questão deve ser posta numa nova perspectiva que é de friendly-shoring.

A preocupação já não é só eficiência, mas também resiliência e isso é um compromisso que se consegue criando cadeias de abastecimento e de valor, mas só com países que comungam dos mesmos princípios e valores e dão garantias num quadro de uma ordem que funciona com regras estabelecidas em matéria designadamente de concorrência, respeito pela propriedade intelectual e regime laboral. Janet Yellen foi clara na sua intervenção que não é de admitir no novo bloco económico países que com força de mercado em matérias-primas, tecnologias ou outros produtos abusem desse poder e criem constrangimentos aos outros para ganhar vantagens geopolíticas. Aparentemente no quadro dessa nova ordem a selecção de países para o chamado friendly-shoring vai ser mais rigoroso, não deixando muito espaço para países que ora pendem para um lado, ora para outro, muito no estilo da política dos países não-alinhados dos tempos da Guerra Fria.

A verdade é que agora o que está em jogo não são só questões ideológicas ou mesmo rivalidades dos blocos militares de outrora. Trata-se de segurança económica e também de enfrentar desafios da transição energética, de se ajustar a um mundo dominado pelo digital, preparar-se para futuras crises pandémicas e de cooperar na resposta global às alterações climáticas. Não dá para ter parceiros em cima do muro. Essa é uma das razões para a forte reacção negativa do Ocidente à abstenção na matéria de suspensão da Rússia da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Dos 143 países que pouco tempo antes tinham condenado a invasão da Ucrânia só 93 concordaram em aprovar a resolução de suspensão. O facto é que a agressão da Rússia continua e ameaça alastrar-se ainda mais para assegurar o controlo do Leste e Sul da Ucrânia e possivelmente incluindo a Transnístria que é parte da Moldávia. E a situação perigosa que se desenha é de um conflito durável e mais alargado e com risco de envolver armas nucleares, possibilidade não excluída por muitos e que não deixa muito espaço para posições ambíguas que talvez antes eram possíveis.

Cabo Verde vai ter que encontrar o seu lugar nesta ordem emergente com características muito próprias e desafios ainda desconhecidos. No desenvolvimento de uma estratégia própria para se enquadrar no novo quadro mundial certamente que terá em perspectiva o seu ponto de partida. Cabo Verde é hoje uma democracia liberal e tem uma economia altamente integrada na economia do Ocidente, também democrático e liberal, para onde mais exporta, de onde mais importa e vem a quase totalidade do fluxo turístico e do investimento directo estrangeiro, de quem recebe a maior parte da ajuda externa e é a origem das remessas das suas comunidades emigradas. Actualmente, o país está ainda a sofrer o impacto de crises sucessivas, seca, covid-19 e guerra na Ucrânia que têm contribuído para o excesso da dívida pública, para alta de preços e para as dificuldades em fazer a retoma da economia. No meio de todas as incertezas presentes devia ser claro que não há espaço para posições equívocas quando democracias são ameaçadas. Também faz todo o sentido que se procure aproveitar as oportunidades que uma reconfiguração das cadeias de valor venha oferecer na lógica do friendly-shoring.

A parceria especial com a União Europeia tem merecido o consenso de todo os governos e certamente que haverá apoio generalizado para o seu reforço. Neste momento em que o processo de globalização sofre um recuo e possível reconfiguração em blocos económicos é de se servir da base extensa de interacção que já existe e da convergência de princípios e valores para se proceder numa ancoragem mais firme na zona económica em que efectivamente o país funciona. O foco nesse sentido não deve excluir a possibilidade de exploração de outras parcerias, mas sempre tendo em vista os constrangimentos existentes como bem apontou o secretário geral da Zona de Comércio Livre Continental Africana, ZCLCA, quando se referiu ao problema da conectividade das ilhas com as economias do continente. De facto, o comércio intercontinental é ainda menos que 20%, comparado com os mais 60% da Europa, 40% das Américas e 30% da Ásia. Sem um volume de comércio aceitável não há como sustentar tráfego marítimo e aéreo regular.

Qualquer estratégia para ser eficaz precisa fazer a devida ponderação das situações, ter sempre em mente os objectivos e saber a todo o momento quais as prioridades a atingir. Mais do que nunca, principalmente por causa dos grandes desafios que se colocam, esperam-se resultados e não exercícios do mais do mesmo em que governação efectiva é substituída por política de espectáculo. Eficiências exigidas nestes tempos de magros recursos conseguem-se evitando protagonismos excessivos e desencontrados que retiram consistência às políticas apresentadas, prejudicam a cooperação e mesmo a solidariedade entre os seus principais agentes e minam a confiança de quem quer ver coerência na governação. É preciso ter em atenção que no mundo polarizado de hoje passos falsos pagam-se mais caros e oportunidades perdidas não se repetem com facilidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1065 de 27 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 25, 2022

Valorizar o capital humano só depende nós

 Há uma semana atrás o governo anunciou o investimento do Banco Mundial no valor de 26 milhões de dólares no projecto de Capital Humano. Para o Vice-Primeiro-ministro o financiamento vem no momento crucial quando o país saído da pandemia precisa apostar na formação e na inclusão.

O foco do Banco Mundial é reduzir a extrema pobreza e aumentar a prosperidade partilhada. Daí o projecto ter uma componente habitacional e outra de protecção social para além do que especificamente apresenta no sector da educação em matéria de reforma curricular, formação de professores e desenvolvimento de competências para a empregabilidade. A sensação de déjà-vu que acompanha esse tipo de cerimoniais faz pensar que mais se está a administrar uma espécie de paliativos para a situação sócio-económica difícil do que a romper com o círculo vicioso que impede resultados no desenvolvimento do capital humano à altura dos investimentos feitos.

Em 2019, já se tinha avançado com um projecto também do Banco Mundial de 10 milhões de dólares para a melhoria do sector da educação e formação. Outros projectos de vários milhões financiados pela cooperação internacional têm sido implementados ao longo de décadas. Anualmente fatias apreciáveis do Orçamento do Estado atingindo somas de mais de 10 milhões de contos em 2021, cerca de um quinto do total do OE, têm sido aplicadas no sector. Não obstante todo esse esforço, os resultados não têm sido os melhores. Segundo estudos feitos pelo Banco Mundial em 2019, Cabo Verde quando comparado com os países vizinhos destaca-se pela falta de capital humano com as competências alinhadas com as necessidades do mercado. Também foi em Cabo Verde entre os países da CEDEAO que as empresas apontaram a falta de capital humano qualificado como o maior constrangimento ao crescimento da economia e ao desenvolvimento.

Curiosamente Cabo Verde destaca-se ainda pela negativa por pertencer a uma pequena lista de países que não tem dados internacionalmente comparáveis de resultados de aprendizagem. É dos poucos países do mundo que não aparece no Índice de Capital Humano produzido pelo Banco Mundial. De acordo com o referido estudo do BM, foi em 2019 que através do projecto de melhoria da educação e formação se implementou um dos primeiros sistemas de avaliação nacional do ensino para leitura e matemática no 2º e 6º do ensino básico. A grande questão que salta logo à vista é como é que o país se permitiu investir tanto no sector da educação, incluindo não só verbas do Estado como também a contribuição financeira das famílias e o esforço e a expectativa dos pais e alunos, sem que se tenha procurado avaliar o grau de eficiência, qualidade e de satisfação com que todos esses recursos e toda a energia dos envolvidos estavam a ser aplicados.

Hoje é geralmente assumido que os recursos humanos constituem a base da riqueza das nações. Países podem ter mais ou menos recursos naturais e até estratégicos, beneficiar ou não de outros factores como geolocalização privilegiada ou ter uma história que lhes dificulta ou facilita na relação com o resto do mundo, mas todos têm um potencial a explorar e a expandir nas suas gentes. A rapidez e o nível de prosperidade que conseguirem atingir irá depender do investimento feito nos recursos humanos, em particular na qualidade do sistema de ensino a todos os níveis e no sistema de formação profissional. É isso que lhes permite adquirir conhecimento, aumentar a competitividade e produtividade e inovar nos produtos, processos e tecnologias para se desenvolverem e serem bem-sucedidos num mundo em que a economia cada vez mais se baseia no conhecimento.

Países pequenos e de sucesso como Singapura e Estónia e vários outros sem grandes recursos naturais são exemplos de uma aposta forte e mundialmente reconhecida na qualificação dos seus recursos humanos. Para um país como Cabo Verde a escolha devia ser óbvia até porque praticamente não tem outros recursos. Infelizmente ficou-se por uma visão estreita que acabou por se fixar na massificação do ensino e por se preocupar fundamentalmente com o acesso, seja no básico, secundário e universitário. De acordo com o estudo do BM, ao nível secundário não se deu suficiente atenção aos resultados da aprendizagem nem às taxas de repetência e de abandono escolar. Ainda segundo o documento o sistema de formação profissional é fragmentado e funciona movido pela oferta, mas sem estar alinhado com as oportunidades de emprego e a procura do mercado. A exemplo de outros sistemas ligados aos recursos humanos pouca atenção é dada aos resultados em termos de qualidade e empregabilidade afectando directamente os muitos jovens que não terminam o ensino secundário e procuram outras alternativas. E sem uma parceria estreita com o sector privado a formação profissional fica na dependência de doadores para a sua sustentabilidade.

A prioridade de Cabo Verde devia ser a qualidade dos seus recursos humanos e nesse sentido primar pela excelência do seu sistema de ensino. Aliás, é o que se esperaria quando se escolhe como patrono do Dia do Professor o doutor Baltasar Lopes da Silva. Seguindo o seu exemplo em toda a gente e especialmente entre os jovens e os professores devia-se cultivar o gosto pelo estudo e pela procura de conhecimento. Este sábado, dia 23 de Abril, Baltasar Lopes completaria 115 anos e certamente que lá do alto gostaria de saber que os professores não só lutam pelos seus direitos e respeitabilidade da sua profissão como se posicionam na linha de frente do combate pela qualidade do ensino em Cabo Verde. Um combate que incentive a excelência, tanto na prestação do professor como do aluno, valorize o mérito e contribua para inverter a falta de qualidade no ensino que, segundo o estudo do Banco Mundial, também resulta de níveis baixos de qualificações dos professores.

Neste dia 23 de Abril, que é também dedicado ao Livro, devia-se renovar o esforço para acabar com a situação que vem de há mais de quatro décadas em que as crianças e jovens mal fazem uso de manuais e livros nos seus estudos. Aliás, várias gerações de professores passaram pelos mesmos constrangimentos e não é de estranhar que continuando a existir carências de manuais, livros e bibliotecas o gosto pela leitura esteja em queda livre. Urge quebrar esse círculo vicioso porque sem hábito de leitura e de estudo não há como o país realmente desenvolver-se e prosperar recorrendo ao único recurso que realmente tem que sãos os seus homens, mulheres, crianças e jovens. Para fazer isso, a vontade é apenas nossa assim como a responsabilidade de a não fazer. Projectos e milhões podem ajudar, mas só se existir vontade e perseverança para seguir esse caminho e um sentido de dignidade para não continuar na dependência dos outros. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1064 de 20 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 18, 2022

Democracia vs. autocracia

 

A resistência corajosa do exército e da população ucraniana à ofensiva russa tem sido servido de inspiração para muitos que se revêem nos ideais da liberdade e da democracia.

Na sequência de invasão e com as manifestações de solidariedade sem precedentes com a Ucrânia renovou-se a convicção de que os países democráticos devem responder com firmeza às incursões agressivas das autocracias. Em alguns sectores mais optimistas até se considerou que com a nova euforia à volta dos valores democráticos mesmo nas democracias seria possível pôr um travão ao avanço de forças iliberais tanto da extrema direita como da extrema esquerda, algumas delas com ligações ao presidente Putin. As eleições recentes na semana passada na Hungria e na França vieram, porém, demonstrar que a realidade é mais complexa do que se pensa.

É verdade que sentimentos de indignação e de solidariedade por causa da guerra têm estado na base da unidade de propósitos das democracias em matérias como sanções económicas e financeiras, apoio aos milhões de refugiados e fornecimento em tempo de armas para conter o ímpeto russo e eventualmente empurrar as suas forças para além das fronteiras internacionalmente reconhecidas. Seria um desenvolvimento extraordinário que esses sentimentos também tivessem um impacto na política interna das democracias, quase todas elas, em maior ou menor grau, com sintomas de crise no quadro do que se convencionou chamar de recessão democrática. As eleições referidas, que na Hungria deram a Viktor Orbán a sua quarta maioria folgada e na França colocaram a candidata da extrema direita, Marine Le Pen na sua melhor posição de sempre para a conquista da presidência na segunda volta, vieram desfazer qualquer ilusão a esse respeito.

Também nos Estados Unidos o apoio ao partido republicano não parece ter sido beliscado pela proximidade de Putin a vários dos seus dignatários, a começar por Donald Trump, nem por posturas populistas que contribuem para descrédito das instituições como as evidenciadas na confirmação pelo Senado da Juíza Ketanji Jackson. São exemplos que contrariam a hipótese aventada por alguns analistas de que a solidariedade com a Ucrânia fosse o ponto de partida para um novo entusiasmo pelos valores liberais, reminiscente dos anos 1989-90 da queda do Muro de Berlim e do fim do império soviético, que contribuísse para pôr um travão à deriva populista nas democracias.

A crise da democracia e das suas instituições têm certamente outras causas que levam as pessoas a não se sentirem representadas e a se verem impedidas de uma participação efectiva. A frustração e o ressentimento que daí resulta torna-as alvo de discursos políticos que em regra trazem à baila humilhações imaginárias, fomentam sentimentos anti-elitistas, alimentam teorias conspirativas e xenófobas e fazem apologia do chefe único, autêntico e cuja vontade confunde-se com a vontade do povo. Não espanta, pois, que regimes autocráticos estejam em ascensão e que mesmo nas democracias derivas iliberais sejam tentadas.

Vários desenvolvimentos recentes como a globalização, as novas tecnologias de informação e comunicação e as redes sociais facultaram às pessoas plataformas para interagirem, se informarem, produzir informação e se associarem numa escala nunca antes atingida. Se em termos globais os resultados da globalização têm sido extraordinários na diminuição do número de pobres e no aumento da riqueza produzida, a verdade é que tem aparecido disparidades enormes tanto à escala mundial como nacional e local. O resultado para uns tem sido degradação dos níveis de vida com diminuição do estatuto social e baixa de expectativa em relação ao futuro. Para outros é a marginalização económica e social com risco de serem apanhados nos círculos viciosos da pobreza e pobreza extrema. Ainda para muito poucos tem sido o acumular de uma fatia muito grande da riqueza nacional aumentando a desigualdade social e pondo em causa o contracto social.

O mal-estar, malaise, que é criado depois contribui para a violência social, a criminalidade, a corrupção, o cinismo na política e finalmente o descrédito das instituições. Aparentemente nem a situação de crise existencial como foi recentemente a pandemia da covid-19 consegue mobilizar a energia colectiva necessária para a ultrapassar com o menor custo possível. Em países como os Estados Unidos da América com quase um milhão de mortes em cerca de seis milhões em todo o mundo viu-se como a desinformação desenfreada, atitudes anti-ciência, boicotes de instituições, partidarização do uso de máscaras, teorias de conspiração contra vacinas terão contribuído para o que claramente configura como um numero excessivo de mortes. Ciente dessa situação certos países autocráticos fazem apologia do seu sistema político, supostamente mais eficientes e mais capazes na gestão das crises. Mesmo nas democracias já há forças políticas que abertamente clamam por restrições de direitos, limitações na independência da justiça e maior escopo de acção das forças de segurança para restaurar a ordem ou mesmo a “civilização”. Putin é popular nesses círculos.

Também em Cabo Verde os efeitos da crise da democracia se fazem sentir. Nota-se a erosão das instituições com particular enfoque no parlamento, mas afectando em maior ou menor grau os outros órgãos de soberania e as câmaras municipais. As crises sucessivas, as persistentes vulnerabilidades do país e a crescente dependência do Estado não favorecem um ambiente propício para se reverter a situação. Aos partidos políticos do arco do poder cabe uma maior responsabilidade. O problema é que afectados pelo populismo prevalecente dificilmente terão energia, motivação e foco para fazer o caminho inverso.

O PAICV provavelmente ciente que os desaires eleitorais em boa medida se devem a opções populistas na formulação de políticas e na escolha de dirigentes no seu congresso da semana passada optou por uma política mais conciliatória considerando os extraordinários desafios do país e uma nova abordagem na composição dos seus órgãos dirigentes. A recusa do presidente da câmara municipal da Praia em participar nos órgãos do partido assim reformulados poderá sugerir outros entendimentos e futuros problemas considerando que as eleições autárquicas em 2024 precedem as legislativas de 2026.

O MpD enquanto partido do poder estará sujeito a uma maior pressão para defender a sua actual maioria autárquica e concorrer para um terceiro mandato. Dificilmente a tendência será de mudar o que já existe. Quaisquer alterações de fundo provavelmente irão acontecer na convenção posterior às autárquicas de 2025 e não em 2023. De outros partidos, como a realidade eleitoral do país já demonstrou, fica-se em geral pelo mimetismo do que já se viu em política populista e se assistiu em alguns países.

O grande problema é que Cabo Verde com as incertezas actuais, a pesada dívida pública e os efeitos de crises sucessivas, seca, covid-19 e alta de preços de energia e alimentos não pode esperar para 2026 para melhor se ajustar para enfrentar os desafios. O caminho passará por aprofundar a democracia consciente de que há mais “que nos une do que o que nos separa”. Deriva autocrática é que não é solução. Os primeiros quinze anos de país independente foram elucidativos a esse respeito. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1063 de 13 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 11, 2022

Segurança, um activo estratégico

 

Na semana passada no âmbito de um seminário sobre “operações especiais de prevenção criminal” a Polícia Nacional veio confirmar a percepção de insegurança sentida no país e em particular na Cidade da Praia no ano de 2021. Segundos os dados apresentados pela PN, a criminalidade aumentou em cerca de 33% em relação ao ano 2020.

As razões, de acordo com o ministro da Administração Interna, têm a ver com “a retoma da vida social e económica e o aumento da conflitualidade social”. Entretanto, não se explicita que mecanismos, ambientes ou lugares são os mais propícios ao crime e como combatê-lo para evitar que o regresso a uma certa normalidade não se traduza logo no aumento da criminalidade.

Na comunicação feita ao público, as autoridades trouxeram à baila, talvez pela primeira vez, o papel das armas em circulação no país como um dos factores facilitadores do crime. O Procurador-Geral da República na sua intervenção considerou que o número de ocorrências criminais com armas de fogo é preocupante pela dimensão destas cidades e pelas dimensões do país. Dias antes, a 27 de Março, dois polícias tinham sido baleados quando responderam a uma ocorrência num dos bairros da capital. Na população há muito que existe a percepção do risco acrescido representado pelo uso de armas de fogo nos assaltos e em outros crimes. Não se viu ao longo dos anos o que deviam ser acções efectivas das autoridades em retirar armas da circulação. Menos ainda foi visto um esforço legislativo, regulamentar e operacional para desarmar a população a exemplo do que outros países fizeram quando confrontados com ondas de criminalidade violenta.

É notório o desencontro entre os dados oficiais da criminalidade e a percepção de insegurança pelos cidadãos. As pessoas sentem que há mais assaltos com armas de fogo, mas dos dados apresentados fica-se a saber que “no ano findo a PN apreendeu menos 81 armas artesanais do que em 2020, menos 69 armas convencionais e menos 5.660 munições”. Diz-se que os actuais dados da criminalidade, como que a contramão, interromperam o “ciclo de cinco anos (2016 a 2021), em que consecutivamente se registou diminuição acentuada das ocorrências criminais no país”. A realidade é que a percepção de insegurança persistiu ao longo dos anos com picos, por exemplo, em 2019 que levaram o então Presidente da República a chamar a atenção das autoridades no Dia de Defesa Nacional e na mensagem de Ano Novo para a necessidade de restaurar a tranquilidade e obrigou a embaixada americana a alertar os cidadãos americanos para o aumento de assaltos na Cidade da Praia.

Perante mais um aumento da criminalidade no país não se pode ficar pelo simples aprimoramento das abordagens anteriores que até agora não conseguiram diminuir a sensação de insegurança das pessoas. Segundo o ministro da Administração Interna, pretende-se pôr um foco nas operações especiais de prevenção criminal no quadro de uma estratégia de “frente e inovadora”, visando, sobretudo, a questão que tem que ver com as armas. Para o bem de todos é de desejar que desta vez tenham boa sorte em pôr em prática a estratégia. Um bom começo foi o encontro organizado para discutir essas operações especiais de prevenção do crime em que participaram magistrados do ministério público e magistrados judiciais. Espera-se que depois a responsabilidade pela insegurança não fique diluída nas justificações do tipo a polícia prendeu, mas o tribunal pôs em liberdade. Cabo Verde é um Estado de Direito democrático e todos querem ter a garantia que a polícia actua de acordo com a lei e no estrito respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e que os tribunais são independentes na administração da justiça.

A verdade é que ambientes facilitadores de crimes são por natureza complexos e nem sempre susceptíveis de serem tratados com certas abordagens policiais que fazem lembrar tácticas militares e provocam reacções negativas das comunidades. Em muitos casos depois de megas operações policiais não se vêem apreensões de armas ou de outros produtos ilegais e não se fazem prisões que justifiquem o aparato. A repetição dessas operações agrava a situação porque como não há colaboração das pessoas, não há trabalho prévio de inteligência e os eventuais infractores conseguem escapar, enquanto outras pessoas inocentes são apanhadas na rede e ficam ressentidas com buscas e inquirições que consideram despropositadas.

Constatações similares foram feitas noutras paragens a partir da implementação das políticas de tolerância zero ou da teoria de “broken-window” que levaram a situações de abusos de pessoas e hostilidade das comunidades visadas. Hoje, procura-se fazer uma intervenção mais compreensiva que não fica pela acção policial, envolvendo outras entidades, designadamente o poder local, a sociedade civil e também a própria comunidade. É entendimento de muitos que indo por essa via a acção policial na prevenção do crime ganharia muito em eficiência e eficácia. Os recursos são limitados e nem o uso da tecnologia via sistemas de videovigilância sofisticados pode compensar por deficiências de organização, de estratégia e de colaboração voluntária da comunidade e de outras entidades.

A segurança é um bem necessário e um activo estratégico para o desenvolvimento. Depende essencialmente da vontade do país para ser garantido. Recursos substanciais têm sido investidos no sector sem que haja diminuição da percepção de insegurança da população em particular nos centros urbanos. Com as incertezas do mundo actual o futuro vai depender muito da capacidade de se conseguir realizar o sonho de ter um país de paz e morabeza e aberto ao mundo. Para isso impõe-se uma maior atenção em relação à qualidade dos investimentos e à escolha dos objectivos e prioridades para o sector. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1062 de 6 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 04, 2022

Visão e perseverança

 

Os efeitos da guerra na Ucrânia já se fazem sentir terrivelmente nos preços de todos os produtos a começar pelos combustíveis e bens alimentares. Inaugura-se um novo período de preços voláteis em produtos essenciais devido a tensões geopolíticas e a escassez no mercado a ponto de ruptura de stocks por razões que têm a ver com a diminuição da oferta na origem e por constrangimentos logísticos no transporte e na distribuição.

A tendência para o aumento dos preços já vinha do período da pandemia da covid-19. A guerra, as sanções económicas e financeiras e as tentativas de isolamento da Rússia só a agravou. A crise económica assim gerada tem uma abrangência tal que não deixa nenhum país incólume. Num pequeno país insular e arquipelágico os efeitos tendem a multiplicar-se ainda mais.

Reconhecendo a nova realidade, o governo tomou algumas medidas para diminuir o impacto da subida dos preços dos produtos petrolíferos e alimentares entre as quais a suspensão temporária do mecanismo de fixação de preços dos combustíveis entre Abril e Junho. Nesse período vai-se manter o preço do gás butano e do combustível para a produção de electricidade, enquanto os outros produtos ficarão sujeitos a ajustes até 5%. Já na resposta à alta de preços devido à pandemia já se tinha tomado medidas no sentido da baixa do IVA para energia de 15% para 8%, e de majoração às empresas em 30% dos custos de energia e água e aumento da tarifa social de 30 para 50%. Não se sabe é até quando esta conjuntura de alta de preços vai durar e se haverá recursos que permitirão por tempo mais longo amortecer o choque do aumento dos preços.

Na resolução do governo está-se a contar com alguns mecanismos de compensação para o diferencial entre o preço real e o praticado incluindo impostos e eventual escalonamento e diluição do remanescente a pagar em doze meses. Prevêem-se outras medidas se não houver uma mudança da conjuntura, mas dificilmente vai-se evitar que os aumentos de preços, a persistiram, não serão repassados para os consumidores, afectando a economia no seu todo e diminuindo o poder de compra das populações. A questão que agora se coloca – perante o que claramente se configura como um choque externo que vem em cima de um outro, a pandemia da covid-19 – é em que medida o país se tem preparado para esse tipo de contingências.

É verdade que não era fácil prever a invasão da Ucrânia e o seu impacto no mundo, mas de há muito que se sabe da transição energética que deve ser feita para que as alterações climáticas já manifestas não ganhem proporções catastróficas. Noutros países esse processo é extremamente complexo e com passagens faseadas de carvão ou fuel para gás natural e depois para as energias renováveis. Em Cabo Verde, com o potencial existente na energia o solar e na eólica e a menor dependência numa industrialização de base em combustíveis fósseis, o processo poderia talvez ter sido mais directo e expedito. Vários foram os projectos virados para uso e exploração da energia do sol e do vento que tiveram financiamento ao longo de décadas. Os resultados é que são diminutos em relação aos investimentos feitos.

Segundo o governo, as renováveis constituem 18% da energia actualmente disponível, mas com os financiamentos já acordados com o Banco Mundial espera-se 30% em 2030, e a partir de 2030, 50%. Não se pode dizer que o que existe actualmente e mesmo o que se projecta para o médio prazo seja uma posição adequada ou confortável em termos energéticos, em particular para fazer face a eventuais choques externos. Faz falta uma estratégia clara e assumida por todos para se conseguir a maior independência energética possível. De há muito que isso devia ser óbvio, considerando os preços extremamente altos da energia que enfraqueçam o poder de compra das pessoas e que aumentam os custos das empresas e diminuem a competitividade do país. Acrescenta-se a isso o facto de a transição energética para as renováveis ser algo globalmente incontornável e quem primeiro por aí enveredar mais possibilidades teria de aproveitar as oportunidades abertas no novo mercado energético.

Não agindo de forma compreensiva para as energias renováveis acaba-se por ficar com uma espécie de manta de retalho de projectos que não “somam” para dar o resultado que devia ser expectável de tantos milhões gastos. Em 2010 foram cerca de 30 milhões de euros de uma linha de crédito português que foi investido em parques solares na ilha do Sal e em Santiago. Deviam “produzir 4% do total da energia que existe na rede, mas está a produzir cerca de 1,5% para rede” segundo o então director do CERMI numa entrevista a este jornal em Setembro de 2017. A Cabeólica que segundo o ministro da Indústria e Energia é responsável por quase 20% da energia consumida na rede tem parques eólicos em Santiago, S. Vicente, Sal e na Boa Vista e funciona com um contrato “take or pay” que muitos consideram oneroso para a Electra. Na comemoração dos seus dez anos não se ficou a saber se vai investir para alargar ou criar mais parques eólicos ou se vai continuar com o mesmo contrato, não obstante os efeitos da pandemia na economia e a alta de preços dos combustíveis fósseis. Até agora o consumidor cabo-verdiano ainda não sentiu os efeitos dos investimentos feitos nas energias renováveis nos preços de electricidade.

Também quando não há essa perspectiva abrangente fica-se com um handicap duplo. Nas negociações com os parceiros a tendência é para adoptar a agenda e as prioridades que acompanham a promessa de financiamento sem a devida interligação e encadeamento com o já existente criando ineficiências várias. Por outro lado, sem uma visão própria não se contempla soluções a partir de uma gestão criteriosa de recursos próprios como por exemplo quando a cooperação luxemburguesa teve que financiar painéis fotovoltaicos no valor de cerca de 15 mil contos para que a Assembleia Nacional pudesse poupar 27% da sua factura de energia eléctrica. O uso generalizado de energia fotovoltaica nos serviços do Estado há muito que deveria ter sido feito e com recursos endógenos. Afinal, os serviços funcionam principalmente durante o dia quando o sol brilha e os painéis podem produzir electricidade suficiente para as necessidades das instalações.

Os ganhos teriam sido múltiplos e transversais como por exemplo na factura paga à Electra que diminuiria, nos postos de trabalho para instalação e a manutenção que seriam criados para os jovens formados no CERMI e noutros centros em todas as ilhas e, possivelmente, em menos combustível importado. Considerando ainda o peso do Estado nas compras de painéis solares talvez outras entidades e particulares interessados acabassem por ser beneficiados com preços mais baixos desse tipo de equipamento. O exemplo do parque fotovoltaico da Caixa Económica que em seis meses poupou mil contos na factura da Electra como veio em 2019 relatado neste jornal é ilustrativo a este propósito. Não se tinha, de facto, de esperar por um projecto do Banco Mundial para fazer, com recursos próprios e para criar poupanças múltiplas e dinamizar uma actividade com futuro, o que há muito se deveria ter encetado em nome de mais segurança energética para o país e de uma energia mais barata para todos.

Como nas energias renováveis, também noutros sectores o país precisa engajar-se com agenda própria e prioridades bem definidas. Em certos domínios como segurança, educação com qualidade e sistema de saúde competente e eficaz, que são pressupostos indispensáveis para o desenvolvimento do país, nada pode substituir a vontade própria da nação e dos seus governantes em conseguir resultados significativos e sustentáveis. Ter visão própria e ser perseverante é fundamental para vencer a batalha do futuro nestes tempos de incertezas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1061 de 30 de Março de 2022.

segunda-feira, março 28, 2022

Crise, perigos e oportunidades

 A invasão da Ucrânia pela Rússia a completar quatro semanas amanhã, dia 24, desencadeou uma guerra brutal e destrutiva que não parece ter um fim à vista. A agressão contra a soberania e a integridade territorial da Ucrânia mereceu a condenação da generalidade dos países e provocou uma onda de solidariedade sem precedentes.

A perspectiva do conflito se prolongar ainda por mais tempo e potencialmente tornar-se ainda mais mortífera, seja nas batalhas urbanas para a conquista de cidades, seja num possível alastramento para um ou mais países, é motivo de profunda preocupação, particularmente quando as conversações em curso não deixam saber qual podia ser eventualmente uma saída a contente das partes. Entretanto, para esta sexta-feira, dia 25, o Papa Francisco num acto de profundo significado convidou todas as comunidades de fé a reunirem-se para uma prece pela paz na Ucrânia.

A bravura do povo ucraniano demonstrada na resistência à ofensiva russa e na defesa da liberdade e da democracia tem sido motivo de inspiração para muita gente. Já houve governantes em vários países que fizeram mudanças até há pouco tempo consideradas impensáveis nas políticas de sectores- chave como a energética, as relações externas e a defesa. Várias empresas multinacionais retiraram-se da Rússia por decisão dos seus corpos directivos ou por pressão dos consumidores. Personalidades e organizações da sociedade civil moveram-se decisivamente para bloquear a participação da Rússia em eventos culturais e desportivos. São exemplos de protagonismo surpreendente que fazem lembrar o que Albert Einstein teria dito que “no meio de cada crise encontra-se a grande oportunidade”, mas tendo em atenção o que para John Kennedy a palavra representa em chinês: perigo + oportunidade.

O perigo na crise da guerra da Ucrânia é visível na odisseia forçada de milhões de refugiados que o resto da Europa vai ter que absorver e amparar, na tragédia representada pelos milhares de mortos e pelas cidades destruídas e na possibilidade real de a guerra alastrar-se para outros países, não se excluindo mesmo uma escalada com utilização de armas nucleares. Também o perigo reside no impacto que estarão a ter as sanções económicas, financeiras e também culturais e desportivas lançadas contra a Rússia que efectivamente estão a torná-lo num estado pária e talvez mais perigoso, mas cujos efeitos fazem ricochete sobre quem as promove. É exemplo disso o aumento dos preços dos combustíveis, da energia, dos alimentos e da generalidade dos bens e serviços que na Europa e na América têm contribuído para taxas de inflação de respectivamente 5,9% e 7,9 % que há décadas não se registavam nesses países. Nos países em desenvolvimento a pressão inflacionista é, em muitos casos maior, e o mais natural é que venham a sofrer ainda mais com a elevação das taxas de juro e outras medidas de política monetária que já estão a verificar-se nos países do Ocidente para assegurar a contenção da inflação.

Aproveitar a oportunidade, ou seja, tudo fazer para conseguir resultados positivos ao mesmo tempo que se mantém consciente do perigo deve ser a atitude a adoptar quando se enfrenta qualquer crise. Como disse bem o antigo presidente da câmara municipal de Chicago, Rahm Emanuel, não se deve desperdiçar uma crise. Deve-se aproveitar para realizar coisas que antes não poderiam ser feitas. É o que se nota agora por causa da crise na Ucrânia e do seu impacto no mundo. Tem sido possível avançar com mudanças completamente inesperadas de políticas em vários domínios beneficiando do apoio popular que não se podia adivinhar à partida. Um caso paradigmático é o que está a verificar-se na Alemanha.

Também é o que acontece, como reconhece Francis Fukuyama num ensaio publicado no Financial Times de 4 de Março, quando a agressão russa na Ucrânia veio relembrar as pessoas das consequências de viver em ditaduras iliberais em que não há liberdade, não se respeitam os direitos fundamentais, os governantes não são escolhidos pelo voto livre e plural e não se instituiu a independência dos tribunais e o primado da lei. A complacência, que de algum tempo vem reinando em muitas democracias perante a erosão dos valores liberais sob os ataques do populismo tanto da direita como da esquerda, segundo este cientista político, poderá estar, com o exemplo da coragem dos ucranianos, a ceder lugar a uma maior consciência da importância da defesa dos valores liberais e ao renovar do espírito de 1989-90 que levou à queda de regimes autoritários e totalitários em todos os continentes.

A consciência dos perigos que acompanham as crises nem sempre é clara e presente. Em consequência fica mais difícil reconhecer que se está a caminhar para pontos de não retorno e tomar as medidas necessárias para os evitar. Muito menos há predisposição para identificar realidades emergentes e as oportunidades que podiam ser aproveitadas. Um exemplo claro disso são as alterações climáticas em relação às quais se está ainda longe de adoptar as medidas conjuntas que se impõem para enfrentar uma ameaça à escala planetária. Aliás, nem mesma a pandemia do SARS-CoV-2, com os seus seis milhões de mortos e quase quinhentos milhões de infectados conseguiu-se evitar o egoísmo e a falta de solidariedade e inculcar o sentido de urgência que a situação requeria. A crer na mensagem que o recente filme da Netflix “Não Olhe para Cima” quis passar, também uma colisão com um asteróide não seria suficiente para focar a atenção das pessoas nas ameaças existenciais que poderão surgir. A invasão da Ucrânia veio mostrar que talvez não seja bem assim.

Em Cabo Verde, da mesma forma, as crises sucessivas não têm servido para se procurar identificar as razões por que não se consegue sair do círculo vicioso que reproduz a precariedade e a vulnerabilidade das populações e do país. As crises em geral tomam a forma de secas que podem durar um ou mais anos ou de choques externos como aconteceu com a crise financeira, a pandemia do coronavírus e agora a guerra na Europa. Em geral, os efeitos das crises são mitigados pela ajuda externa e nesse quadro são regularmente implementados programas de luta contra pobreza cujos resultados não se têm revelado sustentáveis. O país com poucos recursos e pequena população não tem conseguido criar uma estrutura produtiva capaz de efectivamente combater o desemprego, não obstante os enormes investimentos feitos e a grande dívida pública acumulada.

Como não se fica a saber das razões, também não se aproveitam as oportunidades que surgem nas crises para se fazer outras abordagens dos problemas do país, encetar reformas e mudar a atitude. Com o passar dos anos, depois de esperanças goradas postas em clusters, hubs, plataformas e outras iniciativas que supostamente seriam o caminho para a prosperidade do país acaba por prevalecer a ideia que é o sector público o único que parece oferecer menos risco e mais estabilidade de rendimentos. O turismo tem peso, mas como a pandemia acabou por provar que é demasiado sensível a choques externos. Não estranha, pois, a que a dependência do Estado tende a aumentar mesmo abarcando o sector privado que supostamente deveria ser o motor da economia e a base de uma sociedade civil autónoma e interventiva.

Com o reforço do sector público, mais dependência do Estado e menos recursos para dividir, poucos incentivos existem para quebrar o círculo vicioso. Reconhecer que se está a governar na crise, a pior das últimas décadas, talvez possa ser um bom ponto de partida para novas abordagens, para convergências mais profícuas e duradoiras e um foco maior no que é prioritário e serve para construir um futuro com mais sustentabilidade. Os tempos e os exemplos que vêm de fora da luta pela liberdade e democracia deixam perceber que é possível a união e a solidariedade necessárias para se ultrapassar qualquer crise. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1060 de 23 de Março de 2022.

segunda-feira, março 21, 2022

Priorizar o interesse colectivo

 Como fazer para desenvolver Cabo Verde é a grande questão sempre colocada por gerações e gerações de cabo-verdianos ao longo dos séculos. Durante todo esse tempo, recomendações, sugestões e palpites sucederam-se na busca de respostas.

Grandes planos, projectos e programas foram implementados por sucessivos governos na perspectiva de ultrapassar os obstáculos existentes e quebrar o círculo vicioso da miséria reinante no arquipélago. Claramente que, não obstante os progressos feitos, se ficou muito aquém da tarefa. Os dados de hoje da pobreza e da extrema pobreza, de vulnerabilidade e precariedade social, de fragilidade e não diversificação da estrutura produtiva e ainda quanto ao montante da dívida pública são elucidativos a esse respeito. Tempo talvez para se fazer outras abordagens e rever ideias fixas sobre Cabo Verde, cuja realidade de país arquipélago, relativamente remoto, pobre em recursos naturais e escassa população nem sempre se tem em devida conta.

A urgência na procura de vias alternativas de desenvolvimento aumentou nos últimos tempos em que o mundo ganhou maior complexidade e tornou-se mais imprevisível, primeiro com a pandemia do SARS-CoV-2 e agora com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Já de há algum tempo, pelo menos desde a crise financeira de 2008, que a globalização da economia mundial, com as oportunidades múltiplas que abriu nas três décadas passadas, designadamente para países em desenvolvimento, vinha perdendo impulso. É provável que o processo esteja a acelerar na actual conjuntura internacional e a abrir caminho para rearranjos nas relações económicas internacionais que à partida não se sabe se serão mais ou menos favoráveis para os pequenos países como Cabo Verde. Na nova realidade que se desenha não se pode, sob pena de se ficar ainda mais para trás, deixar de proceder a reflexões mais aprofundadas sobre os constrangimentos que até agora têm limitado o desenvolvimento e mantidas as vulnerabilidades do país.

Não se deve ficar tentado repetir o que é essencialmente o mais do mesmo apesar de aparentar ser diferente. Não augura que se esteja realmente a mudar quando, por exemplo, ainda se conjectura o uso de terrenos noutros países para cultivo numa perspectiva de segurança alimentar como aconteceu no passado com os terrenos do Paraguai, da Guiné-Conacri e de Angola. Ou quando ainda não se deixou de acumular dívidas com a TACV – mas continua-se a falar em reactivar o hub do Sal como se nada tivesse acontecido na aviação comercial mundial – ou de se pôr a hipótese do regresso ao mercado doméstico, não obstante se ter convidado um operador para fazer serviço público na ligação entre as ilhas. Ou ainda quando se insiste na ideia “estafada” de ser porta de entrada de outros países para a África Ocidental mesmo com o facto presente de que Cabo Verde não consegue nas importações e exportações com a região ir além dos 5% do seu comércio exterior.

Também devia-se relegar para um outro plano essa tendência de mimetismo ou de replicação das mesmas iniciativas em todos os pontos do país. Apresentadas como criativas pelos seus patrocinadores, na prática fazem esquecer que Cabo Verde, apesar de ter nove ilhas habitadas, é um único país. Por outro lado, desincentiva-se a exploração da diversidade que potencia a participação das ilhas na criação da riqueza nacional. Nessa onda de suposta criatividade que do Carnaval passou para pólos universitários e até já se quer criar zonas económicas especiais em todos os pontos do país. É o modismo a substituir as razões de fundo por que são criadas zonas económicas especiais.

ZEEs em vários países surgiram como entidades que entre outras coisas facilitam a atracção do investimento directo estrangeiro, o aumento das exportações, a transferência de tecnologias e processos de produção e a criação de emprego massivo. Beneficiam de ambiente de negócios propício que pode incluir incentivos fiscais, acesso a propriedade, novo regime laboral e facilidades administrativas que não existem em outros pontos do país. O sucesso das zonas especiais como se pode constatar em países como as Maurícias, a China e Bangladesh é maior quando a partir do que é o investimento para exportação de bens e serviços se consegue conectar com empresas nacionais que fornecendo bens intermediários ou serviços diversos directa ou indirectamente beneficiam do acesso a mercados externos em expansão, arrastando no processo vários sectores da economia. É evidente que não podem ser ao mesmo tempo excepção e regra. Nem na China depois de 40 anos se alargou o conceito para todo o país. Como campos de experimentação de políticas viradas para maior eficiência, competitividade e crescimento e criação de emprego precisam ser circunscritas antes de algumas medidas serem aplicadas de forma generalizada.

É talvez a falta de foco nos resultados que justifica o mimetismo e a falta de criatividade nas propostas e iniciativas apresentadas em nome do desenvolvimento e da luta contra a pobreza. É nesse sentido que, por exemplo, a comunicação na esfera pública é pontuada por expressões como empoderamento, empreendedorismo e resiliência. Gastos em meios, formações e actos de socialização de estudos e documentos são desfilados ininterruptamente. Mas fica-se em geral por saber que mais produtos foram vendidos, que mais mercados foram criados ou alargados, que empregos permanentes passaram a existir e que impacto nos rendimentos e na qualidade de vida das pessoas se conseguiu de todo o investimento feito. Certamente que efeitos positivos existem, mas não se põe suficiente ênfase nisso, como se os ganhos maiores estão no acto de anunciar, patrocinar, financiar e inaugurar.

A persistente precariedade e vulnerabilidade das populações depois de vários programas de milhões de dólares gastos na luta contra a pobreza mostra o limite de uma abordagem de desenvolvimento que tendencialmente quer fazer crer que toda a gente é empreendedora e é capaz de criar o seu próprio emprego. Pode até prestar-se como uma espécie de paliativo para os problemas do momento, mas não deve substituir o esforço para se conseguir crescimento económico que traz prosperidade e suporta com sustentabilidade os mecanismos da redistribuição dirigidos para os vulneráveis e para os mais pobres. As prioridades devem ser outras na sua definição e não devem orientar-se por objectivos e metas que, findos os projectos e perante qualquer choque económico ou choque externo, imediatamente mostram que não são sustentáveis.

Os desafios e incertezas que se colocam neste momento são de uma gravidade sem paralelo em que a hipótese de guerra e de disrupção na logística de alimentos e de combustíveis não está excluída. Não é tempo para simplesmente se ir ao sabor do que ao país é oferecido. Há que definir prioridades, que focar nos resultados e construir resiliência sem comprometer a eficiência na utilização dos recursos disponíveis. Mais do que nunca o interesse colectivo deve sobrepor-se aos ganhos políticos individuais. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1059 de 16 de Março de 2022.

segunda-feira, março 14, 2022

O emergir de uma nova ordem mundial

 

Catorze dias pós a invasão da Rússia, parece não haver qualquer dúvida que se está a presenciar a emergência de uma nova ordem mundial. Pôs-se em movimento algo cujas consequências provavelmente não se tinha previsto, mas que não vai parar.

E é assim porque a Ucrânia invadida tem resistido heroicamente e 143 entre 190 países nas Nações Unidas já condenaram a agressão. Sanções económicas e financeiras nunca antes implementadas foram montadas para forçar a retirada das tropas russas. Países como a Alemanha, a Suécia e a Finlândia mudaram política externa e de defesa e pela primeira vez a própria Suíça não ficou neutra. Manifestações contra a guerra acompanhado de gestos de solidariedade têm sucedido por quase todo o mundo.

Nunca antes se viu tal convergência de vontades em condenar o que claramente é um ataque gratuito, não provocado de um país a outro e, pior, sem que se descortine qual seria o real objectivo. Em consequência, assiste-se a um processo de isolamento da Rússia à medida que é cortada das redes financeiras e bloqueada nas importações e exportações, impedida no acesso a bens de capital, bens intermédios e matérias-primas e ainda boicotada nos negócios por uma multitude de empresas e nas vendas por consumidores indignados. A persistir por mais dias e meses não será certamente algo fácil de inverter. Pelo contrário, será de o aprofundar até porque não se consegue descortinar qual seria uma estratégia de saída que, adoptada, salvasse a face do regime autocrático da Rússia.

Nesse sentido, ao procurar subtrair-se ao isolamento, poderá ter a tentação de se aliar a países com interesses comuns nas disputas com os países democráticos do Ocidente e acelerar a tendência de compartimentação nas relações de comércio internacional com blocos de interesses distintos e antagónicos análogos aos existentes no passado com o primeiro, o segundo e o terceiro mundo. A acontecer seria uma mudança de 180 graus no processo de globalização que depois do fim do comunismo e da derrocada do império soviético acelerou e integrou a China e outros países antes à margem da economia mundial, criou cadeias de valor globais e facilitou a movimentação livre de capitais. Sinais de recuo na globalização já vinham de antes e é natural que com o choque aberto entre os países democráticos do Ocidente e os países autocráticos se note uma aceleração do processo.

Vários factores têm contribuído nestes últimos anos para esse repensar da globalização entre os quais as desigualdades sociais reveladas pela crise financeira de 2008, as rivalidades entre países intensificadas com a ascensão da China à posição de segunda maior economia do mundo e mais recentemente o ressurgimento do proteccionismo devido à pandemia do Sars-cov-2. Em consequência de há algum tempo para cá que em alguns países se nota pressão para se “reindustrializar”, aumentar tarifas e proteger indústrias nacionais. A pandemia com os confinamentos, o fechar de fronteiras e açambarcamento de produtos essenciais exacerbou essas tendências. A guerra na Ucrânia, ao deitar abaixo a crença de que, com interdependência económica e vantagem mútua em manter cadeias de valor globais, países com regimes políticos diferentes poderiam resolver as suas diferenças e rivalidades sem recorrer à agressão militar, deu-lhes um impulso maior.

O mais natural é que o processo de “decoupling”, ou dissociação das economias de várias países e regiões do mundo, venha ser acelerado à medida que cadeias de abastecimentos sejam revistas, certas indústrias sejam repatriadas e a procura de independência energética obrigue a apostas em fontes seguras. Imagine-se o efeito que todo esse reconstruir das relações económicas irá ter sobre vários países, muitos deles pobres e sem possibilidade de acesso directo aos grandes mercados e que por isso têm procurado integrar cadeias de valor globais para se desenvolverem. Se se acrescentar ainda uma possível diminuição na disponibilidade de ajuda externa com os esperados aumentos nos orçamentos de defesa e nas despesas extraordinárias para se fazer face aos estragos resultantes da guerra particularmente na Europa, o grande desafio dos países menos desenvolvidos será saber como se reposicionar para continuar a ser útil e beneficiar de vendas de bens e serviços na nova ordem internacional.

O FMI já veio dizer em comunicado da semana passada que a guerra na Ucrânia e as sanções impostas à Rússia vão ter um forte impacto na economia mundial. Acrescenta também que o choque nos preços irá afectar especialmente os pobres para quem alimentos e energia constitui a fracção maior das despesas. O FMI aconselha ainda que via política orçamental se procure apoiar os mais vulneráveis e amortecer o aumento do custo de vida. Em Cabo Verde os alertas do FMI vêm em boa hora porque, de facto, o momento exige outras ponderações na definição das prioridades nacionais e não é muito visível pelos discursos dos diferentes actores políticos, ainda dominados por reivindicações de uns e promessas de outros, que o país tenha realmente consciência dos extraordinários desafios que se colocam actualmente.

Secas repetidas e subsequente revelação da precariedade e vulnerabilidade das pessoas em particular nas zonas rurais não foram suficientes para mudar a atitude e enfrentar os problemas do país de uma outra forma. Veio a pandemia e, não obstante todas as dificuldades, a contracção violenta da economia e as incertezas quanto à retoma, a abordagem dos problemas do país continua basicamente a ser a mesma. Agora há um terceiro choque com a guerra na Ucrânia e as suas consequências e não se nota ainda disponibilidade para realmente se pensar o país de uma outra forma. Aparentemente não se vê que se está a viver o fim de uma ordem internacional e o emergir de uma outra cujos os contornos ainda não se consegue discernir completamente.

Momentos como os actualmente vividos são propícios para o surgimento ou a revelação de lideranças inesperadas como já se constata em alguns países nas viragens políticas surpreendentes verificadas nos últimos dias. A mais extraordinária de todos é a do presidente Zelensky da Ucrânia que com bravura e tenacidade tem inspirado o seu povo e conquistado a admiração do mundo. É de se augurar que também em Cabo Verde se se liberte do estilo de liderança do “mais do mesmo” para que o país possa ser conduzido a um bom porto neste momento charneira do mundo em que uma ordem mundial liberal cede lugar a uma nova com todos os desafios, dificuldades e oportunidades que pode vir a representar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1058 de 9 de Março de 2022.

segunda-feira, março 07, 2022

Solidariedade com a Ucrânia

 

A Rússia invadiu a Ucrânia na quinta-feira, dia 24 de Fevereiro. O que já se vinha esperando há algum tempo, mas com esperança que não acontecesse acabou mesmo por se verificar. O choque foi geral com manifestações de repúdio e consternação em todo o mundo, incluindo na própria Rússia.

A resistência surpreendente que a nação ucraniana, as forças armadas e o presidente Volodymyr Zelensky vêm oferecendo à agressão das tropas russas tem galvanizado a opinião pública internacional com efeito directo no posicionamento dos estados democráticos em reacção à violação da integridade territorial da Ucrânia.

As sanções económicas e financeiras que já tinham sido estabelecidas ou aventadas pela União Europeia, os Estados Unidos da América, o Japão e outros países foram radicalmente agravadas. A ajuda militar de armamento avançado e outros equipamentos aumentou extraordinariamente com a contribuição de vários países. Rapidamente se pôs de pé a logística necessária para acolher e apoiar refugiados ucranianos, na maioria mulheres e crianças. Como consequência da resistência ucraniana e do esforço concertado dos países democráticos e de organizações internacionais em fazer da Rússia um país pária, em quase uma semana depois da invasão, já se tem como certo que Putin falhou nos seus cálculos.

É verdade que a guerra vai continuar e provavelmente vai-se tornar mais brutal, mas dificilmente se irá ver uma Ucrânia ocupada, submissa e alinhada com os interesses do governo autocrático russo nos moldes do que já acontece com a Bielorrússia. Em vez de estados tampões como almofadas de segurança à boa maneira dos arranjos geopolíticos do passado, a Rússia autocrática presidida por Putin vai ter que se preocupar com uma NATO talvez nunca antes tão unida e tão predisposta a assumir-se como força dissuasora de agressões contra os seus membros.

Um sinal claro de que mudaram os tempos foi a decisão da Alemanha tomada no domingo de fazer uma reviravolta na política externa e de defesa que vinha desde o fim da segunda guerra mundial. Além de suspender o gasoduto Nord Stream 2 que deveria fornecer gás russo à Europa e de dar o seu acordo para impor restrições de acesso ao SWIFT a bancos russos, decidiu modernizar as suas forças armadas com um fundo de 100 mil milhões de euros e aumentar de forma permanente as suas despesas militares para mais de 2% do PIB. De imediato prometeu enviar material militar letal para a Ucrânia.

Os cálculos do presidente russo parecem também ter falhado em relação às sanções. Pensou que as podia contornar, mas quando os bancos centrais da América e da Europa e de outros países moveram-se para limitar o acesso às suas reservas externas em dólares, euros e iene a queda do rublo russo foi imediata. Na sequência tem-se visto escassez de bens e alta de preços afectando directamente os consumidores, quebra na actividade económica e constrangimentos sérios no acesso à tecnologia, bens de luxo e produtos essenciais para produção, manutenção e renovação de equipamentos vitais em sectores-chave.

Um outro aspecto em que o cálculo de Putin poderá não bater certo é no tempo previsto para conseguir submeter a Ucrânia. Se deixa arrastar a operação militar com o seu cortejo de mortes e destruição num quadro de crescente isolamento do país, instabilidade monetária e escassez de tudo poderá ser obrigado a enfrentar as consequências da erosão do apoio das elites, de segmentos da população e das próprias forças armadas que nem sempre são fáceis de controlar. As incertezas daí advenientes não prognosticam nada de bom para os próximos tempos. A guerra pode intensificar e alargar-se para outros teatros e eventual confronto com a NATO ou acabar na sequência de uma reviravolta de políticas no Kremlin. Uma outra hipótese, talvez de menos custos, seria encontrar uma solução que, a exemplo do que aconteceu na Crise de Mísseis de Cuba em 1963, pudesse dar a todas as partes a possibilidade de salvar a face.

Desde os primórdios da segunda guerra mundial nos anos trinta do século passado que um regime autocrático não tinha recorrido à agressão militar para tentar neutralizar e submeter um país democrático. O choque sentido em todas as democracias tem a ver em grande parte com o facto de que não passava pela cabeça de ninguém que nos tempos actuais se fizesse uma tentativa violenta de atropelar os direitos fundamentais dos cidadãos e pôr em causa o Estado de Direito e a possibilidade dos povos escolherem livremente os seus governantes. A invasão da Ucrânia serviu de toque de despertar. A indignação sentida por todos vem do facto de abertamente e sem rebuços se estar a atacar a democracia no seu núcleo essencial.

A democracia é tida pela generalidade das pessoas como um dado adquirido da vida em sociedade. Por isso, é que não causa muita preocupação que não poucas vezes ela seja mais criticada nas suas insuficiências do que reafirmada nos seus fundamentos e procedimentos. Nos tempos de hoje considerados por alguns estudiosos de recessão da democracia até se assiste em certos momentos a acções sistemáticas de descredibilização das instituições vindas dos extremos do espectro político, mas também da classe política governante sem que sejam compreendidas como tais e contrapostas por ideias e práticas que renovam o consenso essencial à volta dos seus princípios e valores.

A complacência generalizada com os inimigos da democracia poderá talvez diminuir agora que se vê até onde pode ir a hostilidade em relação aos países democráticos. Já se sabia antes de casos em que houve financiamento de forças descontentes com a democracia, outros de interferências nas eleições e até de ataques cibernéticos para criar instabilidade política e social. Com a agressão militar à Ucrânia, constata-se que pode subir para um outro patamar e que nem o desenvolvimento de relação económicas internacionais de interdependência como forma de engajamento parece atenuar a antipatia e servir de dissuasor de actos hostis. O despertar das pessoas para essa realidade e o exemplo da resistência do povo ucraniano contra a tentativa de lhes roubar a liberdade e a democracia talvez agora mobilize vontades para contrariar a actual deriva das democracias para o populismo e para os ideais iliberais que minam o exercício da cidadania plena e alimentam a desconfiança e o ressentimento.

O ano de 2022 que se iniciou prenhe de incertezas e a meio de mais uma onda do coronavírus na variante Ómicron ficou ainda mais complicado com o conflito na Europa. O mais natural é que todos os constrangimentos tanto ao nível da inflação, como de escassez de bens alimentares e outros produtos, aumentos de custos de energia sejam maiores do que os previstos inicialmente. A acrescentar a isso é expectável que venha a diminuir os montantes para ajuda ao desenvolvimento no momento em que mais recursos poderão ir para o sector de defesa e que contribuições no âmbito da solidariedade internacional com os refugiados da Ucrânia e a reconstrução do país terão de ser feitas.

Para Cabo Verde provavelmente tudo isso poderá constituir mais um choque externo a acrescentar à pandemia da covid-19 e à seca que há quatro anos vem assolando o país. Mais uma razão para que o país face às incertezas procurar cada vez mais ganhos de eficiência na sua economia adoptando uma atitude de austeridade e solidariedade e uma cultura de resultados. O exemplo da luta do povo da Ucrânia pela liberdade e democracia perante perigos extremos deve reforçar em todos a importância de preservar o respeito pela dignidade humana em todas as circunstâncias. É a base para se almejar uma vida de paz, justiça e prosperidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1057 de 2 de Março de 2022.

segunda-feira, fevereiro 28, 2022

Nem quebrando tabus se ganha em clarividência

 

Denúncias de fome em Cabo Verde vêm sendo ouvidas num crescendo de há algum tempo para cá. Primeiro surgiram pontual e timidamente em embates políticos e sindicais de pouca monta, depois mais abertas e ousadamente nas redes sociais e mais tarde guindaram-se para a imprensa formal.

Agora parece que finalmente já estão no ponto de serem adoptadas como arma de arremesso político. Como é habitual na política cabo-verdiana quando questões de fundo e de importância são colocadas elas não são realmente discutidas com a seriedade que o respeito pelos factos, a busca da verdade e o foco no interesse geral exigiria. Na maioria dos casos passam simplesmente a integrar o arsenal que se utiliza nos infindáveis confrontos políticos. Exemplo disso é a questão da TACV e dos transportes aéreos que na sessão da Assembleia Nacional desta semana vai ser objecto de mais um inquérito parlamentar dos muitos que quando chega ao fim é como se não fosse e imediatamente se volta ao ponto de partida.

Falar da Fome em Cabo Verde sempre foi um tabu. Como ameaça existencial traduzida nos milhares de mortes que se seguiam às estiagens permaneceu bem viva na memória colectiva da nação. O tabu é não permitir que se confunda com qualquer situação de carestia e dificuldades da vida que conjunturalmente possam existir. Como hoje se reconhece em todo o mundo as fomes na história são feitas pelo homem. Ou seja, em geral não resultam de secas, mas sim de falhas de mercado ou da incapacidade ou falta de vontade dos governos em resolver a situação. Um exemplo disso é que aconteceu em Cabo Verde depois da fome de 1947. A atitude das autoridades mudou no sentido de garantir segurança alimentar e como resultado nunca mais houve fomes apesar das secas que se sucederam até agora.

Insuficiências alimentares em maior ou menor grau existiram e ainda existem em vários segmentos da população que se encontram em situação de pobreza ou de extrema pobreza. Agravam-se com as secas particularmente nas zonas rurais e devem merecer uma resposta compreensiva do governo no que respeita à garantia de rendimentos mínimos, acesso a alimentos e cuidados especiais dirigidos à população mais vulnerável. Num país com défice de produção alimentar e constrangimentos vários devido à insularidade e à pequenez da população, a intervenção do Estado é fundamental para fazer face às imperfeições e falhas de mercado não se excluindo à partida a subsidiação de bens básicos e de certos factores de produção, particularmente quando em presença de choques externos. De facto, nem sempre o mercado é resposta aos problemas e, além de se garantir acesso a alimentos a todos com tais medidas, há que acautelar outras consequências que sendo transversais podem fazer o país entrar numa espiral de alta de preços e salários, incomportáveis a prazo e prejudiciais para a competitividade do país.

A tentação de fazer aproveitamento político da memória das fomes em Cabo Verde é sempre presente. Antes a denúncia de fomes passadas serviu para o PAIGC se reivindicar como único representante das ilhas. Após a independência procurou-se legitimar o regime imposto, atribuindo-lhe o mérito de ter erradicado a fome quando, de facto, se deu a continuidade a medidas para garantir segurança alimentar com o apoio da ajuda internacional. Que tais argumentos já não tinham o peso de outrora viu-se quando nos anos noventa o então presidente da câmara de S. Vicente denunciou fome na ilha e foi tomada como mais uma excentricidade do político do que uma realidade que a ilha estaria a enfrentar. As pessoas sabem o que realmente significa declarar que há fome nas ilhas e a desesperança que tal perspectiva acarreta.

Não é à toa que só ultimamente é que se ousou trazer a questão para o espaço político. Percebe-se a tentação de aproveitar para ganhos políticos a fragilidade criada pela pandemia do coronavírus, ela própria uma ameaça existencial, que provocou uma contracção brusca da economia em cerca de 15% e expôs a precariedade e a vulnerabilidade da população. Ainda por cima nas condições actuais de incertezas de vária ordem e de constrangimentos diversos e de tensões geopolíticas graves em que as pessoas tendem a ficar mais ansiosas e frustradas na expectativa de uma retoma que por ora parece mais distante e menos linear. A verdade é que com isso não se vai conseguir pôr em causa a legitimidade de quem governa, mas vai-se adiar outra vez o debate crucial para o país. E devia ser de interesse de todos saber o porquê da persistência das vulnerabilidades na população, apesar dos milhões de dólares gastos em programas de luta contra a pobreza, e o que impede que se faça as reformas e os investimentos necessários para o país crescer mais e debelar o desemprego.

Varrer problemas para debaixo do tapete e concentrar-se no arremesso político parece ser o desporto nacional favorito. É o que se assistiu mais uma vez nesta semana da Língua Materna. Não há proposta de avanço que se faça para ampliar o conhecimento do crioulo que não é posto no contexto de uma luta identitária contra os que supostamente albergam algum “preconceito linguístico”. A eventual introdução do estudo da língua no 10º ano é por alguns visto logo como oportunidade “para ter um conjunto de alunos do 10º ano que são defensores acérrimos do crioulo e que irão defender o crioulo com unhas e dentes”. Ou seja, quer-se fazer de alunos previamente doutrinados combatentes de uma causa que provavelmente nem é de se ter nas escolas uma disciplina da língua materna, mas de fazer do crioulo a língua de ensino.

Está a ficar cada vez mais evidente que com a insistência na oficialização do crioulo o que realmente se pretende é sua introdução como língua de ensino. Diz-se que a maioria das competências técnicas do país em matéria linguística converge nesse objectivo e só se está à espera que os políticos o aceitem e ajam nesse sentido. De fora parece ficar o sentimento dos pais que todos os anos têm que se preocupar com a qualidade do ensino que os filhos vão receber nas escolas e também a expectativa da sociedade quanto ao retorno que o país vai ter do enorme investimento feito no sector crucial para competitividade e produtividade do país.

A urgência que se quer pôr nesta mudança sem cuidado aparente com o que se iria exigir em termos de preparação dos professores e manuais e outros recursos didácticos para ter resultados e qualidade no ensino ministrado mostra o quanto questões de qualidade e eficácia são sacrificadas em lutas identitárias que depois de uma forma ou outra têm tradução política. Também esbarra com a realidade inultrapassável de se ter o português como língua oficial. Ao roubar às crianças e jovens cabo-verdianas o único espaço, a escola, onde podem ter uma imersão completa na língua portuguesa, porque os professores falam crioulo e várias disciplinas são ministradas também em crioulo, limita-se efectivamente a possibilidade de ganharem o nível desejável de proficiência no uso do português. Certamente que os pais e de entre eles muitos dos “experts” vão querer arranjar alternativas em escolas privadas para os seus filhos como de há muito vem acontecendo. Prejudicados na carreira e na participação cidadã, ficam os que não têm nem meios nem contactos para isso.

Entretanto o país vai caminhando crispado com os confrontos políticos estéreis e sem ser demovido desse caminho já claramente desastroso nem por secas, pandemias ou quaisquer outras ameaças existenciais. Evocar o espectro da fome nestas circunstâncias é mais um fait divers que não altera praticamente nada. Quebra-se o tabu, mas não se ganha em clarividência e vontade para fazer das fomes, insuficiência alimentar e pobreza uma memória longínqua. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1056 de 23 de Fevereiro de 2022.