Com o ano de 2023 a chegar ao fim, a percepção no seu início, algo optimista, que podia ser o ano do regresso à normalidade acabou por dissipar. Os últimos desenvolvimentos, em particular depois do ataque horrífico do Hamas a Israel e subsequente invasão da Faixa de Gaza e sua destruição, adiam o regresso à alguma estabilidade e previsibilidade nas relações internacionais. O FMI já reviu em baixa o crescimento global para o ano de 2024 e as perspectivas de paz na Europa diminuem com a retomada da ofensiva russa e a fragilização do apoio ocidental à Ucrânia.
Entretanto a volatilidade dos conflitos no Médio Oriente ameaça a liberdade de comércio com impacto nos preços e na disponibilidade dos produtos em caso de limitação da circulação na região e no Canal de Suez. Os efeitos da taxa de juros instituída pelos bancos centrais para combater a inflação ainda não resultaram em matar o dragão inflacionário, mas não se exclui que podem vir a provocar uma recessão em algumas potências económicas. Junta-se a isso a questão do clima que se torna progressivamente mais premente. 2023 foi considerado o ano mais quente de que há memória e mesmo os compromissos tirados a ferro na COP24 em Novembro último não dão garantia que se pode reverter o processo de aquecimento global.
Vive-se, de facto, um ambiente que pode configurar um esfacelamento das relações internacionais com a emergência de potências regionais, a fragilização da liderança dos Estados Unidos e a perda de eficácia e credibilidade de instituições multilaterais. A par disso, ainda se nota o protagonismo mais robusto de entidades paraestatais e terroristas que se mostram militar e tecnologicamente preparados para provocar sérias disrupções como golpes de estado e guerra civil em África, ameaças de guerra no Médio Oriente e perturbações nas rotas marítimas no Mar Vermelho e no Corno de África. Paradoxalmente o que não se descortina é um esforço colectivo, em particular nas democracias, para conter a polarização da sociedade e a descredibilização das instituições e restaurar a confiança e o contrato social indispensável para enfrentar um mundo que corre a passos largos para a desordem. A surpreendente reivindicação da Venezuela por quase dois terços do território da Guiana é só um exemplo de outros apetites que uma derrocada da ordem liberal, a concretizar-se, poderá gerar.
Em Cabo Verde, durante o ano de 2023, o regresso à normalidade no pós- pandemia da covid-19 suportou-se em grande parte no crescimento do fluxo turístico que ultrapassou o nível pré-crise de 2019 e na performance da economia cuja taxa de crescimento se aproximou do potencial de crescimento do PIB. Persistem os problemas acumulados durante a pandemia de perda de rendimentos das pessoas agravados pela inflação provocada em grande parte pelas perturbações nas cadeias de abastecimento e o impacto da invasão da Ucrânia pela Rússia sobre os preços dos alimentos e dos combustíveis. A forma de lidar com a situação actual no país e as que eventualmente poderão vir no futuro próximo com os efeitos múltiplos e complexos da policrise é que não se ajustou.
A atitude geral continuou a mesma e as reivindicações aumentaram acompanhadas de greves nem sempre razoáveis. Quanto à abordagem dos problemas manteve-se, praticamente, na linha de sempre como se a sociedade e o país não tivessem pouco tempo antes passado por situações extremas derivadas da pandemia, do isolamento e da contracção violenta da economia. A diferença é que agora parece colorida pela agenda das instituições internacionais e dos doadores em matéria de transição energética, digitalização e combate às alterações climáticas e traduzida em frases motivacionais de governantes como “Clima e mobilidade eléctrica”. Até parece que a postura que, em geral se convencionou adoptar, é de “follow the money”, seguir o dinheiro. Nesse sentido não admira que, perante o anúncio de um novo compacto do Millennium Challenge Corporation, todo o país se regozije com a perspectiva de receber financiamentos sem que se note uma preocupação especial em questionar no que será aplicado.
Questionamentos, debates e responsabilização pelos resultados da implementação de políticas públicas significam estar na politica e a fazer política com sentido de salvaguardar o bem público e servir o interesse geral. A realidade é que a exemplo do que se passa em outras democracias a polarização extrema, o protagonismo excessivo dos políticos (titulares de órgãos de soberania, governantes, e líderes partidários) e desvalorização das instituições e das suas normas têm convergido para se criar um ambiente de soma zero em que cada um procura extrair o máximo para si próprio. Neste ano de 2023, tem-se notado a degradação nas relações entre os órgãos de soberania culminando em momentos de tensão desnecessária com afirmações de semipresidencialismo no regime parlamentar, contestação do princípio maioritário nas decisões parlamentares e disputas públicas de competência na condução da política externa.
Até se convocou um Conselho da República, um órgão de consulta do presidente da república, cujos pareceres só são públicos ligados a certos actos, com uma agenda de trabalho que sugeria que daí poderiam sair recomendações. Supõe-se que seriam para Assembleia Nacional, quanto à comemoração de datas nacionais e de centenários, e para o governo, quanto à relação com o PR. Em Novembro, a aprovação de uma lei de bases do orçamento municipal na Assembleia Nacional foi condicionada pela lealdade de deputados da maior força da oposição para com a interpretação conveniente de uma norma por um presidente da câmara. Era evidente a desconformidade completa dessa interpretação com a prática de mais de trinta anos do Poder Local e com a Constituição que estipula a existência de um órgão executivo colegial responsável perante a assembleia eleita. Parece prevalecer o eleitoralismo como forma de fazer política e daí a preferência por medidas de curto prazo e de impacto imediato sem grande preocupação por fazer reformas de fundo e também por cumprir rigorosamente com as normas constitucionais.
É claro que fixar na gestão do dia-a-dia e no empurrar com a barriga colorida por tiradas narcisísticas e protagonismos deslocados não deixa o país nem preparado para responder aos desafios actuais, nem muito menos para os que já se vêem a subir acima da linha do horizonte. De facto, em 2024, a guerra na Europa pode tomar uma feição mais perigosa e o Médio Oriente corre risco de um conflito alargado com implicações graves na economia mundial. A liderança americana indispensável para se manter a ordem liberal está a enfraquecer-se com custos reputacionais de um apoio quase sem restrições a Israel. E no caso de Donald Trump ganhar as eleições do próximo ano poderá enfraquecer ainda mais ou mudar o seu foco.
São razões mais do que suficientes para se pensar Cabo Verde de uma outra forma, consolidar as instituições e assumir a atitude adequada para potenciar no máximo os recursos do país em particular o seu capital humano. Num mundo complicado a fechar-se em muros nem a emigração se pode tomar por garantido.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1152 de 27 de Dezembro de 2023.