De tempos em tempos questões à volta da eficácia da justiça vêm à tona. Às vezes são trazidas por utentes, políticos, académicos, advogados e pelos próprios magistrados. Outras vezes por acontecimentos, posicionamentos e decisões com elementos conflituantes que precisam de ser dirimidos. Desta vez surge na sequência de uma entrevista do presidente do supremo tribunal da justiça (STJ) à rádio pública em que afirma que o excesso de garantias é um dos factores que também contribui para a morosidade da justiça. A ordem de advogados respondeu com um comunicado dizendo que a morosidade da justiça não reside na diminuição das garantias processuais, mas sim na melhoria estrutural e funcional do sistema judiciário.
Subjacente a todos os momentos em que se verificam desencontros de opinião quanto às causas da morosidade da justiça está a preocupação geral com o facto conhecido de que a “justiça que tarda, falha”. E numa comunidade que quer viver em liberdade, na paz e em democracia não se pode ter a percepção de que a justiça falha, que não é eficaz e não serve a todos. Por isso mesmo é que em tempo útil deve-se assegurar que conflitos de interesses são dirimidos, que os direitos dos cidadãos são protegidos e que são reprimidos quaisquer atentados à legalidade democrática. Como conseguir isso é o grande desafio que se põe em particular às sociedades democráticas para que, como dizia Martin Luther King Jr., se continue a acreditar que “o arco do universo moral é longo, mas inclina-se no sentido da justiça”.
A consecução da justiça justa pretendida por todos implica que os tribunais sejam independentes, os juízes sigam a lei e a sua consciência e que se respeite o due process of law, ou seja, se respeite estritamente os processos e procedimentos ao longo de todo a investigação, acusação e julgamento dos casos. Vital para o sistema é que haja meios necessários para o seu funcionamento e que as partes que o compõem contribuam de forma efectiva para se ter resultados em tempo útil. Obter a cooperação das partes, conciliar interesses dos vários operadores e evitar corporativismo das classes profissionais e também interferências políticas é crucial.
Inevitavelmente tensões entre as partes acabam por surgir e reclamações de operadores e dos utentes vão-se ouvir. A isso seguem-se propostas de mais meios e de reformas para ultrapassar os problemas, acompanhadas ou não da tentação de pôr a culpa das falhas sobre uns e outros. O caso actual que levou ao comunicado da ordem de advogados é ilustrativo a esse respeito. De facto, é parte de um debate que se repete várias vezes aqui e noutras paragens. Por exemplo, em Portugal, o actual presidente do STJ, Henrique Araújo, em entrevista ao jornal Observador também disse que “há um excesso de garantias de defesa. Há muitas possibilidades de parar um processo através de manobras dilatórias”. E se “se quer ter uma justiça mais célere, terá de reduzir as garantias de defesa dos arguidos para encontrar um melhor equilíbrio entre a eficácia e os direitos dos arguidos”.
Propõe-se maior eficiência processual para ultrapassar isso. Nesse quesito o legislador tem o papel central, mas é uma matéria sensível. Particularmente num país onde depois de duas ditaduras sucessivas, antes e após a independência, tem especial sensibilidade em relação a qualquer limitação nas garantias de defesa.
Outros factores poderão contribuir para melhorar a eficácia da justiça como sugere a ordem dos advogados. No comunicado divulgado há uma referência à necessidade de adopção de uma cultura de trabalho e orientada para produção de resultados. Acrescenta-se ainda que os magistrados devem trabalhar, no limite das suas possibilidades, para evitar que os prazos sejam ultrapassados”. Mais meios e uma capacitação superior para a investigação dos crimes também é sentida como fundamental para garantir aos cidadãos que a justiça está realmente a funcionar e que podem nela confiar. E como os meios não são ilimitados, particularmente num país de parcos recursos, a cooperação entre os vários operadores, especialmente entre as diferentes polícias, é essencial para se conseguir resultados em tempo útil.
Ainda factores de uma natureza diferente poderão afectar a percepção dos cidadãos quanto à credibilidade e eficácia da justiça. Nesse sentido, considerando o papel do poder judicial no controlo da legalidade e de actos dos poderes executivo e legislativo e o facto de não ser eleito e não ter meios próprios, é de maior importância garantir que não há interferência dos outros poderes na sua actuação. Não é aconselhável que se caminhe nem para a judicialização da política, nem para a politização da justiça.
A realidade, porém, é que, com o aprofundamento da crise das democracias e a falta de diálogo e de capacidade de negociar e firmar compromissos, é cada vez maior a tentação de mobilizar os tribunais para forçar a prestação de contas, livrar-se de adversários inconvenientes e ultrapassar bloqueios políticos. É um fenómeno que está a manifestar-se em várias democracias que, em certas situações, ajudaram a contornar crises como no Brasil (Bolsonaro) e no Reino Unido (Boris Johnson). Noutras situações, pelo contrário, levaram, como nos Estados Unidos, a meio de múltiplas acções judiciais contra Donald Trump, ao condicionamento efectivo do processo eleitoral para as eleições presidenciais.
Tudo isso é acompanhado de descrédito das instituições da justiça como se constata em relação à perda progressiva de prestígio do supremo tribunal dos Estados Unidos nestes últimos anos. Em Portugal a queda do governo de maioria absoluta na sequência de actuações do ministério público provocou reacções de vários sectores da sociedade que no manifesto dos 50 chegam ao ponto de dizer que “a justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos”. Também em Cabo Verde, pouco depois da câmara da Praia ter sido objecto de buscas e apreensões realizadas pelo ministério público e do aproveitamento político do facto pelos partidos, é o próprio presidente da república que chama a atenção para a judicialização da política, talvez não do melhor palco, num discurso no Dia do Município da Praia.
Face ao que se vem constatando nas democracias em que a crise vem polarizando cada vez as posições e tornando difícil o debate político é de maior conveniência que se procure manter um nível de integridade do poder judicial. Para isso é de maior importância procurar garantir-lhe os meios necessários para o seu funcionamento e avançar com reformas e inovações que melhorem de forma significativa a sua eficácia. Também é fundamental que as magistraturas desenvolvam uma cultura de trabalho e de responsabilidade que, por um lado se traduza numa justiça célere, competente e justa e, por outro, se mostrem capazes de resistir às tentativas de politização da justiça. Há que garantir que em todas as circunstâncias saberão orientar-se pelos princípios e valores constitucionais e a administrar a justiça em nome do povo, aplicando a lei democraticamente aprovada.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1173 de 22 de Maio de 2024.