segunda-feira, outubro 28, 2024

Humildade e ousadia, as qualidades de um estadista

 Com a constatação pelo Nobel da Economia Daron Acemoglu de que o “sucesso das sociedades depende da qualidade das instituições” ganha especial importância o respeito pelas normas e o cumprimento dos procedimentos democráticos como forma de as legitimar e de as manter credíveis. Há, de facto, um ethos e uma ética a ser exigidos para que efectivamente se considere estar a trabalhar para o bem comum e para a consecução do interesse público. Em particular dos actores políticos, espera-se que na sua actuação, tanto no processo de conquista do poder, como no cumprimento do mandato enquanto governo ou oposição procurem salvaguardar a ordem constitucional e a confiança dos cidadãos no sistema democrático como pressupostos básicos para um futuro de sucesso.

Infelizmente, vão no sentido contrário as actuais tendências de políticos a querer agir como celebridades, em demonstrações muitas vezes desabridas de narcisismo, e a fazer da política mais um espectáculo para suscitar emoções do que como processo para visionar, decidir e agir. Justifica-se essa opção como exigência dos tempos actuais. Diz-se que a atenção das pessoas é mínima, a atracção pelo que choca e entretém é maior e que se tende a confundir o quebrar das regras, dos costumes e da própria legalidade com demonstrações de autenticidade e de uma certa masculinidade. A verdade é que há quem ganhe eleições indo por esses caminhos e nota-se que cada vez mais partidos e personalidades deixam-se resvalar para esse tipo de mobilização política.

O problema é que tais práticas ao minar a confiança nas instituições limitam a própria eficácia das políticas a serem implementadas no âmbito do mandato recebido nas urnas. O mal-estar socio-económico que acaba por se instalar contribui para a polarização da sociedade que dificulta o diálogo e provoca a ascensão do discurso populista e demagógico. Cria-se com isso um círculo vicioso que pode levar à estagnação ou a crescimento económico insuficiente para erradicar a pobreza e atender as expectativas das pessoas. A directora do FMI, Kristalina Georgieva, num discurso nos encontros de 22 de Outubro das instituições de Bretton Woods chamou a atenção para a tendência expansionista dos orçamentos estatais de vários países motivada por esse tipo de discurso que aumenta a fatia do serviço da dívida no orçamento, retirando espaço fiscal para responder a crises futuras e para investir com vista a mais crescimento económico.

A grande dificuldade de hoje é encontrar partidos e personalidades com coragem e audácia para se recusarem a ir por esse caminho de reduzir a política a espectáculo e a culto pessoal do líder. E é assim porque nem sempre resulta para que quem opta por pôr o foco nas questões do país com visão, estratégia e reformas dirigidas para maior crescimento e emprego. Um exemplo é o que acontece nos Estados Unidos, onde depois dos anos de espectáculo e da personalização da política por Donald Trump, o presidente Biden optou pelo regresso a uma certa normalidade e por políticas inovadoras e ainda assim a sociedade continua altamente polarizada. O país devido às reformas poderá ter ultrapassado com sucesso a situação de policrise e ser considerado “a inveja do mundo”, segundo o último número da revista Economist (19 Out), mas o mal-estar continua e poderá pesar a favor de Trump nas eleições daqui a quinze dias. Não é por acaso que nem todos ousam fazer diferente.

Essa falta de ousadia, porém, não existiu sempre. Em Cabo Verde, nos anos noventa, os ventos da mudança deram ao país uma oportunidade para sair da estagnação económica e crescer com liberdade e segurança. A liderança do então primeiro-ministro dr. Carlos Veiga foi crucial para atingir os dois grandes objectivos de implantar a democracia e construir uma economia de mercado. Tinha recebido um mandato a 13 de Janeiro de 1991 com maioria qualificada de dois terços do eleitorado que foi renovado cinco anos depois nas legislativas com uma percentagem superior de votos. As dificuldades em prosseguir com as reformas políticas e económicas face às resistências na sociedade e tensões no interior do seu partido não o dissuadiram de as levar a bom termo. Perdeu a maioria qualificada do primeiro mandato e recuperou-a nas eleições seguintes.

Ao longo dos dez anos de governação o Dr. Carlos Veiga conseguiu através do diálogo permanente manter, num partido que ainda era um movimento político (apareceu em 1990), uma maioria suficiente para adoptar o país de uma Constituição democrática e liberal. De seguida, pôde seguir com a liberalização da economia e reforma do sistema financeiro e fiscal e ainda avançar com as privatizações num esforço de atracção de investimento directo estrangeiro e construção de uma economia de mercado. Sob a sua liderança o país encontrou solução inovadora para a pesada dívida interna herdada das empresas estatais num Trust Fund que associado ao Acordo Cambial com Portugal, e depois com a União Europeia, serviram de base para as décadas seguintes de inflação baixa e estabilidade monetária e cambial.

Pela descrição feita no Memorando de 14 de Julho de 2023 do Banco Mundial que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008” e que “a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década de 2000 e para 1,2% na década de 2010”, percebe-se como é que o país ainda parece estar a beneficiar das reformas do anos noventa, mas com efeitos decrescentes. O potencial do crescimento que segundo o BM era de 6% na década de noventa passou para 3,5% depois de 2010 devido à perda de produtividade que por sua vez é atribuída à rigidez estrutural resultante de falta de reformas.

Não obstante os evidentes ganhos das reformas, ou talvez devido às verdadeiras disrupções que puseram o país num outro patamar, Carlos Veiga acabou por ter que enfrentar mais uma cisão no seio do partido maioritário, mas não sem ainda finalizar uma revisão da Constituição em 1999 que ajudou a consolidar o regime democrático. Um ano depois, o seu partido perdia as eleições e uma das razões, segundo o doutor Onésimo Silveira no livro do José Vicente Lopes (2016) “é que o MpD trouxe não só uma ideia de modernidade, como da modernidade das instituições que o povo na sua maioria conservadora não teria aceitado numa situação normal”. Depois de anos de tensões por causa das reformas compreende-se a derrota eleitoral porque segundo ele “ninguém gosta de viver de sobressaltos”. No entrementes os efeitos das reformas dos anos noventa ainda vão se fazendo sentir.

Nas democracias é normal não ser recompensado nas urnas por fazer reformas profundas ou por outras ousadias. Caso clássico é o de Churchill que perdeu as eleições para o partido trabalhista em 1944 apesar de ter liderado o Reino Unido durante a II Guerra Mundial. A dimensão dos verdadeiros estadistas vê-se no facto de não terem deixado de fazer o que tem que ser feito por receio de derrota nas eleições. O papel do partido e dos seus dirigentes não deve se resumir à conquista e à manutenção do poder a todo o custo. Deve fundamentalmente ser o de servir as pessoas e o país com a humildade e o desprendimento de quem detém um mandato popular e de estar ciente da realidade complexa dos problemas para cuja resolução se exige a participação de todos e se assume que ninguém é indispensável.

Por ocasião dos 75 anos do Dr. Carlos Veiga, celebrados no dia 21 de Outubro, o Expresso das Ilhas presta-lhe uma merecida homenagem pela sua liderança na construção da Liberdade e democracia em Cabo Verde e pelo exemplo de estadista sereno e dialogante, e forjador de vontades que tornou possível construir o quadro jurídico e institucional que conduziu o país à modernidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1195 de 23 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 21, 2024

Sucesso das sociedades depende da qualidade das instituições

 

O prémio Nobel da Economia foi ganho este ano por um trio de economistas Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson que se distinguiram pela ideia de que “o sucesso de uma sociedade não é determinado pelos seus recursos naturais, mas sim principalmente pela qualidade das suas instituições”. O livro “Porque falham as Nações” de Acemoglu e Robinson publicado em 2012 difundiu pelo mundo inteiro a importância de um país ter instituições inclusivas em vez de instituições extractivas para criar riqueza, travar a luta contra a desigualdade e garantir um ambiente propício à inovação, essencial para uma prosperidade continuada. Bem claro também ficou no livro a centralidade da democracia na criação e sustentabilidade dessas instituições.

O prémio a esses autores veio em boa hora. Nota-se actualmente nas democracias uma tendência para se normalizar os ataques às instituições num quadro de crescente polarização política. O extremismo de posições tem levado a uma espécie de tribalização da sociedade que interfere com o reconhecimento e aceitação das instituições, diminuindo a sua eficácia e deixando-as expostas a ataques. Isto está a acontecer nas democracias mais maduras e nas mais recentes. Se nos países mais prósperos uma economia mais sólida e uma sociedade civil mais consolidada emprestam resiliência às instituições face a esses ataques, já nos países mais frágeis é mais complicado. A persistência em certos sectores de instituições extractivas do tipo rentista conjuntamente com esquemas de reprodução da dependência das pessoas face ao Estado alimenta a corrupção e promove a má governação abrindo o caminho a populismos demagógicos que vão enfraquecer ainda mais as instituições.

Em Cabo Verde, os efeitos do desgaste das instituições já se fazem sentir. As crises sucessivas culminando na pandemia da Covid-19 quebraram o ímpeto de algum crescimento que se vinha verificando nos últimos anos da década passada. A recuperação pós-pandémica mostrou as vulnerabilidades do país, designadamente a sua dependência do turismo e também os seus limites quando as projecções de crescimento económico para os próximos anos continuam aquém dos 7%. Tudo isso acaba por ter impacto nas expectativas quanto ao futuro, não obstante a promessa do VPM e Ministro de Finanças em duplicar o potencial de crescimento da economia dos actuais 5% para dois dígitos, e por fomentar ainda mais a polarização social e política, reflectindo-se nas instituições.

Não é de estranhar que nestas circunstâncias o papel do Estado se agigante para colmatar insuficiências de investimento e emprego em vários sectores e para estender a protecção social aos mais vulneráveis. O Orçamento de Estado (OE) para 2025 já ascende a 98 mil milhões de escudos, quase one billion dollars, e prevê, nas palavras do VPM, o maior Estado social de sempre. A crescente proeminência do Estado torna ainda mais renhida e feroz a luta pelo seu controlo. A proximidade de um novo ciclo de eleições imprime a essa luta uma outra urgência que acaba por resultar na tentação de atacar a integridade de certas instituições para atingir o governo e o partido que o sustenta. É o que se passa actualmente e de forma mais pronunciada com os ataques ao Tribunal de Contas.

Já não bastam os ataques populistas dirigidos às instituições, agora nota-se que são os próprios actores políticos e titulares de cargos públicos que procuram diminuir e até deslegitimar os órgãos públicos. Não se faz suficiente uso dos mecanismos institucionais de fiscalização como são nomeadamente as comissões especializadas e as audições no parlamento e prefere-se ficar pelo espectáculo das denúncias públicas, ora procurando judicializar a política, ora politizando a justiça. Se envolver as câmaras municipais nas lutas político-partidárias pelo controlo da máquina pública era uma prática estabelecida, a novidade é o conflito aberto entre órgãos de soberania com acusações de deslealdade institucional, colagem do maior partido da oposição ao presidente da república e tentativas de deslegitimação dos actos dos tribunais.

Num país com as fragilidades de Cabo Verde não é de deixar arrastar por muito tempo o desgaste das instituições. Como diz Acemoglu a “boa governação é crucial para construir confiança entre os cidadãos e o Estado e para criar um ambiente favorável ao desenvolvimento económico”. Acrescenta ainda que incentivos para conseguir uma educação, para poupar, para pagar impostos, para investir e inovar dependem muito da confiança que se tem nas instituições. Daí o combate à corrupção, a preocupação com a gestão transparente e escrupulosa dos recursos públicos, o foco na qualidade das despesas públicas, o dimensionamento adequado das estruturas estatais e a sobriedade e o rigor, evitando exibicionismo e extravagância, que devem caracterizar a postura dos governantes.

Também essencial para essa confiança dos cidadãos e contribuintes é que os mecanismos de (checks and balances) pesos e contrapesos institucionais funcionem em pleno. Quando se tem orçamento do estado a crescer 14% de um ano para outro e que está a ser financiado em mais de 60% pelos impostos é de maior importância que se vejam todos os sinais que a fiscalização política do parlamento está a ser efectiva com menos preocupação com os holofotes no plenário e mais trabalho nas comissões especializadas. Da mesma forma, faz todo o sentido que uma instituição como o Conselho das Finanças Públicas (CFP), através de uma apreciação autónoma e independente acerca da coerência, execução e sustentabilidade da política orçamental, exerça a sua “competência de avaliar os cenários macroeconómicos adotados pelo Governo e a consistência das previsões orçamentais com estes cenários”.

Tudo se complica quando, o CFP, no seu parecer sobre o OE 2025, deixa saber que, apesar dos esforços, não foram realizadas reuniões técnicas entre o CFP e o MFFE (ministério das finanças e fomento empresarial) visando esclarecer as dúvidas relativamente às metodologias e pressupostos utilizados na elaboração das previsões apresentadas. De facto, particularmente em momentos difíceis não se pode deixar dúvidas quanto ao grau de colaboração institucional existente e ao rigor no cumprimento dos procedimentos. É preciso dar confiança aos cidadãos que as instituições do país em nenhum nível são extractivas, ou seja, nas palavras de Acemoglu, projetadas para extrair rendas e riquezas de um subconjunto da sociedade para beneficiar outro subconjunto. Impõe-se que que se ponha um travão ao desgaste das instituições e se faça um esforço para as reforçar para serem os baluartes da democracia e do desenvolvimento do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1194 de 16 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 14, 2024

Mostrar serenidade e razoabilidade na condução dos assuntos públicos

 

O ambiente político em Cabo Verde não é o melhor. As razões serão provavelmente a proximidade das eleições autárquicas, as crescentes tensões entre órgãos de soberania e as reivindicações das classes profissionais ligadas ao Estado. Hoje são os professores, amanhã poderão ser os profissionais de saúde e depois de amanhã não se sabe de que sectores da administração pública virão os protestos. No processo político eleitoral e também de agitação sindical assim criado nota-se cada vez mais o extremar de posições, a falta de disponibilidade para o compromisso e o enfraquecimento do engajamento esperado de políticos, de titulares de cargos públicos e das classes profissionais com o interesse colectivo. A ênfase é colocada em protagonismos pessoais, no discurso emocional e em ganhos rápidos na política e na carreira em detrimento da lealdade à ordem constitucional, da ética e da procura do bem público.

O resultado é que cada vez mais reina menos razoabilidade e serenidade no tratamento das coisas públicas. Acontecimentos recentes apontam para o pior. Ilustrativos disso são os casos de inspecção e de auditoria que identificam irregularidades e ilegalidades nos serviços da presidência da república. Publicados os relatórios, de imediato foi lançada a suspeição de práticas similares em toda administração do Estado. Seguiram-se ataques político-partidários dirigidos em especial ao Tribunal de Contas, questionando a sua competência e legitimidade.

Até da presidência da república, a propósito de um pedido de nulidade do relatório da auditoria do TdC, se argumentou que o mandato de cinco anos dos juízes não pode ser estendido até à tomada de posse do novo titular. Provavelmente o mesmo deveria aplicar-se ao Tribunal Constitucional que tem mandato de nove anos a terminar a 15 do corrente mês. Interessante que um recurso similar foi dirigido ao tribunal constitucional em Portugal a pedir a nulidade de uma decisão por um dos juízes ter tido seu mandato terminado um ano antes. O recurso foi recusado em Julho de 2023 pelo colectivo dos juízes com uma única voz discordante.

Também revelador é o súbito e estridente questionamento do sistema de saúde na sequência dos casos de dengue e de outros chocantes que vieram a público na semana passada de gestantes que perderam a vida devido a eventuais falhas ou negligência dos serviços.

Percebe-se que, com a diminuição de confiança das pessoas nas instituições, fica fácil fazer um discurso político que acentue os receios das pessoas, aprofunde a desconfiança e espevite os ressentimentos. Em todas as democracias, neste momento, há quem faça esse papel. Não se espera é que seja feito pelos principais actores políticos e pelos titulares de cargos públicos, considerando a responsabilidade que lhes é exigida de garantir a estabilidade e a credibilidade do sistema político. Em Cabo Verde, também o abaixamento do nível do discurso político acaba por extremar posições, por tornar extremamente difícil negociar e firmar acordos, e inevitavelmente, por impossibilitar qualquer discussão do futuro que vá além das disputas para obter ganhos rápidos.

Paradigmático é o que se passa com os professores e as suas lutas sindicais com o governo. Vêm do ano lectivo anterior, com os inevitáveis prejuízos sobre o processo educativo e sobre os alunos, e persistem no novo ano sem perspectiva de chegar a acordo. Rondas sucessivas de negociações não resultaram em acordos e muito dificilmente poderiam ressoltar com a conversa entre as partes feita na comunicação social pontuada por ameaças de paralisação de aulas e sempre tentada a cavalgar agendas políticas, particularmente, quando eleições se aproximam. Ao parecer aceitar o pedido dos sindicatos e vetar o Plano de Carreiras, Funções e Remunerações, o PR introduziu-se nas negociações entre o governo e os sindicatos, alterando as regras do jogo e eventualmente tornando um desfecho mais árduo. O diálogo ficou mais difícil e na prática sequestrado por agendas político-partidárias como se vai ter oportunidade de presenciar no parlamento a partir de hoje. Entretanto, os problemas dos professores e o objectivo central de se ter uma educação de qualidade ficarão efectivamente adiados.

Paradoxalmente, nota-se que o facto de não terem conseguido os resultados desejados ou prometidos com o extremar de posições e protagonismos deslocados e intempestivos não parece dissuadir os sindicatos de continuar com essa postura. Agrava-se a situação, mas insiste-se em fazer o mesmo. Algo similar contribui para fazer crescer a extrema-direita nas democracias contemporâneas sem que os supostos opositores revejam as suas posições, aparentemente esquecidos que os extremos se reforçam mutuamente. Evidentemente que o grande sacrificado é o centro que se define pela liberdade, pelo compromisso e pelo pluralismo que viabiliza a busca pela verdade e torna possível um futuro comum construído na base de soluções democraticamente encontradas.

Se a dinâmica dos extremos partidários e dos populismos demagógicos constituem um enorme perigo para as democracias, não é menor o perigo que pode resultar de um conflito aberto entre os órgãos de soberania. Tensões entre órgãos de soberania são normais e salutares na medida em que contribuem para o equilíbrio do sistema político. Dificuldades surgem quando não se respeita o princípio da separação dos poderes e tornam-se mais graves se se instalar o sentimento de impunidade. O caso do Donald Trump nos Estados Unidos é paradigmático a esse respeito. Escapou de dois processos de destituição (impeachment), sendo o segundo na sequência de um acto considerado de insurreição para impedir a transferência de poder para o presidente eleito. Com sentido de impunidade, atropelou normas estabelecidas, impôs-se ao Congresso e mudou a composição do Supremo Tribunal a favor dos conservadores. O resultado é que a democracia e o Estado de direito na América estão hoje em perigo, particularmente, se ele for (re)eleito em Novembro próximo.

Em Cabo Verde não há fiscalização política do presidente nem processo de destituição. Em caso de falhas graves, o sistema parece contar com o alto grau de adesão do PR aos princípios e valores da Constituição e à ética republicana para encontrar a melhor saída. O pior que pode acontecer é de, na ausência de amarras políticas legais e éticas, se instalar um sentimento de impunidade que ameace tornar o sistema caótico. Como se vê da experiência de outros países, não é um espectáculo bonito.

Um papel fundamental é esperado do governo e dos governantes em manter a confiança necessária das pessoas e da sociedade nas instituições para que o jogo de equilíbrio dos poderes garanta a estabilidade do todo. Hoje percebe-se que as incertezas em relação ao futuro, por um lado, incentivam à emigração e, por outro, tendem a lançar as pessoas numa corrida para se acomodarem junto ao Estado. A imagem de rigor, de sobriedade na gestão dos recursos públicos é essencial para se manter o contrato social que faz as pessoas se sentirem incluídas e parte da colectividade nacional. A erosão que se vem verificando na confiança é um sério aviso quanto à actual qualidade e eficácia das políticas públicas. Há que mudar a atitude e mostrar serenidade e razoabilidade na condução dos assuntos públicos para que todos os sobressaltos do caminho sejam ultrapassados e os desafios enfrentados com sucesso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 07, 2024

Por uma visão crítica da totalidade da trajectória histórica de Cabo Verde

 

Já se notam movimentações para dar o tom às comemorações no próximo ano dos 50 anos da independência nacional. Como é prática de outros aniversários do 5 de Julho de 1975 procura-se desde logo salientar o carácter heróico do feito para se proceder à tradicional exaltação dos auto- proclamados protagonistas. E com um sim antecipado à pergunta “se valeu a pena a independência”, faz-se por lhes assegurar gratidão eterna do povo e por colocar as opções tomadas acima de quaisquer críticas. Não é, porém, com sentimentalismos e posturas que limitam o livre pensamento e a possibilidade de equacionar o presente e projectar o futuro que melhor se vai servir o país. Pior ainda, quando são patentes os múltiplos obstáculos internos limitativos do desenvolvimento e se depara com a realidade actual do mundo a reconfigurar-se de forma imprevisível.

De facto, o que país mais precisa é de uma visão crítica da totalidade da sua trajectória histórica para poder vislumbrar saídas inovadoras e funcionais e também de uma unidade de vontade para agir, não atrapalhada por resquícios ideológicos datados e por mitos persistentes. Uma nova abordagem foi apresentada pelo professor doutor João Estêvão numa conferência na ilha do Sal onde se pode avaliar a performance sócio-económica de Cabo Verde no quadro de um estudo comparado dos pequenos estados insulares (SIDS). Claramente, Cabo Verde não ficou bem na fotografia com rendimento per capita e nível de desenvolvimento humano abaixo da média dos restantes membros e no grupo mais frágil conjuntamente com S. Tomé e Príncipe e Comores.

Indo mais a fundo para saber algumas das razões por que Cabo Verde teve um desenvolvimento que tanto desviou da média de outros países que ascenderam à independência praticamente na mesma altura, Maurícias em 1968, Seicheles em 1976, o facto de só se ter aberto a economia mais de 15 anos depois pesa bastante. A industrialização para exportação nas zonas económicas especiais das Maurícias já tinha avançado muito e a aposta no turismo nas Seicheles já dava frutos. Nessas ilhas não se fomentou hostilidade ao investimento directo estrangeiro nem se criaram constrangimentos à iniciativa privada. Também a aposta que fizeram na educação foi sólida, como, aliás, aconteceu nos países insulares mais desenvolvidos, em alguns casos a rivalizar com os melhores nos rankings internacionais. Não ficaram pela massificação de ensino, sem demonstrar grande preocupação com a qualidade.

A 14 de Julho do ano passado, o Banco Mundial publicou um memorando económico que veio lembrar que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008”; que a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década 2000 e para 1,2% na década de 2010, excluindo o ano 2020; que o potencial de crescimento da economia caiu de 6% na década de 1990 para 3,5% por cento após 2010. No memorando ainda ficou explícito que essa queda no potencial se deve a que a contribuição da produtividade (PFT) no crescimento na década 2010-19 foi de 1% quando na década anterior tinha sido de 51% devido às reformas estruturais dos anos noventa. Infelizmente, parece que essas chamadas de atenção do Banco Mundial não surtiram efeito. O discurso político não se alterou significativamente e as querelas partidárias continuaram fixadas nas mesmas temáticas.

Há quem aponte o bipartidarismo em Cabo Verde como a principal razão por que o país não consegue em matérias estruturais chegar aos consensos necessários para ter políticas coerentes e traçar objectivos e metas alcançáveis num horizonte temporal que atravessa vários governos. É verdade que vários estudos sugerem qua o sucesso das Maurícias e de Botswana, que os coloca no topo do ranking de desenvolvimento entre os países africanos, deve-se ao nível de consenso conseguido num quadro democrático entre as principais forças políticas ao longo de décadas. E o facto de em Cabo Verde isso não se verificar certamente que contribui para uma menor eficiência na utilização dos recursos, em particular dos recursos humanos, e para as políticas públicas não terem a desejada eficácia devido a resistências várias e à falta de continuidade na implementação das mesmas.

Claro que em certos sectores de opinião indicar o bipartidarismo como um obstáculo ao desenvolvimento é mais um argumento contra o que consideram ser uma democracia formal, o que anteriormente classificavam de democracia burguesa. Aliás, se se recuar no tempo vai-se notar que as críticas dirigidas aos partidos surgiram logo nos primórdios do pluripartidarismo, nos inícios dos anos noventa, vindas em primeiro lugar dos que nunca criticaram o Partido Único. Ainda hoje estão à procura de outros modelos de democracia, ou nas sociedades tradicionais, ou ainda no processo de escolha de representantes que lembram a Comuna de Paris e os sovietes na Rússia. Não se pode, porém, negar é que, no plano económico, em Cabo Verde, o crescimento só passou de lento a rápido com o advento da democracia e as reformas na economia.

Paradoxalmente o bipartidarismo poderá estar a prejudicar em maior grau o desenvolvimento não tanto no que incita à discordância, em matéria de políticas, mas no que, em termos da atitude da classe política, se revela de convergência no que toca a crenças e mitos arreigados sobre o país, cultura político-eleitoral e o papel do Estado. Acredita-se na ideia secular que se chovesse em Cabo Verde reinaria a felicidade e que o arquipélago tem importância estratégica permanente apesar dos resultados de políticas públicas e dos avultados recursos, dirigidos para mobilizar água e infraestruturar na perspectiva de potenciar a localização, terem ficado muito aquém do prometido. Fez-se da mobilização política em democracia uma corrida para enredar os eleitores em malhas de dependência, não obstante a apologia da autonomia das pessoas e os incentivos à iniciativa individual. A realidade do posicionamento do Estado no topo da proverbial “cadeia alimentar” não é contrariada e muito menos inflectida por todo o esforço de descentralização e de afirmação do poder local. A crença na importância da educação não é traduzida num engajamento efectivo a favor da qualidade do ensino e valorização do conhecimento.

Os partidos podem ter discurso político e até práticas de governação diferentes, mas o lastro que acrescentam em cada ciclo de governação, ao não conseguirem romper com o status quo, acaba por limitar a dinâmica de crescimento possível. Fica mais difícil fazer as reformas que são necessárias para aumentar a produtividade e competitividade enquanto o efeito das reformas estruturais iniciais vão-se dissipando com o passar de anos. Dar a volta a esta situação é fundamental. Reflectir de forma crítica e aberta sobre a trajectória de séculos deste país para a fazer completa e inteligível para todos, sem mitos nem tabus, constituiria um acto maior de celebração dos 50 anos e uma demonstração de patriotismo que cobriria todos de orgulho. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1192 de 2 de Outubro de 2024.

segunda-feira, setembro 30, 2024

Celebrar a Constituição para aumentar confiança e resiliência

 Celebra-se hoje, 25 de Setembro, o trigésimo segundo aniversário da Constituição da República. Trinta e dois anos atrás, pela primeira vez Cabo Verde, enquanto país independente, cumpria o estipulado no artigo 16º da declaração universal dos direitos humanos e do cidadão aprovada em 1789 na sequência da revolução francesa: A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. A partir de 25 de Setembro de 1992 passou a ter uma Constituição com os direitos fundamentais garantidos, o poder legitimado pelo voto popular, a separação dos poderes, o Estado de Direito democrático e a independência dos tribunais.

Finalmente Cabo Verde conseguia basear a sua ordem constitucional nos princípios e valores civilizacionais hoje considerados universais que tinham sido enunciados mais de duzentos anos antes nas revoluções americana e francesa. A ascensão à civilização e à modernidade que isso representou foi acompanhada nos anos seguintes de crescimento económico e social num ritmo nunca antes verificado à medida que se libertavam as energias sociais na forma de iniciativa individual, criatividade e disposição para correr risco. Contribuía ainda para motivar as pessoas a confiança que naturalmente emerge da vivência num Estado de Direito democrático, com governos estáveis e garantia de alternância no governo e transferências pacíficas de poder.

As dificuldades nestas duas décadas deste século em propiciar as taxas de crescimento, que o país precisa para se desenvolver e eliminar a pobreza extrema, interpelam a todos o quão efectivo tem sido o aproveitamento dessas energias individuais e sociais libertadas. Nesse sentido, interroga-se o quanto a manutenção de uma economia a funcionar de forma ordeira tem servido de incentivo à iniciativa privada e o quanto a existência de uma cultura meritocrática tem contribuído para motivar as pessoas para serem agentes de mudança e inovação. É também de perguntar o quanto é que, pela promoção de uma cultura de respeito à ordem constitucional, se tem reforçado as bases da confiança nas instituições, confiança cívica e, por extensão, confiança interpessoal.

O facto de um número crescente de pessoas estarem a ponderar a possibilidade de emigração não só à busca de trabalho e de melhores salários como de possibilidade de fazer uma carreira profissional e académica já é preocupante. Pode sugerir que não se está a explorar bem o potencial do país, em particular do seu capital humano. Ter outras pessoas a querer deixar o país à procura de um ambiente mais seguro, de melhores cuidados de saúde e mais favorável para a educação dos filhos é bastante complicado. Levanta outras questões de confiança na viabilidade do país ou na capacidade de produzir uma liderança à altura dos desafios actuais e focada na prossecução do bem público.

Crises sucessivas (secas, pandemia da covid-19, guerra na Ucrânia e inflação geral dos preços) e num curto espaço de tempo podem criar algum desânimo, mas o que se revela perturbador são as fragilidades da liderança política enquanto os seus titulares disputam influência e esforçam-se por ter protagonismo pessoal e ganhos eleitorais. Notam-se as perdas em sede de responsabilização política, de prestação de contas, de transparência e de ética republicana. Daí pode ser um passo para se contestar o sistema político e exacerbar as tensões naturais que asseguram a sua dinâmica e estabilidade recorrendo aos posicionamentos anti-sistema que caracterizam muitos dos populismos em voga. É mais fácil isso acontecer quando disputas ideológicas remanescentes do velho regime de partido único continuam a ter vida própria, insuflada por instituições do Estado e actores políticos prominentes em colisão directa com os princípios e valores constitucionais.

Os trinta e dois anos da vigência da Constituição da República têm sido de estabilidade política, de governos a cumprir mandatos completos e já com duas alternâncias na governação sem crise. Na base deste sucesso está o sistema de governo de base parlamentar em que o presidente da república não governa e quem define e implementa as políticas interna e externa do país é o governo suportado pela maioria no parlamento perante o qual é exclusivamente responsável. Desde dos primórdios da II República certas contestações à ordem constitucional tomaram a forma de críticas dirigidas ao sistema de governo no sentido de acentuar os poderes presidenciais em detrimento do seu pendor parlamentar. Mesmo as décadas de estabilidade e de tensões sem grande impacto entre o PR e o Governo, somadas às alterações feitas nas revisões constitucionais de 1999 e 2010 no sentido dessas críticas, não atenuaram o teor do discurso produzido nesse sentido. Assiste-se agora ao seu recrudescimento nas actuais tensões entre esses dois órgãos de soberania.

Curiosamente, o momento de menor tensão terá sido quando José Maria Neves era primeiro-ministro e em entrevista publicada em Outubro de 2014 na revista Vozes das Ilhas revelava ser “contra o sistema presidencialista (…) para evitar a excessiva personalização do poder”. Justificava com o facto que podia abrir “espaços a clientelismos, a compadrios, a jogos de bastidores, a fragilização dos partidos políticos”. Na entrevista ainda mostrou-se a favor de um PR eleito pelo parlamento e defendeu a adopção de um regime de chanceler, supõe-se à imagem da Alemanha onde o chanceler é eleito pelo parlamento e seu peso na orientação das políticas do governo é maior do que o dos primeiros-ministros noutros países. De lá para cá, deve ter mudado de ideias e, pelo conteúdo do ante-projecto da presidência da república dado a conhecer ao público no Facebook pelo chefe da casa civil, percebe-se que se tornou desejável um protagonismo que vai mais além do verificado com os três presidentes que o antecederam.

É evidente que num sistema marcado pela separação de poderes os equilíbrios perdem-se quando à acção não é contraposta uma reacção igualmente forte e em sentido contrário. Nas legislaturas anteriores a 2016, a firmeza da relação entre o governo e a sua maioria parlamentar não deixavam margens para dúvidas. Nos últimos anos o aparente descaso do primeiro-ministro em agir como presidente do partido perante sinais de fractura na maioria parlamentar revelam fragilidades que tendem a acentuar tensões entre os órgãos de soberania no exercício das respectivas competências. É o que aconteceu entre o PR e o Governo, mas também entre o governo e a assembleia nacional que neste caso precipitou o pedido de demissão da direcção do grupo parlamentar do MpD face à atitude de governantes e instituições do Estado de se associarem oficialmente às comemorações sem aprovação legislativa prévia.

Uma outra pressão sobre o sistema democrático, a exemplo do que se tem verificado noutras democracias, tem vindo de manifestações de carácter populista que tem como alvo o poder judicial. Apoiando-se nas deficiências da justiça, em particular na morosidade e na falta de eficácia em certos casos, ataques dirigidos ao sistema no seu todo chegaram mesmo ao Tribunal Constitucional e estiveram à beira de pôr em confronto órgãos de soberania. Uma eventual colisão foi evitada a tempo pela decisão do PR em rejeitar liminarmente a petição apresentada. Infelizmente, algo similar parece estar a repetir-se em relação ao Tribunal de Contas. Apoiando-se no facto de que foi ultrapassado o tempo de mandato dos juízes do TdC, como aliás de vários órgãos para cuja nomeação participam órgãos do poder político, para falar de precariedade e transitoriedade, quando é sabido que os mandatos dos juízes só terminam com a posse de um novo juiz, pode configurar pressão sobre os tribunais.

Com questões sérias de prestação de contas e responsabilização política por resolver, a última coisa que podia acontecer é qualquer sinal vindo de actores políticos a procurar deslegitimar o TdC. A vítima maior disso seria a perda da confiança na democracia e nas suas instituições quando o que urge neste 25 de Setembro é que se reforce a confiança na ordem constitucional aprovada há 32 anos. Para que o país possa estar em melhor posição de enfrentar os enormes desafios que tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1191 de 25 de Setembro de 2024.

sexta-feira, setembro 20, 2024

A paz passa pela justiça e pela verdade

 

No Festival Pela Paz, no Tarrafal, em comemoração do centenário de Amílcar Cabral, que terminou, sábado, dia 14, o abraço do presidente da república e do primeiro-ministro, na óptica dos organizadores, terá sido o ponto alto do evento. Estaria em linha com as declarações dos artistas no sentido de que a paz é um bem precioso. A encenação do acto trouxe à memória a iniciativa de Bob Marley em Abril de 1978 a chamar ao palco os dois protagonistas da violência política, em Jamaica, Michael Manley e Edward Seaga, para apertar as mãos num show de paz e unidade. A evocação pretendida, porém, não cola aqui. A diferença é que Cabo Verde não está em estado de guerra civil, nem há facções armadas ou se verificam distúrbios de monta na via pública como então acontecia nessa ilha das Caraíbas.

O PR e o PM apressaram-se a dizer isso mesmo, afirmando em uníssono que “sempre estivemos com a paz”, mas não desfizeram o equívoco criado. Pelo contrário, espalhou-se via os média e as redes sociais, como pretendido, substanciando a ideia do Tarrafal como um sítio de encontro espiritual em relação à paz. A verdade é que Bob Marley com base no rastafarianismo e na crença no Black Messiah pensou que através da música poderia unir e trazer paz para Jamaica. Não conseguiu como era óbvio. A repetição da sua iniciativa como uma espécie de farsa – em Cabo Verde não há violência política – procura trazer ao de cima, pela via da música e de iniciativas como Marcha Cabral Pela Paz, um certo espiritualismo, alimentando a idolatria de Cabral que caracteriza as comemorações do centenário.

Entretanto, na sociedade o efeito provocado é o de confirmar nas pessoas o cinismo e a hipocrisia que caracteriza muita da actuação da classe política. E é esse descrédito nas instituições e nos seus titulares que, quando criado, pode ser uma ameaça para a paz social. A Constituição de 1992 logo no seu artigo nº1 reconhece como fundamento para paz a inalienalibilidade e a inviolabilidade dos direitos humanos. De facto, sem os direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito não há forma de se viver na paz como um indivíduo livre, num ambiente plural e autónomo para perseguir interesses próprios. Sem uma ordem constitucional baseada nesses valores liberais, a alternativa é a ordem autocrática ou totalitária em que a maior ameaça à paz vem do próprio Estado que a qualquer momento e com total impunidade pode atirar-se contra indivíduos ou grupos despojando-os de direitos, de propriedade ou da própria vida.

Cabo Verde conhece isso da sua própria experiência dos primeiros quinze anos após a sua independência. Por isso que tem esse longo catálogo de direitos na constituição de 92. Por isso é que o país tem mais de um partido a concorrer nas eleições periódicas e o próprio poder do Estado é repartido pelos diferentes órgãos de soberania sem hierarquia entre eles e cada um exercendo as suas competências de acordo com o princípio da separação e interdependência dos poderes. Ameaça-se quebrar a paz quando por excesso ou omissão não se cumprem as competências próprias e se foge aos procedimentos democráticos instituídos a favor de arranjos e conluios paralelos sem possibilidade de escrutínio.

Ameaça-se ainda a paz usando poder do Estado para disseminar conteúdos ideológicos em directa colisão com os princípios e valores constitucionais. Nos países democráticos as ideias fluem naturalmente, mas a quem tem responsabilidades do Estado não lhe é permitido que no exercício das suas funções promova ideologias contrárias à democracia e ao Estado de Direito. Razão entre outras porque não há personificação do Estado num líder histórico. Isso só acontece actualmente na Coreia do Norte onde Kim-il Sung é considerado símbolo nacional e é tido como pai da nação. No passado, aconteceu com líderes na ex-União Soviética, Cuba, China. Por isso é que não faz nenhum sentido considerar Amílcar Cabral como símbolo nacional. O regime democrático não permite a personificação nacional senão como figuras alegóricas ou iconográficas como Marianne, em França, a imagem da república em Portugal ou o tio Sam nos Estados Unidos da América. Acresce ainda o facto da figura de Amílcar Cabral ter sido assumida pelo regime pós-independência de partido único como Fundador da Nacionalidade e Militante nº 1 do partido único, o PAIGC.

O artigo 8ª da Constituição da República estabelece quais são os símbolos da República: a Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais. É evidente que sem uma revisão constitucional não é possível alterar ou acrescentar outros símbolos, algo que só pode acontecer com iniciativas de revisão pelos deputados e depois de uma votação por maioria qualificada de dois terços dos efectivos no parlamento. Nesse sentido, não se compreende a declaração do presidente da república no dia 12 de Setembro ao afirmar que “Amílcar Cabral é um símbolo da República e como tal merece a atenção de todas as instituições da República”. As instituições da república, assim como o próprio PR, estão, de facto, obrigados a cumprir os comandos da Constituição, que, neste caso particular dos símbolos nacionais, são de aplicação directa e tratam de valores de referência de toda a colectividade nacional. O normal funcionamento de todo o sistema político e a manutenção da paz social exige que não se deixem subordinar a qualquer conveniência político-ideológica, vinda de onde vier.

Os múltiplos momentos de tensão entre os órgãos de soberania, presidente da república, parlamento e governo, a que se vem assistindo, têm os elementos de um conflito ideológico que ainda opõe o antigo regime à democracia, mesmo trinta e dois anos depois. Perante a dificuldade de fazer valer certo tipo de argumentos hoje quase universalmente considerados retrógrados, recorre-se à figura de Amílcar Cabral para ainda manter uma ascendência sobre a sociedade cabo-verdiana. A sua morte prematura e trágica permitiu criar um mito quase messiânico à sua volta com mistérios à mistura, designadamente em relação ao seu assassinato e interrogações esperançosas de como seria se tivesse governado.

Daí as proclamações de “Cabral ka mori”, e lamentos de que é repetidamente morto e até há quem fale numa segunda vida. A idolatria não parece ter limites e no Tarrafal faz-se uma encenação de que em seu nome a paz pode chegar aos homens de boa vontade. O país é que não merece ficar numa situação de apanhado entre dois mundos enquanto quem outrora teve ascendência ideológica sobre o povo, a sua cultura e a sua história tudo faz para o manter cativo. A paz passa pela justiça e pela verdade. Cinismo e hipocrisia não podem ser normalizados como forma de fazer política. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

A paz passa pela justiça e pela verdade

 

No Festival Pela Paz, no Tarrafal, em comemoração do centenário de Amílcar Cabral, que terminou, sábado, dia 14, o abraço do presidente da república e do primeiro-ministro, na óptica dos organizadores, terá sido o ponto alto do evento. Estaria em linha com as declarações dos artistas no sentido de que a paz é um bem precioso. A encenação do acto trouxe à memória a iniciativa de Bob Marley em Abril de 1978 a chamar ao palco os dois protagonistas da violência política, em Jamaica, Michael Manley e Edward Seaga, para apertar as mãos num show de paz e unidade. A evocação pretendida, porém, não cola aqui. A diferença é que Cabo Verde não está em estado de guerra civil, nem há facções armadas ou se verificam distúrbios de monta na via pública como então acontecia nessa ilha das Caraíbas.

O PR e o PM apressaram-se a dizer isso mesmo, afirmando em uníssono que “sempre estivemos com a paz”, mas não desfizeram o equívoco criado. Pelo contrário, espalhou-se via os média e as redes sociais, como pretendido, substanciando a ideia do Tarrafal como um sítio de encontro espiritual em relação à paz. A verdade é que Bob Marley com base no rastafarianismo e na crença no Black Messiah pensou que através da música poderia unir e trazer paz para Jamaica. Não conseguiu como era óbvio. A repetição da sua iniciativa como uma espécie de farsa – em Cabo Verde não há violência política – procura trazer ao de cima, pela via da música e de iniciativas como Marcha Cabral Pela Paz, um certo espiritualismo, alimentando a idolatria de Cabral que caracteriza as comemorações do centenário.

Entretanto, na sociedade o efeito provocado é o de confirmar nas pessoas o cinismo e a hipocrisia que caracteriza muita da actuação da classe política. E é esse descrédito nas instituições e nos seus titulares que, quando criado, pode ser uma ameaça para a paz social. A Constituição de 1992 logo no seu artigo nº1 reconhece como fundamento para paz a inalienalibilidade e a inviolabilidade dos direitos humanos. De facto, sem os direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito não há forma de se viver na paz como um indivíduo livre, num ambiente plural e autónomo para perseguir interesses próprios. Sem uma ordem constitucional baseada nesses valores liberais, a alternativa é a ordem autocrática ou totalitária em que a maior ameaça à paz vem do próprio Estado que a qualquer momento e com total impunidade pode atirar-se contra indivíduos ou grupos despojando-os de direitos, de propriedade ou da própria vida.

Cabo Verde conhece isso da sua própria experiência dos primeiros quinze anos após a sua independência. Por isso que tem esse longo catálogo de direitos na constituição de 92. Por isso é que o país tem mais de um partido a concorrer nas eleições periódicas e o próprio poder do Estado é repartido pelos diferentes órgãos de soberania sem hierarquia entre eles e cada um exercendo as suas competências de acordo com o princípio da separação e interdependência dos poderes. Ameaça-se quebrar a paz quando por excesso ou omissão não se cumprem as competências próprias e se foge aos procedimentos democráticos instituídos a favor de arranjos e conluios paralelos sem possibilidade de escrutínio.

Ameaça-se ainda a paz usando poder do Estado para disseminar conteúdos ideológicos em directa colisão com os princípios e valores constitucionais. Nos países democráticos as ideias fluem naturalmente, mas a quem tem responsabilidades do Estado não lhe é permitido que no exercício das suas funções promova ideologias contrárias à democracia e ao Estado de Direito. Razão entre outras porque não há personificação do Estado num líder histórico. Isso só acontece actualmente na Coreia do Norte onde Kim-il Sung é considerado símbolo nacional e é tido como pai da nação. No passado, aconteceu com líderes na ex-União Soviética, Cuba, China. Por isso é que não faz nenhum sentido considerar Amílcar Cabral como símbolo nacional. O regime democrático não permite a personificação nacional senão como figuras alegóricas ou iconográficas como Marianne, em França, a imagem da república em Portugal ou o tio Sam nos Estados Unidos da América. Acresce ainda o facto da figura de Amílcar Cabral ter sido assumida pelo regime pós-independência de partido único como Fundador da Nacionalidade e Militante nº 1 do partido único, o PAIGC.

O artigo 8ª da Constituição da República estabelece quais são os símbolos da República: a Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais. É evidente que sem uma revisão constitucional não é possível alterar ou acrescentar outros símbolos, algo que só pode acontecer com iniciativas de revisão pelos deputados e depois de uma votação por maioria qualificada de dois terços dos efectivos no parlamento. Nesse sentido, não se compreende a declaração do presidente da república no dia 12 de Setembro ao afirmar que “Amílcar Cabral é um símbolo da República e como tal merece a atenção de todas as instituições da República”. As instituições da república, assim como o próprio PR, estão, de facto, obrigados a cumprir os comandos da Constituição, que, neste caso particular dos símbolos nacionais, são de aplicação directa e tratam de valores de referência de toda a colectividade nacional. O normal funcionamento de todo o sistema político e a manutenção da paz social exige que não se deixem subordinar a qualquer conveniência político-ideológica, vinda de onde vier.

Os múltiplos momentos de tensão entre os órgãos de soberania, presidente da república, parlamento e governo, a que se vem assistindo, têm os elementos de um conflito ideológico que ainda opõe o antigo regime à democracia, mesmo trinta e dois anos depois. Perante a dificuldade de fazer valer certo tipo de argumentos hoje quase universalmente considerados retrógrados, recorre-se à figura de Amílcar Cabral para ainda manter uma ascendência sobre a sociedade cabo-verdiana. A sua morte prematura e trágica permitiu criar um mito quase messiânico à sua volta com mistérios à mistura, designadamente em relação ao seu assassinato e interrogações esperançosas de como seria se tivesse governado.

Daí as proclamações de “Cabral ka mori”, e lamentos de que é repetidamente morto e até há quem fale numa segunda vida. A idolatria não parece ter limites e no Tarrafal faz-se uma encenação de que em seu nome a paz pode chegar aos homens de boa vontade. O país é que não merece ficar numa situação de apanhado entre dois mundos enquanto quem outrora teve ascendência ideológica sobre o povo, a sua cultura e a sua história tudo faz para o manter cativo. A paz passa pela justiça e pela verdade. Cinismo e hipocrisia não podem ser normalizados como forma de fazer política. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

sexta-feira, setembro 13, 2024

Para um ano lectivo sem sobressaltos

 

O novo ano lectivo arranca na próxima semana a partir do dia 16 de Setembro e já se anuncia que vai ser conturbado. Aliás, há meses que se vem preadivinhando que iria arrancar a meio de conflito aberto entre o governo e os sindicatos dos professores. A iniciativa governamental, após vários rounds de negociação, de avançar com um decreto-lei dando satisfação à parte significativa das reivindicações, em particular, quanto às requalificações e ao aumento do salário-base abriu a possibilidade de se evitar perturbações na abertura das aulas. Rapidamente, porém, as esperanças nesse sentido se desvaneceram.

Os sindicatos manifestaram imediatamente a sua oposição ao diploma e pediram ao presidente da república para o vetar. Na sequência, o PR acedeu a receber os sindicatos com o objectivo de “garantir paz social, favorecer a melhoria da qualidade do sistema educativo cabo-verdiano e garantir que o arranque do ano lectivo 2024-2025 seja feito com tranquilidade”. Pelas declarações dos sindicatos à saída dos encontros com o PR, a confessarem-se “intransigentes” em matéria de estatuto dos professores, percebeu-se logo que o mais provável era dar-se continuidade ao que acontecera no ano transacto, ou seja, paralisação de aulas, manifestações e ameaças de não publicação das notas dos alunos.

Nesse sentido, a audiência pelo PR apenas criou oportunidade para reiterar posições já conhecidas dos sindicatos. E com o veto, aparentemente em resposta ao pedido explicitamente feito pelos sindicalistas, claramente que não foram criadas as melhores condições para se ultrapassar as intransigências das partes envolvidas, com todas as consequências já conhecidas. É um exemplo clássico da razão por que o presidente da república não deve se colocar na posição de mediador de conflitos laborais, mormente quando em confronto se encontra o governo, que dirige superiormente a administração pública, e as classes profissionais. Pior ainda quando parece reforçar a posição negocial dos sindicatos.

De facto, é o governo quem conduz as políticas públicas e presta contas pelos resultados da governação perante o parlamento e o eleitorado. Nessa qualidade está em melhor posição de conhecer e gerir os recursos públicos, fazer as ponderações necessárias no uso dos recursos e estabelecer prioridades, responsabilizando-se no fim do dia pelas suas escolhas. Em se tratando de matéria complexa e potencialmente fracturante é de toda a importância que a comunidade nacional reforce o que a une para que o debate democrático no seu pluralismo não seja divisivo e, pelo contrário, ajude a iluminar os problemas e abrir caminhos para se encontrar soluções factíveis.

A educação, como sector fulcral para o desenvolvimento do capital humano do país, é uma dessas matérias complexas que a existência de um consenso geral, quanto à necessidade de preservar a sua estabilidade, de manter o foco na sua qualidade e de valorizar social e profissionalmente os seus quadros, é fundamental. Disrupções no sector têm repercussões que levam anos e às vezes gerações a reparar e a ultrapassar. Deficiências na qualidade põem em perigo a possibilidade de realização dos indivíduos e de ter um país produtivo, competitivo e próspero. A eventual falta de autoestima e de brio profissional dos seus quadros poderá revelar-se fatal, independentemente dos meios que venham a despejar sobre o sistema.

Para um país que praticamente não tem nenhum outro recurso que não a sua gente, os seus jovens e crianças, a educação não devia ser matéria para tricas político-partidárias, jogadas eleitoralistas e activismos ideológicos. O envolvimento do presidente da republica, enquanto figura suprapartidária e representativa da unidade da Nação à volta dos princípios e valores constitucionais, tem sentido se é visto como promotor desse consenso geral. Também se é tido como facilitador ao longo do processo de reformas muitas vezes árduo devido à escassez de recursos, à resistência a mudanças e ao lastro acumulado de medidas pouco avisadas e oportunidades perdidas. Não pode é ser tomado como parte, como mentor ou como activista de alguma causa fracturante.

A confiança nas instituições é fundamental em democracia. A sua manutenção depende em grande medida da vontade de todos os actores políticos em seguir as regras do jogo democráticos, em prestar contas e a se responsabilizarem pelos seus actos. Também essencial é haver um consenso geral quanto ao exigir dos detentores de cargos públicos o cumprimento das regras, uma exigência que não seja diminuída pela conveniência do momento, nem pelo cinismo. Como no futebol ou em qualquer outro desporto, considera-se que há bom jogo quando jogadores e os árbitros, cumprindo com as regras, permitem que a perícia individual e a estratégia da equipa sejam dirigidas espectacularmente para marcar pontos. O espírito desportivo que emerge daí até dá para aceitar resultados em que nem sempre os melhores em campo ganham. Algo similar devia acontecer em democracia com a assunção de uma cultura democrática tendo na base o cumprimento das normas e procedimentos democráticos. Menos crispação e mais resultados seriam obtidos.

Um outro elemento importante para a confiança é a forma como são geridos pelo governo os recursos públicos e como são aplicados ao serviço do interesse geral. Princípios como os da justiça, da transparência, da imparcialidade e da boa-fé devem ser respeitados. A par disso, deve imperar a preocupação com os resultados e a necessidade de ter em atenção a relação custo/benefício nos investimentos e assegurar o equilíbrio das contas públicas. Projectando essa imagem da gestão pública, reforça-se a confiança e diminui-se a possibilidade de negociações em curso de vários interesses em jogo degenerarem em conflito aberto. Também será mais fácil para o público reconhecer quando há intransigência das partes e se fazer pressão para ultrapassar bloqueios. Por outro lado, é evidente que não contribui para a confiança desejada excessos de protagonismo, extravagâncias e falta de rigor e de sobriedade na condução dos assuntos públicos de parte de quem exerce cargos políticos.

Depois de todas as perturbações que marcaram o ano lectivo 2023/24 e das extenuantes e complicadas negociações entre o ministério da educação e os sindicatos, o governo produziu um decreto-lei que regula as requalificações dos professores. Certamente que não contempla tudo o que era reivindicado, mas, como em qualquer negociação, há que se chegar a compromissos, principalmente quando a questão é tão complexa, e pelo número de professores envolvidos, qualquer alteração tem custos enormes. O importante é que com o actual compromisso se reforce a base de confiança entre as partes para continuar a negociar, e de forma programada se chegue a acordo para resolver os problemas dos profissionais do sector.

A educação é demasiado importante para o futuro do país para ficar em situação de instabilidade, com os professores desmotivados e num conflito aberto que põe em causa o seu comprometimento com os alunos. O governo deve levar ao parlamento com urgência uma proposta de lei que já responda a reivindicações de requalificação e aumento salarial dos professores em linha com o negociado. Deverá haver abertura e boa-fé para continuar a negociar sem ser afectado pelo ciclo eleitoral que se inicia. Os alunos, as famílias e o país esperam um novo ano lectivo a funcionar com normalidade. 

Humberto Cardoso

sexta-feira, agosto 30, 2024

Comprometimento com a verdade é fundamental para a democracia

 

As reacções de vários quadrantes da sociedade face à situação criada pela publicação do relatório da inspecção das finanças à presidência da república, seguida dias depois pela comunicação do presidente da república, põem dúvida qual deve ser o grau de compromisso com a verdade por todos aceite.

De facto, não se está a orientar pelos valores de honestidade, transparência e responsabilidade quando se reage a alinhar um rol de culpas dirigidas para todas as direcções com excepção daquela onde reside o poder de decisão sobre a matéria em causa. Agrava-se ainda mais quando a resposta seguinte é destacar a “atitude pedagógica” do Presidente da República da devolução, do dinheiro pago à primeira-dama, aos cofres do Estado, como fez o presidente do maior partido da oposição. Se a questão não fosse tão grave até podia justificar Agosto como o mês da “silly season”.

Com acusações a recaírem sobre todos, a imitar uma barragem de artilharia, corre-se o risco de não haver escrutínio adequado dos actos, das decisões e das omissões do PR por quem o pode fazer: o povo, perante o qual é responsável, e a sociedade, via os média, as redes sociais e os partidos políticos, que podia censurar a sua conduta. Ao recorrer às mesmas tácticas que têm condicionado o ambiente político, acaba-se por partidarizar em extremo o debate, por passar a mensagem que “todos” fazem o mesmo e por fazer acreditar que cada um tem a sua verdade. No processo, ou se induz apatia nas pessoas ou se promove cinismo gereralizado.

Em consequência, diminui-se a participação cívica e política dos cidadãos, os mecanismos de prestação de contas são enfraquecidos e abre-se caminho à arbitrariedade e a discricionariedade. A própria política é prejudicada porque fracturas ideológicas e lealdades históricas não permitem que se consolide uma base comum de valores e uma disponibilidade para aceitação dos processos e procedimentos democráticos em todas as situações. A estabilidade da democracia é enfraquecida quando, da parte do árbitro e moderador do sistema, há relutância em prestar contas e forças partidárias passam uma imagem de “colagem” política.

De facto, o cargo de presidente da república é suprapartidário e no sistema constitucional só é possível uma responsabilização difusa do PR porquanto não presta contas ao parlamento e não pode por esse órgão de soberania ser censurado ou destituído. Mesmo em caso de crimes a acção penal terá que ser requerida pela assembleia nacional sob proposta de pelo menos 25 deputados e depois de votada por mais de dois terços dos deputados em efectividade de funções. Porque o PR não responde perante outros órgãos de soberania, é fundamental para o exercício pleno das suas funções e das suas competências que a todo o tempo lhe seja reconhecido uma autoridade acima de quaisquer suspeitas.

Não deve haver dúvidas quanto ao seu engajamento com os princípios e valores constitucionais e com a defesa do interesse público e do bem comum e quanto ao não permitir ser capturado por agendas partidárias. Para manter claras as linhas de responsabilidade democrática, evitar tensões entre órgãos de soberania e diminuir ineficiências no sistema, também é essencial que a sua magistratura de influência não extravase numa magistratura de interferência. Infelizmente, os sinais não são os mais auspiciosos nesse sentido. As tensões entre o PR e governo nesta legislatura têm sido maiores e mais problemáticas do que as que eventualmente aconteceram nas outras legislaturas da II República.

A gestão da actual crise é ilustrativa desse facto. A caracterização que o PR fez do caso no seu comunicado de sexta-feira, 19, é que “tudo foi feito com transparência e no convencimento de que, no âmbito da lealdade e cooperação institucionais, o necessário e completo quadro legal seria produzido com celeridade”. Hoje é ponto assente que não havia base constitucional nem legal para isso. Mesmo assim considera que se está perante uma “uma nódoa na história do relacionamento”, provavelmente a afectar relações futuras com impacto no país quando se devia estar a dar a garantia de cumprir os procedimentos democráticos em todas as circunstâncias. E isso não é muito tranquilizador. Também seria importante que para além do reconhecimento das “falhas do lado da presidência da república” houvesse sinais concretos que “não voltará a ser assim”.

Realmente, não interessa ao país que acusações mútuas de falta de lealdade e cooperação institucionais definam as relações entre órgãos de soberania num país em que um dos seus maiores activos é a sua estabilidade política. Essencial também para essa estabilidade é que nenhuma força política se sinta tentado a colar-se ao presidente da república para avançar a sua agenda partidária, nem procure subtraí-lo ao escrutínio popular e da sociedade e à prestação de contas com discurso político polarizante da sociedade. É uma atitude que só mina a autoridade moral e política do PR com perda para todos.

Manter a comunidade política comprometida com a verdade dos factos num ambiente de pluralidade de opinião é fundamental para se baixar a crispação e tornar a política mais construtiva. Ter e consolidar essa base comum de aceitação das regras do jogo democrático e de assunção plena de responsabilidade por parte dos actores políticos é o maior contributo para a confiança nas instituições democráticas e para construção da vontade necessária para se ganhar o futuro. Para isso, cada um deve fazer a sua parte. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1187 de 28 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 26, 2024

Ruptura de confiança é uma ameaça para a democracia

 Esta segunda-feira, 19, a Presidência da República através de um comunicado emitido pelo seu conselho de administração veio desresponsabilizar-se pelas irregularidades e ilegalidades apontadas no relatório da inspecção geral das finanças que tinha sido publicado uma semana antes. De passagem aproveitou para denunciar o que classificou de uma “clara tentativa de conspurcar, desgastar a imagem do Presidente da República e de fragilizar e condicionar a sua intervenção política e a sua capacidade de influenciação”. No fim do comunicado acabou por culpar tudo e todos pela crise criada e a dizer que aguarda serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas.

A propósito dos salários da primeira-dama a presidência deixou claro que “num quadro de explicitação das motivações todas as informações foram prestadas ao sr. primeiro-ministro”. E é assim porque é o entendimento da presidência que o estatuto da primeira-dama existe ainda que disperso e lacunoso. Uma das lacunas seria relativamente à compensação a atribuir à primeira-dama. Não parece interessar que compensação ou salário de primeira-dama não existe em nenhuma democracia por não ser um cargo público.

De qualquer forma ficou-se à espera que o governo avançasse com a legislação nesse sentido. Segundo o comunicado, o documento foi entregue em mãos pelo presidente da república ao primeiro-ministro. Começam os problemas quando se faz por ignorar como se legisla na democracia cabo-verdiana. Primeiro, a iniciativa só pode ser do governo ou dos deputados e grupos parlamentares. Sendo do governo, a proposta de lei teria que ser aprovada em conselho de ministros. Partindo dos deputados ou de um grupo parlamentar implicava uma consensualização prévia. Em qualquer dos casos teria que ser discutida e votada na Assembleia Nacional por se tratar de matéria absolutamente reservada.

Um outro aspecto central é que não se pode legislar contra a Constituição da República. O presidente da república é um órgão singular e não há qualquer referência à primeira-dama e às suas funções no texto constitucional. Também não seria de ignorar a actual lei orgânica de 2007 que na presidência da república limitou-se a criar um gabinete de apoio ao cônjuge do Presidente. Uma simples declaração pública do PR a apresentar a “primeira-dama” não devia ser suficiente para pôr o gabinete a funcionar e muito menos para desencadear requisição de quadro de origem ou processamento de salários. Por tudo isso, devia ser evidente que, enquanto uma nova lei orgânica da presidência não fosse aprovada, essas medidas, ainda que provisórias, não podiam ter como suporte bastante a Diretiva nº1/02023 assinado pelo Chefe da Casa Civil.

Nem é de argumentar como faz o comunicado que tais medidas não foram questionadas, nem foram sugeridos caminhos diferentes por outras entidades como o Fisco e a Previdência Social. Ou então que se procurou criar respaldo financeiro para uma nova lei orgânica a aprovar. Muito menos culpar o “sistema” por despesas injustificadas, mas autorizadas por quem tem o grau de autonomia administrativa e financeira próprio de uma estrutura de apoio ao órgão de soberania, o presidente da república. Aparecendo a apontar o dedo à volta e a disparar para todos os lados, sem assumir a responsabilidade primeira de ter executado despesas indevidas, pode ser entendido como sinal de quem se acha acima de qualquer dever de prestação de contas. A verdade é que nem se conseguiria atribuir as irregularidades e ilegalidades à inexperiência dos principais decisores considerando o longo currículo dos mesmos na governação do país e na direcção de estruturas do Estado.

A intenção manifestada na parte final do comunicado de aguardar serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas poderá ser entendida como mais um estender do tempo de não assunção de responsabilidades. Aliás, foi o que aconteceu durante o meio ano após as revelações de finais de Dezembro quando foram realizadas as inspecções e elaborado o relatório. Mas a realidade é que a responsabilidade política não se esgota na responsabilidade jurídica conformada no controlo dos actos pelo tribunal de contas ou tribunais administrativos. É de a exigir aos titulares de cargos políticos e deve ser assumida pelos próprios sempre que se verificar quebra nas relações de confiança. Não se pode num momento suspender salários indevidos e uso de viatura e depois, sem uma preocupação de regularização da condição de cônjuge, manter a participação em actividades oficiais do Estado no país e no exterior como se nada tivesse acontecido.

Está com os titulares de cargos políticos a responsabilidade primeira de evitar o desgaste da sua imagem e o condicionamento da sua intervenção política. Em situações de perturbação na confiança não é ao público, à imprensa ou às redes sociais que se vai pedir responsabilidade. Particularmente, tratando-se do presidente da república que não pode ser destituído nem exonerado e não responde perante outros órgãos políticos, as exigências são maiores porque só está sujeito ao que os constitucionalistas chamam de responsabilidade difusa que realmente apenas significa censura pública. Ou seja, a sua imagem e a sua capacidade de influenciação dependem fundamentalmente de como desempenha o seu papel de árbitro e moderador do sistema político. A sua função de garante da unidade está associada à autoridade moral que advém da defesa activa dos bens e valores da ordem constitucional.

Um dos chamados deveres autónomos, o dever de pagar impostos, está ligado ao comprometimento do cidadão com a existência do Estado e na origem das democracias modernas foi traduzido na expressão da revolução americana de que há não tributação sem representação (no taxation without representation). Mas, assim como pela via do orçamento democraticamente aprovado, as receitas devem ser legais também tem que se assegurar a legalidade das despesas públicas. Ou seja, a sua conformidade em termos administrativos de competência e forma, e em termos financeiros de cabimento orçamental. É evidente que com qualquer falha, particularmente ao nível mais alto, no compromisso central de se ter receitas e despesas legais corre-se o risco de uma ruptura na confiança no Estado que deve ser assumido e reparado o mais rápido possível. Na Suécia, em 1996, a utilização indevida de um cartão de crédito governamental levou à demissão do vice-primeiro-ministro no chamado escândalo do Toblerone.

As crises recentes nas democracias têm demonstrado que disputas partidárias, conflitos institucionais e mesmo a ascensão de políticos populistas só conseguem criar instabilidade e abrir caminho para derivas iliberais e autocráticas se da parte da sociedade civil e da maioria das pessoas não houver uma defesa activa da ordem constitucional e dos procedimentos democráticos necessários para evidenciaram os ganhos da política e do pluralismo. Se, pelo contrário, os actores políticos se se limitarem ao tacticismo político, ao jogo de conveniência e à conquista e manutenção do poder, a todo o custo, a crise pode aprofundar-se com resultados imprevisíveis. Nesse sentido, a reacção de vários actores políticos quanto aos últimos acontecimentos na presidência da república não tem sido encorajador. Não é na busca de pequenos ganhos pessoais e de grupos que se serve o bem comum e se constrói um futuro de liberdade e prosperidade para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1186 de 21 de Agosto de 2024.

sexta-feira, agosto 16, 2024

Responsabilidade não rima com arrogância

 

Um dos grandes desafios das democracias na actualidade é manter os titulares de cargos políticos accountable, ou seja, sujeitos à prestação de contas e obrigados a assumir a responsabilidade por decisões, actos e omissões produzidos no exercício das suas funções. Mais difícil é fazê-lo quando há uma tendência crescente para o protagonismo individual em simultâneo com exibições muitas vezes extravagantes de privilégios associados aos cargos.

Com normas e instituições sob permanente pressão ou a serem ultrapassadas por esse tipo de comportamento enfraquecem-se as condições para a responsabilização política, contribui-se para tornar os cidadãos ainda mais descrentes e cínicos e faz-se da política uma espécie de entretenimento perverso.

Pelo que se vê em outras paragens, daí não vem nada de bom. Em Cabo Verde também se nota que muito da luta política passa por desafiar práticas e posturas habituais. Já há quem queira ir além do normalmente aceitável e expectável para construir figuras públicas que se apresentam como autênticas, como agentes de mudança contra as elites e em colisão com normas e instituições vigentes. Perante essas incursões, os mecanismos de responsabilização política ou se mostram ineficazes como nas situações conhecidas de bloqueio municipal ou arrastam-se sem grandes possibilidades de se chegar a uma conclusão nas comissões de inquérito parlamentear dando azo a permanente chicana política. Em outros momentos fica-se com a percepção que cumplicidades cruzadas procuram dificultar que tudo seja esclarecido, que as responsabilidades sejam assacadas e que o país tenha a possibilidade de avançar para além das tricas políticas e para um debate mais construtivo.

Esta segunda-feira, dia 12 de Agosto, foi publicado finalmente o relatório da Inspecção das Finanças à presidência da república. O pedido para a sua realização tinha sido formulado pelo próprio presidente da república a 23 de Dezembro de 2023 na sequência da notícia vinda a público de pagamento de salários à “primeira-dama”. Também foi solicitado ao Tribunal de Contas uma auditoria, mas até agora não há conclusões publicadas. Pelo relatório da inspecção geral das finanças, após mais de seis meses, constata-se que o pagamento “é irregular e não tem suporte na legislação em vigor” e recomenda-se que se deve proceder à reposição do montante.

Isso, porém, é o óbvio considerando que não há nada na legislação que pudesse prever o pagamento, nem havia precedente na II República que o justificasse. Para além de tardio, o que espanta é que, meio ano depois, no exercício do contraditório ao relatório da inspecção geral das finanças, a casa civil da presidência ainda insista na mesma linha de argumentos expressa na Directiva nº 01/CCC/2023 que autorizou o pagamento “irregular”. O presidente da república publicamente poderá ter suspenso o pagamento de salário e retirado a viatura e segurança pessoal à “primeira-dama” num gesto de reconhecimento da falha, mas nos serviços da presidência da república parece que tudo o resto ficou como estava. O relatório veio dar conta de várias outras irregularidades e a condição de cônjuge não foi clarificada.

Aparentemente, enquanto se espera pelos resultados das inspecções e das auditorias, a atitude é de, no essencial, se continuar como antes mesmo que a percepção pública seja de perplexidade e mesmo de censura. E quanto maior for a demora na produção e homologação dos mesmos, melhor. O esclarecimento do público e a correcção dos procedimentos não parecem ser prioritários. Pelo contrário, como se vem tornando comum nos choques de protagonismo na democracia, a postura de muitos titulares de cargos públicos é de desafio da opinião pública, quando chamados à responsabilidade. Não é a que seria de esperar de, com humildade, cumprir o dever de defesa e promoção dos bens e valores da ordem constitucional.

Na semana passada viu-se um outro exemplo de como as expectativas das pessoas são goradas. Com dificuldades evidentes no domínio dos transportes e outros sectores-chave como energia e água muitos puseram a esperança nas mexidas no governo que há meses esperavam, desde que em Abril dois membros do governo foram designados candidatos a presidente de câmaras municipais. A postura típica de desafio prevaleceu e como disse o primeiro-ministro é ele “é que sabe em que momento e em que condições é que fará maior ou menor ajustamento ou eventualmente remodelação”.

Aparentemente não interessa a escolha do momento para os designar candidatos autárquicos com prejuízo para a performance dos sectores de actividade com ministro a prazo e o aumento de atrito político com os municípios por causa do anúncio. Mesmo quando o ministro por conta própria dá por findo o exercício, espera-se uma semana para produzir um titular. E mais uma vez ao invés de esperadas mexidas vai-se para os ajustamentos que se tornaram habituais sempre que, por qualquer razão, o governo perde algum membro. Não parece haver nem visão, nem estratégia por detrás das novas nomeações. Mas é de visão e estratégia que o país precisa se tem que melhorar a sua produtividade e sua competitividade. Segundo o relatório do Estado da Economia de 2023 do BCV, o menor contributo da produtividade total dos fatores (PTF) foi um dos determinantes para o abrandamento do crescimento do produto nacional (PIB) em 2023 e continua em média, a um nível considerado baixo, condicionando o potencial de crescimento da economia.

Espera-se de todos os titulares dos cargos políticos que exerçam as suas funções com foco na prossecução do interesse público procurando controlar a arrogância que naturalmente a proximidade do poder distila e mostrando humildade na busca de soluções que os problemas complexos do país aconselham. Para se manter nessa linha é fundamental que os mecanismos de responsabilização funcionem tempestivamente e os titulares dos cargos vejam nesse seu dever de preservar a ordem constitucional e no respeito pelo princípio democrático a expressão mais profunda da sua vontade de servir.

É possível ter protagonismo político, ganhar eleições e governar sem ir pelas vias tortuosas de excitação de medos e ressentimentos e sem transpirar teimosia e ideias fixas. Quando tudo parecia ir num caminho sombrio nas eleições americanas, a campanha de alegria de Kamala Harris veio lembrar que pode haver uma outra via. Há pois esperança para um outro tipo de política, mais sintonizado com as necessidades das pessoas e da comunidade, mais responsável e solidária e mais produtiva e construtiva. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 12, 2024

Estar atento às armadilhas no caminho do desenvolvimento

 

Na semana passada o Banco Mundial emitiu um alerta aos países de rendimento médio dizendo-lhes que estão numa corrida contra o tempo. Numa publicação intitulada “Armadilha dos países de rendimento médio” (Middle income trap) o BM deixa claro que os próximos tempos não são os melhores para se fazer a transição de país de rendimento médio-baixo para o grupo dos países de rendimento médio-alto e muito menos para os de rendimento alto. Desde 1990 só trinta e quatro países conseguiram escapar à armadilha e elevar-se para o grupo de rendimento alto. São actualmente 108 os países de rendimento médio a tentar e a situação internacional é muito pior.

De facto, segunda a publicação do BM, os países de rendimento médio vêem-se actualmente com espaço de manobra mais apertado. Além de já enfrentarem problemas de aumento da dívida pública e do envelhecimento da sua população com os custos inerentes estão ainda sobrecarregados com a pressão para acelerar a transição energética e com os entraves nas relações comerciais devido ao crescente proteccionismo das economias mais avançadas. Se anteriormente conseguir fazer a transição para país desenvolvido era difícil, agora os obstáculos são muito maiores.

De acordo com o documento referido, os países para ascenderam no seu nível de rendimento têm que com sucesso passar de uma estratégia inicial de crescimento baseada no investimento (1i) enquanto países de rendimento baixo para uma outra de investimento e infusão de tecnologia (2i) adequada para países de rendimento médio e posteriormente para uma estratégia, à que se acrescenta inovação, de 3i para atingirem o grupo dos países desenvolvidos. Se transitar de país de rendimento baixo para médio é mais directo bastando mobilizar capital o mesmo já não acontece em subir ao estádio superior de desenvolvimento.

Não é à toa que há apenas 25 países de rendimento baixo, mas, em contrapartida, há 108 de rendimento médio, a maioria deles entalados numa espécie de armadilha em que não conseguem fazer o 2i, investimento e infusão de tecnologia, e contribuir para criar riqueza suficiente que os pode lançar para os níveis mais altos de rendimento. Aliás, segundo o BM, os países de rendimento médio devem passar por duas transições, uma em que para além de continuar a investir são bem-sucedidas com a infusão da tecnologia, ou seja, com a difusão no país de tecnologias modernas e processos de negócios vindos de fora. Outra, em que depois de completada a absorção tecnológica ficam criadas as condições para começar a acrescentar valor com inovações que podem encontrar mercado global e tornar o país mais competitivo e produtivo.

As dificuldades dos países de rendimento médio devem-se ao facto de nenhuma das duas transições ser fácil e, em consequência, mesmo que escapem de cair numa das armadilhas não há certeza que consigam ultrapassar a segunda. Também, como acrescenta o documento do BM, não é possível saltar etapas, fazer o leapfrogging. Tentar por exemplo investir em inovação sem passar pela infusão – com tudo o que em termos institucionais e de atitude acarreta de absorpção de tecnologia, de desenvolvimento de capacidades e de mobilização de talentos com reconhecimento do mérito e incentivos à iniciativa e à criatividade – não resulta. Deixa-se o país ficar num nível de crescimento que não lhe permite acompanhar e muito menos alcançar os mais avançados.

Os dramas vividos por esses países também se colocam a Cabo Verde enquanto país de rendimento médio-baixo. Guiando-se pelo exposto no documento do Banco Mundial, o país tem que se mostrar capaz de escapar às duas armadilhas. Infelizmente, os dados de crescimento em 2023 que foi de 5,1% do PIB, de acordo com o BCV, e as projecções do FMI/Banco Mundial para o resto da década à volta dos 5% poderão estar a indiciar que a armadilha já é real. A baixa da produtividade da economia e os resultados decrescentes dos investimentos públicos já são sinais disso designadamente no incentivo que deviam representar para investimentos privados.

Por outro lado, as medidas de política e a retórica do governo suportadas por enormes recursos que vêm sendo dirigidos para fazer da inovação um motor da economia parecem colidir com as constatações do BM. No documento alerta-se para o risco de tornar pior o clima de investimentos e atrasar o país em anos ou décadas como já aconteceu com vários países em particular na América Latina se a fase da infusão de tecnologia não for devidamente cimentada. E para isso, primeiro, a abertura a novas ideias e tecnologias tem que ser cultivada na sociedade e nas empresas. Também vontade e recursos para aumentar a capacidade de formação de técnicos, engenheiros e cientistas, a começar por bons liceus e escolas vocacionais, têm que ser procurados. E uma especial preocupação deve-se ter com as instituições que garantem livre expressão de ideias e propriedade intelectual e promovem a iniciativa empresarial.

Sem um planeamento adequado de todo um processo de modernização tecnológica pode-se chegar a uma situação em que não se sabe claramente quais os principais objectivos pretendidos. Percebe-se que iniciativas são tomadas, mas parecem silos quase fechados sobre si próprios criando ineficiências e com prestação deficiente de serviços. Outras pretendem diminuir a burocracia e a morosidade e aumentar a acessibilidade, mas nota-se que os serviços aos utentes e às empresas fica aquém do que é apregoado na inauguração de janelas e balcões únicos.

Aparentemente é a constatação dessa situação que levou à posse dada pelo primeiro-ministro a uma Equipa de Serviço Digital. O objectivo, segundo ele, é ampliar e diversificar os serviços online oferecidos de forma a que passem de cerca de 18 a 20% para próximo dos 100%. De passagem, reconhece que as múltiplas plataformas e portais existentes precisam ser integrados, eliminando redundâncias e custos desnecessários para os cidadãos e empresas. A questão que se coloca é por que isso levou tanto tempo para fazer e certamente implicou muito desperdício de dinheiro, tempo e oportunidades.

Há vinte anos que o país passou a dispor de banda larga e todo o processo de digitalização deveria ter sido conduzido para precisamente diminuir os enormes constrangimentos para as pessoas e para economia que um país com nove ilhas, população dispersa e uma cultura estatal burocrática e centralizadora representa. Países como a Estónia iniciaram a sua digitalização praticamente no mesmo tempo que Cabo Verde, mas souberam potenciar os desafios resultantes da sua condição de pequeno país para criar um serviço unificado e vender a sua experiência para o mundo. Aqui em Cabo Verde, duas décadas depois, “com várias plataformas e portais, redundâncias e custos desnecessários” quer-se fazer melhor trazendo a experiência do consulado em Lisboa.

Por aí fica aparentemente claro que a infusão de tecnologia que o Banco Mundial preconiza para que se faça a primeira transição não está completa. Também que investir na inovação quando ainda se está atrasado pode significar desperdício de recursos. É fundamental que se reflicta aprofundadamente sobre o processo de desenvolvimento para evitar armadilhas que podem atrasar o país ou impedi-lo de conseguir o nível de crescimento da economia que pode trazer prosperidade para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1184 de 7 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 05, 2024

Mais solidariedade e união para melhor estado da Nação

 Passado o choque causado pela pandemia da covid-19, seja na violenta contracção da economia de 14,8% do PIB, seja na retoma que veio a seguir com taxas de crescimento do PIB de 7,1% em 2021 e 17,7% em 2022 e 5,1 em 2023, o país tende a normalizar-se aquém dos 7% desejados ou prometidos. O FMI no último Economic Outlook projecta taxas de crescimento anual até 2029 que não chegam aos 5%.

Entretanto, ainda persistem alguns efeitos da crise pandémica e de acontecimentos seguintes como a guerra na Ucrânia, os constrangimentos na cadeia de abastecimentos e alguns recuos na globalização que afectam em particular a população com menor poder de compra e com dificuldades em conseguir emprego.

É o caso da inflação, da alta de preços dos combustíveis e de alimentos e da dívida pública acumulada. Acrescem ainda as medidas restritivas para se ter a taxa de inflação em linha com a da União Europeia e as exigências de consolidação orçamental para recuperar os equilíbrios macroeconómicos. O impacto imediato na economia não deixa de ser significativo apesar de contrabalançado pelo fluxo turístico que já ultrapassa os valores pré-pandémicos de 2019.

Juntam-se a isso as dificuldades manifestas em encontrar solução para os problemas dos transportes, apesar de tentativas múltiplas. Minam a confiança na capacidade de resolver problemas não só nesse sector como noutros também vitais como a segurança, educação e saúde. E é assim porque se nota que, em termos práticos, as sucessivas gestões do sector dos transportes têm quase sempre a mesma abordagem e propósitos não obstante os repetidos falhanços. Ontem o novo PCA da TACV situou-se no mesmo comprimento de onda ao dizer que “há um compromisso do Governo de termos uma ligação ainda este ano (...), a comunidade cabo-verdiana no Brasil e nos Estados Unidos da América podem estar cientes de que vamos ter ligação ponta a ponta”.

Curiosamente, a partir das declarações das forças da oposição e dos círculos na sociedade percebe-se que também a vontade geral é ir pelos mesmos caminhos, mas esperar resultados diferentes. Claro que com uma postura típica de Lampedusa “mudar para que tudo continue como está” não há confiança que aguente. Só se aumenta o stock de cinismo em relação às políticas públicas com consequências negativas para a competitividade e produtividade do país.

Num outro registo, há dias, o ministro da Administração Interna pôs em cerca de 33 mil o número de balas apreendidas pela polícia nos portos e aeroportos do país nos últimos seis anos. Ficou-se sem saber que percentagem da totalidade das balas entradas corresponderia esse número de balas. Também ficou-se sem saber qual é a dimensão do mercado de munições no país e porque é atractivo para os remetentes de pequenas encomendas. E ainda se o mercado está a crescer, ou não, e se isso é devido a maior quantidade de armas artesanais em circulação ou a uma maior procura de balas. Sem respostas para essas questões, fica-se aparentemente pela posição mais conveniente de colocar mais scanners, mas o problema de fundo da insegurança continua a pairar sobre todos.

Na educação parece que todos já finalmente despertaram para o problema da qualidade. A realidade é que, depois de tanto tempo a ignorá-lo, dificilmente se vai conseguir mobilizar a sociedade, as famílias e a própria máquina estatal para a promover. Não ajuda que os critérios de mérito de há muito que foram secundarizados e que o gosto pelo conhecimento, o brio profissional e o espírito crítico tenham sido desincentivados a favor de quem tem mais lata, faz carreira com base em intrigas, autopromoção e favores e opta pelo conformismo para ser aceite e singrar.

O protagonismo sindical recente dos professores independentemente do eventual mérito das suas propostas dificilmente significará algum foco na qualidade do ensino. A disrupção das aulas que vem acompanhando essa luta, que provavelmente será longa considerando os custos envolvidos e a intransigência das partes, não será propícia a que se crie o ambiente que poderá fazer da escola, mais do que um instrumento de mobilidade social, um centro de conhecimento onde a curiosidade e a imaginação serão estimuladas e a perseverança na procura da verdade será cultivada.

Na saúde, debate-se com vários problemas um sector que devia ter sido visto como estratégico por entre outras razões pelo facto de: primeiro, o país ser arquipelágico, pequena população e perfil demográfico que aponta para custos crescentes dos cuidados de saúde; e segundo, ter o turismo como motor da economia o que exige serviços de saúde de qualidade para a sua sustentabilidade, diversificação e expansão. Uma aposta compreensiva na saúde poderia criar as condições para o aumento e estabilidade do fluxo turístico ao longo do ano, para diversificar a oferta com exploração de nichos e imobiliária turística nas diferentes ilhas para estrangeiros aposentados, emigrantes e nómadas digitais.

Concomitantemente, essas condições iriam servir a população. Também para além dos investimentos a serem realizados ter-se-ia que promover uma formação a todos os níveis dos cuidados de saúde de qualidade e com certificação europeia para os garantir, formação essa que serviria a muitos jovens tanto no país como numa eventual emigração para conseguirem empregos de qualidade e com alta procura. O facto de não se agir numa perspectiva estratégica e com acções encadeadas faz com que o impacto dos investimentos realizados fique aquém do prometido, ineficiências acumulem e a satisfação dos utentes seja deficiente. Depois também fica a questão de pagar os custos de saúde da população que tendem a tornar-se incomportáveis sem que se tenha uma economia à altura de os suportar.

A complexidade dos desafios que se colocam a Cabo Verde exige um nível de debate público aprofundado e fulcralmente uma capacidade de federar vontades para tornar as reflexões em realidade prática. Esse debate só é possível em democracia e só se consegue a mobilização da vontade para enfrentar os desafios se houver um sentido geral de pertença a uma comunidade político nacional, não obstante a diversidade de interesses e a pluralidade das opiniões. O que pode bloquear o debate plural e frustrar uma vontade geral é a polarização da sociedade a um ponto tal que ao tomar adversários políticos como inimigo ou antipatriotas e ao assegurar que as regras do jogo democrático não são aceites a todo o momento por todos, não permite que a nação se una.

Cabo Verde é uma sociedade de uma certa forma mais simples, porque sem clivagens étnicas, linguísticas ou religiosas significativas. Não deveriam existir razões para uma polarização social e política que pusesse em risco o sentido de pertença à nação que já data de mais de um século de existência. Apesar disso, nota-se sinais de um nível de polarização similar ao das democracias em crise que impede o diálogo frutífero e a construção de vontades para enfrentar os desafios existenciais. Viu-se o efeito disso durante a pandemia da covid-19 e nos anos seguintes de recuperação.

O país não saiu da gravíssima crise com o sentido apurado de solidariedade e uma maior consciência das suas vulnerabilidades como seria de esperar. Nem o país, nem os seus governantes e a sua classe política mostram-se dispostos a assumir a nova atitude que a realidade actual impõe devido às tensões geopolíticas, às transformações em curso no mundo. Permite-se que a polarização social e política se acentue com recurso a políticas identitárias e a ressentimentos imaginados, sapando as energias da nação e quebrando a sua vontade. Não espanta que no carnaval já se preconiza um modo de estar “de tud manera, ê ba devagar”. Há que inflectir caminho com solidariedade e responsabilidade.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1183 de 31 de Julho de 2024.

segunda-feira, julho 29, 2024

O estado dos partidos e da política

 Em vésperas do debate sobre o estado da Nação importa que também se reflicta sobre o estado dos partidos e da política e seu impacto na qualidade das políticas públicas. As democracias pressupõem a existência de partidos políticos.

E é assim porque se tem na base a ideia de que com liberdade e pluralismo as virtualidades de um debate no contraditório podem traduzir-se em conhecimento da realidade complexa do país e em acção governativa responsável dirigida para a consecução do interesse público. Também essencial é a existência de mais de um partido para se ter alternância na governação e os eleitores estarem na posição de escolher visões alternativas do futuro do país. Nesse sentido, a “boa saúde” dos partidos políticos é vital para as democracias.

Sem um bom desempenho dos partidos políticos, as promessas da democracia dificilmente são cumpridas e a crise em diferentes roupagens poderá instalar-se, aumentando o cinismo público e abrindo a porta a populismos demagógicos. A crise prevalecente na generalidade das democracias, expressa na forma de crise de representação, na deriva para posições iliberais, na normalização de posições extremas, nas guerras identitárias e culturais e na ascensão de actores políticos narcisísticos e anti-sistema, afecta destrutivamente os partidos e paradoxalmente é potenciada pela actuação dos próprios. A cavalgar e a aprofundar as crises das democracias estão “alegremente” os partidos políticos, mesmo que no desfecho final da crise, sejam eles também vítimas a procurar sobreviver num ambiente de mais autocracia e de menos liberdade, menos criatividade e mais seguidismo, menos capacidade de transformar o país e mais submissão aos ditames de quem ainda financia o país.

Por todo o mundo, neste ano de todas as eleições, o drama que reflecte essa crise aguda da democracia repete-se. Em alguns casos, como recentemente na França e na Índia ainda se vai driblando o que parecia desfecho certo de regressão no sistema democrático liberal. Nos Estados Unidos encontra-se tudo em aberto para o que poderá ser um grande ponto de viragem na relação desse país com o resto do mundo com consequências nefastas para a paz, para a prosperidade global das nações e para se enfrentar os desafios das alterações climáticas e da transição energética que se impõe.

Em Cabo Verde, os sinais de crise nos partidos de há muito que se fizeram sentir. Como praticamente nada foi feito num período relativamente longo de 2021-2024 sem confrontos eleitorais para corrigir tendências desestruturantes no seio das organizações partidárias, não será agora, em cima de um novo ciclo eleitoral, a iniciar com as eleições autárquicas de Novembro/Dezembro, que isso vai acontecer. É por causa disso, que mesmo com uma maioria parlamentar, não se conseguiu transmitir uma imagem de solidez na articulação entre o governo e a sua maioria que tivesse um efeito estabilizador do sistema e proporcionasse espaço para compromissos em questões essenciais. Iniciado o novo ciclo eleitoral, o resultado, de não se ter feito atempadamente mudanças nos partidos e no estilo das suas lideranças, será provavelmente de tornar ainda mais disfuncional o sistema democrático a começar pelo poder autárquico.

Na origem disso vão-se encontrar comportamentos facciosos e protagonismos individuais com características narcisísticas que cada vez mais fazem escola impulsionados pelas redes sociais e que tendem a normalizar-se dentro dos partidos. Como se viu nas últimas semanas, no drama vivido no seio do maior partido da oposição, tais tendências podem servir até para sacrificar ou cancelar dirigentes, militantes e as suas ideias, mas não se prestam para conseguir a unidade necessária para garantir, por exemplo, uma direcção parlamentar e evitar tendências autocráticas nas duas principais câmaras do país. Na sequência das novas eleições nos municípios e com o eventual realinhamento autárquico, outras situações semelhantes às das câmaras de S. Vicente e da Praia poderão aparecer. Não é de esperar que os partidos, no actual estádio de conflitualidade interna, venham a estar em posição de as resolver.

À medida que os problemas nos partidos vão-se aprofundando, podem transferir-se para as instituições e para o funcionamento do sistema provocando impasses e bloqueios. Já se viu como podem derramar-se sobre o parlamento afectando negativamente a qualidade do debate político, impedindo a eleição de órgãos externos à AN e diminuindo a eficácia da fiscalização do governo. Também essas omissões e desencontros no uso de competências constitucionais criam tensões entre órgãos de soberania como parece ter sido a questão das chamadas linhas vermelhas do presidente da república e outros “casos e casinhos” que amiudamente aparecem.

Aliás, é de notar que nunca antes durante as três décadas de democracia as tensões entre o PR e governo tiveram a publicidade de hoje. Governos de maioria absoluta não deixam muito espaço para o PR ganhar o hábito de “bordejar” os limites das competências constitucionalmente estabelecidas e mesmo ultrapassá-las. O facto de só ter acontecido nos dois mandatos do governo de Ulisses Correia e Silva e com diferentes PRs pode querer sinalizar quem não se está a guardar bem no exercício das suas funções.

As situações anómalas criadas não beneficiam o funcionamento do sistema político porque entre outros factores abrem portas para tentações. Tanto os partidos de oposição podem procurar instrumentalizar as intervenções do PR como, pior ainda, na proximidade das eleições, elas podem ser vistas como orientadoras da oposição. Evidentemente que com tais posicionamentos os partidos subalternizam-se ou são subalternizadas deixando de ser os protagonistas principais no processo que leva a mudanças de governo para se apresentarem como uma espécie de clique à procura de poder a todo o custo.

Não menos prejudicada é a preocupação com a produção de políticas para o presente e futuro do país particularmente quando as dificuldades se acumulam em certos sectores-chaves como (transportes, educação, saúde). É preciso uma busca conjunta que conduza ao debate profícuo entre as partes e a entendimentos estratégicos para as ultrapassar. Busca essa que claramente é prejudicada por disfunções nos partidos.

No caso do partido da maioria, a gestão delas leva a uma espécie de imobilismo no governo que anos seguidos continua praticamente o mesmo independentemente se está ou não a enfrentar com sucesso os desafios. Não espanta que as projecções do FMI para o crescimento da economia para os próximos anos até 2029 continuam a situar-se à volta de 4,5%. Por seu lado, a oposição também a nivelar-se por baixo na gestão das ambições de curto prazo de indivíduos e grupos não consegue ser muito diferente em termos de substância. Junta-se à caravana que tem soluções simples para problemas complexos, que toma como ideal fazer de todos um empreendedor e que não se furta à perspectiva de ter mais apertadas as malhas da dependência. Afinal, é aí o campo privilegiado para se fazer os jogos do poder.

O ano parlamentar vai terminar na próxima semana e claramente que os partidos não se prepararam para a produção de políticas públicas nem para a formação de dirigentes para os desafios que o novo ciclo eleitoral vai trazer. O mundo, porém, está a mudar rapidamente e não basta em relação às políticas seguir simplesmente a agenda das organizações internacionais. Nem tão-pouco para as lideranças ficarem pelo mais ambicioso, ou o mais narcisista, ou o mais fechado em si próprio. Seguindo exemplos recentes de outras democracias há que inflectir a tendência para a degradação da política e dos partidos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1182 de 24 de Julho de 2024.