O Governo, em matéria de emprego, parece ter deixado cair a toalha ao chão. Solicitou
um debate parlamentar sobre emprego e formação profissional. Já praticamente a
fim do seu mandato e sem ter cumprido o objectivo da legislatura de baixar o
desemprego a níveis inferiores a 10%, o convite à Oposição só pode significar
que se esgotou em termos de soluções próprias.
E isso não se esconde com o frenesim habitual de membros do
Governo a se espalharem pelas ilhas a falar de formação profissional e
empreendedorismo e a prometer a construção de centros de formação. Formação profissional
é útil para responder ás necessidades do mercado em trabalhadores qualificados.
Por si mesmo não cria emprego. Pode tornar as pessoas empregáveis. Mas isso, se
houver procura, ou seja, se houver crescimento da economia, se os mercados
estiverem organizados e se o exercício da profissão for regulado de modo a
evitar informalidade no acesso ao trabalho.
Crescimento económico não aconteceu nas taxas que podiam
contribuir para debelar significativamente o desemprego. Com a crise, o investimento
público, focalizado em infraestruturas, não se tem revelado capaz de arrastar o
resto da economia e manter o ritmo de crescimento. Consequências disso são
visíveis ao nível do emprego e do rendimento das pessoas mas também das
receitas do Estado, como bem disse a Sra. Ministra das Finanças.
A unificação do mercado nacional que, num país arquipélago e
de pequena população, poderia trazer um factor de escala para alguma produção
nacional não atingiu níveis desejados. S. Antão continua cortada do resto do
país por causa dos milpés, Brava e Maio estão praticamente isoladas e as
comunicações entre as outras ilhas sofrem os efeitos da precariedade das
ligações, inadequação dos barcos e constrangimentos vários ao nível dos portos
e serviços neles prestados. O Governo insistiu na construção de rede de estradas
nas ilhas e descurou as “auto-estradas” entre as ilhas, as linhas marítimas. Sem
movimento garantido inter ilhas fica-se muito aquém de retirar os benefícios
possíveis da construção das estradas. A estrada Porto Novo Janela, por exemplo,
compreende-se em grande parte se houver um
esforço redobrado de unificação económica de S.Vicente e S Antão que gere mais circulação
de pessoas e bens.
A organização do mercado pressupõe que se reconheça,
designadamente, onde é capaz de funcionar em pleno, onde é imperfeito, onde se
deve condicionar a entrada de operadores e onde não é possível substituir a
presença do Estado. E, também, que se aja em consequência.
As ligações marítimas inter ilhas são claramente um sector
que não pode ser deixado unicamente nas mãos do sector privado. A exemplos de
outros espaços arquipelágicos como os Açores onde se subsidia o transporte
marítimo, o Governo de Cabo Verde deve ter respostas à altura. Subsídio,
concessões, licenças ou intervenção directa, devem ser considerados com vista à
unificação do mercado interno como forma de potenciar a produção nacional .
Subsídios têm sido estigmatizados, muitas vezes sob pressão
do FMI, devido a preocupações legítimas
com o possível impacto orçamental no presente e no futuro. Não se tem, talvez,
em devida conta os ganhos derivados do efeito multiplicador na economia que, a
verificarem-se, diminuem o risco orçamental.
O resultado é que ligações como as que ligam Praia ao Maio e
Brava ao Fogo não gozam de um contrato próprio incluindo subsídios. Contrato
esse que ao estabelecer frequência certa do barco, ou seja criar
previsibilidade na ligação, abre o caminho para o crescimento progressivo do
movimento de carga e passageiros nos dois sentidos e consequente aumento do
emprego e produção na ilha. O subsídio inicial para cobrir a diferença entre o
custos e as receitas derivadas de carga e passageiros, tende a diminuir com o
crescimento do tráfico. E, a prazo, a terminar mesmo, com a viabilização da
rota. Mais arriscado parece é a insistência do Governo em soluções que
comprometem o Estado com subsídios sem serviço imediato, Cartas de Conforto na
emissão de obrigações, sem o aparente suporte de activos, e presença problemática
do Primeiro Ministro em OPOs (Oferta Pública de Obrigações) de empresas
privadas.
A ajuntar-se à falta de visão na organização do mercado
nacional, vêm as omissões na regulação. Um dos exemplos mais gritantes é a
produção e distribuição do grogue. Mesmo os efeitos desastrosos do elevado
alcoolismo em todo o País, particularmente no mundo rural e entre os jovens não
levam as autoridades a ter uma posição forte e corajosa.
O País não tem cana sacarina suficiente para produzir os
muitos hectolitros de grogue consumidos
anualmente. A diferença entre a oferta e a procura é coberta por mistelas
diversas destiladas livremente, sem obviamente qualquer controle de qualidade e
de nível de toxicidade. O resultado é que o “mau” grogue acaba por deslocar o
“bom” grogue de cana, deprimindo os preços, arruinando os proprietários de cana
ou forçando-os a juntarem-se à produção ilegal. A desconfiança generalizada em
relação ao Grogue faz o produto perder mercado tanto no país, entre as classes
mais abastadas e no mercado do turismo, como não consegue atingir o seu
potencial enquanto produto de exportação para o mercado étnico das comunidades
na América e na Europa. Perdem os proprietários, perde o Estado com a produção
ilegal, não tributada, e perdem os exportadores.
A distribuição não regulada, por outro lado, tem
consequências sociais graves pelo impacto directo nas famílias, na
produtividade do trabalho, nos custos das estruturas de saúde e nas demandas
feitas ao sistema de segurança para pôr cobro aos tumultos causados pelo uso
excessivo do álcool. Fica evidente que aceitar-se que se venda, em todo o lado,
cálices de grogue por 10 escudos, ou que se deixe generalizar misturas
adocicadas para disfarçar o mau gosto do grogue e atrair jovens mulheres a
bebidas fortes, não traz quaisquer ganhos ao País. Em vez de criar trabalho e
gerar divisas com exportações, a produção do Grogue destrói pessoas, compromete
a produtividade nacional e onera o Estado. É tempo de se agir inteligentemente,
mas resolutamente, para regular o sector e pôr cobro ao problema.
A intervenção qualificada
do Estado num economia pequena e insular como a caboverdiana pode ser um factor
importante de crescimento. Desde logo pelo facto da própria presença do Estado
através dos salários pagos, serviços prestados, bens e serviços comprados,
fluxo de pessoas induzidos e eventos criados afectar tudo à sua volta. Modular
o impacto do Estado de forma a que, designadamente, favoreça a concorrência
entre empresas, contribua para uma maior qualidade nos produtos e serviços
prestados, e incentive a emergência e desenvolvimento de novos mercados deve
constituir uma parte importante das medidas de política económica do Estado. As
opções de descentralização, o modelo de aprovisionamento de bens e serviços, as
formas adoptadas na prestação dos serviços do Estado e mesmo a organizações de
eventos públicos devem ter em devida consideração o peso e a influência que a
acção do Estado poderá ter nas pequenas economias das ilhas, para melhor as
potenciar.
O sector energético é um sector a pedir uma intervenção
qualificada do Estado. Uma intervenção que vá além da simples procura de
financiamento para formas convencionais de produção de energia e água. Ou fique
por acções, também financiadas do exterior, como é caso das entregas
mediatizadas de lâmpadas de baixo consumo.
Onde estão as outras medidas de promoção da poupança nos
consumidores? Se a tendência do futuro – futuro que já foi o presente poucos
meses atrás no preço de petróleo a 145 dólares - é do aumento do preço dos
combustíveis fósseis sob o impulso da procura, como ficar pela actual política
de preços de combustível? O objectivo parece ser, tão somente, proteger o
orçamento do Estado de choques futuros. Quando o que importa, agora e no futuro,
é modelar comportamentos dos consumidores, consentâneos com a inevitabilidade
do aumento dos combustíveis, logo que a economia mundial saia da recessão actual.
Por outro lado, como não criar possibilidades de emprego com
novos mercados criados pela regulação do sector energético. Uma decisão, por
exemplo, de favorecimento de colectores solares térmicos para a produção de
água quente para hotéis, blocos de apartamentos e outros edifícios em
detrimento de termoacumuladores eléctricos criaria espaço para o surgimento de
empresas de montagem, instalação e manutenção dos colectores. Ganhar-se ia em novos
empregos e na poupança de energia com proveito directo para os consumidores,
para os fornecedores de energia e para a balança de pagamentos do País. No
mesmo sentido ir-se ia com acções de política dirigidas para instituir a
certificação energética dos edifícios.
A grande oportunidade que poderá abrir-se ao País está num comprometimento
forte, sério e abrangente no domínio dos biocombustíveis, particularmente do
biodiesel a partir da purgueira. A purgueira, jatropha curcas, é uma planta decididamente adaptada em Cabo Verde cujo óleo já
fez parte da economia das ilhas como produto de consumo local e de exportação.
Das plantas oleaginosas é a que mais se pode retirar óleo: até 40% da sua
massa. Depois de um processo de refinação que é fundamentalmente de transesterificação, o óleo resulta em
biodiesel e glicerina. O biodiesel pode ser misturado com o diesel num blend a diferentes percentagens. Na Nova
Zelândia, em Fevereio deste ano, fez-se
mesmo a experiência de misturar 50-50 o biodiesel da purgueira com o Jet Fuel
para operar um dos reatores de um Boeing 747-400.
Com uma capacidade de produção por colheita e por hectare de
cerca de 1800 litros
de óleo, a purgueira a pode ser a cash
crop que o mundo rural caboverdiano, há muito tempo, procura. Dá-se muito
bem em zonas semi-áridas e de terrenos marginais e não compete com as plantas
alimentares. Importa neste momento é que se crie um mercado para o óleo da
purgueira.
E isso faz-se definindo
por lei a percentagem do diesel em Cabo Verde que deverá ser biodiesel. A exemplo da
Directiva da União Europeia de 2003 que aponta para uma percentagem de
biodiesel de 5.75 % na Europa até 2010 e de leis noutros países que estipulam percentagens
muito mais elevadas de 20%. Com isso, grandes ganhos podem ser vislumbrados:
ganho para os agricultores e para a população rural; ganho para o país porque haveria
menos importações de combustíveis fósseis; ganho para o ambiente com um
combustível menos poluente. Ganhos futuros em vendas de crédito de carbono.
Acordos público-privado do género do que foi assinado na
semana passada com a GeoCapital denota o
interesse dos poderes públicos. Mas há que agir de forma decidida para criar
espaço para o biodiesel, a partir do
óleo da purgueira, no mercado global do diesel em Cabo Verde, avaliado em
mais de 96 mil toneladas e um total de 11 milhões de contos.
No mundo globalizado de hoje ganhos importantes vão para
quem consegue ver as tendências a emergir e posicionar-se para as explorar. Os
empregos novos assim criados têm maior possibilidade de sustentabilidade a
prazo. Para o País, saber antever o futuro e adaptar-se rapidamente ás suas
exigências pode ser a fórmula ganhadora. Nessa perspectiva, mais do que talvez
a formação profissional , uma grande qualidade no ensino das ciências, da
matemática e das línguas no nível básico e secundário parece mais vantajoso.
Uma base sólida permite que rapidamente as pessoas adquirem novas qualificações
e mudem de profissão, conforme a dinâmica do mercado.
É matéria para se continuar a reflectir.
Publicado pelo jornal A Semana de 8 de Maio de 2009
sexta-feira, maio 08, 2009
domingo, abril 26, 2009
A importância da diferença
Em Cabo
Verde já se vive um ambiente político pré eleitoral. Não
obstante o facto de se estar a mais de dezoito meses das eleições legislativas,
previstas para Janeiro de 2011.
A crise mundial pôs um fim prematuro a qualquer esperança que a actual governação do País seria capaz de cumprir os dois grandes objectivos da legislatura: o crescimento de economia a mais de 10% e o debelar do desemprego para níveis abaixo dos 10%. Não o fez no tempo das vacas gordas do crédito fácil, de expansão rápida do comércio internacional e de forte crescimento mundial. Ninguém espera que o faça no momento actual que já é chamado de Grande Recessão, para caracterizar a maior contracção da economia mundial desde da Grande Depressão de 1929.
A crise, constituindo o fim de um ciclo e muito provavelmente de um modelo de crescimento, impõe reflexões profundas e urgentes. De como as diferentes economias foram, por ela, apanhadas, como acabaram por ficar afectadas e que perspectivas têm de minorar o impacto e adaptarem-se às novas relações económicas que irão emergir. A preocupação com o futuro é mais premente em países como Cabo Verde que ficaram muito aquém de retirar o proveito possível, quando as condições eram mais favoráveis.
Há a consciência que já é o futuro em discussão. Porque só políticas novas e uma renovada legitimidade irão dar tempo e energia á governação. Nessa perspectiva já se assiste o governo e o partido que o suporta a lançarem-se na ofensiva para se manterem no Poder. E a Oposição a ser espicaçada para se revelar como uma verdadeira alternativa.
Cabo Verde vive um momento de verdade. Tem que se confrontar com o facto de não obstante os níveis de crescimento atingidos não conseguiu, em mais de oito anos, baixar o desemprego para valores iguais, e muito menos inferiores, aos do ano 2000. Também tem que encarar o facto de não ter conseguido alargar a base da sua economia, deixando-a perigosamente a suportar-se sobre o turismo, como bem alertou o FMI no seu relatório de Julho de 2008. E ainda com o facto de hoje ser classificado como País de Rendimento Médio e ver progressivamente diminuir ajudas e empréstimos concessionais.
Respostas adequadas devem ser encontradas:
Respostas só podem ser encontradas no exercício do contraditório, em ambiente de liberdade e com elevado sentido de justiça. Pressupõem a existência de diferenças, o respeito pela diferença e a condenação da arrogância totalitária, patrioteira e moralista que insiste na inutilidade da diferença.
A democracia liberal tem nos seus fundamentos o exercício das liberdades, particularmente a rainha das liberdades, a liberdade de expressão e de informação. Ou seja, a democracia liberal não só pressupõe a diferença como vive das suas múltiplas manifestações e interacções. Compreende-se, assim, porque não há democracia sem partidos políticos e como é importante mantê-los não obstante as suas notórias insuficiências e imperfeições.
Em momentos críticos, como o actualmente vivido em Cabo Verde, é de suprema importância que os partidos sejam chamados a exercer em pleno o seu papel. Têm a responsabilidade de criar soluções de governo e devem colocar-se à altura. Ou seja, devem dizer quem são, o que representam e que políticas propõem. Com isso dinamizar o debate nacional, fazendo com a sociedade tenha uma ideia dos desafios existentes e das possíveis vias para os enfrentar e vencer. O espectáculo do exercício da democracia na América, que produziu Barak Obama, deve ser fonte de inspiração, para se discutir e encontrar soluções de políticas e de liderança para o País, na encruzilhada em que também se encontra.
O período pré eleitoral actual não deve focalizar-se unicamente nas personalidades pretendentes a líderes e nos relatos de intrigas palacianas, que acompanham a expressão das ambições. Mais do que nunca urge discutir o País. Para isso é fundamental que os partidos se dêem a conhecer, afirmem as diferenças e confrontem políticas nos diferentes sectores de governação.
O MpD e o PAICV são os dois partidos da área de governação. Como tal têm responsabilidades acrescidas. Não devem deixar deslizar-se para posturas de simples protesto ou de contra poder. Uma tentação que não é simplesmente de quem, conjunturalmente, está na oposição. Também quem governa, no alto da sua arrogância pode reagir às tentativas de fiscalização e de limitação da governação com protestos que o escusam de prestar contas e mostrar-se responsável. E pode agir como contra poder quando nega à oposição os poderes de check and balance que a Constituição lhe confere.
Os dois partidos pilares do sistema político caboverdiano surgiram em momentos diferentes da História do País. A matriz ideológica diferenciada e a cultura política que a acompanha são tributárias das respectivas trajectórias.
O PAICV, o velho partido único, evoluiu para o campo socialista do tipo europeu. Em consonância com os tempos e no governo após 2001, a exemplo de partidos socialistas na Europa, aproximou-se mais do centro político e tornou-se, na prática, herdeiro de políticas iniciadas pelo MpD nos anos noventa. A defesa do Acordo Cambial, a implementação das reformas fiscais e o desenvolvimento do sector financeiro e de regulação ilustram isso.
O MpD, inicialmente um movimento anti - partido único, define-se pelas tarefas que se impôs após a vitória de 13 de Janeiro de 1991. Tarefas essas em consonância com o mundo saído da queda do comunismo e do fim da Guerra Fria: a construção das instituições democráticas, a começar pela Constituição da República, e a reestruturação da economia caboverdiana, visando construir uma economia de base privada, inserida na economia mundial, a partir de uma economia estatizada, essencialmente autárcica.
No essencial ao longo dos quase quinze anos de vigência democrática os dois partidos mantiveram os elementos essenciais da sua matriz ideológica. O PAICV dá a aparência de suavizar os seus contornos, pressionado pelas instituições e procedimentos democráticos. O MpD sofreu dissensões internas em 1993 e 1998, ano do Acordo Cambial, em reacção às reformas económicas em curso, mas manteve o rumo. Na prática, tirando as nuances e focalizando no essencial, pode-se ver que o PAICV procura apresentar-se como o partido do Estado, o partido social e o partido das questões identitárias. O MpD mostra-se como o partido da Constituição e das liberdades, o partido da descentralização e o partido da iniciativa privada e da autonomia do indivíduo e da sociedade civil.
As políticas do PAICV convergem no reforço do Estado na relação com os indivíduos, a sociedade e a economia. Resultam no elevar do nível de centralização do País e de aumento da dependência das pessoas. O partido alimenta-se de questões identitárias (nacionalismo, africanização, género, língua, etc.) aproveitando-se da motivação e forte sentimento de pertença que assola os indivíduos quando se posicionam em campos antagónicos. Sociologicamente o PAICV aparenta ser o partido da elite urbana que gravita á volta do Estado seja na Administração Pública, seja nas empresas, outrora públicas e hoje privatizadas. Compreende-se pois que insista sempre que o critério para avaliação do Governo seja o de capacidade de captação de ajuda e de outros fluxos externos. Na cadeia alimentar sustentada por esses fluxos ganha quem está no topo, ou seja quem está com o Estado.
Em contrapartida o MpD aparenta ser o que alguém, uma vez, chamou o partido de bóias frias, o partido dos mais pobres, dos menos escolarizados e dos mais velhos. Em Cabo Verde os partidos políticos, grosso modo, não reflectem a base social que normalmente estão associados a partidos de direita e de esquerda. A razão para isso está no facto do sistema económico do País, alimentado de fora desde da sua fundação, desenvolveu um sistema rentista em que os privilegiados estão no Estado. Nas populações chega um fiozinho das ajudas, ficando a parte de leão nas elites, sob várias formas. O chamado desemprego estrutural é, em grande parte, consequência do modelo que privilegia captação de ajudas sobre a produção e a exportação de bens e serviços. A persistência do nível de desemprego a mais de 20% da população, não obstante os avultados investimentos feitos e os anúncios de entrada de milhões em investimento directo estrangeiro, é a demonstração completa do fracasso do modelo.
O que faz do MpD um partido popular e de multidões é a esperança que os deserdados do regime rentista de captação de ajudas têm de ver nascer no país uma economia nacional, inserida no mundo, capaz de assegurar empregos sustentáveis e de proporcionar rendimentos crescentes e maior qualidade de vida ás pessoas. Isso naturalmente colide com os interesses de quem beneficia da aproximação do sistema rentista. E não só. Também colide com medos atávicos em boa parte da sociedade caboverdiana, que ainda vê no Estado a salvação em caso de crises profundas. Medos esses que estão sempre debaixo da superfície e, às vezes, ardilosamente reavivados.
Mover o país para frente e colocá-lo na posição de criar trabalho para todos, e assim efectivamente combater a pobreza, deve ser o ponto focal do debate para as eleições legislativas. Questões relacionadas, como sejam o papel do Estado, a descentralização, a eficácia de justiça, a segurança, a educação e a saúde deverão ser equacionadas.
Os partidos políticos têm a responsabilidade de condução do processo. Que o debate se inicie. E que, para cada caboverdiano, fique claro qual é afinal a distinção entre um e outro partido e as opções de desenvolvimento propostas.
Publicado pelo Jornal A Semana de 26 de Abril de 2009
A crise mundial pôs um fim prematuro a qualquer esperança que a actual governação do País seria capaz de cumprir os dois grandes objectivos da legislatura: o crescimento de economia a mais de 10% e o debelar do desemprego para níveis abaixo dos 10%. Não o fez no tempo das vacas gordas do crédito fácil, de expansão rápida do comércio internacional e de forte crescimento mundial. Ninguém espera que o faça no momento actual que já é chamado de Grande Recessão, para caracterizar a maior contracção da economia mundial desde da Grande Depressão de 1929.
A crise, constituindo o fim de um ciclo e muito provavelmente de um modelo de crescimento, impõe reflexões profundas e urgentes. De como as diferentes economias foram, por ela, apanhadas, como acabaram por ficar afectadas e que perspectivas têm de minorar o impacto e adaptarem-se às novas relações económicas que irão emergir. A preocupação com o futuro é mais premente em países como Cabo Verde que ficaram muito aquém de retirar o proveito possível, quando as condições eram mais favoráveis.
Há a consciência que já é o futuro em discussão. Porque só políticas novas e uma renovada legitimidade irão dar tempo e energia á governação. Nessa perspectiva já se assiste o governo e o partido que o suporta a lançarem-se na ofensiva para se manterem no Poder. E a Oposição a ser espicaçada para se revelar como uma verdadeira alternativa.
Cabo Verde vive um momento de verdade. Tem que se confrontar com o facto de não obstante os níveis de crescimento atingidos não conseguiu, em mais de oito anos, baixar o desemprego para valores iguais, e muito menos inferiores, aos do ano 2000. Também tem que encarar o facto de não ter conseguido alargar a base da sua economia, deixando-a perigosamente a suportar-se sobre o turismo, como bem alertou o FMI no seu relatório de Julho de 2008. E ainda com o facto de hoje ser classificado como País de Rendimento Médio e ver progressivamente diminuir ajudas e empréstimos concessionais.
Respostas adequadas devem ser encontradas:
- Para questões sobre a natureza e a qualidade dos investimentos que até podem mexer com os números no PIB mas falham em alargar a estrutura produtiva e em criar empregos sustentáveis;
- Para se saber porque o País ainda não se mobilizou para adquirir uma cultura de serviços e desenvolver nas pessoas um espírito cosmopolita traduzido, designadamente, na atitude certa para com o mundo e em competência linguística relevante;
- Para se determinar o papel que o Estado deverá ter na economia nacional, o peso limite permitido na absorção dos recursos nacionais, o impacto que a descentralização, ou não, das suas estruturas poderá ter sobre a economia local das ilhas;
- E, também, de como fazer para se passar da actual situação de dependência do Estado para uma outra de autonomia do indivíduo em que o exercício pleno dos direitos se conjuga com o sentido de responsabilidade e de pertença.
Respostas só podem ser encontradas no exercício do contraditório, em ambiente de liberdade e com elevado sentido de justiça. Pressupõem a existência de diferenças, o respeito pela diferença e a condenação da arrogância totalitária, patrioteira e moralista que insiste na inutilidade da diferença.
A democracia liberal tem nos seus fundamentos o exercício das liberdades, particularmente a rainha das liberdades, a liberdade de expressão e de informação. Ou seja, a democracia liberal não só pressupõe a diferença como vive das suas múltiplas manifestações e interacções. Compreende-se, assim, porque não há democracia sem partidos políticos e como é importante mantê-los não obstante as suas notórias insuficiências e imperfeições.
Em momentos críticos, como o actualmente vivido em Cabo Verde, é de suprema importância que os partidos sejam chamados a exercer em pleno o seu papel. Têm a responsabilidade de criar soluções de governo e devem colocar-se à altura. Ou seja, devem dizer quem são, o que representam e que políticas propõem. Com isso dinamizar o debate nacional, fazendo com a sociedade tenha uma ideia dos desafios existentes e das possíveis vias para os enfrentar e vencer. O espectáculo do exercício da democracia na América, que produziu Barak Obama, deve ser fonte de inspiração, para se discutir e encontrar soluções de políticas e de liderança para o País, na encruzilhada em que também se encontra.
O período pré eleitoral actual não deve focalizar-se unicamente nas personalidades pretendentes a líderes e nos relatos de intrigas palacianas, que acompanham a expressão das ambições. Mais do que nunca urge discutir o País. Para isso é fundamental que os partidos se dêem a conhecer, afirmem as diferenças e confrontem políticas nos diferentes sectores de governação.
O MpD e o PAICV são os dois partidos da área de governação. Como tal têm responsabilidades acrescidas. Não devem deixar deslizar-se para posturas de simples protesto ou de contra poder. Uma tentação que não é simplesmente de quem, conjunturalmente, está na oposição. Também quem governa, no alto da sua arrogância pode reagir às tentativas de fiscalização e de limitação da governação com protestos que o escusam de prestar contas e mostrar-se responsável. E pode agir como contra poder quando nega à oposição os poderes de check and balance que a Constituição lhe confere.
Os dois partidos pilares do sistema político caboverdiano surgiram em momentos diferentes da História do País. A matriz ideológica diferenciada e a cultura política que a acompanha são tributárias das respectivas trajectórias.
O PAICV, o velho partido único, evoluiu para o campo socialista do tipo europeu. Em consonância com os tempos e no governo após 2001, a exemplo de partidos socialistas na Europa, aproximou-se mais do centro político e tornou-se, na prática, herdeiro de políticas iniciadas pelo MpD nos anos noventa. A defesa do Acordo Cambial, a implementação das reformas fiscais e o desenvolvimento do sector financeiro e de regulação ilustram isso.
O MpD, inicialmente um movimento anti - partido único, define-se pelas tarefas que se impôs após a vitória de 13 de Janeiro de 1991. Tarefas essas em consonância com o mundo saído da queda do comunismo e do fim da Guerra Fria: a construção das instituições democráticas, a começar pela Constituição da República, e a reestruturação da economia caboverdiana, visando construir uma economia de base privada, inserida na economia mundial, a partir de uma economia estatizada, essencialmente autárcica.
No essencial ao longo dos quase quinze anos de vigência democrática os dois partidos mantiveram os elementos essenciais da sua matriz ideológica. O PAICV dá a aparência de suavizar os seus contornos, pressionado pelas instituições e procedimentos democráticos. O MpD sofreu dissensões internas em 1993 e 1998, ano do Acordo Cambial, em reacção às reformas económicas em curso, mas manteve o rumo. Na prática, tirando as nuances e focalizando no essencial, pode-se ver que o PAICV procura apresentar-se como o partido do Estado, o partido social e o partido das questões identitárias. O MpD mostra-se como o partido da Constituição e das liberdades, o partido da descentralização e o partido da iniciativa privada e da autonomia do indivíduo e da sociedade civil.
As políticas do PAICV convergem no reforço do Estado na relação com os indivíduos, a sociedade e a economia. Resultam no elevar do nível de centralização do País e de aumento da dependência das pessoas. O partido alimenta-se de questões identitárias (nacionalismo, africanização, género, língua, etc.) aproveitando-se da motivação e forte sentimento de pertença que assola os indivíduos quando se posicionam em campos antagónicos. Sociologicamente o PAICV aparenta ser o partido da elite urbana que gravita á volta do Estado seja na Administração Pública, seja nas empresas, outrora públicas e hoje privatizadas. Compreende-se pois que insista sempre que o critério para avaliação do Governo seja o de capacidade de captação de ajuda e de outros fluxos externos. Na cadeia alimentar sustentada por esses fluxos ganha quem está no topo, ou seja quem está com o Estado.
Em contrapartida o MpD aparenta ser o que alguém, uma vez, chamou o partido de bóias frias, o partido dos mais pobres, dos menos escolarizados e dos mais velhos. Em Cabo Verde os partidos políticos, grosso modo, não reflectem a base social que normalmente estão associados a partidos de direita e de esquerda. A razão para isso está no facto do sistema económico do País, alimentado de fora desde da sua fundação, desenvolveu um sistema rentista em que os privilegiados estão no Estado. Nas populações chega um fiozinho das ajudas, ficando a parte de leão nas elites, sob várias formas. O chamado desemprego estrutural é, em grande parte, consequência do modelo que privilegia captação de ajudas sobre a produção e a exportação de bens e serviços. A persistência do nível de desemprego a mais de 20% da população, não obstante os avultados investimentos feitos e os anúncios de entrada de milhões em investimento directo estrangeiro, é a demonstração completa do fracasso do modelo.
O que faz do MpD um partido popular e de multidões é a esperança que os deserdados do regime rentista de captação de ajudas têm de ver nascer no país uma economia nacional, inserida no mundo, capaz de assegurar empregos sustentáveis e de proporcionar rendimentos crescentes e maior qualidade de vida ás pessoas. Isso naturalmente colide com os interesses de quem beneficia da aproximação do sistema rentista. E não só. Também colide com medos atávicos em boa parte da sociedade caboverdiana, que ainda vê no Estado a salvação em caso de crises profundas. Medos esses que estão sempre debaixo da superfície e, às vezes, ardilosamente reavivados.
Mover o país para frente e colocá-lo na posição de criar trabalho para todos, e assim efectivamente combater a pobreza, deve ser o ponto focal do debate para as eleições legislativas. Questões relacionadas, como sejam o papel do Estado, a descentralização, a eficácia de justiça, a segurança, a educação e a saúde deverão ser equacionadas.
Os partidos políticos têm a responsabilidade de condução do processo. Que o debate se inicie. E que, para cada caboverdiano, fique claro qual é afinal a distinção entre um e outro partido e as opções de desenvolvimento propostas.
Publicado pelo Jornal A Semana de 26 de Abril de 2009
sexta-feira, abril 10, 2009
Oficializar o crioulo? Porquê a pressa
A questão de oficializar ou não o crioulo ganhou
uma outra dinâmica com a apresentação do projecto de revisão constitucional,
apresentado por um grupo de deputados do PAICV. Anteriormente a questão, ciclicamente,
recebia impulsos políticos de diferentes quadrantes. Momentos houve, no passado
recente em que Ministros,
Primeiro-Ministro e o próprio Presidente da República se desdobraram em
declarações, pontuadas por elementos de retórica nacionalista, clamando pela
sua oficialização.
A pressão pela oficialização do crioulo tem um conteúdo essencialmente ideológico.
No projecto de revisão constitucional, o PAICV quer “dignificar” o crioulo face ao português. Assim propõe que o nº 1 do artigo 9º da Constituição passe a ter o seguinte texto: 1. São línguas oficiais da República o Cabo-verdiano, língua materna, e o Português. Com isso pretende retirar o crioulo de algum suposto estatuto inferior e finalmente libertá-lo da opressão da língua portuguesa. O facto porém é que, em Cabo Verde, diferentemente de outros países onde se procura oficializar línguas maternas, não há discriminação do crioulo.
Fala-se crioulo no Parlamento, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e os Ministros falam crioulo com o País através dos órgãos de comunicação social, nenhum cidadão está impedido de fazer declarações nos Tribunais em crioulo e a Administração Pública responde a solicitações colocadas oralmente pelos utentes. No País, não há uma elite que só fala a língua do colonizador, como acontece em outras sociedades racialmente mistas, designadamente nas Caraíbas. Também não se acusa de elitismo os escritores, intelectuais e políticos que, no dia a dia, só falam português. Não se pode, pois, seriamente, erigir o crioulo como uma putativa língua de resistência em confronto com o português. Só se for para atiçar chamas nacionalistas em proveito próprio.
O crioulo parece ter emergido do estado de isolamento, abandono e pobreza extrema vivido nas ilhas que não permitiu a subsistência de uma comunidade metropolitana homogénea capaz de impor a sua língua ao resto da população. Como aconteceu, por exemplo, no Brasil, mas também, na generalidade das colónias europeias nas Américas.
Procurando a origem dos crioulos, Derek Bickerton, um linguista norte-americano da Universidade de Hawai e autor do livro “Dinâmica das Línguas Crioulas”, diz que o estudo do crioulo do Hawai demonstra que o processo inicia-se, em ambientes poliglotas forçados, com uma linguagem de recurso, o chamado pidgin, caracterizado por variações, de pessoa para pessoa, consoante a sua origem étnico-linguística. E que na sequência disso as crianças nascidas em tal ambiente apropriam-se do pidgin dos pais e vizinhos, imprimem-lhe uma estrutura, padronizam o seu uso e fazem a língua aceitável para gerações sucessivas de crianças.
Um fenómeno que parece indiciar a existência de uma gramática universal inata, como defende Noam Chomski, o linguista do MIT. Bickerton concorda com o modelo gramatical inato mas diz que só não é suprimido nas comunidades onde a língua de comunicação é o pidgin, ou seja, em comunidades sem uma língua estruturada preponderante. Para ele, a língua crioula nasce quando essa estrutura gramatical inata absorve e modela os vocábulos já disponíveis.
Steven Pinker, professor de ciências cognitivas no MIT relata um caso no seu livro The Language Instint que parece confirmar esse processo. Nas primeiras escolas de surdos- mudos na Nicarágua as crianças reunidas pela primeira vez desenvolveram a partir dos gestos de comunicação que traziam de casa um conjunto de sinais com as características e as limitações de expressão de um pidgin. A leva seguinte de alunos mais novos aprenderam esse pidgin e, ainda, segundo Pinker, reinventaram a linguagem, agora já com gramática, uma maior versatilidade e outra capacidade expressiva. E a gramática revelou-se similar à dos crioulos falados.
Os estudos referidos mostram-se pertinentes em vários aspectos. Põem de lado a ideia de que o crioulo teria importado a sua gramática de alguma língua africana que, até agora, ninguém parece ter identificado. Por outro lado, ao ressaltarem o carácter inato das estruturas gramaticais, ajudam a compreender a resistência que as crianças manifestam em abandoná-las. E levam a considerar as possíveis implicações no ensino e na aprendizagem da segunda língua.
Do efeito surpreendentemente resistente do crioulo caboverdiano fala Baltazar Lopes da Silva no seu livro Dialecto Crioulo: “Bem cedo o crioulo das ilhas deve ter disposto de uma estrutura coerente e de um vocabulário bastante para as necessidades; e, assim, bem cedo, ao que me parece, o homem crioulo se sentiu idiomaticamente auto-suficiente. Acrescentou ainda que a aproximação [do português] tem balizas nítidas que a contem dentro de limites naturais. E os limites são, na essência, o sistema morfológico, definitivamente simplificado e fixado há séculos e o agenciamento sintáctico do discurso”.
A resistência do crioulo é também visível no facto de, em matéria de uso da língua, Cabo Verde ir à contra corrente do que se passa na generalidade dos países africanos, designadamente dos PALOP. Nesses países, as línguas europeias dos colonizadores tornaram-se línguas oficiais e continuam a ganhar terreno, suportando-se na crescente urbanização e escolarização. Em Cabo Verde, apesar dos altos níveis de educação e de urbanização, o crioulo continua inabalável na sua condição de língua materna.
A ansiedade, com a imaginada perda de terreno do crioulo em relação ao português, só existe nos círculos que procuram tirar proveitos políticos de conflitos identitários exacerbados. Para o cidadão comum não há crise. E nem há para os escritores, músicos e artistas diversos que têm conseguido passar com sucesso para o mundo inteiro a alma e a arte caboverdianas, sem quaisquer constrangimentos.
A Constituição estabelece no nº2 do artigo 9º que o Estado deve promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa. Uma dessas condições seria a estandardização da escrita do crioulo, com impacto em duas áreas: a comunicação escrita do/e com o Estado e a língua de ensino.
Em termos de comunicação a oficialização obrigaria a que todos os documentos do Estado fossem disponibilizados em crioulo para quem quisesse acede-los nessa língua. A Administração Pública teria que se tornar apta a responder a solicitações escritas dos cidadãos, sem equívocos provocados pelo desconhecimento de uma escrita padronizada. Os custos que tudo isso acarretaria poderão não se justificar. Corre-se o risco de subutilização ou por falta de alfabetização generalizada no crioulo ou por falta de interesse.
No ensino, a somar aos custos de produção e publicação de manuais juntar-se-ia, a exemplo do que se passou noutras paragens, designadamente Aruba e Curação, a reacção dos pais. Uns a querer a educação só em português para os filhos em escolas privadas e outros a resignarem-se e a ficar por escolas públicas onde se ensina em crioulo. Em África, a grande maioria dos países tem uma única língua oficial, que também é língua do ensino, a todos os níveis. Poucos se aventuraram em levar as línguas maternas para o sistema de ensino
O argumento de uso do crioulo para facilitar os alunos nos primeiros anos só parece ter sentido porque o Estado falha em propiciar às crianças o acesso ao português desde da tenra idade. A consagração constitucional da língua portuguesa como língua oficial obriga o Estado a agir no sentido, por exemplo, de redefinir todo o pré-escolar como o centro focal do esforço nacional em tornar verdadeiramente bilingue o caboverdiano. O caboverdiano não é bilingue por deficiência do seu crioulo, mas sim por falhas no domínio do português. E é isso que urge remediar.
O Governo com o decreto-lei nº8/2009 aprovou um alfabeto para a escrita caboverdiana, o chamado ALUPEC. Não ficou definido uma forma padronizada de escrita. Simplesmente fez-se uma opção de como escrever o crioulo nas suas diferentes variantes. E, provavelmente, não foi boa opção ter seleccionado o alfabeto fonético – fonológico, em detrimento do alfabeto etimológico.
O próprio preâmbulo da lei dá conta do uso generalizado do alfabeto etimológico nas publicações dos escritores, poetas e ensaístas caboverdianos nos séculos dezanove e vinte. Assim fala de Adolfo Coelho, Cónego Teixeira, Napoleão Fernandes, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltasar Lopes, Dulce Almada, B.Leza, Sergi Fruzoni, Luís Romano, Jorge Pedro Barbosa, Ovídio Martins, Kaoberdiano Dambará, Kwame Kondé, Emanuel Braga Tavares, Ano Nobo, Manuel d´Novas e muitos outros. A experiência no uso do alfabeto fonético – fonológico, para além do caso do António Paula Brito no século dezanove, só a registar trabalhos na recolha e transcrição de tradições orais, obras do doutor Manuel Veiga, actual Ministro da Cultura, e algumas traduções de clássicos portugueses feitos por José Luís Tavares.
O alfabeto etimológico aparenta ter uma outra vantagem, para além do seu uso abrangente por vários autores ao longo de mais de um século. O crioulo é classificado como uma língua neolatina. Quase a totalidade do seu léxico deriva de línguas latinas. Num ambiente em que, em simultâneo, se aprende duas línguas, português e crioulo, ou mais de duas línguas (português, crioulo, francês e mesmo inglês), obrigar as crianças caboverdianas a escrever palavras com a mesma origem etimológica, usando alfabetos diferentes, causa a maior apreensão. O nível actual de rigor ortográfico dos alunos no ensino primário e secundário já traz sérias preocupações a pais e professores. Imagina-se a evolução dos alunos com a generalização do uso do ALUPEC .
Quanto á variante do crioulo a adoptar na padronização necessária para a oficialização do crioulo, isso não parece fácil, nem despido de controvérsias. Baltazar Lopes dizia que “Era preciso que já existisse uma literatura, um passado literário escrito para nós podermos escolher um crioulo padrão” . E advertiu, “não confundamos viabilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do português data do século V ou VI… mas o português [escrito] só no século XIII”.
Em Cabo Verde, a abertura constitucional para a oficialização do crioulo existe mas as condições adequadas terão que ser criadas. As autoridades devem ser pacientes e resistir à tentação de usar uma questão tão séria, e com implicações múltiplas e complexas, para o presente e futuro do País, como elemento de agendas político-partidárias, ou outras.
Publicado pelo Jornal A Semana de 10 de Abril de 2009
A pressão pela oficialização do crioulo tem um conteúdo essencialmente ideológico.
No projecto de revisão constitucional, o PAICV quer “dignificar” o crioulo face ao português. Assim propõe que o nº 1 do artigo 9º da Constituição passe a ter o seguinte texto: 1. São línguas oficiais da República o Cabo-verdiano, língua materna, e o Português. Com isso pretende retirar o crioulo de algum suposto estatuto inferior e finalmente libertá-lo da opressão da língua portuguesa. O facto porém é que, em Cabo Verde, diferentemente de outros países onde se procura oficializar línguas maternas, não há discriminação do crioulo.
Fala-se crioulo no Parlamento, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e os Ministros falam crioulo com o País através dos órgãos de comunicação social, nenhum cidadão está impedido de fazer declarações nos Tribunais em crioulo e a Administração Pública responde a solicitações colocadas oralmente pelos utentes. No País, não há uma elite que só fala a língua do colonizador, como acontece em outras sociedades racialmente mistas, designadamente nas Caraíbas. Também não se acusa de elitismo os escritores, intelectuais e políticos que, no dia a dia, só falam português. Não se pode, pois, seriamente, erigir o crioulo como uma putativa língua de resistência em confronto com o português. Só se for para atiçar chamas nacionalistas em proveito próprio.
O crioulo parece ter emergido do estado de isolamento, abandono e pobreza extrema vivido nas ilhas que não permitiu a subsistência de uma comunidade metropolitana homogénea capaz de impor a sua língua ao resto da população. Como aconteceu, por exemplo, no Brasil, mas também, na generalidade das colónias europeias nas Américas.
Procurando a origem dos crioulos, Derek Bickerton, um linguista norte-americano da Universidade de Hawai e autor do livro “Dinâmica das Línguas Crioulas”, diz que o estudo do crioulo do Hawai demonstra que o processo inicia-se, em ambientes poliglotas forçados, com uma linguagem de recurso, o chamado pidgin, caracterizado por variações, de pessoa para pessoa, consoante a sua origem étnico-linguística. E que na sequência disso as crianças nascidas em tal ambiente apropriam-se do pidgin dos pais e vizinhos, imprimem-lhe uma estrutura, padronizam o seu uso e fazem a língua aceitável para gerações sucessivas de crianças.
Um fenómeno que parece indiciar a existência de uma gramática universal inata, como defende Noam Chomski, o linguista do MIT. Bickerton concorda com o modelo gramatical inato mas diz que só não é suprimido nas comunidades onde a língua de comunicação é o pidgin, ou seja, em comunidades sem uma língua estruturada preponderante. Para ele, a língua crioula nasce quando essa estrutura gramatical inata absorve e modela os vocábulos já disponíveis.
Steven Pinker, professor de ciências cognitivas no MIT relata um caso no seu livro The Language Instint que parece confirmar esse processo. Nas primeiras escolas de surdos- mudos na Nicarágua as crianças reunidas pela primeira vez desenvolveram a partir dos gestos de comunicação que traziam de casa um conjunto de sinais com as características e as limitações de expressão de um pidgin. A leva seguinte de alunos mais novos aprenderam esse pidgin e, ainda, segundo Pinker, reinventaram a linguagem, agora já com gramática, uma maior versatilidade e outra capacidade expressiva. E a gramática revelou-se similar à dos crioulos falados.
Os estudos referidos mostram-se pertinentes em vários aspectos. Põem de lado a ideia de que o crioulo teria importado a sua gramática de alguma língua africana que, até agora, ninguém parece ter identificado. Por outro lado, ao ressaltarem o carácter inato das estruturas gramaticais, ajudam a compreender a resistência que as crianças manifestam em abandoná-las. E levam a considerar as possíveis implicações no ensino e na aprendizagem da segunda língua.
Do efeito surpreendentemente resistente do crioulo caboverdiano fala Baltazar Lopes da Silva no seu livro Dialecto Crioulo: “Bem cedo o crioulo das ilhas deve ter disposto de uma estrutura coerente e de um vocabulário bastante para as necessidades; e, assim, bem cedo, ao que me parece, o homem crioulo se sentiu idiomaticamente auto-suficiente. Acrescentou ainda que a aproximação [do português] tem balizas nítidas que a contem dentro de limites naturais. E os limites são, na essência, o sistema morfológico, definitivamente simplificado e fixado há séculos e o agenciamento sintáctico do discurso”.
A resistência do crioulo é também visível no facto de, em matéria de uso da língua, Cabo Verde ir à contra corrente do que se passa na generalidade dos países africanos, designadamente dos PALOP. Nesses países, as línguas europeias dos colonizadores tornaram-se línguas oficiais e continuam a ganhar terreno, suportando-se na crescente urbanização e escolarização. Em Cabo Verde, apesar dos altos níveis de educação e de urbanização, o crioulo continua inabalável na sua condição de língua materna.
A ansiedade, com a imaginada perda de terreno do crioulo em relação ao português, só existe nos círculos que procuram tirar proveitos políticos de conflitos identitários exacerbados. Para o cidadão comum não há crise. E nem há para os escritores, músicos e artistas diversos que têm conseguido passar com sucesso para o mundo inteiro a alma e a arte caboverdianas, sem quaisquer constrangimentos.
A Constituição estabelece no nº2 do artigo 9º que o Estado deve promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa. Uma dessas condições seria a estandardização da escrita do crioulo, com impacto em duas áreas: a comunicação escrita do/e com o Estado e a língua de ensino.
Em termos de comunicação a oficialização obrigaria a que todos os documentos do Estado fossem disponibilizados em crioulo para quem quisesse acede-los nessa língua. A Administração Pública teria que se tornar apta a responder a solicitações escritas dos cidadãos, sem equívocos provocados pelo desconhecimento de uma escrita padronizada. Os custos que tudo isso acarretaria poderão não se justificar. Corre-se o risco de subutilização ou por falta de alfabetização generalizada no crioulo ou por falta de interesse.
No ensino, a somar aos custos de produção e publicação de manuais juntar-se-ia, a exemplo do que se passou noutras paragens, designadamente Aruba e Curação, a reacção dos pais. Uns a querer a educação só em português para os filhos em escolas privadas e outros a resignarem-se e a ficar por escolas públicas onde se ensina em crioulo. Em África, a grande maioria dos países tem uma única língua oficial, que também é língua do ensino, a todos os níveis. Poucos se aventuraram em levar as línguas maternas para o sistema de ensino
O argumento de uso do crioulo para facilitar os alunos nos primeiros anos só parece ter sentido porque o Estado falha em propiciar às crianças o acesso ao português desde da tenra idade. A consagração constitucional da língua portuguesa como língua oficial obriga o Estado a agir no sentido, por exemplo, de redefinir todo o pré-escolar como o centro focal do esforço nacional em tornar verdadeiramente bilingue o caboverdiano. O caboverdiano não é bilingue por deficiência do seu crioulo, mas sim por falhas no domínio do português. E é isso que urge remediar.
O Governo com o decreto-lei nº8/2009 aprovou um alfabeto para a escrita caboverdiana, o chamado ALUPEC. Não ficou definido uma forma padronizada de escrita. Simplesmente fez-se uma opção de como escrever o crioulo nas suas diferentes variantes. E, provavelmente, não foi boa opção ter seleccionado o alfabeto fonético – fonológico, em detrimento do alfabeto etimológico.
O próprio preâmbulo da lei dá conta do uso generalizado do alfabeto etimológico nas publicações dos escritores, poetas e ensaístas caboverdianos nos séculos dezanove e vinte. Assim fala de Adolfo Coelho, Cónego Teixeira, Napoleão Fernandes, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltasar Lopes, Dulce Almada, B.Leza, Sergi Fruzoni, Luís Romano, Jorge Pedro Barbosa, Ovídio Martins, Kaoberdiano Dambará, Kwame Kondé, Emanuel Braga Tavares, Ano Nobo, Manuel d´Novas e muitos outros. A experiência no uso do alfabeto fonético – fonológico, para além do caso do António Paula Brito no século dezanove, só a registar trabalhos na recolha e transcrição de tradições orais, obras do doutor Manuel Veiga, actual Ministro da Cultura, e algumas traduções de clássicos portugueses feitos por José Luís Tavares.
O alfabeto etimológico aparenta ter uma outra vantagem, para além do seu uso abrangente por vários autores ao longo de mais de um século. O crioulo é classificado como uma língua neolatina. Quase a totalidade do seu léxico deriva de línguas latinas. Num ambiente em que, em simultâneo, se aprende duas línguas, português e crioulo, ou mais de duas línguas (português, crioulo, francês e mesmo inglês), obrigar as crianças caboverdianas a escrever palavras com a mesma origem etimológica, usando alfabetos diferentes, causa a maior apreensão. O nível actual de rigor ortográfico dos alunos no ensino primário e secundário já traz sérias preocupações a pais e professores. Imagina-se a evolução dos alunos com a generalização do uso do ALUPEC .
Quanto á variante do crioulo a adoptar na padronização necessária para a oficialização do crioulo, isso não parece fácil, nem despido de controvérsias. Baltazar Lopes dizia que “Era preciso que já existisse uma literatura, um passado literário escrito para nós podermos escolher um crioulo padrão” . E advertiu, “não confundamos viabilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do português data do século V ou VI… mas o português [escrito] só no século XIII”.
Em Cabo Verde, a abertura constitucional para a oficialização do crioulo existe mas as condições adequadas terão que ser criadas. As autoridades devem ser pacientes e resistir à tentação de usar uma questão tão séria, e com implicações múltiplas e complexas, para o presente e futuro do País, como elemento de agendas político-partidárias, ou outras.
Publicado pelo Jornal A Semana de 10 de Abril de 2009
sábado, março 28, 2009
Custos e Benefícios
Na
semana passada, o Presidente de Portugal, professor Cavaco Silva,
alertou para a necessidade de não se confundir custos com benefícios. “Uma
estrada é toda ela custos. O benefício é o trânsito que passará nela.
Se não houver trânsito, não há benefício, é zero. O investimento de um
empresário é custo, o benefício é a sua produção. Se não produzir nada,
não ganha”.Cavaco Silva acrescentou, ainda, que “isto não quer dizer que alguns não ganhem”. Por exemplo, “se uma estrada não tiver trânsito, há um que ganha, o empreiteiro, e há um que perde, o [contribuinte] que paga impostos”.
De facto, investimentos públicos justificam-se pelo seu impacto sobre o rendimento e qualidade de vida das pessoas e pelo efeito de arrastamento que demonstrarem ter sobre a economia nacional. Espera-se dos investimentos, realizados pelo Estado, que promovam o surgimento de empregos permanentes, directos e indirectos. Que aumentem a competitividade geral das empresas e do país, via diminuição dos custos de factores e a valorização do capital humano. E que, conjuntamente com outras despesas públicas, contribuam para o desenvolvimento e sofisticação de mercados no plano interno, traduzido em novas oportunidades de negócio e no fomento das exportações.
De facto, investimentos públicos justificam-se pelo seu impacto sobre o rendimento e qualidade de vida das pessoas e pelo efeito de arrastamento que demonstrarem ter sobre a economia nacional. Espera-se dos investimentos, realizados pelo Estado, que promovam o surgimento de empregos permanentes, directos e indirectos. Que aumentem a competitividade geral das empresas e do país, via diminuição dos custos de factores e a valorização do capital humano. E que, conjuntamente com outras despesas públicas, contribuam para o desenvolvimento e sofisticação de mercados no plano interno, traduzido em novas oportunidades de negócio e no fomento das exportações.
Por
isso investimentos públicos devem ser concebidos e realizados de modo a
que os seus efeitos sejam profundos, complexos e duradoiros. Não podem
ficar por objectivos de curto prazo. Muito menos, serem feitos,
simplesmente, para satisfazer interesses pontuais e partidários do
Governo.
Mesmo
hoje, em tempo de crise, em que um papel central é atribuído ao
investimento público para sacudir muitos países do torpor da recessão
económica, não se perde de vista o alcance e a consequência estrutural,
que deverá ter no médio e longo prazo. E compreende-se. Recursos para os
investimentos públicos ou resultam da captação da poupança interna,
reduzindo a disponibilidade para o investimento privado e para o
consumo, ou, então, da mobilização de fluxos externos. Em qualquer dos
casos, muito provavelmente, o País endivida-se ainda mais.
Face
à perspectiva da dívida, interna ou externa, importa, seguramente, que
as decisões tomadas sejam ponderadas quanto aos custos e benefícios. E
cuidem para que os efeitos multiplicadores esperados na economia
resultem em crescimento e aumento de rendimentos. Com isso se expande a
base futura de receitas do Estado e evita-se que o serviço da dívida
provoque desequilíbrios orçamentais, perturbadores da estabilidade
macroeconómica, a médio prazo, e em sobrecargas para as gerações
futuras.
Para
a realização dos seus objectivos amplos, é fundamental que o processo
decisório relativamente aos investimentos públicos seja seguido,
devidamente. À partida respeitando os princípios constitucionais que
devem reger as operações do Estado designadamente justiça,
transparência, boa fé e imparcialidade. Mas também, tendo em consideração, os efeitos no ambiente económico a curto, a médio e a longo prazo.
Isso
quer dizer que o Estado, por opção do Governo, não deve se colocar na
posição de escolher ganhadores no processo económico. Por via de
favores, de acessos especiais e de condicionamento de outros não deve
eliminar a concorrência e possibilitar, a alguns, lucros fabulosos. Nem
deve permitir extracção de rendas á custa do erário público, da criação
de monopólios privados ou da extorsão dos consumidores.
Nessa
perspectiva o Governo falhou ao permitir a especulação nos terrenos de
Cabo Verde. Fez a ganância de alguns subir a níveis elevados, encareceu o
investimento no país com a proliferação de intermediários e acabou por
inviabilizar muitos projectos nos braços de força que se envolveu por
razões partidárias. Não serviu aí o interesse público.
Também
não serviu o interesse público quando não soube pôr de pé uma politica
energética coerente. Foi incapaz de encontrar um novo parceiro
estratégico para substituir a EDP na Electra e optou por recorrer a
privados, seleccionados a dedo, para lhes entregar áreas de produção com
consumo certo, pago e crescente. Está a acontecer nas ilhas do Sal, S.
Antão e Boavista. Já se tinha verificado na ilha de Santiago com os
chamados produtores independentes na venda de electricidade, em momento
de carestia grave de energia na Capital.
Irá
acontecer em breve na produção de água para os municípios do interior
de Santiago entregue por 35 anos a uma empresa que, pelas informações
por ela disponibilizadas na Net, parece mais um start-up à volta
de uma universidade italiana. Um acordo feito e anunciado em 2007, um
ano antes de se aprovar e publicar o decreto-lei (Novembro de de 2008)
que o poderia enquadrar.
Em
todos esses casos não se vislumbra ganhos para os consumidores, nem a
melhoria da competividade da ilha e, muito menos, estímulos a
empresários nacionais, seja para expandir os negócios, seja para
aproveitar as oportunidades emergentes. Mesmo assim, o governo
justifica-se dizendo que a situação, no momento, assim o exige. Mas não
explicita a que custo, presente e futuro, e as razões porque aí se
chegou.
No
processo de decisão não se pode perder de vista o impacto que os
investimentos irão ter na economia local. Isso quer dizer, por exemplo,
que não pode ser indiferente ao Estado se o investimento público
emprega, ou não, caboverdianos. Se os trabalhos são, ou não, feitos por
empresas caboverdianas. Se no fim do programa de investimentos as
empresas nacionais estão mais, ou menos, preparadas para competir no
mercado internacional ou se tornaram capazes de desenvolver um sector de
exportação. E se a carteira de trabalhos do Estado criou oportunidades
para o surgimento de novas empresas.
Por isso é de se perguntar ao Governo: Após os 46 milhões de contos, mais de 400 milhões de euros, de
investimento em obras públicas, como estão as empresas caboverdianas de
construção civil? Sólidas, mais produtivas? Passaram a ter maior
capacidade de realizar obras nacionais em competição com empresas
estrangeiras? Quais são as perspectivas de internacionalização?
É de
perguntar também, depois dos milhões investidos no governçaõ
electrónica, quantos empregos foram gerados no sector das tecnologias de
informação e comunicação, quantas empresas foram criadas e quais as
perspectivas de Cabo Verde vir a exportar serviços nesse sector.
É
ainda de perguntar: Face á emergência energética que se vive no mundo em
geral, com particular acuidade em Cabo Verde, como é que os
investimentos do Estado nesse sector tem servido para dar maior
autonomia energética ao país, criar oportunidades para o aparecimento de
empresas, num sector que é claramente de futuro garantido, e
desenvolver uma cultura e uma expertise nacional em eficiência no uso da energia e água.
Definitivamente é de perguntar se é necessário que o executivo da FAO em Cabo Verde fale da “ falta de informação sobre os volumes de produção, os preços, as necessidades de cada ilha” e do facto de “como não foi feito esse diagnóstico parece mais fácil importar frutas e verduras de outros países” para se ver o óbvio. Para se ver que investimentos em barragens, prospecção de água, sistemas de regas e outras obras no mundo
rural só têm sentido se se conseguir extrair benefícios. E benefício
significa produção, significa acesso a mercados, significa vendas.
Investir
em S. Antão e manter o embargo dos produtos agrícolas é arcar com
custos sem praticamente quaisquer benefícios. Os persistentes índices de
pobreza da ilha são elucidativos a esse respeito. Também, investir e
não desenvolver circuitos de comercialização, que faça do País todo, e
particularmente as cidades e os centros turísticos, um mercado potencial
para a produção de cada localidade de Cabo Verde, só tem o efeito de
aprofundar o desânimo das populações. É mais uma esperança gorada
acompanhada dos custos inerentes: custos pessoais, materiais e de fibra
de uma sociedade.
Um
outro custo que sistematicamente vem se confundindo com benefício é a
formação profissional. Para o Governo formação profissional é a bengala
de que se socorre para dizer que está a fazer algo para diminuir
drasticamente o desemprego. Só que raramente se
disponibiliza para dizer quantos formandos realmente conseguiram
emprego. Ou como é que a produtividade do trabalho se alterou com
entrada de pessoas formadas no mercado. E como é que, com a regulação da
entrada nas profissões, se diminuiu o informal, se melhorou a qualidade
e se fez os salários evoluírem de acordo com a produtividade.
Ouve-se
que está a montar mais cursos. Fica-se com a impressão de que algo não
vai bem quando se publicita outros projectos para microfinanciar os
formandos. Aparentemente, não conseguiram emprego e o Estado procura transforma-los
em empresários. Ou seja, os custos de formação não resultaram em
benefícios significativos para as pessoas nem para a economia. Face a
isso a resposta do Estado é mais custos, mas agora em forma de crédito. É
a vitória do surrealismo, mas há quem ganhe no processo, na sua
montagem.
Por
tudo isso é evidente que, para manter em perspectiva a complexidade de
objectivos pretendidos nos investimentos públicos e evitar desperdícios e
desvios do interesse público, deve-se garantir a transparência do processo. O parlamento e os partidos de Oposição têm um papel central em assegurar-se de que o governo é, a todo instante, accountable pelos actos que pratica.
A tão propalada credibilidade
do País depende essencialmente da percepção no exterior e nas
organizações internacionais de como o Poder é controlado. De como o
processo decisório está constrangido a seguir a legalidade e está
sujeito à sindicância permanente da oposição e da sociedade.
Por isso, trabalha contra a credibilidade externa de Cabo Verde não é
quem questiona e fiscaliza os actos do Governo. E não interessa muito
como nos específicos apresenta o seu caso. Interessa essencialmente que o
pode fazer, e sem restrições. A forma e a efectividade das acções são
internamente avaliadas pelo eleitorado.
Observadores
no exterior não entram na política local. Avaliam o grau de fiabilidade
do País a partir da forma como o Poder lida com os limites instituídos.
È como se fizessem uso de um velho adágio, glosado: diz-me como tratas as minorias e a oposição e dir-te-ei quem és.
De
todo esse exercício o fundamental é que o País ganhe. Que não fique
sobrecarregado com dividas internas e externas. Nem se coloque
eternamente na dependência da generosidade, duvidosa às vezes, dos
outros. Pelo contrário, que crie condições para a prosperidade de todos.
sexta-feira, março 13, 2009
A crise: oportunidade, também, a perder?
Da passagem da torrente de personalidades e empresários com
o Primeiro Ministro de Portugal, José Sócrates, oito ministros e sete
secretários de Estado à frente e do frenesim, criado na sua esteira, ficou no
ar uma questão: Mas tudo isso era acerca de quê?
Uma pergunta que o próprio PM português procurou responder em entrevista citada pela TSF. Sócrates disse que inicialmente o objectivo era dar um novo fôlego à agenda de cooperação. Mas foi-se além: a dado momento, a agenda de cooperação deixou os temas do passado para acabar por se centrar nas novas tecnologias de informação e comunicação, nas energias renováveis e no conhecimento. O destaque, porém, era homenagear o grande sucesso de Cabo Verde. Uma homenagem dirigida, de facto, ao Primeiro-Ministro caboverdiano, José Maria Neves, que também respondeu na mesma medida.
Elogiou o Governo de Sócrates com expressões como ousadia, espírito empreendedor, capacidade de liderança e de transformar, expressões que gosta de ver coladas ao seu próprio governo. Cortesias que podiam simplesmente significar o elevado grau de relações entre Cabo Verde e Portugal. Mas considerando o momento escolhido para a visita terão provavelmente algo mais.
Os dois chefes de governo são líderes de partidos da mesma família, a Internacional Socialista, e preparam-se para eleições. Sócrates tem três eleições para enfrentar este ano. José Maria Neves, depois da derrota nas eleições autárquicas, ainda está a consolidar as “tropas” para o embate de 2010/2011. E a calar as críticas internas, feito que, em Dezembro passado, já tinha realizado em grande medida mas que prejudicou com a sua declaração pouco cuidada a propósito da candidatura de Aristides Lima. Declaração que já lhe custou uma carta anónima, vinda, tudo leva a crer, do interior do seu próprio partido. Nestas condições toda a solidariedade é pouca.
A solidariedade devida não apaga porém interesses mais mundanos. Como o PM português bem sublinhou, o relacionamento com Cabo Verde representa uma relação comercial de maior importância para Portugal. Portugal, segundo ele, exporta todos os anos para Cabo Verde 250 milhões de euros. Nesse quadro, compreende-se perfeitamente que os objectivos principais da visita a Cabo Verde sejam manter e expandir o mercado caboverdiano para as exportações portuguesas.
Nos tempos difíceis de hoje, de notória contracção da procura global e de reaparecimento do monstro do proteccionismo, mostra-se perfeitamente lógico que países engendrem formas inovadoras para manter cativos os mercados. Particulamente, quando as suas exportações são pouco competitivas no mercado aberto. Sem a possibilidade de desvalorizar as suas moedas para se tornarem mais competitivas recorrem à criação de facilidades de crédito para assegurar mercado.
Portugal assinou vários acordos com o Governo de Cabo Verde que criam novas linhas de crédito ou ampliam as já existentes. Assim ampliou uma linha de crédito da Caixa Geral de Depósito de 100 milhões para 200 milhões de euros para a construção de infraestruturas portuárias. Passou um empréstimo directo do Estado português de 40 milhões para 100 milhões de euros para a construção de novas estradas. Criou uma nova linha de crédito de 100 milhões de euros para as energias renováveis, salientando o facto de ter a quarta empresa mundial nesse sector, a EDP, mas evitando pronunciar o nome dessa empresa para não relembrar o governo caboverdiano da forma como tratou o assunto da Electra. Uma outra linha de crédito, ainda de 7 milhões deverá ir para o que convencionaram chamar de Cluster do Atlântico para as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação).
Segundo o Secretário de Estado do Tesouro e Finanças português, a assinatura desses acordos potenciam as exportações e a internacionalização das empresas portuguesas. Adiantou ainda que os acordos têm como condição que os projectos sejam desenvolvidos por empresas portuguesas.
É, assim, que finalmente se compreende a razão porque todos esses anúncios nos jornais de concursos públicos do Estado de Cabo Verde para a construção e fiscalização de obras são dirigidos a empresas portuguesas. Recentemente as empresas caboverdianas foram aceites, mas em consórcio com empresas portuguesas e com o entendimento que o consórcio deve ser liderado pela entidade portuguesa.
Naturalmente que o condicionante imposto no uso do dinheiro dos empréstimos, que certamente Cabo Verde irá pagar na íntegra, não se limita às empresas construtoras das infraestruturas. Como a linha de crédito visa potenciar as exportações é natural que também se faça uso dela na compra de bens e serviços exclusivamente portugueses. É evidente que isso ficará caro a Cabo Verde, considerando a fraca competitividade dos produtos portugueses e, em consequência, o seu preço mais elevado relativamente a produtos similares, oferecidos no mercado internacional.
A questão que se coloca é porque que o Governo de Cabo Verde aceita um negócio desses. Vasco Pulido Valente, numa crónica no jornal Público de 15 de Março foi claro quanto à relação de muitos governos com as infra estruturas: (…) “política do betão”é fácil de explicar. Para começar, não implica um pensamento político, não exige mais do que uma velha tecnologia, usa sobretudo mão--de-obra não qualificada, abre largamente a porta à corrupção, o resultado fica bem à vista e o país julga que se “modernizou”. (…) Claro que uma auto-estrada pouco ou nada contribui para o desenvolvimento e a produtividade(…).. Só ajuda a fingir que [se] progride e isso basta. Ainda, no mesmo tom e a respeito do Magalhães, disse que esse portátil (…) tinha a mesma vantagem de uma auto-estrada - não pedia, em princípio, nenhum esforço de inteligência, imaginação ou conhecimento. Bastava encomendar a coisa, pagar a coisa e distribuir a coisa.
Os entendimentos feitos com o Governo português no domínio da sociedade de informação incluem a manifestação de interesse do executivo caboverdiano em adquirir 150 mil computadores portáteis para o sistema escolar. A concretizar-se com o Magalhães, ou comum seu clone próximo, estar-se-ia a falar de valores de mais de 49 milhões de euros, partindo do preço unitário do Magalhães de 329 euros. Uma excelente venda para Portugal!
É interessante ver a abordagem de Moçambique na realização desse desiderato de massificação do acesso a computadores. Para abastecer o mercado, o Ministério da Ciência e Tecnologia desse país fez uma parceria com a empresa sul africana Sahara para instalação de uma linha de montagem de computadores que poderá a chegar a 19 mil computadores por ano, quando em velocidade de cruzeiro. Ou seja, fez-se aí uma opção em construir uma capacidade interna abrangente no domínio das TIC que certamente não fica limitada às fórmulas, produtos e serviços que a Cooperação permite comprar. Tal aposta pressupõe desenvolvimento de capacidades endógenas em institutos tecnológicos e centros de formação profissional. Sem esquecer o incentivo ao empreendorismo, dinamicamente conectado com centros de aprendizagem e de investigação, na perspectiva de venda de serviços no mercado local e internacional.
Hoje é ponto assente que a crise actual marca o fim de uma era. Um mundo novo irá emergir em que muitas das facilidades e oportunidades anteriores deixarão de existir. Para Cabo Verde, que deixou de beneficiar da condição de país menos desenvolvido para ser encarado hoje como um país de rendimento médio, insistir na lógica do curto prazo, do ganho político imediato e do “parecer” em vez de “ser” pode vir a revelar-se desastroso.
A pequenez da economia caboverdiana alimenta a crença que a transferência de fundos de outras paragens, via as mais diferentes formas de cooperação, não deixará de manter o país a andar. Tal crença desvia o foco da governação. O governo, em vez de se centrar em resultados, nomeadamente, aumento do emprego, exportações e melhoria da competitividade global do país, fixa-se na captação de fundos. Em vez de desenvolver projectos com vista a garantir sustentabilidade e retorno dos investimentos feitos ocupa-se essencialmente da montagem dos mesmos, esquecendo-se das outras fases. Em vez de publicitar o efeito dos investimentos na qualidade de vida das pessoas, na capacitação do País em atrair investimento e na criação de mercados para bens e serviços nacionais, quase que transforma a governação num desfile incessante de anúncios e inaugurações.
Esta crise não tem que ser mais uma oportunidade a perder. Para evitar que assim seja, as energias da nação têm que ser mobilizadas. E certamente que não é com a cooperação internacional que isso será feito. Mesmo que venha vestido de outras roupagens e envolta numa linguagem moderna salpicada de TICs e clusters.
A Irlanda ou a Índia atraíram capitais e exportaram bens e serviços designadamente através do outsourcing e offshoring porque souberam construir capacidade endógena. Formação e qualificação da mão de obra foram elevados ao nível de prioridade máxima. Com isso mobilizou-se a vontade dessas nações, exigiu-se maior responsabilidade das famílias e os indivíduos sentiram-se motivados num ambiente que recompensa trabalho árduo, o mérito e a criatividade. O resultado viu-se no alto nível de ensino das ciências e engenharias, no desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e na aquisição de competências linguísticas de importância e valor no mercado global.
È um caminho similar que Cabo Verde deve seguir para que a frustração dos últimos anos não persista. O País tem que acreditar que é capaz de baixar significativamente o desemprego e crescer. Crescimento que aumente significativamente o rendimento e a qualidade de vida das pessoas e diminua a dependência da generosidade dos outros. O momento para isso é agora. Não deve ser desperdiçado. E cantos desviantes de sereia não devem ser ouvidos.
Publicado pelo jornal A Semana de 13 de Março de 2009
Uma pergunta que o próprio PM português procurou responder em entrevista citada pela TSF. Sócrates disse que inicialmente o objectivo era dar um novo fôlego à agenda de cooperação. Mas foi-se além: a dado momento, a agenda de cooperação deixou os temas do passado para acabar por se centrar nas novas tecnologias de informação e comunicação, nas energias renováveis e no conhecimento. O destaque, porém, era homenagear o grande sucesso de Cabo Verde. Uma homenagem dirigida, de facto, ao Primeiro-Ministro caboverdiano, José Maria Neves, que também respondeu na mesma medida.
Elogiou o Governo de Sócrates com expressões como ousadia, espírito empreendedor, capacidade de liderança e de transformar, expressões que gosta de ver coladas ao seu próprio governo. Cortesias que podiam simplesmente significar o elevado grau de relações entre Cabo Verde e Portugal. Mas considerando o momento escolhido para a visita terão provavelmente algo mais.
Os dois chefes de governo são líderes de partidos da mesma família, a Internacional Socialista, e preparam-se para eleições. Sócrates tem três eleições para enfrentar este ano. José Maria Neves, depois da derrota nas eleições autárquicas, ainda está a consolidar as “tropas” para o embate de 2010/2011. E a calar as críticas internas, feito que, em Dezembro passado, já tinha realizado em grande medida mas que prejudicou com a sua declaração pouco cuidada a propósito da candidatura de Aristides Lima. Declaração que já lhe custou uma carta anónima, vinda, tudo leva a crer, do interior do seu próprio partido. Nestas condições toda a solidariedade é pouca.
A solidariedade devida não apaga porém interesses mais mundanos. Como o PM português bem sublinhou, o relacionamento com Cabo Verde representa uma relação comercial de maior importância para Portugal. Portugal, segundo ele, exporta todos os anos para Cabo Verde 250 milhões de euros. Nesse quadro, compreende-se perfeitamente que os objectivos principais da visita a Cabo Verde sejam manter e expandir o mercado caboverdiano para as exportações portuguesas.
Nos tempos difíceis de hoje, de notória contracção da procura global e de reaparecimento do monstro do proteccionismo, mostra-se perfeitamente lógico que países engendrem formas inovadoras para manter cativos os mercados. Particulamente, quando as suas exportações são pouco competitivas no mercado aberto. Sem a possibilidade de desvalorizar as suas moedas para se tornarem mais competitivas recorrem à criação de facilidades de crédito para assegurar mercado.
Portugal assinou vários acordos com o Governo de Cabo Verde que criam novas linhas de crédito ou ampliam as já existentes. Assim ampliou uma linha de crédito da Caixa Geral de Depósito de 100 milhões para 200 milhões de euros para a construção de infraestruturas portuárias. Passou um empréstimo directo do Estado português de 40 milhões para 100 milhões de euros para a construção de novas estradas. Criou uma nova linha de crédito de 100 milhões de euros para as energias renováveis, salientando o facto de ter a quarta empresa mundial nesse sector, a EDP, mas evitando pronunciar o nome dessa empresa para não relembrar o governo caboverdiano da forma como tratou o assunto da Electra. Uma outra linha de crédito, ainda de 7 milhões deverá ir para o que convencionaram chamar de Cluster do Atlântico para as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação).
Segundo o Secretário de Estado do Tesouro e Finanças português, a assinatura desses acordos potenciam as exportações e a internacionalização das empresas portuguesas. Adiantou ainda que os acordos têm como condição que os projectos sejam desenvolvidos por empresas portuguesas.
É, assim, que finalmente se compreende a razão porque todos esses anúncios nos jornais de concursos públicos do Estado de Cabo Verde para a construção e fiscalização de obras são dirigidos a empresas portuguesas. Recentemente as empresas caboverdianas foram aceites, mas em consórcio com empresas portuguesas e com o entendimento que o consórcio deve ser liderado pela entidade portuguesa.
Naturalmente que o condicionante imposto no uso do dinheiro dos empréstimos, que certamente Cabo Verde irá pagar na íntegra, não se limita às empresas construtoras das infraestruturas. Como a linha de crédito visa potenciar as exportações é natural que também se faça uso dela na compra de bens e serviços exclusivamente portugueses. É evidente que isso ficará caro a Cabo Verde, considerando a fraca competitividade dos produtos portugueses e, em consequência, o seu preço mais elevado relativamente a produtos similares, oferecidos no mercado internacional.
A questão que se coloca é porque que o Governo de Cabo Verde aceita um negócio desses. Vasco Pulido Valente, numa crónica no jornal Público de 15 de Março foi claro quanto à relação de muitos governos com as infra estruturas: (…) “política do betão”é fácil de explicar. Para começar, não implica um pensamento político, não exige mais do que uma velha tecnologia, usa sobretudo mão--de-obra não qualificada, abre largamente a porta à corrupção, o resultado fica bem à vista e o país julga que se “modernizou”. (…) Claro que uma auto-estrada pouco ou nada contribui para o desenvolvimento e a produtividade(…).. Só ajuda a fingir que [se] progride e isso basta. Ainda, no mesmo tom e a respeito do Magalhães, disse que esse portátil (…) tinha a mesma vantagem de uma auto-estrada - não pedia, em princípio, nenhum esforço de inteligência, imaginação ou conhecimento. Bastava encomendar a coisa, pagar a coisa e distribuir a coisa.
Os entendimentos feitos com o Governo português no domínio da sociedade de informação incluem a manifestação de interesse do executivo caboverdiano em adquirir 150 mil computadores portáteis para o sistema escolar. A concretizar-se com o Magalhães, ou comum seu clone próximo, estar-se-ia a falar de valores de mais de 49 milhões de euros, partindo do preço unitário do Magalhães de 329 euros. Uma excelente venda para Portugal!
É interessante ver a abordagem de Moçambique na realização desse desiderato de massificação do acesso a computadores. Para abastecer o mercado, o Ministério da Ciência e Tecnologia desse país fez uma parceria com a empresa sul africana Sahara para instalação de uma linha de montagem de computadores que poderá a chegar a 19 mil computadores por ano, quando em velocidade de cruzeiro. Ou seja, fez-se aí uma opção em construir uma capacidade interna abrangente no domínio das TIC que certamente não fica limitada às fórmulas, produtos e serviços que a Cooperação permite comprar. Tal aposta pressupõe desenvolvimento de capacidades endógenas em institutos tecnológicos e centros de formação profissional. Sem esquecer o incentivo ao empreendorismo, dinamicamente conectado com centros de aprendizagem e de investigação, na perspectiva de venda de serviços no mercado local e internacional.
Hoje é ponto assente que a crise actual marca o fim de uma era. Um mundo novo irá emergir em que muitas das facilidades e oportunidades anteriores deixarão de existir. Para Cabo Verde, que deixou de beneficiar da condição de país menos desenvolvido para ser encarado hoje como um país de rendimento médio, insistir na lógica do curto prazo, do ganho político imediato e do “parecer” em vez de “ser” pode vir a revelar-se desastroso.
A pequenez da economia caboverdiana alimenta a crença que a transferência de fundos de outras paragens, via as mais diferentes formas de cooperação, não deixará de manter o país a andar. Tal crença desvia o foco da governação. O governo, em vez de se centrar em resultados, nomeadamente, aumento do emprego, exportações e melhoria da competitividade global do país, fixa-se na captação de fundos. Em vez de desenvolver projectos com vista a garantir sustentabilidade e retorno dos investimentos feitos ocupa-se essencialmente da montagem dos mesmos, esquecendo-se das outras fases. Em vez de publicitar o efeito dos investimentos na qualidade de vida das pessoas, na capacitação do País em atrair investimento e na criação de mercados para bens e serviços nacionais, quase que transforma a governação num desfile incessante de anúncios e inaugurações.
Esta crise não tem que ser mais uma oportunidade a perder. Para evitar que assim seja, as energias da nação têm que ser mobilizadas. E certamente que não é com a cooperação internacional que isso será feito. Mesmo que venha vestido de outras roupagens e envolta numa linguagem moderna salpicada de TICs e clusters.
A Irlanda ou a Índia atraíram capitais e exportaram bens e serviços designadamente através do outsourcing e offshoring porque souberam construir capacidade endógena. Formação e qualificação da mão de obra foram elevados ao nível de prioridade máxima. Com isso mobilizou-se a vontade dessas nações, exigiu-se maior responsabilidade das famílias e os indivíduos sentiram-se motivados num ambiente que recompensa trabalho árduo, o mérito e a criatividade. O resultado viu-se no alto nível de ensino das ciências e engenharias, no desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e na aquisição de competências linguísticas de importância e valor no mercado global.
È um caminho similar que Cabo Verde deve seguir para que a frustração dos últimos anos não persista. O País tem que acreditar que é capaz de baixar significativamente o desemprego e crescer. Crescimento que aumente significativamente o rendimento e a qualidade de vida das pessoas e diminua a dependência da generosidade dos outros. O momento para isso é agora. Não deve ser desperdiçado. E cantos desviantes de sereia não devem ser ouvidos.
Publicado pelo jornal A Semana de 13 de Março de 2009
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