quarta-feira, março 23, 2016

Democracia é também procedimental

Um dos momentos marcantes dos regimes democráticos é o da alternância de poder. Relembra que o poder não é eterno e sendo precedido de eleições livres, justas e plurais vinca o princípio segundo o qual o exercício do poder só se legitima porque resulta do consentimento dos governados. Compreende-se, por exemplo, porque a investidura de um novo presidente dos Estados Unidos de quatro em quatro anos é um acontecimento de maior importância. O ritual de mais de 200 anos é seguido à risca na presença e com a participação de todos os poderes legislativo e judicial e da sociedade civil americana. Em outras democracias, talvez sem a mesma pompa, a passagem do poder é também um marco fechando e abrindo ciclos políticos. Em Cabo Verde ainda parece qua não assentamos completamente em como levar sem falhas, dúvidas ou precipitações o processo de transferência de poder. As eleições legislativas aconteceram no domingo, dia de 20 Março, e já o presidente da república em nota no Facebook anuncia : “Na quarta-feira de manhã contactarei todas as forças políticas com assento na Assembleia Nacional para, nos termos constitucionais (art.ºs 135.º, n.º1, i) e 194.º, n.º1), vir a proceder à nomeação do Primeiro Ministro, seguindo-se a nomeação dos restantes membros do Governo, sob proposta do Primeiro Ministro”. Qual é a pressa? Parece claro, à luz da Constituição,  como se deve proceder após as eleições: depois dos resultados eleitorais confirmados, há um edital da Comissão Nacional de Eleições publicado no Boletim Oficial com os dados de todos os círculos e os nomes dos deputados eleitos. No vigésimo dia subsequente a nova Assembleia Nacional reúne-se na sua sessão constitutiva (art.153º) e nesse dia termina a legislatura e começa uma nova. Segue-se a demissão do governo (art.202º) que passa a governo de gestão (art.193º) até a tomada de posse do novo governo nomeado pelo PR. Depois da posse, o novo executivo, entretanto a funcionar como governo de gestão, tem 15 dias para apresentar o seu programa à Assembleia Nacional acompanhado de uma moção de confiança (art.197º). Aprovada a moção pela maioria absoluta dos deputados, o governo inicia o mandato com plenos poderes. Salvo melhor interpretação, este parece o mapa a ser sempre seguido após eleições legislativas, o início da uma nova legislatura e a tomada de posse de um novo governo. Quando há alternância o processo de transferência de poder não deve deixar margem para dúvidas. Infelizmente não foi o que aconteceu na 1ª alternância em 2001. Tivemos o insólito de um governo do MpD demitido dia 30 de Janeiro, 13 dias antes do fim da legislatura que seria a 12 de Fevereiro, o dia da sua demissão automática. Ao mesmo tempo fez-se o absurdo de nomear um novo chefe do governo do PAICV no dia 1 de Fevereiro, 12 dias antes do início da nova legislatura, ficando-lhe após isso três dias dos quinze do prazo que, sob pena de demissão, deveria apresentar o programa ao novo parlamento (art. 202º n.1 d). Os desencontros ou atropelos neste processo vieram a revelar-se de maior gravidade porque se verificaram a meio das eleições presidenciais de 2001 que deram vitória a Pedro Pires e que ficaram manchadas por crimes de fraude eleitoral punidos por prisão efectiva dos responsáveis. No momento da segunda alternância é de maior importância que a normalidade no  processo de transferência de poder fique institucionalizada de uma vez para sempre. Em todas as democracias é um sinal de maturidade atingida.  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 747 de 23 de Março de 2016.

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