sexta-feira, junho 19, 2015

Nada é o que parece ser



Nestes meses pré-eleitorais Cabo Verde vive tempos peculiares. O Primeiro-ministro às vezes apresenta-se como o líder da sua agenda de transformação e esforça-se por mostrar os “ganhos” de quinze anos de governação. Quase em simultâneo põe-se na posição de crítico e fustiga, por exemplo, a administração pública, que ele próprio dirigiu durante os últimos quinze anos, como factor de atraso na criação de um bom ambiente de negócios. Ou apela ao sector privado para substituir o Estado nos investimentos para fazer crescer a economia oblívio da situação actual de enorme dificuldade na generalidade das empresas. Ou ainda queixa-se do elevado desemprego no país convidando a todos a encontrar solução para esse mal que assola o país. Na inauguração da nova linha da Frescomar, na segunda-feira, dia 15, ouviu-se mais uma reedição deste discurso de “Now you see me, now you don´t”. A discutir a partidarização da administração pública no Instituto da Ciências Jurídicas e a falar da regionalização no Paul, foi a mesma coisa. 
Nas democracias a questão da responsabilidade partidária é crucial para a legitimação do poder, para o exercício consciente do direito do voto e também para garantir a possibilidade de alternância. A todo o momento tem que se saber quem é governo, ou seja, quem ganhou pela sua visão e programa de futuro, quem tem um mandato pré-estabelecido para a pôr em prática e quem tem todos os recursos do Estado para a implementar. Do governo espera-se liderança designadamente na criação de condições para que todos tenham a possibilidade de realizar-se como cidadãos plenos e prosperar a nível pessoal, familiar e das colectividades que criam ou a que pertençam. Não se espera que simplesmente faça a “sua parte”, geometricamente varável segundo as suas conveniências, e se ponha em bico dos pés a acusar outros como o sector privado, as câmaras municipais, as famílias e os próprios jovens desempregados por não estarem a cumprir o seu. 
Ao longo do mandato e particularmente no fim do mandato as pessoas querem estar na posição de poder cobrar ou premiar conforme as espectativas criadas foram ou não atingidas. Certamente que não querem ser desviadas por actos de ilusionismo que não deixam ver o que realmente se conseguiu, quem foi o responsável e que saídas existem para os problemas do momento. O facto actual do Primeiro-Ministro não ser o líder do partido que suporta o governa abriu caminho para maiores ambiguidades em matéria de responsabilização política. Viu-se isso perfeitamente na questão do estatuto dos titulares de cargos políticos.
Para o cidadão eleitor, que assiste ao frenesim pré-eleitoral  que passa pela comunicação social particularmente na radio e na televisão em que é protagonista principal o PM  nas suas movimentações incessantes pelas ilhas em lançamentos de primeiras pedras, inaugurações, visitas, aberturas de fóruns  e sessões de auscultação, a situação é mais confusa. Fica-se por saber: está ou não em campanha. É ou não candidato e em que condição. É responsável ou é crítico das políticas dos últimos quinze anos. É pela continuidade das políticas ou é pela renovação como quer se apresentar a nova presidente do seu partido. 
Momentos eleitorais devem ser de clareza de posições. Os cidadãos são chamados para decidir qual a orientação a imprimir nos 5 anos seguintes. Precisam saber qual é a real situação do país, como poderá evoluir na actual conjuntura mundial, e que opções oferecem os agentes políticos para melhor confrontar os desafios do presente e do futuro próximo. Esta exigência da democracia é ainda maior quando o futuro está cheio de incertezas e as fragilidades do país são visíveis no crescimento raso, no elevado desemprego e na cada vez mais pesada dívida pública. O cenário de aprofundamento da crise na União Europeia, o principal parceiro económico de Cabo Verde, devido à possível saída da Grécia, e talvez não só, da zona euro ainda poderá tornar as coisas pior.
Momentos eleitorais são também de responsabilização. O foco da atenção deve estar nos partidos, nas soluções alternativas e nas propostas de governação que apresentam e não fixar-se no jogo de ambições pessoais que muitas vezes estão por trás das listas de deputados. Como bem disse o constitucionalista português Vital Moreira a propósito de de  candidaturas de cidadãos às legislativas: “Não faz sentido permitir a eleição individual de deputados que nas eleições seguintes já podem não ser candidatos e a quem ninguém pode exigir responsabilidades. Uma democracia parlamentar é uma democracia de responsabilidade partidária”. De facto, só aos partidos é que se pode posteriormente punir ou recompensar pelos actos da governação e pelas promessas cumpridas e não cumpridas. Para isso porém é de não admitir que façam da política a arte do ilusionismo e o terreno propício para exercício do cinismo e da hipocrisia. 
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 17 de Junho de 2015

sexta-feira, junho 12, 2015

Alertas do BCV

No relatório da Política Monetária referente a Maio de 2015, publicado pelo Banco de Cabo Verde na passada semana, são evidentes as fragilidades da economia nacional. A dívida pública continua a aumentar e já está a 114% do PIB. O défice orçamental mesmo caindo para 7.3 % do PIB continua excessivo e pelas previsões do BCV o crescimento económico poderá situar-se em 2015 entre 2,5 e 3,5 % na melhor das hipóteses. Com tais indicadores dificilmente se consegue vislumbrar quando será o regresso aos parâmetros considerados fundamentais para a sustentabilidade do acordo cambial que impunha o limite de 3% ao défice orçamental e de 60% à dívida pública. Não estranha que os índices de confiança apresentados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) continuam a deteriorar-se meses e anos a fio situando os últimos dados no pior nível desde de 2009.
Pelo relatório, confirma-se que as medidas do BCV de facilitação do crédito não tiveram o efeito desejado de melhorar o financiamento bancário do sector privado. As incertezas na evolução da economia são muitas. Afectam os bancos que se tornam mais exigentes em dar seguimento a pedidos de crédito. Desincentivam eventuais potenciais investidores que não vêem um potencial de crescimento nos mercados interno ou externo para os seus bens e serviços. Desencorajam os consumidores que adiam o consumo afectando ainda mais a já fraca procura interna. Sintomático dessa poupança precaucional, como bem nota o BCV, é a tendência de aumento dos depósitos bancários sejam os à ordem sejam os a prazo. Segundo o Banco Centralas elevadas incertezas quanto às perspectivas económicas e financeiras do país terão continuado a influenciar o comportamento das famílias, que pouparam 13,6 por cento do seu rendimento disponível real em 2014.

Um dado preocupante avançado pelo BCV é de que “pela primeira vez desde 2009 as receitas brutas do turismo registaram um decréscimo”. Terão contribuído para isso a redução do número de turistas e a redução de preços para responder à concorrência de outros destinos particularmente de países do Norte de África que procuram recuperar-se das perdas resultantes da instabilidade provocada pela Primavera Árabe. A confirmar-se a tendência, vem dar razão a todos aqueles, empresários, sociedade civil e forças políticas de oposição, que têm clamado ao longo dos anos para que a atitude do governo fosse outra em relação ao turismo. Uma atitude mais proactiva, mais consequente e com maior sentido de urgência na resolução dos problemas. 
Infelizmente é a postura rentista que prevalece. Ao longo da história tem sido essa a postura adoptada pelas autoridades. Razão porque alguns classificam Cabo Verde como a terra das oportunidades perdidas. Sempre que surge uma oportunidade assume-se  logo que é para durar e a tentação é sugar o máximo em termos de receitas para o Estado sem se preocupar em saber como e porquê surgiu e por quanto tempo poderá manter-se. Muito menos dá-se ao trabalho de emprestar à procura externa daí emergente outras valências que a podem aumentar, diversificar e qualificar. Não estranha que com o tempo desapareçam as condições atractivas iniciais e o negócio simplesmente se esvazie e depois procure relocalizar-se em paragens mais convidativas. 
O que muito separa Cabo Verde das Ilhas Canárias, como nota a reportagem das páginas 8 e 9,  é atitude diferente num caso e noutro das autoridades em relação ao turismo, ao desenvolvimento do sector privado e à necessidade de mobilizar uma procura externa diversificada para os seus bens e serviços. Por isso as Canárias já vão a 13 milhões de turistas, os seus empresários e empresas procuram agressivamente internacionalizar-se e a sua oferta de bens e produtos é diversificado e em processo de contínua sofisticação. Pelo contrário, em Cabo Verde os turistas não chegam a um milhão e o tecido empresarial é formado essencialmente, segundo o BCV e citando o recenseamento de 2012, por micro e pequenas empresas sem contabilidade organizada e com capacidade organizativa e de negócios limitada. As exportações de bens são em boa parte de pescado e dependem de uma única empresa e de um mercado externo específico.

O que se vê em Cabo Verde são fragilidades induzidas e reproduzidas porque não há visão, ninguém segue estratégias e planos de acção previamente definidos e falta sentido do timingcerto para agir. Não estranha pois que o relatório do BCV caracterize a conjuntura actual como sendo “de crescimento económico comedido que persiste desde 2011, de contínua deterioração do balanço das empresas e famílias bastantes endividadas, de incessante aumento do crédito malparado e de agravamento da percepção dos riscos de investimento no país”.
  
        Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 10 de Junho de 2015

sexta-feira, junho 05, 2015

Populismo punitivo

A pena máxima em Cabo Verde vai aumentar de 25 para 30 anos de prisão. O governo já tem a autorização da Assembleia Nacional para fazer a revisão do Código Penal. A proposta de autorização legislativa foi aprovada pela unanimidade dos deputados presentes na sequência de uma discussão a que foi alocado um tempo que não ultrapassou as 2 horas. A principal alteração feita ao pedido de autorização legislativa foi baixar a pena máxima proposta de 35 para 30 anos.
Com essa decisão Cabo Verde rompeu com uma tradição quanto ao regime de penas que vem do século XIX e do tempo colonial. Em 1884, Portugal foi o primeiro país do mundo a acabar com a prisão perpétua e a adoptar a pena máxima de 25 anos. A Constituição de 1992 consagrou esse ganho civilizacional e proibiu explicitamente a prisão perpétua (artigo 33º). O Código Penal aprovado em 2003 confirmou a pena máxima em 25 anos de prisão. Uma alteração desse regime 12 anos depois deveria merecer justificação fundamentada e discussão aprofundada. Parece que não se conseguiu fazer nem uma, nem outra.
Apesar de na nota justificativa que acompanhou a proposta se reconhecer que “não é a severidade das penas que afasta as pessoas dos ínvios caminhos da criminalidade mas sim a certeza da condenação” aumenta-se, mesmo assim, a pena mais 10 anos.  Pergunta-se porquê? A resposta na nota referida é que “isso vai ao encontro das preocupações das pessoas”. Ou seja, em vez de focalizar os esforços em investigar e conseguir a condenação dos criminosos, fica-se pelo mais fácil mas menos eficaz e também custoso expediente de aumentar a pena. Posto de outra forma: muda-se um regime de penas centenário simplesmente por razões de política que alguns classificariam de populismo punitivo?
Há algum tempo que se vinha discutindo uma revisão do Código Penal mas ninguém pensava em mexer na pena máxima. O assunto só veio à tona em Janeiro deste ano, na sequência do atentado ao filho do Primeiro-ministro e meses após a tentativa de assassinato da mãe de uma inspectora da PJ. Foi a resposta mediática encontrada para o sentimento generalizado de insegurança da população. Todos desataram a discutir a questão e provavelmente outras discussões mais pertinentes para a prevenção e combate à criminalidade e às incivilidades múltiplas no país ficaram secundarizadas no processo.
Nos meses que se seguiram, a proposta de aumento da pena máxima não conseguiu muitos apoiantes fora do círculo governamental. O Presidente da República pronunciou-se contra em várias ocasiões. Numa das suas intervenções disse que «Os estudos indicam que não é com base na severidade das penas que se resolve o problema, mas sim com a criação da capacidade de investigação para descobrir os suspeitos, julgá-los em tempo adequado e aplicar uma pena justa. É assim que a sociedade funciona com tranquilidade».
Recentemente, em sede da Comissão Especializada dos Assuntos Jurídicos e Constitucionais, foram ouvidas várias entidades ligadas à Justiça sobre a matéria. O Provedor da Justiça e a Bastonária da Ordem dos Advogados declaram-se contra a proposta de revisão da pena máxima. O próprio Procurador-Geral da República a quem cabe dirigir a execução da política criminal diz que só aumentar a pena não chega e que a resposta à “percepção de que as pessoas saem demasiado depressa das prisões” poderá passar pelo cumprimento efectivo das penas.
É tentador aumentar penas para passar uma mensagem de combate firme contra a criminalidade. Na realidade não passa de um efeito mediático dirigido para aumentar a sensação de segurança dos cidadãos. Para muitos especialistas do Direito Penal o aumento não tem nenhuma eficácia nem nenhuma utilidade porque não servirá para reduzir o número de delitos. Países como os Estados Unidos foram por essa via punitiva: não conseguiram diminuir o crime mas criaram um problema terrível com o aumento da população prisional e da violência nas prisões. Estudos recentes citados neste jornal (nº 710) mostram que depois de uma certa idade a capacidade de violência diminui consideravelmente. Manter as pessoas presas por mais de vinte ou vinte e cinco anos anos não traz qualquer ganho para a pessoa, para o sistema prisional ou para a sociedade. A eficácia do sistema de justiça fica diminuído porque só consegue punir mas não proporciona a reeducação nem incarna a possibilidade de reinserção social.

É evidente que as duas horas no Parlamento foram insuficientes para se debater adequadamente a revisão do Código Penal tendo em conta as suas implicações e a necessidade que todos vêem em se ter leis funcionais que resolvam os problemas com que a sociedade se depara. Aprovar nessas condições é quase como passar um cheque em branco ao governo. Considerando as reservas manifestadas por várias entidades da área da justiça e alguma preocupação vinda da sociedade civil seria provavelmente proveitoso que o Parlamento chamasse a si a ratificação do decreto legislativo que o governo vai aprovar ao abrigo do artigo 183 da Constituição. Uma oportunidade para se aplicar um dos poderes do Parlamento na fiscalização do governo adquiridos na última revisão constitucional de 2010. A revisão do Código Penal pela sua importância devia voltar outra vez ao Parlamento. Fundamental manter o elevado nível grau de consenso na sua alteração de que beneficiou o primeiro Código Penal.

 Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 3 de Janeiro de 2015 

sexta-feira, maio 29, 2015

O passado não deve reger o presente nem bloquear o futuro

Em mais um Dia da África, o 25 de Maio, o foco da atenção do mundo recai sobre o futuro do continente. As tragédias dos naufrágios no Mar Mediterrâneo com perdas de milhares de vidas vieram lembrar os problemas terríveis com que se debatem as populações. É facto que em várias regiões do continente, a falta de autoridade do estado, junta-se aos extremismos religiosos, à violência étnica e a desastres naturais para empurrar milhares para migração clandestina para Europa. Mas, apesar da crise humanitária que se seguiu, não se nota o regresso ao afro-pessimismo dos anos passados. A África é hoje visto como um continente do futuro. A prestigiada revista britânica Economist já não se refere à África como o continente sem esperança (hopeless) mas sim como o continente promissor (hopeful).
Declarado em vários círculos do capital internacional como “a última fronteira”, a África tem merecido recentemente de países como a China, Índia e o Japão um interesse redobrado. Interesse que não fica pela exploração dos minérios e do petróleo, mas vai mais além para outros sectores da manufactura, energia e serviços diversos em particular nas áreas de informação e comunicação. Os potenciais parceiros económicos já não são somente as antigas potências coloniais e a América. Em tempos de globalização, a possibilidade de desenvolver múltiplas e complexas ligações económicas com todos os outros continentes são muito maiores e as potencialidades são imensas. O crescimento em média de 5 % nos últimos anos deve-se à maior capacidade de atracção do investimento directo estrangeiro e ao aumento das exportações para o qual tem contribuído grandemente a dinâmica das economias dos países emergentes, os BRICS. 
Várias razões concorrem para justificar porque os países africanos ficaram atrás quando comparados com os países asiáticos. Nos princípios da década de sessenta não havia muita diferença entre o rendimento per capita da Coreia do Sul, da Singapura e de Taiwan e o do Gana, Nigéria ou Costa do Marfim. Girava tudo à volta dos 200, 300 dólares anuais. Porquê, então, hoje só se pode falar de tigres asiáticos e não de leões africanos. Um factor de peso que contribuiu para que o resultado fosse diferente num caso e noutro foi certamente a natureza e qualidade da liderança.
As opções de política económica no caso de vários países asiáticos permitiram-lhes criar uma capacidade endógena de criação de riqueza. Na África, pelo contrário,  houve países que se contentaram em viver dos recursos naturais como minérios e petróleo. Outros que não tinham tais recursos desenvolveram a capacidade de explorar o filão da ajuda internacional. Também na Ásia apostaram no sector privado e nas exportações e as consequências viram-se: ganharam em competitividade, aumentaram a produtividade, criaram uma classe média alargada e retiraram milhões de pessoas da pobreza. Enquanto isso, na África faziam-se experiências do socialismo africano, enveredava-se pelo caminho da crescente estatização da economia, não se promovia o sector privado nacional e incentiva-se a economia informal. É evidente que daí só podia vir pobreza das populações e crescente vulnerabilidade do país em relação aos choques naturais ou de outra natureza. Interessante notar que mesmo quando, num caso e noutro, africano ou asiático, os regimes não eram democráticos mas sim autoritários as lideranças primaram por fazer opções abismalmente diferentes.
Os “libertadores” em vários países africanos sempre quiseram perpetuar o poder que receberam no momento da independência. Para renovar a legitimidade histórica tiveram que, por um lado, alimentar o sentimento de vítima do colonialismo e a memória dos seus horrores como a escravatura e, por outro, impedir efectivamente que as pessoas e a sociedade ganhassem autonomia a ponto de exigir responsabilidade à governação do país e renovação dos governantes via métodos eleitorais democráticos. Em nome do Poder sem controlo sacrificaram os seus países com a perda de múltiplas oportunidades de se industrializarem, deixaram milhões na miséria e promoveram uma postura de assistencialismo e dependência que a prazo se tornou num dos maiores obstáculos ao desenvolvimento. Na Asia foi diferente. Os governos mesmo autoritários de Coreia do Sul, de Singapura ou mesmo da China procuraram relegitimar-se fazendo os seus países crescer a taxas elevadíssimas durante décadas seguidas.

Felizmente que nesta segunda década do século 20 há fortes sinais que em muitos países africanos se quer ultrapassar os constrangimentos do passado e a partir daí construir um futuro integrado no mundo numa perspectiva em que o que realmente conta são os factores de competitividade, produtividade e inovação. O volume crescente de investimento directo estrangeiro em direcção à África é um sinal forte de que se está no bom caminho. Mas como disse Mo Ibrahim numa entrevista à revista Foreign Affairs o fundamental para o futuro da África é o Estado de direito democrático e a afirmação do primado da lei. A actividade privada e o empreendedorismo dependem disso. E o futuro também. 

 Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 27 de Maio de 2015 

sexta-feira, maio 22, 2015

O rei vai nu

Tem sido notícia em vários órgãos de comunicação social o boicote do governo à recepção organizada pela delegação da União Europeia para marcar a Semana da Parceria Cabo Verde/UE. Parece que a razão para isso foi a entrevista dada a este jornal pelo embaixador da UE José Manuel Pinto Teixeira em que chamava a atenção pelo mau ambiente de negócios em Cabo Verde. O governo não gostou da revelação e, como o rei na fábula, assustou-se perante a possibilidade de ver desfeita toda a ilusão à volta das “suas ricas e maravilhosas vestimentas”.
Partiu para a retaliação que provavelmente não ficará só pela não comparência na recepção, mas ao comportar-se assim deixou entrever ainda mais do que o estado do ambiente de negócios do país. Ficou claro que tem uma preocupação permanente em dominar a sociedade cabo-verdiana com um discurso que nem perante a realidade dos factos se desmorona facilmente. Também não deixa dúvida que tudo faz ou fará para que não apareça qualquer voz “inocente” que ameace desconstruir tudo. Se reage assim com a UE, imagine-se o leque de instrumentos entre o pau e a cenoura que usa diariamente para manter todos sintonizados com a sua Agenda de Transformação quando a realidade é a do crescimento raso, da falta de emprego e da dívida pública que já vai muito acima dos 100 por cento.
Há quase vinte e cinco anos que Cabo Verde é uma democracia. Tal facto coloca o país ainda numa fase de consolidação das suas instituições democráticas, a dar os primeiros passos na autonomização da sociedade civil e nos primórdios de uma imprensa independente e plural. Ter um governo como este que se revelou neste incidente excessivamente preocupado em manter o país numa linha de pensamento pontuada por fugas à realidade pode constituir um perigo real para o aprofundamento da democracia e do pluralismo.
Imagine-se o esforço diário que se tem que fazer para garantir essa linha, essa roupagem repleta de maravilhas, dádivas e esperanças. Um misto de acção e atitude que se nota, por um lado, na  propaganda  permanente, na interpretação enviesada dos factos e na desresponsabilização pela falta de resultados positivos e promessas não cumpridas  e, por outro lado, na desvalorização da  crítica, na relutância em submeter-se ao exercício do contraditório e na fuga à prestação de contas. Inevitavelmente afectada em todo este processo é a própria governação que ao concentrar-se na necessidade de tudo controlar, fixa-se demasiado no curto prazo e orienta-se exclusivamente para interesses eleitoralistas. Também sacrificado é o Parlamento, a sede do contraditório e o agente político e plural de fiscalização da acção do governo. E se o controlo das situações e da mensagem está no centro das preocupações, dificilmente se pode evitar que se sacrifique o desenvolvimento, o crescimento económico e o emprego para assegurar a continuidade no poder.
Quebra esta harmonia delicada todo aquele que procura dar uma outra justificação para os factos que teimosamente insistem em fugir do quadro oficial permitido. São chamados profetas da desgraça, portadores de más novas e adeptos do “quanto pior, melhor”. Para os constranger são-lhes exigidos que reconheçam as coisas boas antes de terem o direito a criticar. Para obscurecer a realidade e dificultar o debate público atira-se para a discussão desculpas que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. Em simultâneo não se inibe de condicionar todos que fazem opinião, elevando a autocensura a um nível que mesmo que apareça quem grite que o rei vai nu, a sua voz e a sua denúncia esbatem-se e diluem-se na cacofonia deliberadamente criada para que uma única música subsista e se imponha.
 Cabo Verde está num ponto crítico da sua existência. Deixou de poder contar com donativos e empréstimos concessionais por muito mais tempo. O investimento que precisa para se desenvolver tem que vir do capital estrangeiro, do produto da venda de bens e serviços e da capacidade nacional de produzir riqueza e de fazer poupanças. O alerta do embaixador da UE é que ainda não se logrou criar o ambiente necessário para isso. A reacção hostil do governo confirma que não está interessado em mudar as suas políticas e a sua atitude básica. Só quer manter a fachada.

Já em período pré-eleitoral é evidente que o horizonte temporal que interessa é o do primeiro trimestre de 2016 para se decidir as eleições e os cinco anos de poder. É como quem diz: depois se verá. Compreende-se o desorientamento e a hostilidade quando aparece alguém de peso e com cabeça fora da névoa propagandística doméstica a clamar para todos ouvirem: o rei vai nu!

     Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 20 de Maio de 2015

sexta-feira, maio 15, 2015

Mudar a sério

As dificuldades com o ambiente de negócios em Cabo Verde ficaram patentes nos encontros com empresários estrangeiros realizados no quadro da semana da Parceria de Cabo Verde com a União Europeia. O relato “do saltitar de departamento em departamento”, da “burocracia que afasta investidores”, dos “anos e das oportunidades perdidas” e da “mentalidade das instituições em obstaculizar em vez de facilitar” marcou muitas das intervenções dos presentes. Ao levantar essas questões estavam a juntar a sua voz à dos empresários nacionais que há anos vêm-se queixando em vão do ambiente hostil existente, não obstante as reiteradas promessas do governo de mudar a atitude da administração pública em relação à actividade privada. 
O próprio embaixador da União Europeia nos seus encontros com a comunicação social sentiu necessidade de transmitir para o país essas preocupações dos empresários e investidores. Segundo ele, a ajuda da União Europeia nesta fase visa em grande medida apoiar Cabo Verde na atracção do investimento e em melhorar o ambiente para a actividade empresarial. O mínimo que naturalmente quer ver é um esforço nacional da parte cabo-verdiana em reduzir a burocracia, em melhorar a coordenação dos processos de decisão e em agilizar as decisões. O pior que pode acontecer depois de um esforço em atrair investidores é constatar a sua desilusão com aquilo que se encontra.
Paul Krugman num recente artigo no New York Times escreveu que estamos a viver uma era em que ninguém assume que errou. Como não se assume, também não se faz um esforço efectivo para alterar a situação. Ainda hoje, no décimo quinto ano do seu mandato, ouve-se o Primeiro-ministro dizer que a administração pública precisa adequar-se para melhor servir o ambiente de negócios do país. Num balanço recente das cem medidas “urgentes” anunciadas em Novembro de 2011, o PM confirmou que só cinco (5%) foram executadas, estando umas iniciadas (9), outras em desenvolvimento (24) e em franco desenvolvimento (56) e ainda outras que simplesmente não foram aplicadas (6).  A inércia parece ser difícil de vencer. 
Em S.Vicente, no “Meeting Point” da semana passada ostensivamente voltado para atrair investidores e seduzir operadores económicos, falou-se outra vez num ponto de viragem. Mas a um ano das eleições legislativas é legítimo perguntar se com esse discurso está-se a anunciar uma inflexão na postura das instituições ou nas políticas seguidas até agora ou se se trata realmente de mais um artifício para ganhar tempo e gerir expectativas. Facto é que periodicamente S. Vicente têm sido palco de exercícios similares, designadamente de Conselhos de Ministros especializados, lançamentos de clusters e promessas de infra-estruturas “criadoras” de oportunidades. Depois nada de significativo acontece: o desemprego continua excessivo e os sinais de estagnação económica teimam em manter-se. Não se assume que provavelmente a falha maior está na orientação política da economia nacional.
O alerta vigoroso de investidores e empresários oriundos de países da União Europeia deve ser tomado com a devida seriedade. Como disse o embaixador da União Europeia na entrevista a este jornal aeconomia é o sector empresarial, não é o Estado e a mentalidade de arranjar um emprego no Estado e ficar lá o resto da vida está a acabar pelo mundo. Vindo de quem mais ajuda, de quem mais investe, de quem mais envia turistas, e de quem é o principal parceiro comercial, é conselho para se ter em devida conta.

Há que tirar ilações certas do espectáculo a que assistimos todos os dias em vários países europeus. Vêem-se os enormes sacrifícios para se adaptarem às novas exigências do mundo pós crise e o esforço despendido para viverem dos seus próprios meios depois de anos de bonança de fundos europeus a custo perdido e juros baixos nos empréstimos. Enfrentar os desafios de hoje não se compadece com postura que procura em décadas passadas e governos anteriores os culpados para os problemas de hoje. Pelo contrário, para que a adaptação ao mundo de hoje seja proveitosa, deve-se primar por uma liderança efectiva que, como também diz o economista Paul Krugman na sua coluna do New York Times, se distingue pela integridade intelectual: a vontade de enfrentar os factos mesmo se estão em desacordo com o que sempre se tomou como certo e a vontade de admitir o erro e de mudar de rumo.

  Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 13 de Maio de 2015

sexta-feira, maio 08, 2015

Onde estão os "indignados"?

No dia Primeiro de Maio, as manifestações contra o desemprego, a injustiça e a insegurança ficaram muito aquém do esperado. O Primeiro-Ministro, citando analistas, diz que foi um fiasco. De facto, a iniciativa das duas centrais sindicais, CCSL e UNTCS, em convocar os trabalhadores para uma marcha de protesto só convenceu poucas centenas de pessoas na Praia e algumas dezenas em S. Vicente. Aqueles que com o convite dirigido ao Mac #114 para se associar à movimentação pensaram repetir as manifestações de 30 de Março ficaram defraudos. A perplexidade de muitos perante o fracasso ficou bem expresso nas palavras de um participante que na televisão pública perguntava: Onde está a juventude que mais sofre com o desemprego? Onde estão os estudantes universitários?
Há quem pense que em Cabo Verde ainda não se verificam manifestações frontalmente contra as políticas do governo. O que se passou no dia 1 de Maio parece confirmar isso. Quando há protestos públicos são normalmente de natureza sindical e limitados no seu escopo. A manifestação de 30 de Março, que tinha tonalidades políticas claras, foi essencialmente dirigida contra o parlamento e os deputados. Aliás, depois da entrevista do PM à rádio nacional no dia 31 de Março a confirmar a sua participação no processo negocial da actualização dos salários dos titulares de cargos políticos não mais houve outra manifestação apesar de uma ou duas estarem previstas. Coincidências.
As últimas sondagens do Afrobarómetro apontam para uma quebra na credibilidade das instituições do país em particular das instituições políticas. Quem mais sofre é o parlamento. Outrossim, o dado que mais chama a atenção é o nível de aceitabilidade do governo mesmo no seu décimo quinto ano de mandato, quando o país se debate com desemprego elevadíssimo, crescimento baixo, dívida publica acima dos 110% e défices orçamentais excessivos. As pessoas, aparentemente, não responsabilizam directamente o governo pelas dificuldades existentes, pela falta de perspectiva futura e pela incapacidade de acção efectiva para colocar o país num rumo diferente. Matérias como desemprego, insegurança, impostos pesados, não devolução do IUR e custos excessivos de energia e água não causam indignação a ponto de precipitar as pessoas para rua.
O conformismo e a resignação prevalecente que inibe a indignação têm um outro lado potencialmente corrosivo da democracia. Além de levar à descrença gradual nas instituições torna as pessoas sensíveis a demagogia e a populismos de toda a espécie. Estes, encontrando campo para se exprimirem, enfraquecem ainda mais as instituições e tendem a alimentar derivas autoritárias de governação, em particular as disfarçadas de paternalismo. Nos dois últimos acontecimentos, de 30 de Março e de 1 de Maio, nota-se a reacção dispare da sociedade e das pessoas. Em Março a reacção é explosiva perante matérias vincadamente populistas. No Dia dos Trabalhadores as pessoas primam pela ausência no protesto contra matérias que as sondagens dão como sendo as principais preocupações dos cabo-verdianos.
Quando se ouve a Ministra das Finanças a passar aos gestores do IFH a culpa pelos males actuais do Programa “Casa para todos” vê-se qual é a forma de proceder deste governo e o que poderá estar na origem desta dualidade de reacção. Quando as coisas estão bem auto-congratula-se e quando algo corre mal faz por não se responsabilizar. No programa “Casa para Todos” negociou tudo e vendeu apartamentos através de rendas resolúveis sem grande preocupação com a viabilidade financeira de todo o empreendimento. Depois passou tudo ao IFH. Nos entrementes fartou-se de inaugurar e entregar casas em espectáculos televisivos especialmente montados para o efeito. Agora surgem problemas e a ministra acha que o Tesouro não tem nada a ver com isso. A blindagem do Tesouro Nacional em relação aos problemas financeiros que as empresas públicas como o IFH, os TACV, a ELECTRA e a ENAPOR têm é mais outra blindagem que só pode existir na imaginação da ministra. Quando a factura chegar será para todos.
 Uma das características fundamentais da democracia é a possibilidade de os cidadãos responsabilizarem os governos pelos seus actos, pelas promessas feitas e pelos resultados obtidos. A relação com o governo não pode ser um “jogo do gato e do rato” para se evitar uma verdadeira prestação de contas e completa “accountability”. Já se viu como esse exercício contribui para a descredibilização do parlamento com as manobras que aí são feitas para se fugir ao contraditório e à fiscalização efectiva da governação.

Para a sociedade, gabinetes de imagem e de propaganda subordinados ao governo fazem uso de recursos públicos substanciais para mostrar o governo e os governantes na melhor luz. O choque da imagem projectada com a realidade diária das dificuldades vividas tende a alienar as pessoas, a induzir passividade e descrença e até a intimidar. Não estranha pois que protestos dirigidos contra o governo sejam tão raros. Curiosamente a susceptibilidade a paixões populistas tende a aumentar. Quem ganha com este estado de coisas?

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 6 de Maio de 2015 

sexta-feira, abril 24, 2015

Regionalização adiada sine die

A cimeira da regionalização prevista para Dezembro do ano passado mas só realizada na semana passada, nos dias 14 e 15 de Abril, foi para muitos observadores mais um exemplo da proverbial montanha que pariu um rato. A Declaração da Praia proferida no término dos trabalhos não definiu compromissos para além de um plano estratégico para integrar as temáticas debatidas na cimeira. O Primeiro-ministro fez questão de sublinhar que o “mais importante é pensar na descentralização e que qualquer tipo de regionalização será a prazo”. Sondagens do Afrobarómetro vindas ao público arrefeceram mais os ânimos a favor da regionalização com a informação de que ela não consta da lista das dez principais preocupações dos cabo-verdianos.
A questão da regionalização do país tem-se revelado nos últimos anos matéria política quente. Falar da regionalização ajuda a mobilizar vontades e paixões políticas. Críticas podem ser dirigidas contra o governo agitando a bandeira do combate ao centralismo e a macrocefalia da Capital. Políticos locais podem cavalgar no descontentamento popular alimentado pelo sentimento de abandono para mais facilmente se fazerem eleger e se consolidarem no poder. A reivindicação da autonomia pode ser erigida em arma de arremesso para forçar a mão de quem tem o grosso dos recursos do Estado.
A quebra nos últimos anos do crescimento económico nacional e o aumento do desemprego põem as pessoas inquietas e receosas em relação ao futuro. Ficam mais sujeitas ao tipo de discurso com traços demagógico e populista que tende a pôr uns contra os outros. A regionalização pode ser um desses discursos. O facto de, apesar disso, o “balão” ter sido em boa parte esvaziado na sequência desta cimeira de regionalização, poderá significar que o governo conseguiu ver a ameaça e soube contorná-la. Em vez de se prestar a alvo de críticas, ressentimentos e frustrações nas ilhas devidos ao excessivo centralismo, o governo manobrou inteligentemente para não ser visto como o problema, mas como parte da solução. Apresentou-se como líder na procura do melhor modelo e caminho para a regionalização. Entretanto as tendências já constatadas na relação com o poder local e com as ilhas continuavam na mesma: o centralismo é cada vez maior, a autonomia dos municípios sofre erosão diária e a capacidade das ilhas, em manterem a massa crítica populacional necessária para garantir dinâmica económica e cultural, tende a diminuir. 
O problema com a regionalização é que por demasiadas vezes o que está subjacente ao seu debate é uma lógica redistributiva. Muitos apoiantes querem simplesmente que recursos disponibilizados ao país sejam melhor distribuídos pelas ilhas. Não querem perceber que dirigir uma economia que privilegia a reciclagem da ajuda externa gera inevitavelmente centralização. A necessidade de comando e controlo obriga que tudo se concentre essencialmente na cidade capital e que os procedimentos sejam centralizados.

As ilhas precisam de uma dinâmica económica que as faça mais ricas, mais autónomas e mais capazes de conservarem a sua população e os seus jovens promissores que decidiram ficar na ilha. Consegue-se, rompendo com o modelo económico prevalecente nos últimos anos e que tem colocado Cabo Verde a crescer a taxas baixíssimas do PIB. Mas, como se viu nas manifestações e comentários a propósito das alterações ao estatuto dos titulares dos cargos políticos, não é fácil tirar as pessoas de um modelo económico como o de reciclagem de ajudas que cria uma mentalidade de “soma nula”: se estás a ganhar, estou a perder. Para esse tipo de raciocínio não há situações win-win em que todos podem ganhar.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 22 de Abril de 2015

sexta-feira, abril 17, 2015

Da rua não se governa

Os últimos dias não foram bons para a democracia cabo-verdiana. Passou-se a ideia de que se pode governar a partir da rua. Uma lei do Parlamento aprovado por unanimidade dos deputados não mereceu do presidente da república nem 24 de horas de avaliação, ponderação e maturação. Na fundamentação do veto político o PR usou argumentos apresentados nas manifestações populares e nas redes sociais e concluiu que era necessária uma reavaliação do diploma pelos deputados. A pronta reacção das forças políticas representadas no Parlamento foi de abandonar o diploma aprovado e de se declararem indisponíveis para o reapreciar.
Em vários sectores da sociedade, muitos se regozijaram com esse inédito capitular dos órgãos representativos da república perante protestos de alguns milhares de pessoas e perante expressões de desacordo no Facebook, em comentários online e em opiniões nos órgãos de comunicação social. Realmente a rapidez e a facilidade com que todos se libertaram do diploma até podia fazer esquecer que para o aprovar foram precisos anos de negociações com participação activa da direcção dos grupos parlamentares e da chefia do governo. O próprio PR, dias antes da discussão e aprovação da lei, aceitou receber os líderes parlamentares para lhe serem apresentados os consensos conseguidos.
A crise que aflige o sistema político aparentemente tem origem na oposição da nova líder do PAICV a algumas normas do estatuto dos titulares de cargos políticos (ETCP). Uma oposição  que estaria a colocá-la em rota de colisão com o grupo parlamentar do seu partido e com o próprio governo de que faz parte. Há, porém, um problema com essa ideia. Se há crise no Paicv não se vêem as consequências onde elas deviam se manifestar. 
 O líder parlamentar, apesar de discordar das orientações da líder do partido em matérias essenciais, não deixa o lugar como é prática generalizada nos regimes parlamentares. Nem a líder que também é ministra não deixa o governo mesmo quando o PM esteve claramente envolvido nas negociações do ETCP que merece publicamente a sua discordância. Durante toda a discussão e aprovação do diploma, o governo manteve-se em silêncio numa atitude de “quem cala, consente” e ela não compareceu aos trabalhos na AN para mostrar o seu desacordo e motivar eventuais apoiantes entre os deputados do Paicv. Apesar das diferenças serem públicas, nem há demissão da ministra nem o PM se disponibiliza a deixar o governo por falta de sintonia com a líder do partido que suporta o governo.
Por outro lado, com a maioria parlamentar e o governo aparentemente inamovíveis perante as demandas da líder do partido, estranha que não ocorra a ninguém ultrapassar o impasse na liderança e na bicefalia no exercício do poder com um congresso extraordinário que fizesse o partido outra vez uno à volta de um líder efectivo. Desconcertante também que ninguém se preocupe com isso mesmo quando forças populistas já se fazem sentir e se mostram passíveis de manipulação. Não são normais conflitos no centro de organizações sem que haja consequências ou um desfecho final. Quando apesar de tudo persistem é porque resultam de encenação ou de actos de ilusionismo com vista a atingir objectivos políticos muito concretos.
Um deles de há muito procurado por certos sectores políticos é o do descrédito do Parlamento e por arrastamento do sistema de partidos e do pluralismo. É relativamente fácil despertar sentimentos anti partidos e anti pluralismo numa sociedade que viveu mais de quarenta anos do Estado Novo de Salazar e depois quinze anos de partido único. Neste momento esse sentimento está ao rubro e certamente que acaba por afectar todas as instituições democráticas, ou pela via de hostilidade directa, ou pela forma como é aproveitado por quem se julga capaz de colher as paixões mobilizadas e torná-las em ganho político permanente.
O presidente da república é um alvo preferido. A natureza suprapartidária do cargo aparentemente fá-lo ideal para ser lançado contra os partidos. Esquece-se que ele não só não pertence aos partidos como também não deve ligar-se a qualquer outra organização. O grupo de cidadãos que o propôs não tem existência para além da eleição. O seu exercício de árbitro e moderador do sistema políticos é um exercício atento mas solitário e não pode dar a ideia de que se submete a pressões exteriores, muito menos a pressões vindas da rua.
Noutras democracias, o governo é o primeiro chamado à liça perante qualquer coisa, seja ela positiva ou negativa. Se em Cabo Verde acontecesse o mesmo, as anomalias no sistema de poder actual, entre o Paicv e as suas e expressões institucionais o governo e a maioria parlamentar seriam facilmente notadas. Mas aqui a tendência geral é não responsabilizar o governo mas sim os “políticos” e canalizar as exigências aos deputados como se tivessem poder executivo. Com tais interlocutores é relativamente fácil protestar mas os problemas do país que em geral dependem de políticas compreensivas do governo correm o risco de ficar por resolver. É a frustração que daí resulta é que depois dá lugar a populismos facilmente aproveitáveis por certos políticos.

 Resistir à onda populista é fundamental. Também é essencial exigir que titulares de órgãos de soberania cumpram a sua função assim como projectado na Constituição e não caiam na tentação de elogiar a “rua” para ter ganhos políticos, sacrificando a função e as instituições existentes.  Afinal, não há democracia fora da Constituição e muito menos contra ela”.

    Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 15 de Abril de 2015

sexta-feira, abril 10, 2015

Tentação populista

Desde as manifestações de 30 de Maio contra o estatuto dos titulares de órgãos de soberania sente-se no ar uma espécie de euforia “revolucionária”. Sobressai em conversas de café, em opiniões e análises políticas e em vários exercícios informais de futurologia política. Em parte é provavelmente produto da novidade. Também virá da satisfação e surpresa de se ouvir protesto nas ruas por algo controverso, quando tanta coisa não anda bem e ninguém questiona ruidosamente.  
Largos anos se tinham passado em Cabo Verde sem que se assistisse a manifestações frontalmente políticas. Problemas persistentes como o desemprego, o baixo crescimento, o aumento de insegurança e a falta de perspectiva para os jovens não conseguiram mobilizar as pessoas contra a governação. A perspectiva de aumento de salários e regalias para os detentores de cargos políticos pelo contrário já pôde. De uma postura aparentemente conformista, num ápice, passou-se para a acção. Para os jovens manifestantes que nunca viram nem participaram em acontecimentos do género terá tido um efeito catártico.
Tudo isso compreende-se. O que parece não se justificar são as esperanças desmedidas que se procura projectar nelas. Há quem veja sinais de uma sociedade civil activa. Outros imaginam um novo partido que à imagem do Podemos espanhol ou do Syriza grego poderia reformar o actual sistema de partidos. E certamente há quem veja motivação político-partidária como parece ser o caso do Primeiro-ministro, a confirmar a presença de “dirigentes e militantes destacados do Paicv na linha de frente das manifestações”.
 Independentemente do que originariamente foi ou pretendeu ser e o que virá a constituir no futuro, o mais certo é que algo mudou no país. Uma nova era de manifestações de agravos públicos poderá ter surgido em que ninguém se vai sentir grandemente inibido com eventuais interpretações ou acusações de conveniência ou de instrumentalização política. Dois factos porém vão contra a ideia de que algo radicalmente novo aconteceu: por um lado, o protesto não é dirigido contra o governo. Foca-se no Parlamento e nos deputados e associa, mas de forma quase difusa, os outros políticos. Por outro lado, não parece ser totalmente espontâneo, enquanto reacção da sociedade civil. Dá sinais de resultar também da luta da nova líder do Paicv para se afirmar no seu partido e apresentar-se, a pensar nas eleições de 2016, como o rosto de renovação na política cabo-verdiana.
De todo o modo, o problema maior a evitar nessas movimentações é cair na tentação populista: as soluções fáceis, as paixões exacerbadas, o discurso anti-político e anti-partido e a minimização das instituições democráticas. Não é algo fácil como já se pode constatar nos ataques violentos dirigidos aos deputados, no tipo e forma de pressão que se coloca ao presidente da república e na apologia da chamada democracia participativa em detrimento da democracia representativa. Outrossim, a busca de soluções para os  desempregados e empregados mal pagos via uma putativa redistribuição de recursos que estariam ilegitimamente apropriados por alguns privilegiados políticos só pode exacerbar o ressentimento social, diminuir a confiança nas instituições e mobilizar pessoas para protestos. Certamente não abre caminho para se encontrar a via ou as vias de prosperidade para todos com mais emprego e mais crescimento económico.

Cabo Verde vive um ano pré-eleitoral. Nenhum observador atento duvida que a campanha eleitoral já está em pleno progresso. A questão que se coloca é quem ganha com os ataques ao Parlamento que também são ataques ao pluralismo. Quem ganha com o apontar de defeitos à democracia representativa que apesar das suas imperfeições é a única forma de democracia que historicamente tem conservado as liberdades e tem garantido a prosperidade geral. Finalmente, quem ganha com a aparente disfunção do PAICV que parece de um lado estar com o “povo” e do outro continua a suportar o eixo governativo do país, o governo e a maioria parlamentar, cuja posição em matéria de estatuto de titular de órgãos de soberania é repudiada em manifestações desse mesmo “povo”.

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 8 de Abril de 2015 

sexta-feira, abril 03, 2015

Crise aberta

O Primeiro-Ministro José Maria Neves em declarações à RCV disse que os consensos obtidos em relação ao estatuto dos titulares dos cargos políticos “estão a ser postos em causa designadamente pelo PAICV cujos dirigentes e militantes destacados estiveram na linha de frente das manifestações”. A nova líder do PAICV, também em entrevista à RCV, confirma que a sua comissão política discorda de várias opções assumidas no diploma aprovado, nomeadamente a actualização salarial que “não teria sido socializada” com esse órgão político. A divergência de posições entre o chefe do governo e a presidente do partido é clara e aberta. O jogo político já ultrapassa as fronteiras do partido e já foi para a rua: uma parte acusa a outra de estar à frente de manifestações e a outra responde que há que ouvir os protestos das pessoas.
Como fica a governação do país se a líder do partido que deve suportar o governo está aparentemente em colisão directa com o governo. Como conciliar a situação do PAICV como partido maioritário se a direcção do partido e a sua bancada parlamentar dão sinais de estar de costas viradas. Uma consequência desta situação pouco usual já é visível. Segundo o PM, no que respeita ao estatuto dos titulares dos cargos políticos, o consenso que já vinha desde 1997 foi agora posto em causa e teremos de repensar tudo isto e eventualmente até determinados aspectos da vida política nacional, ou do sistema político, designadamente o sistema eleitoral, o financiamento dos partidos políticos, o financiamento das campanhas eleitorais, etc.
Uma outra consequência poderá verificar-se no futuro próximo. Se se verificar um veto presidencial ao diploma legislativo, como irá proceder a direcção do PAICV? Irá trabalhar contra a vontade prevalecente na sua bancada parlamentar e no governo para evitar que haja uma maioria que confirme os estatutos aprovados? Por quanto tempo se poderá suportar a fricção aberta entre a liderança do partido e a presença institucional do partido no parlamento e no governo?
Num editorial recente este jornal chamou a atenção para o facto excepcional de o chefe do governo não ser chefe do partido. Argumentava-se que tensões podiam surgir entre membros do governo que foram rivais na luta pela liderança ou entre o novo líder do partido e o antigo líder que ainda se mantém com chefe do governo. Em qualquer das situações haveria uma perda inequívoca da eficácia do governo com o desenvolvimento de lealdades paralelas que inevitavelmente acabariam por surgir. Apontamos então que por uma outra via podia-se repor a estabilidade, previsibilidade e transparência no exercício do poder: ou o primeiro-ministro demitia-se e entrava o novel presidente numa posição cimeira no governo ou então o governo ainda por ele chefiado renovava a sua relação com a maioria parlamentar através de uma moção de confiança. Não tendo ido por uma ou outra via é que se chegou à situação actual de corte caricato entre o partido, detentor da maioria dos votos nas últimas eleições legislativas, e a sua bancada parlamentar. No mesmo sentido se constata a falta de sintonia e de articulação com o governo.
As manifestações populares na capital e em várias outras ilhas, pela juventude dos participantes, exuberância demonstrada e paixão colocada nos protesto têm “efeito de gasolina” neste ambiente político em rubro. O facto de serem raras – a última manifestação com fortes tonalidades políticas provavelmente aconteceu em 2006 contra a Electra então dirigida pela empresa portuguesa EDP – os governantes e em geral os políticos desabituaram-se com o descontentamento visível e ruidoso dos cidadãos. Quando se deparam com protestos mais vigorosos não dão a aparência de serenidade que é fundamental para o funcionamento do sistema político e da sociedade. Na verdade, não se pode deixar de ouvir as pessoas, mas também ninguém governa a partir da rua.

A extrema sensibilidade e mal-estar demonstradas perante o que o PM chamou de actualização já tardia dos salários dos titulares de cargos políticos fixados em 1997 revelam o quanto as pessoas percebem que vivem num ambiente de soma zero. O que é ganho para ti, deve ter sido subtraído de algum outro. Em ambiente de fraco crescimento, desemprego elevado e diminutas oportunidades, a desconfiança mútua aumenta, cresce o desespero e a falta de confiança nas instituições aprofunda-se. Cabe aos governantes e aos representantes legítimos do povo manter a sociedade inclusiva, combater a impunidade e renovar a crença num dia melhor derivado do trabalho e da capacidade de cada um dos seus membros.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 1 de Abril de 2015 

sexta-feira, março 27, 2015

Liderança que faz diferença

Na passada segunda-feira, dia 23, morreu Lee Kuan Yew, o líder da Singapura que em menos de quatro décadas elevou essa ilha da condição de país de terceiro mundo para país de primeiro mundo. Durante esses anos a Singapura cresceu a uma taxa média de 7% e conseguiu aumentar o seu rendimento per capita dos 300 dólares, que à semelhança de vários países africanos tinha no momento de independência, para os      36 000 dólares de hoje. Considerando o ponto de partida, o sucesso foi estrondoso e tem sido inspirador para todos aqueles que acreditam que é possível fazer o desenvolvimento acontecer não importam as dificuldades no arranque e a ausência de riquezas naturais.
O momento primeiro de uma liderança bem-sucedida é o reconhecimento da enorme tarefa a ser desenvolvida e das dificuldades a vencer e os obstáculos a ultrapassar para que os objectivos sejam alcançados. Lee Kuan Yew chorou quando anunciou o fim da federação com a Malásia. Singapura, com aproximadamente a área da nossa ilha de Santo Antão, iria iniciar sozinha a caminhada na senda da independência. Os problemas étnicos, linguísticos e religiosos eram enormes e misturavam-se com a pobreza, a corrupção generalizada e a prostituição num ambiente onde ainda se sentia o peso da ameaça externa protagonizada pelos dois vizinhos gigantes e hostis: a Indonésia e a Malásia. Construir uma nação a partir dessa massa informe muitas vezes no limite do desespero exigiu uma liderança que soube mostrar-se pragmática, que não se deixou enredar nas malhas da vitimização e do nacionalismo exacerbado e que trabalhou com uma perspectiva de longo prazo.
Há quem diga que o sucesso da Singapura não pode ser desligado do regime autoritário que em boa medida perdura até hoje. A verdade, porém, é que muitos países com regimes autoritários, totalitários ou de partido único não tiveram esse tipo de sucesso. Só os que como os chamados Tigres da Ásia optaram pela industrialização virada para a exportação, pelo investimento seguro e forte na educação e formação tecnológicas da sua população e pela aposta consequente no sector privado nacional é que realmente conseguiram vingar. Nesses países emergiu uma forte classe média que não só se notabilizou como forte apoiante de uma processo de democratização política, económica e social com também se tornou posteriormente no seu principal sustentáculo. 
Em África, em muitos casos a vontade de manter o poder a todo custo fez com que a opção fosse centrar na exploração de recursos naturais fáceis de monetizar e de aproveitar a ajuda externa para distribuir favores, criar acessos e construir lealdades. Medidas de curto prazo prevaleceram sobre o que devia ser uma visão de futuro, o espírito assistencialista ganhou força e a atenção geral concentrou-se particularmente na redistribuição dos recursos do Estado e não na produção de riqueza. A meritocracia que em Singapura foi erigida em princípio central da administração, nesse países faz-se de conta que é aplicado. Na realidade reina a partidarização da administração pública, alimenta-se o compadrio e forjam-se clientelas com os olhos postos na manutenção do poder. 
O que parece fazer a diferença num caso e noutro é precisamente a qualidade de liderança. A liderança capaz de ver para além dos ciclos eleitorais e não se deixar enredar nas ilusões que cria para a opinião pública para justificar os resultados muito aquém dos esperados.
O INE publicou dados a dar uma baixa no desemprego de 0,6%. No ano passado teria sido 0,8 % a queda no desemprego. Não podia ser de outra forma considerando as taxas baixíssimas de crescimento económico que se tem verificado nos últimos anos. A situação do emprego no país toma uma outra dimensão se tiver em devida conta que o contingente de desempregados muda quando muitos desistem de procurar trabalho e passam a engrossar a população inactiva. 
Estranha que haja quem queira passar a impressão de que o aumento da população inactiva com pessoas qualificadas tem algo positivo. No mesmo sentido que a variação de 0.6% no desemprego prove que o marasmo económico actual tem origem no exterior. Nessa perspectiva, no país estar-se-ia no fim de 15 anos de transformação que só não estão a resultar em crescimento e mais emprego por causa da crise internacional. Governar significaria fazer um conjunto de obras e esperar que depois tudo funcionasse. Se não acontecer como prometido a culpa seria dos outros: a crise, os privados que não querem investir ou os bancos que resistem em dar crédito.

É evidente que liderar não é isso. Para quem é focado nos resultados como Lee Kuan Yew liderança é convicção, disciplina na realização de um objectivo, capacidade de adaptação a favor do interesse público e visão de futuro: justamente o que Cabo Verde precisa.

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 25 de Março de 2015 

sexta-feira, março 20, 2015

Pela clarificação dos salários dos políticos

A perspectiva de aprovação de um novo estatuto dos titulares dos órgãos de soberania tem sido nas últimas semanas matéria de discussão e controvérsia em artigos de jornal, debates na rádio e televisão e de conversas de café. Discutem-se essencialmente as regalias e a oportunidade da iniciativa legislativa. Nota-se em várias tomadas de posição uma linha de questionamento que parece pôr em causa o sistema político pluralista. Os deputados e o Parlamento são os principais alvos. Curiosamente, os deputados da oposição são os mais visados.
Sente-se em círculos mais mediáticos em Cabo Verde um certo cansaço em relação à democracia, ao modelo de representação política dos cidadãos e ao próprio pluralismo. Ouvem-se queixas de crispação política, de bipartidarismo e da inutilidade do Parlamento. Reclama-se mais consenso, menos exercício do contraditório e menos partido. Aparentemente esses sintomas do que se podia chamar um mal-estar democrático em Cabo Verde são similares aos notados nas democracias avançadas, designadamente as europeias. Na realidade diferem porque as causas, a cultura política subjacente e o contexto são outros.
Na Europa a crise de confiança nos políticos e no sistema político ganhou expressão na gestão da crise que mostrou governos nacionais quase impotentes, primeiro perante os mercados financeiros e depois perante a Troika. Os cidadãos sob o impacto das medidas de austeridade não se sentem devidamente representados nos parlamentos e olham com desconfiança para as elites partidárias do “arco de governação” como cúmplices da banca e dos burocratas da União Europeia em salvar um status quo que favorece os poderosos em detrimento do homem comum. Mas ninguém na Europa põe em causa a necessidade de responsabilizar o governo e de o forçar a prestar contas. O descontentamento é com a falta de uma fiscalização efectiva da governação pelo Parlamento mesmo nas situações que configuram cedência excessiva da soberania nacional para as instituições comunitárias.
Em Cabo Verde é diferente. Muito do desencanto com o Parlamento e das críticas ao sistema político e aos políticos vem da percepção de conflitualidade ou crispação política entre o governo e as forças da oposição. E é interessante notar que esse sentimento tende a favorecer o governo e a ser mais hostil para com a oposição, tomada como conflituosa, não colaborante e ávida do poder. Compreende-se em parte que assim seja se se considerar que a democracia cabo-verdiana é jovem de quase 25 anos e ainda procura libertar-se dos resquícios anti-pluralistas do salazarismo e do regime de partido único.
A proposta de um novo estatuto para os políticos trouxe outra vez à baila esse azedume contra o Parlamento e contra os deputados. Podia-se pensar que a culpa é da conjuntura difícil em que a falta de dinâmica económica, o desemprego e as fracas perspectivas no sector privado focaliza ainda mais a atenção de todos nos recursos, acessos e favores do Estado. Mas não, a reacção foi a mesma em 2006, no tempo das vacas gordas, quando uma proposta do governo de aumento salarial encontrou resistência na sociedade e acabou por ser inviabilizada no Parlamento pelo MpD.
A matéria de ajustamento salarial do presidente da república, primeiro-ministro, ministros, deputados e juízes parece despertar em muita gente o gosto pela demagogia barata. E nem se pode dizer que por detrás disso há uma preocupação legítima quanto aos custos. Devia ser evidente que a perda do poder de rendimento real desde o último ajustamento de 1997 está de algum modo a ser compensada. Só que de uma forma não transparente e eventualmente comprometedora da relação de equilíbrio entre os diferentes órgãos de soberania.
O Governo que tem a responsabilidade directa de gestão dos recursos do Estado sai reforçado nesse tipo de relações. Por exemplo, pelo decreto-lei 8/2008 pôde unilateralmente melhorar de forma significativa as condições de vida dos magistrados, dos membros do governo e de outras entidades militares e policiais. Noutras leis estendeu benefícios na compra de carros a certas categorias profissionais. Mesmo na administração pública que não tem os salários indexados aos dos titulares dos órgãos de soberania e tem beneficiado de ajustamentos periódicos, o governo pode recorrer de contratos de gestão para altos funcionários com valores superiores ao salário do presidente da república. Se considerarmos os salários praticados no Estado em sentido lato, empresas públicas, agências reguladoras e institutos públicos, os valores em causa são ainda muito maiores.

Enfraquecidos neste sistema fica o Parlamento que fiscaliza o governo e o presidente da república que modera todo o sistema político. Para a garantia de um poder judicial independente, um dos pilares fundamentais do Estado de Direito democrático, não convém que a manutenção do nível de rendimento e do bem-estar dos magistrados dependa só da iniciativa do governo. Por tudo isso é fundamental que se restaure a transparência nos salários da classe política por forma a que a actividade política seja suficientemente atractiva para todos os que aspiram a servir na tarefa dura e exigente de desenvolver Cabo Verde.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 18 de Março do 2015 

sexta-feira, março 13, 2015

Gabinete de campanha

No quarto aniversário do seu governo e já em pleno ano pré-eleitoral o Sr. Primeiro-ministro José Maria Neves achou necessário dizer que o seu governo não é gabinete de campanha. Estava a responder a questionamentos dos jornalistas quanto à esperada remodelação governamental na sequência da eleição de um novo líder do PAICV. Afirmou de seguida que o seu governo é o governo da república, o que é verdade, mas optou por omitir que também é o governo do Paicv. O Paicv é quem ganhou as eleições e quem detém a maioria parlamentar suficiente para aprovar o programa do governo e viabilizar a governação.
Os primeiros-ministros não são eleitos. São propostos pelo partido vencedor ao presidente da república para formar governo. No caso pouco usual de mudança de liderança do partido a meio da legislatura naturalmente que coloca problemas ao actual primeiro-ministro. Ou se demite para dar possibilidade de o partido nomear o novo líder para chefiar o governo ou entra num arranjo de poder que pode não primar pela transparência nas relações entre o governo e o partido que o suporta. E isso é importante porque afinal o governo é da república.
As coisas complicam-se mais no caso presente em que o líder é também membro do governo, assim como a candidata rival e alguns dos seus apoiantes próximos. Naturalmente que a nação preocupa-se com a coerência e a eficácia do governo depois desses embates em que vários dos seus membros ficaram em campos opostos ou, pelo menos, diferenciados quanto ao diagnóstico da situação actual, quanto às prioridades no momento e quanto a propostas de futuro. Algo teria que mudar no governo e é isso que a ministra Cristina Fontes Lima mostra compreender com a sua tomada de posição. O primeiro-ministro é que parece não ver o óbvio e deixa a ministra numa espécie de limbo que a arrastar-se acaba por afectar as tomadas de decisões nas áreas sob a sua tutela e toda a governação.
Quando o primeiro-ministro e o líder do partido que suporta o governo é a mesma pessoa, todos sabem quem exerce o poder e a quem pedir contas e exigir responsabilidade. Numa situação em que há uma espécie de bicefalia da liderança política os ministros são naturalmente os primeiros a querer ter certezas. Sabem que foram escolhidos na base da confiança pessoal do primeiro-ministro mas para governar precisam do suporte activo do partido. O imbróglio resolve-se ou com um novo governo chefiado pelo novo líder ou mantendo o actual primeiro-ministro. Neste caso, provavelmente seria necessário um voto de confiança do Parlamento para renovar a sua legitimidade de propósitos e de estratégias. Mais complicado é manter-se a situação actual.
Ninguém sabe se na semana passada quem esteve nas ilhas do Norte foi a ministra da Juventude e Emprego ou se foi a líder do partido. Se a deslocação feita resulta de estratégia do governo ou se é estratégia do partido em período pré-eleitoral. Se não se consegue discernir onde começa uma e termina a outra dificilmente se pode negar que o governo passou a ser um gabinete de campanha.
E em fazer essa distinção os factos falam por si mesmo. Todos os dias assiste-se, em particular na televisão pública, à interacção dos governantes com a população. O primeiro-ministro e os ministros parecem estar permanentemente em visitas. Permanentemente a dar, a prometer e a inaugurar, sempre seguidos pela televisão que transmite a satisfação dos governantes e a gratidão das populações. Programas como “Casa Para Todos” são inaugurados dezenas de vezes. Imagens como as vistas, na última semana, de entrega de botes, arcas frigoríficas, equipamento de rega gota-a-gota, kits escolares, cestas básicas e até cartões de pensionistas são passadas na televisão vezes sem conta ao longo de uma legislatura. Com que propósito?
Os problemas das populações continuam por resolver. A vida não melhora de forma sustentável para além do benefício imediato que podem tirar das dádivas. O futuro torna-se nebuloso e complicado quando não se vislumbra solução para o desemprego e se constata que a insegurança persiste apesar dos esforços feitos e outros sectores como educação e saúde debatem-se com problemas. É o próprio primeiro-ministro que vem dizer no início do seu 15º ano de governação que importa agora focalizar na resolução do desemprego, incentivar o sector empresarial e cuidar da segurança do país em todos os domínios.

A pergunta lógica é o que se esteve a fazer antes. Quando se construíram as infraestruturas, se investiu no capital humano e se disponibilizaram recursos para as instituições públicas não foi para se potencializar a produção da riqueza, melhorar o ambiente de negócios e facilitar o investimento? Porque não está a acontecer depois de todos esses anos e de muitos milhões aplicados? Porque é que em vez de emprego abundante, muito empreendedorismo e muita confiança temos hoje conformismo, espírito assistencialista e maior dependência do Estado? A resposta talvez seja que por demasiado tempo o governo comportou-se como gabinete de campanha em vez de governo da república.

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 11 de Março de 2015 

sexta-feira, março 06, 2015

Serviços de informação sem fiscalização

O Primeiro-ministro José Maria Neves deu posse na passada sexta-feira ao novo director dos Serviços de Informação da República (SIR). Na ocasião, o PM na sua intervenção deixou claro que a actividade do SIR vai entrar numa nova etapa para responder ao que considerou “a maior ameaça ao estado e à nação cabo-verdiana: a criminalidade organizada e transnacional”. Nesse sentido prometeu mais meios e propôs-se a rever o quadro legislativo para que no futuro o SIR se posicione como “o serviço chave da segurança nacional”.
Notório no discurso do PM é a intenção de colocar o SIR no centro da luta contra a criminalidade organizada e contra os vários tráficos. Uma decisão que é tomada não se sabe se por razões de retórica política como outras medidas recentemente proclamadas na resposta à insegurança crescentemente sentida pelas pessoas no seu dia-a-dia. Ou se corresponde a uma vontade política de fazer convergir serviços de recolha e processamento de informação para a salvaguarda da república com a actividade policial de combate ao crime e de investigação criminal. O facto de ter escolhido o ex-director do departamento de investigação criminal da Polícia Judiciária para director do SIR e de ter no seu discurso apontado essa experiência prévia como razão de fundo da nomeação parece confirmar essa segunda possibilidade. Não é esse porém o caminho seguido por países democráticos. Diferenciam claramente serviços de inteligência dos serviços de polícia e na escolha dos chefes recorrem geralmente a profissionais de carreira militar e diplomática mas nunca a profissionais da polícia.
Na luta contra criminalidade o mais lógico seria reforçar a Polícia Judiciária, capacitá-la como polícia científica e de investigação criminal e aprofundar a sua cooperação com as entidades congéneres estrangeiras que estatutariamente com ela devem estabelecer ligação. Tomando os Estados Unidos como exemplo, não parece que no combate aos tráficos ilegais prefiram investir na CIA em detrimento do FBI, do DEA e outras agências policiais. No mesmo sentido também devia-se reorientar a Polícia Nacional para dar uma resposta mais cabal às necessidades de segurança das populações e encontrar um melhor enquadramento para a Guarda Costeira que a tornasse mais efectiva nas suas múltiplas missões de vigilância e fiscalização do espaço aéreo e marítimo. Também ajudaria imensamente disponibilizar mais meios para a instalação do departamento de investigação criminal no Ministério Público e se apressasse a ultrapassar o clima de tensão na Polícia Judiciária de modo a elevar a moral e motivação dos seus agentes.
O trabalho do SIR na recolha, processamento e análise de informações é fundamental para, entre outros objectivos, se identificar ameaças, antecipar acções de indivíduos ou grupos dirigidas contra a integridade do Estado e proteger interesses nacionais. Mas porque os seus métodos e procedimentos não são tão restritivos como os da polícia precisa de ser especialmente controlado e fiscalizado para que os direitos fundamentais dos cidadãos não sejam postos em perigo. O PM na sua intervenção refere-se à necessidade de reforçar o processo de fiscalização pela comissão parlamentar de fiscalização e pela comissão de fiscalização de dados que ele considera indissociável da actividade do SIR. A realidade é que tem-se ficado pelo discurso e pouco ou nenhum controlo e fiscalização têm sido exercido sobre o SIR.
A comissão parlamentar de fiscalização formada com uma maioria de dois deputados do Paicv, o partido do governo, e um deputado do MpD não parece capaz no actual ambiente de alinhamento partidário estrito dos deputados de, de forma credível, controlar o uso que o governo poderá eventualmente dar ao serviço de informação. O facto de a comissão ver o seu orçamento cair para quase metade no ano de 2014 não é um sinal positivo de que estará a fiscalizar efectivamente o SIR. Nem tão pouco é tranquilizador a sua total indisponibilidade em confirmar ou negar se relatórios obrigatórios do SIR foram ou não entregues à Assembleia Nacional.
Da comissão de fiscalização de dados composta por magistrados do ministério público sabe-se por informações dadas a este jornal (ver pág.4) que não exerceu “de forma cabal as suas atribuições devido a obstáculos criados pelo SIR”. Enquanto o SIR se esquivava a ser fiscalizado pela comissão dos magistrados, recolhia e processava informações dos cidadãos. Ninguém pode confirmar se direitos foram ou não violados.

O PM disse na sua intervenção que os serviços de informação estão a fazer um grande trabalho. Acontecimentos recentes no país não parecem corroborar isso nem as mudanças feitas são tranquilizadoras. O facto porém de as duas comissões de fiscalização não funcionarem por resistência dos serviços em prestar contas sob a forma de relatórios trimestrais como diz a lei e em garantir acesso ao Centro de Dados já não é aceitável. Da responsabilidade do SIR em cumprir, o PM não pode eximir-se. Afinal os serviços estão sob a sua dependência directa. A verdade é que a república só será bem servida se o SIR cumprir escrupulosamente com a sua missão no quadro constitucional e legal em que foi criado. E tudo deve fazer-se para que assim seja. 

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Março de 2015