quinta-feira, março 31, 2016

Pela dignidade da mulher

A dimensão do espaço de realização pessoal que a mulher tem numa determinada sociedade é quase universalmente considerado um indicador do nível civilizacional. Cada vez mais vêem-se mulheres nas mais diferentes posições em todas as esferas da vida designadamente política, económica, social, intelectual e cultural e até militar em teatro de guerra. Progressivamente nada parece ficar fora e antigos espaços ciosamente reservados aos homens  acabam por ceder não obstante resistências localizadas.
Em Cabo Verde aparentemente não há qualquer espaço restrito. Ninguém torce o nariz à partida perante a possibilidade de uma mulher ocupar qualquer cargo público ou privado. Também não se sente qualquer urgência em se atingir cotas na presença feminina em órgãos colectivos. Revelador neste aspecto é o facto que mesmo com uma mulher na liderança de um partido político não se alterou grandemente a presença de mulheres na Assembleia Nacional. Ficou-se pelos 23,6% do total dos deputados. No governo a ocupação de cargos começou em 1991 e mais de vinte anos depois chegou a atingir os 50% dos ministros. No poder judicial, têm lugar destacado em todas as instâncias e desde de 2015 é uma magistrada que preside o Supremo Tribunal de Justiça.
A mobilidade das mulheres e a praticamente nula resistência à sua ascensão e ocupação de qualquer posição pública ou privada não significa que desapareceram as tensões  e violências físicas e psicológicas que infelizmente muitas vezes acompanham as relações entre homens e mulheres. A implementação da legislação sobre a violência de base no género trouxe à consciência pública muita da violência e da humilhação que não poucas vezes familiares, vizinhos e a sociedade em geral fingiam ignorar com consequências trágicas para os envolvidos e para os filhos. E como este jornal já teve oportunidade de documentar não é uma violência que fica pelos casais de adultos com uma vida em comum mas se manifesta também nas relações de namoro entre adolescentes e jovens adultos. O sentido de posse e os ciúmes que o acompanham são os ingredientes comuns, mas potentes, de desavenças que no ambiente pequeno das ilhas e na vida precária da uma boa parte da população urbana e rural  podem facilmente evoluir para situações extremas de agressão.
A pobreza é, de facto, o maior inimigo da mulher. A precariedade da existência põe um especial peso sobre o dia-a-dia da mulher e é extremamente limitativo do que pode almejar conseguir para escapar a um destino de uma vida de pobreza. Principal provedor dos cuidados para toda a família, é obrigada a sacrificar-se em tarefas domésticas e na busca de rendimentos para compensar a falta de recursos. E nesta luta pela sobrevivência não poucas vezes carregada de filhos vê fugir-lhe os sonhos e a saúde. A grande compensação é quando perante o sucesso do filho ou da filha sente que o esforço se justificou. Pelo contrário, imagine-se o desespero que a invade quando percebe que foram atraídos pela vida dos gangs ou outros marginais e um dia chega a notícia que foram presos, feridos ou assassinados.
A luta pela dignidade da mulher passa pela luta contra a pobreza que efectivamente diminui a dependência das pessoas e a coloca no caminho da inclusão social e económica. É também uma luta que a deve libertar da condição de propriedade de alguém seja do pai, do irmão ou do marido. Muita tragédia vivida por mulheres em certos países é justificada com a necessidade de recuperação da honra perdida por familiares e maridos.
Em várias zonas de fractura no mundo, que hoje por causa das viagens e das migrações já não só dividem estados ou regiões mas também comunidades e até ruas e vizinhos, disputas à volta da condição da mulher são motivo de violência extremada, intolerância e de resistência à modernidade. A resposta a tudo isso deve ser a continuação do esforço colectivo de reafirmar no dia-a-dia a nossa humanidade comum e a vontade inquebrantável de garantir a todos o seu direito à felicidade. Ao governo exige-se que focalize as suas acções de luta contra a pobreza e inclusão da mulher como forma de conseguir maior eficácia na utilização dos recursos públicos e de a libertar dos constrangimentos que limitam a sua realização pessoal em todos os domínios. Toda a sociedade ganhará com isso. 
       Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 30 de Março de 2016

quarta-feira, março 30, 2016

UCID precisa ser grupo parlamentar


A UCID regressa outra vez à Assembleia Nacional mas ainda não pode constituir um grupo parlamentar. Só conseguiu fazer eleger três deputados e a Constituição da República impõe um mínimo de cinco. Na revisão constitucional de 2010 perdeu-se uma oportunidade de rever uma norma que claramente põe em desvantagem no parlamento um partido político que nas recentes eleições conseguiu angariar 15.530 votos. O facto de não se constituir em grupo parlamentar retira vários poderes à UCID, entre os quais, a possibilidade de requerer comissões de inquérito, apresentar moção de censura ao governo, propor debates parlamentares e ser informado directamente pelo governo sobre o andamento de assuntos de interesse público. Vários constitucionalistas são de opinião que não faz muito sentido a exigência de um certo número de deputados para a constituição de um grupo parlamentar. Segundo eles, o grupo parlamentar é a expressão parlamentar dos partidos com representação parlamentar. Como só partidos podem apresentar candidaturas à Assembleia Nacional os eleitos independentemente do seu número devem poder integrar um grupo parlamentar que represente o seu partido. Isso hoje parece evidente para todos. Em 2010, no meu projecto de de revisão constitucional, abri a possibilidade de revisão da actual norma que impõe o número de cinco. O outro projecto de revisão, também de deputados do MpD, foi na mesma linha mas os deputados do PAICV não viabilizaram a alteração. Espera-se que na próxima revisão se consiga o consenso geral para ultrapassar um constrangimento constitucional que, de facto, faz da UCID um partido menor na Assembleia Nacional. Não é justo e não é democrático.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 748 de 30 de Março de 2016.

sábado, março 26, 2016

Electra, AEB SA, Boa Vista

Há duas semanas o governo de José Maria Neves enviou ao Presidente da República um decreto-lei que autorizava a Electra a contrair uma dívida de 1 milhão e 375 mil euros junto à Caixa Económica para comprar acções do Grupo Bucan na empresa Águas e Energia da Bahia (AEB). O PR devolveu o diploma porque considerou que a matéria cabia dentro da competência administrativa do governo e que a questão deveria ser resolvida com uma resolução do governo como veio a verificar-se no BO de 17 de Março último. É de se perguntar porém se o governo desconhecia isso ou se simplesmente usou um expediente que bem-sucedido faria o PR compartilhar a responsabilidade na autorização do aval do empréstimo da Electra à Caixa Económica e do negócio de compra de metade das acções detidas pelo Grupo Bucan pelo valor de 1 milhão de euros. Facto é que a devolução do documento não serviu para uma reponderação da questão pois logo de seguida o governo enviou-o para a publicação na forma de resolução. A questão da AEB e a ELECTRA na Boa Vista já tinha sido matéria de um post de Agosto de 2010 neste jornal sob o título “Ossos para Electra?” e continuava: O governou já concretizou a entrega da produção e distribuição de energia e água da Boa Vista a uma empresa privada até 2035. As razões para isso não são claras. O acordo com a empresa Águas e Energia da Boa Vista SA é de 2008, quando estava em vias de entrar em funcionamento o hotel Riu Karamboa, um grande consumidor de energia e um pagador certo. Dá-se mais um passo no acordo, no momento em que já se iniciou a construção de um hotel com mais de 2000 camas na zona de Santa Mónica, que também vai ser um grande cliente de energia e água. A questão que deixa a todos intrigados é porque é o governo impede a Electra de aproveitar o mercado de electricidade e água da Boa Vista, em franca expansão, a favor de uma outra empresa. Qual a lógica do governo em sobrecarregar a Electra com a electrificação rural, politicamente motivada e que pouco consumo e retorno gera, e não permite à empresa aproveitar-se de um “bife de lombo” quando tal se proporciona? Como é que a Electra poderá manter uma tarifa nacional de energia e água se é retirada dos mercados de forte expansão do consumo, ao mesmo tempo que é obrigada a suportar as zonas de baixo consumo? Cinco anos depois há uma inversão da marcha. O governo no preâmbulo da resolução reconhece que “verificou-se uma deficiente qualidade de serviço de electricidade e água prestada à população da ilha da Boa Vista, com clara violação dos objectivos propostos com a celebração do contrato de subconcessão”. Também o governo constata que “não se realizaram investimentos necessários e contratualizados nas redes de electricidade e água, tendo a AEB realizado apenas pequenos investimentos de socorro resultando disso cortes frequentes e permanentes bem como o não fornecimento de electricidade e água a algumas localidades”. Apesar destas constatações o governo, via Electra e Sociedade de Desenvolvimento da Boa Vista, está disposto a dar dois milhões de euros pelas acções do Grupo Bucan. Não ficando-se por aí, ainda vai amortizar o crédito do Bucan sobre a AEB no valor 6 milhões de euros que se supõe tenha sido contraído quando o Bucan tinha a gestão da AEB em regime de exclusividade. Para isso a Electra vai já avançar com 375 mil dólares e como não tem dinheiro terá que contrair uma dívida com o aval do Estado junto à Caixa Económica num total de 1 milhão e 375 mil euros. Pelo documento não se fica a saber se houve algum estudo prévio e quem realmente vai beneficiar nestas transacções. Só se sabe que a Boa Vista e a suas gentes até agora pouco beneficiaram desses arranjos dos últimos cinco anos.  

sexta-feira, março 25, 2016

Exportações

Os dados do comércio externo do INE dão pistas de como rapidamente se pode criar emprego. É clarinha a relação entre o aumento das exportações de conservas de peixe e o crescimento do número de postos de trabalho na Frescomar. O mesmo fenómeno de criação rápida e numerosa de postos de trabalho nota-se na Boa Vista e no Sal com o turismo que também é uma forma de resposta a uma procura externa. Já limitativo em termos de dinâmica de criação de postos de trabalho é a via de satisfação de uma procura interna em expansão no estilo ultimamente muito na “moda” do “pastel e canja” e outras actividades informais. Mesmo romantizadas por sectores elitistas da sociedade cabo-verdiana, sabe-se logo à partida que são de baixa produtividade, não conseguem beneficiar de economias de escala e o mercado nacional para os seus produtos é por si próprio microscópico, fragmentado e pouco elástico. Quanto ainda às exportações não deixa de chamar a atenção o facto do grosso das exportações serem de um produto, conservas de peixe, para um único país, a Espanha, e por uma única empresa, a Frescomar Ubago. Inquieta ainda saber que o acesso ao mercado espanhol beneficia de isenções de direitos do programa  GSP+ e que esse quadro preferencial que torna os produtivos mais competitivos pode não durar. Talvez para aliciar os empresários espanhóis o governo facilitou-lhes o controlo dos dois centros de frio e armazenagem de peixe em S.Vicente e um outro no Sal. O problema é se com isso não abriram o caminho para se ter uma empresa dominante no sector importante das pescas capaz de impor as suas regras aos outros operadores e controlar preços.

Novos valores, novo modelo, nova largada

É consenso geral que com a vitória do MpD nas legislativas de 20 Março se fechou um ciclo político em Cabo Verde. A percepção de que se estava em fim do ciclo generalizou-se com uma rapidez estonteante nos últimos meses, em particular nas duas semanas de campanha eleitoral. As problemáticas do emprego, do baixo crescimento da economia e da insegurança dominaram os discursos dos políticos e queixas dos cidadãos.
A confiança no governo do PAICV deteriorou-se rapidamente com a vinda a público de casos de gestão deficiente da coisa pública. Chamaram particularmente a atenção a persistência na má-gestão da situação das pessoas deslocadas de Chã das Caldeiras e também da transportadora aérea nacional, a TACV. Apesar das queixas, denúncias e reclamações, os respectivos gestores continuavam de pedra e cal e os decisores políticos mostravam-se completamente impotentes, enquanto como no caso da TACV vinham a público revelações que punham a nu a situação quase catastrófica vivida na empresa. Também teve impacto na confiança o pronto desmentido da União Europeia noticiado por este jornal quanto ao financiamento do porto de águas profundas feito na campanha eleitoral do Paicv em S.Vicente. As pessoas podem muitas vezes deixar-se levar por euforias e promessas, mas reagem negativa e vigorosamente a falsidades comprovadas.
A vontade de mudança do povo pôde exprimir-se nas eleições de domingo passado com consequência, ou seja, resultando num governo de outro partido porque a sociedade soube produzir e manter ao longo de todos estes anos uma alternativa de governo não obstante as três maiorias absolutas desde de 2001. E quando insistem na alternância do poder não significa que queiram simplesmente entregar o poder a outras personalidades para fazer mais do mesmo. Vivemos em sociedades plurais e o pluralismo na sociedade  manifesta-se nos entendimentos diferentes dos problemas e prioridades do país, nas soluções e estratégias distintas para se atingir os objectivos preconizados e na atitude mais adequada aos desafios da sociedade e da modernidade. E foram com esses pressupostos que as eleições foram decididas. 
O eleitorado chegou no fim destas eleições com expectativas altas quanto à capacidade da nova liderança do país em resolver os problemas graves vividos por todos os cabo-verdianos particularmente os mais pobres. Infelizmente a consciência das dificuldades a ultrapassar já não é tão forte e profunda. Tensões terão que ser ultrapassadas e um esforço dirigido terá que ser feito para se mudar o paradigma de viver das transferências do estrangeiro, de emigrantes e da ajuda externa. O modelo já deu tudo o que tinha a  dar. Não é à toa que nos últimos anos, mesmo após milhões de contos de investimento público, o crescimento económico continua raso e não se criam suficientes postos de trabalho para debelar o desemprego.
Cabo Verde precisa ultrapassar o modelo de gestão de ajudas que tende a induzir comportamentos contrários aos necessários para o desenvolvimento. Quando se vive da renda, há sempre uns no topo da pirâmide que tomam mais, a cooperação entre as pessoas não tem ambiente para se desenvolver e frutificar, confiança entre as pessoas  custa a criar e a manter e a tendência é todos procurarem um lugar de conforto junto ao Estado. Mas a história dos processos de desenvolvimento mostra que as riquezas das nações não são criadas directamente pelos governos. Gera-se riqueza com trabalho, ambição e espírito empreendedor dos homens e mulheres quando encontram o ambiente próprio para darem vazas aos seus sonhos e lançarem-se na tarefa de construírem a prosperidade para si próprios e para as suas famílias.
O que se precisa é de um governo que crie o ambiente certo para se realizarem. Um governo que aposte em dar autonomia às pessoas, que promova a meritocracia na sociedade, ponha o estado ao serviço dos cidadãos e ajude a construir a confiança necessária para as pessoas se sentirem seguras e livres para construírem a sua felicidade. Depois de anos sob a batuta de um Estado visto como arrecador/distribuídor e cujos resultados são medíocres é tempo para liberdade, para empreender, para criar e viver com dignidade. Que o novo ciclo político seja de uma nova largada para Cabo Verde e para todos os caboverdianos.
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 23 de Março de 2016

quinta-feira, março 24, 2016

Défice, dívida, emprego

Um relatório provisório do Ministério das Finanças põe a dívida pública em 121,5% do PIB, sendo 92,9% dívida externa e 28,2% dívida interna. O Estado pagou em 2015 o valor de 110 milhões de euros em juros e amortização do capital para servir a dívida externa. 22 milhões de euros  foram pagos no serviço da dívida interna. Entretanto o país não cresce, os riscos macroeconómicos aumentam porque a sustentabilidade da dívida é progressivamente posta em causa e o financiamento da economia pela via do investimento privado fica mais difícil. A nível nacional os bancos mostram-se relutantes em conceder crédito e quanto ao investimento directo estrangeiro escasseia perante a persistente falta de competitividade da economia nacional e o aprofundamento do risco soberano. Afinal a dívida não é virtuosa como vinham propalando os governantes. Não fez crescer o país, não criou emprego e é cada vez mais um fardo para todos os cabo-verdianos. Os resultados obtidos ficaram aquém do prometido entre outras razões porque ouve não preocupação suficiente com a relação custo/benefício das obras, os investimentos não foram encadeados seguindo um plano estratégico e prioridades político-eleitoralistas sobrepuseram-se a questões práticas como oportunidade, efeito de arrastamento sobre o resto da economia e criação de emprego. Assim apesar das obras nos portos, aeroportos e das muitas estradas asfaltadas mantêm-se a fragilidade e a imprevisibilidade e os custos elevados das ligações inter-ilhas. Nas ilhas, salvo raras excepções, não houve ganhos significativos em termos de segurança, rapidez e facilidade de tráfego apesar dos muitos milhões gastos nas redes de estradas porque se optou por seguir o traçado existente desde há décadas. Mesmo em sectores como educação e formação profissional sente-se o desperdício de recursos públicos e do rendimento das famílias sem falar nas expectativas goradas de quem vai à escola e à universidade. Realmente a existência de um número elevado de jovens com escolaridade ao nível do secundário, treino profissional e formação superior sem trabalho evidencia alguma inadequação do sistema em propiciar-lhes competências competitivas no mercado de trabalho e em ser um factor de atracção do investimento privado. Da mesma forma a ineficiência dos investimentos nos sistemas de energia e água é por todos paga em tarifas altíssimas que desincentivam investimentos e constituem um custo excessivo para as empresas existentes e um peso no bolso das famílias. Por tudo isso o optimismo em relação ao futuro de criação de emprego recentemente manifestado pelo primeiro-ministro em declarações à imprensa não passa de mera ilusão. Já se sabe que continuar a fazer o mesmo não vai dar em nada de significativamente diferente. E não é uma questão de gestão mais ou menos competente do que actualmente existe. Não há mais por onde ir ou por esticar neste modelo de gestão da economia de Cabo Verde que se procurou mudar nos anos noventa mas que o governo de José Maria Neves resgatou e repôs com uma “vingança” como diriam os americanos. Não é por acaso que outra vez após quinze anos de governo do PAICV a economia está praticamente estagnada. Aconteceu o mesmo nos fins dos anos oitenta.

Salários dos políticos

Em tempos eleitorais um ingrediente que não falta é a pulsão populista e demagógica. A exemplo do que se passa em muitos outras democracias também em Cabo Verde os alvos preferidos são os partidos e os políticos. Só que aqui a tradição de alguns se posicionarem contra os partidos e acima dos políticos vem de muito longe. Já no regime de Salazar/Caetano era assim e foi aprofundado no regime do PAIGC/PAICV. Partidos únicos não vêem utilidade na existência de outros partidos e os seus dirigentes consideram-se parte de uma “pequena burguesia que se suicidou como classe”. Tomam os outros políticos como gente interesseira e eles próprios como impoluta. A revisão do estatuto dos políticos, em especial do estatuto remuneratório que data de 1997, foi uma oportunidade a não desperdiçar. E pelo que se ouviu no debate entre os líderes do MpD e do PAICV há ainda quem pense que o assunto possa mobilizar mais paixões e exaltar ainda mais a figura do político “com uma missão”. Para esses, a questão fundamental da coerência do sistema remuneratório do Estado passa completamente ao lado e não se confronta com a realidade de que há dirigentes da administração pública do grupo VI com vencimento inferior em menos de mil escudos ao vencimento do Primeiro-ministro e do presidente da Assembleia Nacional. Outros dirigentes do grupo V têm vencimentos superiores a ministros, deputados e presidentes das câmaras municipais. Com o passar dos anos o problema tende a agravar-se à medida que se fazem actualizações.  Em 2006 o governo do PAICV propôs um ajuste de 20% sobre as remunerações dos políticos para o ultrapassar mas o MpD votou contra. O impasse actual do bloqueio dos estatutos em 2015 não pode, porém, continuar. Quem não quiser fazer os ajustamentos que se impõem, deve pelo menos procurar ser coerente e arcar com as consequências políticas de cumprir o que JMN prometeu: ninguém na administração pública deve ter salários superiores ao primeiro-ministro. Em 1975 o governo de então decretou um vencimento máximo de quinze mil escudos para o presidente da república. Todos os outros salários foram reajustados por essa bitola. Coerência e coragem política precisam-se.

quarta-feira, março 23, 2016

Democracia é também procedimental

Um dos momentos marcantes dos regimes democráticos é o da alternância de poder. Relembra que o poder não é eterno e sendo precedido de eleições livres, justas e plurais vinca o princípio segundo o qual o exercício do poder só se legitima porque resulta do consentimento dos governados. Compreende-se, por exemplo, porque a investidura de um novo presidente dos Estados Unidos de quatro em quatro anos é um acontecimento de maior importância. O ritual de mais de 200 anos é seguido à risca na presença e com a participação de todos os poderes legislativo e judicial e da sociedade civil americana. Em outras democracias, talvez sem a mesma pompa, a passagem do poder é também um marco fechando e abrindo ciclos políticos. Em Cabo Verde ainda parece qua não assentamos completamente em como levar sem falhas, dúvidas ou precipitações o processo de transferência de poder. As eleições legislativas aconteceram no domingo, dia de 20 Março, e já o presidente da república em nota no Facebook anuncia : “Na quarta-feira de manhã contactarei todas as forças políticas com assento na Assembleia Nacional para, nos termos constitucionais (art.ºs 135.º, n.º1, i) e 194.º, n.º1), vir a proceder à nomeação do Primeiro Ministro, seguindo-se a nomeação dos restantes membros do Governo, sob proposta do Primeiro Ministro”. Qual é a pressa? Parece claro, à luz da Constituição,  como se deve proceder após as eleições: depois dos resultados eleitorais confirmados, há um edital da Comissão Nacional de Eleições publicado no Boletim Oficial com os dados de todos os círculos e os nomes dos deputados eleitos. No vigésimo dia subsequente a nova Assembleia Nacional reúne-se na sua sessão constitutiva (art.153º) e nesse dia termina a legislatura e começa uma nova. Segue-se a demissão do governo (art.202º) que passa a governo de gestão (art.193º) até a tomada de posse do novo governo nomeado pelo PR. Depois da posse, o novo executivo, entretanto a funcionar como governo de gestão, tem 15 dias para apresentar o seu programa à Assembleia Nacional acompanhado de uma moção de confiança (art.197º). Aprovada a moção pela maioria absoluta dos deputados, o governo inicia o mandato com plenos poderes. Salvo melhor interpretação, este parece o mapa a ser sempre seguido após eleições legislativas, o início da uma nova legislatura e a tomada de posse de um novo governo. Quando há alternância o processo de transferência de poder não deve deixar margem para dúvidas. Infelizmente não foi o que aconteceu na 1ª alternância em 2001. Tivemos o insólito de um governo do MpD demitido dia 30 de Janeiro, 13 dias antes do fim da legislatura que seria a 12 de Fevereiro, o dia da sua demissão automática. Ao mesmo tempo fez-se o absurdo de nomear um novo chefe do governo do PAICV no dia 1 de Fevereiro, 12 dias antes do início da nova legislatura, ficando-lhe após isso três dias dos quinze do prazo que, sob pena de demissão, deveria apresentar o programa ao novo parlamento (art. 202º n.1 d). Os desencontros ou atropelos neste processo vieram a revelar-se de maior gravidade porque se verificaram a meio das eleições presidenciais de 2001 que deram vitória a Pedro Pires e que ficaram manchadas por crimes de fraude eleitoral punidos por prisão efectiva dos responsáveis. No momento da segunda alternância é de maior importância que a normalidade no  processo de transferência de poder fique institucionalizada de uma vez para sempre. Em todas as democracias é um sinal de maturidade atingida.  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 747 de 23 de Março de 2016.

segunda-feira, março 21, 2016

Comércio externo

A publicação do INE sobre os dados do comércio externo de Cabo Verde no ano 2015 mostra um panorama da economia de Cabo Verde a todos os títulos preocupante. O primeiro facto a constatar é que houve diminuição tanto das importações como das exportações, um índice que corrobora outros dados que levam a crer que a taxa de crescimento da economia nacional ainda vai ser mais baixa do que os 1,8% do PIB em 2014. Provavelmente vai ficar por 1% do PIB. Um outro aspecto é o défice comercial traduzido na percentagem das importações que são cobertas pelas exportações. Continua extremamente alto e revela o quanto tem falhado políticas de promoção das exportações, como se tem sido incapaz de atrair investimento externo para os sectores de bens transaccionáveis e como oportunidades de acesso preferencial a mercados designadamente o AGOA têm sido desperdiçadas. Também o facto de só 1,8% das importações virem da África e de 4,0% das exportações terem como destino países africanos dá conta do nível incipiente das relações comerciais regionais mesmo quando o país tem no governo durante quinze anos um intitulado partido africano (PAICV). Não obstante o magro resultado até agora da relação africana, todos os partidos parecem acreditar que com a dinamização da relação económica com a África serão criados muitos dos empregos prometidos. Ninguém explica o que agora se vai fazer de diferente.

sábado, março 19, 2016

Responsabilidade na governação

Ouvindo as declarações do Sr. Primeiro-ministro sobre a privatização dos portos e logo de seguida sobre a situação cada vez mais complicada da TACV a primeira pergunta que nos ocorre, é: estará o governo ainda em “estado de graça”? Só pode ser, considerando que ainda culpa o governo anterior e não se sente compelido a assumir que errou ou que as suas políticas falharam em produzir o resultado pretendido. Ninguém acreditaria que quem fala assim encontra-se no fim de mandato do seu terceiro governo consecutivo.
É consenso geral nas democracias que aos governos recém-empossados se dá um máximo de seis meses de graça. Passado esse tempo torna-se progressivamente mais difícil e aceitável que continue a recorrer ao governo anterior para se justificar. Insistir  nesse caminho inevitavelmente tem consequências na integridade e funcionalidade do sistema político. Negar que quem governa tem concomitantemente responsabilidade plena pelos actos de governação e por tudo o que respeita à colectividade nacional significa quebrar o vínculo fundamental entre os cidadãos e o governo que nas democracias legitima o exercício do poder: o princípio do livre consentimento dos governados.
Quando se entra no caminho de esquivas ou mesmo de fuga à responsabilidade começa-se logo  a agir de forma a que os cidadãos não tenham toda a informação, ou os meios para se expressarem livremente ou se sintam livres para se organizarem e questionarem políticas, prioridades, resultados e impacto dos actos do governo. Quer isso dizer que os recursos do Estado começam a ser utilizados para constranger os indivíduos no exercício dos seus direitos, mesmo que não tenha sido esse o plano original. Para evitar assumir responsabilidade, faz-se propaganda e, pelo caminho, coarcta-se a liberdade de expressão, a liberdade de informar e de ser informado. Acaba-se sempre por condicionar a liberdade de imprensa e a liberdade de reunião e de manifestação e também por esvaziar as pessoas da autonomia em relação ao Estado e torná-las mais dependentes e mais submissas. Viu-se tudo isso nos últimos quinze anos.
A funcionalidade de um sistema que se guia pelo princípio do contraditório perde-se se a responsabilidade não é assumida e se culpabiliza sistematicamente o governo anterior por resultados menos bons da governação. Confundem-se os papéis e a oposição que já foi poder é obrigada a defender-se em vez de se manter activa a questionar a acção governamental. O parlamento como instituição sofre com os papéis invertidos dos seus protagonistas e com a frustração provocada pela atitude das bancadas rivais e do próprio governo. A imagem externa da instituição fica negativamente afectada quando os debates não trazem nada de positivo, bloqueios em matérias chaves se mantêm por muito tempo e frustrações individuais ou de grupo são ventiladas em plenário.
Sem um processo permanente de responsabilização, as promessas eleitorais não têm qualquer significado. Se o governo armado com a sua maioria parlamentar e com todos os recursos do Estado pode deturpar a realidade e substituir resultados por ilusões não vai se sentir amarrado às promessas que fez durante a campanha. A percepção que assim é tende a alienar as pessoas da política, aumenta o cinismo em relação aos políticos e pode fazer do eleitorado uma presa fácil para o populismo e a demagogia.
Um outro custo das constantes fugas à responsabilização pelos actos da governação é a perda paulatina de eficiência e eficácia em tudo o que se faz. Como se recusa o contraditório também não se reconhecem as falhas, não se absorvem as sugestões para mudar de procedimentos ou de rumo e o mundo dos governantes reduz-se cada vez mais ao grupo de fiéis ficando de fora os críticos, os inovadores e os ousados. Não estranha pois que a retoma de crescimento todos os anos anunciada tarde em acontecer, assim como o desemprego custe a diminuir. A gestão das empresas públicas torna-se cada vez mais complicada com os custos a serem assumidos pelo Tesouro Público e os serviços esperados pelos utentes pecam em qualidade, fiabilidade e preço. Uma distância maior começa a separar o país de ilusões todos os dias reproduzidos pelos governantes das dificuldades vividas no país real. Não estranha que de repente se oiça do fundo desse país real o grito de mudança.
Em período de campanha para as eleições legislativas é fundamental que a par com as promessas eleitorais seja afirmada a vontade de governar com honestidade seguindo uma ética de responsabilidade. Não é de aceitar governo que queira ficar em estado de graça por cinco, dez ou quinze anos de graça.
            Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 9 de Março de 2016

sexta-feira, março 18, 2016

Alternância de Poder

Cabo Verde vai a eleições para a escolha do novo governo no dia 20 de Março. Vários partidos disputam os votos para a eleição de deputados à Assembleia Nacional. Felizmente que de entre eles há partidos que podem constituir alternativas de governo. A democracia estaria fragilizada se, em qualquer circunstância, mas particularmente após quinze de governo por um único partido, não houvesse partidos ou coligação de partidos que oferecessem a possibilidade de uma alternância credível do poder.
Quinze anos é muito tempo e naturalmente que a governação por uma única formação política durante três legislaturas seguidas tende a condicionar as instituições, a constranger opiniões e a criar clientelas próximas. Notam-se em maior ou menor grau fenómenos do género em qualquer sociedade mesmo em democracias avançadas como o Reino Unido após 15 anos do partido conservador ou do partido trabalhista e também em Portugal na sequência de duas maiorias absolutas seguidas. Com mais razão se evidenciam nas jovens democracias onde a sociedade civil é incipiente e a dependência do Estado é prevalecente. No caso de Cabo Verde os efeitos são mais pronunciados devido às notórias políticas assistencialistas, ao facto da propaganda se ter tornado num instrumento central da acção do governo e também se constatar a vontade explícita dos poderes públicos em cercear a autonomia de indivíduos, associações e municípios.
Não se ter chegado ao fim dos quinze com um partido hegemónico acompanhado de um conjunto de pequenos partidos satélites demonstra que a sociedade cabo-verdiana já deu provas de uma grande resiliência democrática.  Maiorias absolutas como não precisam da contribuição de outras forças para fazer leis e aprovar orçamentos do Estado tendem a minimizar a necessidade de compromisso e de negociações com outras forças políticas. Podem até a chegar ao ponto de querer apresentar a oposição com algo dispensável se não mesmo prejudicial para os interesses do país. O Parlamento nestas condições torna-se alvo a abater e na instituição a desprestigiar porque é a sede do contraditório e é a tribuna de onde se exige que contas sejam prestadas e responsabilidades assumidas. Sente-se que caminham para aí quando se ouvem acusações de que para a oposição quanto pior, melhor, ou que ela se se comporta como profeta da desgraça e que é antipatriótica. O que mais terrível pode acontecer ao sistema político é se por causa de desânimo, sentimento de impotência e derrotas sucessivas os partidos sucumbam à pressão e deixem de ser alternativa, enfraquecendo a democracia por não oferecer a possibilidade de alternância. 
Samuel Huntington, o cientista política autor da Terceira Vaga da Democracia, estabeleceu a dupla alternância no poder como teste de verificação se a democracia nos países que fizeram a transição democrática está de facto consolidada. Em Cabo Verde ainda não se verificou a dupla alternância. Contrariamente ao que alguns pensam, seguindo a teoria de Huntington, no 13 de Janeiro de 1991, só houve a transição de regime político e não uma alternância de poder dentro do sistema democrático. Enquanto isso não acontecer e enquanto não se normalizar que qualquer dos partidos pode estar no governo e depois ir para a oposição dificilmente vão desenvolver entre si os hábitos de compromisso e de negociações. Nem tão pouco vão sentir a necessidade de chegar a acordos tácitos no que tange ao comportamento enquanto actores políticos que contribua para valorizar as instituições e diminuir a crispação política.
Não se estranhe por isso que em vez de uma evolução que valorize o sistema de partidos haja de facto muita pressão para o pôr em causa pelas razões mais estapafúrdias. Explora-se bastante e por mais variadas razões o sentimento anti-partido.  Em Cabo Verde esse sentimento vem de longe. Desde logo, do salazarismo e depois foi refinado  nos quinze anos do regime de partido único. O facto de os dois grandes partidos conseguirem mobilizar multidões e serem vistos como agentes alternativos de poder em Cabo Verde revela o quanto, apesar de tudo, os partidos não foram realmente afectados pela hostilidade anti-partido.
A campanha para as eleições de Março deixa claro que para o eleitorado cabo-verdiano os partidos têm um papel central no processo de definição do futuro. Não faltam críticas à actuação dos partidos, mas a realidade é que ninguém se mostra na disposição de os dispensar e procurar conforto em políticas populistas e demagógicas. A percepção, de que nos sistemas parlamentares a responsabilidade para o melhor ou para pior pode e deve ser assacada aos partidos políticos, independentemente das lideranças conjunturais, conseguiu vingar. Por outro lado, reconhece-se que as relações de lealdade e também de confiança com o partido mantêm-se para além das mudanças na liderança e das vicissitudes eleitorais. A garantia de persistência do pluralismo na sociedade e no sistema político é fundamental para que se possa visionar o futuro com entusiamo e optimismo. Para isso a participação de todos os cabo-verdianos através do  voto no dia 20 de Março é de maior importância.
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 16 de Março de 2016

sábado, março 12, 2016

Privatização dos portos



O Primeiro-ministro José Maria Neves, em declarações à rádio nacional, na segunda-feira, reagiu à notícia do jornal Expresso das Ilhas de que o acordo de privatizações dos portos com a Bolloré prejudica Cabo Verde. A afirmação citada pelo jornal é do presidente do Conselho de Administração da Enapor, a empresa que em representação do Estado de Cabo Verde deveria assinar a subconcessão dos portos com a empresa francesa. O PM na sua resposta preferiu ignorar as razões apresentadas pelo PCA na carta dirigida precisamente a ele na qualidade de ministro das Infra-estruturas e Economia Marítima que actualmente acumula e, muito no estilo a que habituou este país nos últimos quinze anos, lançou-se logo numa ofensiva para ofuscar a opinião pública: primeiro, fez uma incursão na década de noventa para se auto-congratular com a ética do seu governo supostamente superior à dos outros; depois, ignorou todas as questões levantadas. Nada disse sobre os malefícios do monopólio privado dos portos num país insular, da ainda deficiente regulação, dos efeitos nefastos da falta de concorrência, da possível atrofia do Porto Grande de S.Vicente  enquanto investimentos são feitos no Porto da Praia e se espera anos para rentabilizá-los e das perdas em competitividade. Simplesmente garantiu que o acordo serve perfeitamente o país. Por fim, quis atingir pessoalmente o PCA da Enapor, insinuando que ele provavelmente não conhece bem as questões porque assumiu o cargo em Junho do ano passado. Foi uma resposta típica do que se convencionou chamar de política em Cabo Verde: mostra-se falta de rigor em relação aos factos, ignoram-se as questões a favor de fabricações que se vão fazendo conforme as circunstâncias e deixa-se sempre em aberto a possibilidade de ataque ad homines  a quem contesta ou simplesmente opina de forma não conveniente. Só a não preocupação com os factos é que pode levar o PM a esquecer-se de que foi precisamente nas vésperas (dia 20) das eleições de 22 Janeiro de 2006 que foi assinado o contrato com a Sociedade Lusa de Negócios, caracterizado meses depois como um contrato leonino pela ministra Cristina Duarte e que posteriormente levaria à saída do governo do então ministro João Pereira Silva. Imaginem-se, parafraseando a coladeira do Bana, os pontos acrescentados aos contos dos anos noventa sempre que por lá vão buscar justificações pelas suas falhas e omissões quando mesmo do passado recente têm uma memória tão convenientemente selectiva. Por outro lado, a falta de preocupação em encarar as questões apresentadas pelo PCA da Enapor apoiadas por pareceres técnicos de consultores e especialistas no exercício da actividade portuária e mesmo por técnicos do próprio ministério (MIEM) mostra como no processo de decisão do governo por demasiadas vezes a vontade de se segurar no poder facilmente se sobrepõe ao interesse público. Espantoso é que nem a possibilidade de atrofia do Porto Grande trazida à baila por Carlitos Fortes, servindo-se da analogia da transferência dos voos da TAP de Lisboa para o Porto na lógica de rentabilização financeira das operações, parece ter despertado o Sr. Primeiro-ministro para a necessidade de se rever um modelo em que nenhum dos especialistas contactados pela ENAPOR vislumbrou vantagens para Cabo Verde. Surpreendido pelas revelações vindas a público, simplesmente “chutou” o problema para o governo que sairá das eleições de 20 de Março.

quinta-feira, março 10, 2016

O drama da TACV

É notável a falta de rigor que o PM demonstra ao apresentar e justificar os problemas da TACV. Segundo a Inforpress, ele disse “Logo, em 2001, aprovamos o decreto-lei de privatização da TACV. Acontece que surge o 11 de Setembro e, por causa disso, não conseguimos mobilizar parceiros e desde essa altura que a transportadora aérea tem custos elevados, por causa das linhas internacionais que foram abertas sem uma preparação”. Na realidade, o decreto-lei de privatização da TACV é de 19 de Dezembro de 2002 e é aprovado pelo seu governo mais de um ano depois do ataque de 11 de Setembro de 2001 às Torres Gémeas de Nova Iorque e não antes. Já então se sabia que o mercado da aviação civil era de recessão a nível mundial como aliás a própria lei reconhecia no seu preâmbulo. As dificuldades posteriores da TACV, que se estendem até agora, não podem ser imputadas a rotas internacionais alegadamente abertas pelo governo anterior. No decreto de privatização ficou logo previsto que a TACV ficaria protegida da concorrência nas rotas internacionais durante sete anos, para além de manter os benefícios fiscais (isenção do imposto de selo, do IUR, e isenção de pagamentos de direitos de importação e emolumentos de variadíssimos produtos entres os quais equipamentos diversos, veículos motorizados e combustível) que vinha da governação dos anos noventa. A responsabilidade pelo descalabro da empresa só pode estar em quem tinha obrigação de ter uma visão para os transportes aéreos do país, de ser capaz de transmitir uma orientação estratégia à companhia de bandeira no quadro dessa visão e de garantir que a empresa fosse dotada de uma direcção com competência executiva. E a falta de ética estará talvez em não a assumir. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 745 de 09 de Março de 2016.

quarta-feira, março 09, 2016

Transferência de dinheiro via telemóvel

A WARI, uma empresa de origem senegalesa mas já com presença em vários países africanos, fez a sua apresentação pública no dia 26 de Fevereiro. A empresa promete fornecer um conjunto de serviços financeiros e não financeiros e desde já vai começar pelo serviço de transferência de dinheiro a partir de telemóveis. Como outras empresas do género no mundo, o mercado privilegiado é o das pessoas sem conta bancária e dos imigrantes que querem enviar remessas para os países de origem. Em Cabo Verde vai querer captar não só o potencial representado pelos imigrantes africanos como também explorar o filão que a diáspora cabo-verdiana pode representar. Os emigrantes certamente terão interesse em encontrar uma via segura, mais barata e mais rápida de transferir pequenas quantias para os familiares. O que pode deixar qualquer pessoa perplexa é por que só agora, em 2016, é que se arranca com um serviço de transferência de dinheiro com base nos telemóveis e por que tem que ser por iniciativa de uma empresa estrangeira. Serviços do género são conhecidos pelo menos desde 2007. O M-Pesa no Quénia e GCASH nas Filipinas são sucessos que vêm desde esse tempo e que têm sido replicados em vários países. A WARI vem na esteira dessas inovações e apareceu em 2008. Cabo Verde aparentemente deveria ter todas as condições para também ser um inovador neste sector. Tinha, em 2007, uma população com mais de 120 mil assinantes de telemóveis, já com hábitos de utilização da plataforma designadamente para enviar SMS, transferir saldos e navegar em menus para multifunções. Pode-se considerar que existia um mercado potencial para utilização dos telemóveis para pagamentos e transferência de dinheiro. Acrescenta-se a isso o potencial de atrair remessas dos emigrantes como já fazia o GCASH das Filipinas. Pergunta-se porque não se avançou. Oficialmente, fala-se muita em inovação, mas na prática ou o Estado domina, como faz nas TIC, ou omite-se, deixando os inovadores privados sem um ambiente legal institucional ou de suporte financeiro para avançar as suas criações e iniciativas. No caso de empresas de transferência de dinheiro via telemóvel, as autoridades, em particular o Banco de Cabo Verde, como autoridade de supervisão financeira, omitiram-se e deixaram arrastar várias iniciativas de cabo-verdianos apesar de já terem conhecimento de experiências similares com sucesso noutros países. Aliás, este jornal, nos últimos cinco anos, deu cobertura a casos de sucesso neste sector em vários países africanos e pôs em relevo o potencial de negócio como forma de se inverter a inércia institucional e de políticas. O Estado ficou mudo e quedo. O desnorte do BCV nesta matéria ainda se notou no comunicado de 8 de Agosto de 2015 a proibir a WARI de operar quando a empresa desde Junho vinha anunciando os seus serviços nos postos de venda da Shell. Pelo que foi dito, vê-se que transferência de dinheiro via telemóvel é mais um potencial negócio que se deixou escapar por falta de visão e por inércia institucional. A continuar com a mesma atitude muitos outros vão continuar a se perder. O mundo, porém, não espera por nós.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 745 de 09 de Março de 2016.

sexta-feira, março 04, 2016

Dívidas do sector empresarial do Estado

Num diagnóstico de Cabo Verde, de Fevereiro de 2016, o Banco Mundial considerou o sector empresarial do Estado uma grande ameaça às possibilidades de crescimento sustentado do país. Há anos que a média dos resultados líquidos das empresas estatais têm sido negativos não obstante beneficiarem de subsídios implícitos e subsídios explícitos, de não pagarem dividendos nem impostos e servirem-se de avales do Estado para resolver problemas de financiamento e de tesouraria. O resultado de funcionarem anos seguidos nessa situação,  segundo o estudo, é o facto de hoje constituírem uma carga  e um risco enorme para o Estado. O risco aparentemente estaria apenas nos avales dados às empresas em várias operações financeiras. A realidade, de acordo com os consultores, é que essas empresas não estão em condições de pagar a dívida que já acumularam. E toda ela já soma quase 40% do PIB (dados de 2014) com a TACV com 21% do total, a IFH com 31%, ELECTRA 21%, ASA 17%, ENAPOR 8% e a Emprofac com 2%. Do conjunto da dívida consideram que os casos mais arriscados são da TACV em 5% do PIB e IFH em 7% do PIB. Este retrato das empresas estatais mostra em como as políticas do governo em relação a sectores-chave da economia nacional têm resultado em ineficiências que muito já prejudicaram o país e ainda em dívidas acumuladas que poderão servir de um poderoso travão a políticas futuras de carácter económico ou social. Partidarização, falta de orientação estratégica e não responsabilização dos gestores têm servido para perpetuar situações que transformam empresas públicas prestadoras de serviços cruciais para o país e pra a economia nacional numa carga diária a suportar pelos utentes e a prazo pelo Estado, ou seja, por todos os contribuintes.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 744 de 02 de Março de 2016.

Campanha para discutir e decidir o futuro

A campanha das eleições legislativas de 2016 vai iniciar-se no próximo dia 3 de Março. Será a sexta vez que num ambiente livre e plural os cabo-verdianos irão ao voto para decidir quem deve governar o país nos próximos cinco anos. Em antecipação ao acto eleitoral de 20 de Março teremos praticamente duas semanas em que a atenção geral estará virada para as propostas de governação dos partidos políticos e para o perfil dos seus candidatos a primeiro- ministro. Esta eleição, depois de quinzes anos sem alternância de governo, reveste-se de uma importância muito especial até porque acontece num momento já caracterizado por vários observadores e também pelo próprio Presidente da República como sendo de encruzilhada para o país.
Todas as forças políticas parecem concordar com essa asserção. Nas suas comunicações deixam transparecer uma necessidade de mudança e a urgência em se passar de uma situação de estagnação económica para uma outra realidade de maior dinamismo com criação rápida de empregos. As promessas eleitorais vão nesse sentido e as propostas em termos de políticas e de medidas dão conta do caminho a percorrer para se chegar até lá. Não se mostram tão claros porém os obstáculos no caminho para se atingir os objectivos e metas pretendidos, nem como vencê-los. E esse é o aspecto fulcral: há que ter consciência que eles existem para que se crie vontade, se desenvolvam estratégias e se mobilizem energias para os ultrapassar. Sem os identificar e os contornar, os resultados acabam por ficar sempre aquém do previsto. A experiência de vários países, entre os quais Portugal, é elucidativa. Apesar dos enormes sacrifícios consentidos, as reformas não foram suficientemente profundas e os resultados em crescimento e competitividade continuam modestos. Aparentemente algo ficou por fazer.
Nos últimos anos o governo nos orçamentos do Estado vem anualmente projectando crescimento económico de 3,5, 4 e até 5% do PIB.  Na realidade, o país ficou por uma média nos últimos 5 anos de 1,4%. Os investimentos de mais de 600 milhões de contos não conseguiram dinamizar a economia nacional nem torná-la competitiva nem fazer dela uma criadora de emprego. O rendimento per capita vem diminuindo desde 2012. O desemprego mantém-se elevado, particularmente entre os jovens, e os classificados nas estatísticas oficiais como inactivos, aumentam. As razões por que os resultados estão a ficar sistematicamente abaixo das previsões não são devidamente inventariadas e muito menos reconhecidas. Pelo contrário, sai-se à procura de justificações em factores externos como a crise financeira internacional ou em agentes nacionais, que supostamente não estariam a fazer  a sua parte, designadamente, os bancos, empresários, e os próprios trabalhadores. Mesmo quando o banco central alerta que constrangimentos internos diversos não permitem que o país aproveite em maior grau da recuperação das economias europeias, o governo continua a cantar loas à sua agenda de transformação, a considerar a dívida contraída como “virtuosa“ e a congratular-se com rankings internacionais que põem as ilhas de Cabo Verde em melhor posição do que a generalidade dos países do continente africano.
Sobressaltos repetidos, porém, têm chamado a atenção para falhas graves em sectores-chave para a vida do país. O último foi o arresto na Holanda do Boeing da TACV. Outros sobressaltos como a erupção na ilha do Fogo, o afundamento de navio Vicente e atentados homicidas dirigidas directa ou indirectamente contra entidades públicas deram conta de fragilidades e mesmo de incompetência que se deixa perpetuar em várias áreas sob tutela de entidades públicas. O caso da TACV é paradigmático. A empresa há meses que está a viver dificuldades visíveis de gestão e o governo dá a impressão que se bloqueou e não age: não substitui a direcção, não reorienta estrategicamente a empresa e passa a imagem de que salta de um plano de privatização para outro, sendo provavelmente o mais recente aquele em que o Sr. Primeiro-ministro terá trazido da Guiné Equatorial onde esteve em visita com a privatização da TACV na agenda.
Cabo Verde deve saber por que está na actual situação de baixo crescimento, de fraca criação de empregos e de aumento da pobreza. Já há documentos do Banco Mundial a questionar se não se trata de mais um exemplo de um país apanhado na armadilha dos países de rendimento médio. A contraposição de visões dos diferentes partidos durante a campanha eleitoral que começa no dia 3 de Março deverá servir para elucidar os cabo-verdianos país sobre o que lhes impede a caminhada e o que terão que fazer para garantir um futuro de dignidade, de liberdade e de prosperidade para si e para os seus.  
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 2 de Março de 2016

quinta-feira, março 03, 2016

O debate televisivo

Os debates televisivos ganharam relevância nos pleitos eleitorais nas democracias desde o célebre debate nos Estados Unidos, em 1960, entre John Kennedy e Richard  Nixon. Saiu vitorioso Kennedy e a partir daí ficou claro para toda a gente que sucesso nos debates depende de vários factores entre os quais a chamada telegenia, a capacidade de cativar os telespectadores e de os fascinar por gestos, expressões e formas discursivas. A competência em tratar as questões em debate é importante mas não é tudo. Na sequência do primeiro debate entre os líderes políticos na televisão nacional na passada sexta-feira as opiniões dividiram-se quanto ao formato, às perguntas colocadas e a actuação de cada participante, em particular, dos líderes dos dois maiores partidos. Para a generalidade das pessoas, JHA surpreendeu pelo seu desembaraço apesar do seu discurso redondo e UCS ficou aquém do esperado não obstante ser mais concreto nas respostas. Compreende-se provavelmente a reacção das pessoas se se considerar quais as suas expectativas em relação ao debate. Os dos partidos têm-se apresentado ao eleitorado com estratégias bem diferentes. Enquanto o MpD tem colocado o foco na pessoa de UCS fazendo-o portador de soluções e líder de um partido que é Cabo Verde, o PAICV com um líder mais jovem tem apostado no legado do partido e na governação dos últimos quinze anos. Em consequência, o eleitorado tem expectativas diferentes em relação aos dois líderes: de UCS esperam um superior domínio das matérias em debate, em particular, em matéria económica. Quando a sua superioridade não se evidencia como esperado, nem JHA parece desprovida, há algum desorientamento seguido de euforia no campo do PAICV e de algum desapontamento no campo do MpD.  Outros debates certamente ajudarão a calibrar melhor a percepção que o público terá dos dois líderes e a moderar as expectativas em relação a qualquer um deles. Os debates continuarão porém a ser marcados pela diferença do discurso produzido. O discurso do PAICV em qualquer circunstância, seja no parlamento, em pronunciamentos de governantes ou em debates na comunicação social, é profundamente ideológico. Os oradores seguem um guião bem claro na sua exposição em que os elementos referenciais da sua visão do mundo são expostos e confirmados, as acções desenvolvidas pelo governo são justificadas  e apresentadas como as únicas possíveis, dada a circunstância, e os adversários são apontados como inimigos do bem que se propõem em fazer. Este discurso que recria realidades à medida que é feito, aproveitando-se de toda a informação que vai surgindo seja o ranking de Mo Ibrahim ou o fundo Afroverde acabado de apresentar em Luxemburgo dificilmente se pode combater com argumentos de natureza tecnocrática fora de uma roupagem ideologia distinta que rivaliza com a do adversário. Tanto assim é que para a gente que não é do PAICV o discurso da líder parece coisa memorizada e repetida sem pensar. Já para outras pessoas sem quadro ideológico definido o impacto é outro e a percepção da pessoa que faz esse discurso pode ser completamente diferente e vista como demonstração de capacidade intelectual e disciplina mental. Cada estratégia tem os seus riscos. A estratégia do foco no líder faz dele o grande alvo de tácticas dirigidas especialmente para o deitar abaixo do pedestal. Por outro, a estratégia de proximidade do partido tende a passar a imagem de que se é uma espécie de apêndice do partido, cheia de frases feitas e falta de espontaneidade. Naturalmente que nos debates seguintes e em particular o de 10 de Março ir-se-á verificar estes aspectos e ver como foram afectados na sua estratégia em relação ao partido e ao país. Mas primeiro terão que enfrentar a UCID que como ainda um pequeno partido à cata de mobilizar algum voto de protesto poderá no debate colocar-se na posição de  advogado do diabo no questionamento das propostas, objectivos e metas apresentados.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 744 de 02 de Março de 2016.

quarta-feira, março 02, 2016

CNE e campanha eleitoral

Nestas eleições interpretações diversas do Código Eleitoral quanto ao papel da comunicação social já teve efeitos inéditos mas também positivos de motivar o presidente da república a pedir a fiscalização abstracta e sucessiva de normas dos artigos 105 e 106 do referido código. O incidente à volta do comício do PAICV na semana passada focou outra vez sobre o que parece ser incongruências na lei. Indo ao fulcro da questão dificilmente se pode tirar a conclusão que é vontade do legislador que nenhum partido faça comícios fora do período de campanha eleitoral. Parece evidente que a todo o momento os cidadãos como os partidos gozam da liberdade de expressão e têm direito à reunião e manifestação. Eleições são marcadas e a elas só podem apresentar candidatos partidos políticos no caso das legislativas, partidos e grupos de cidadãos no caso das autárquicas e só grupos de cidadãos nas presidenciais. Em todos esses casos prevê-se um período de campanha. O objectivo maior nesses quinze dias é assegurar que todas as forças políticas tenham igualdade de oportunidades na interacção com o eleitorado. Claro que se sabe à partida que os recursos dos partidos não os mesmos para os grandes e pequenos partidos, nem se comparam com os novos partidos e muito menos com os dos grupos cidadãos criados ad hoc. Cria-se portanto a igualdade de oportunidades essencialmente no acesso a recursos públicos, por exemplo, à radio e televisão públicas, aos lugares para colocar cartazes e outdoors, lugares para comícios, segurança durante a campanha, dispensa de trabalho etc. Pode-se controlar o financiamento que os partidos podem receber de indivíduos ou empresas e ainda, como é o caso dos comícios durante a campanha, determinar o nível dos agrupamentos musicais e artistas que podem ser contractados para animação antes da actividade política. Que tudo isso seja controlado durante o período de campanha e que por isso o exercício da actividade política seja condicionado para não pôr em causa a igualdade de oportunidades é aceitável. Estender essa restrição para um período fora de campanha já não é. Em Cabo Verde em nome da igualdade parte-se facilmente para restrições que penalizem liberdades fundamentais. Olhando para outras experiências democráticas desde os excessos da campanha eleitoral nos Estados Unidos ou mais recentemente as eleições em Portugal não se vê quem queira resumir a actividade dos partidos ao período da campanha. Mesmo em Cabo Verde, já vamos na sexta campanha eleitoral em ambiente livre e plural e nunca antes houve restrições semelhantes. Naturalmente que, mesmo não concordando, há que respeitar as decisões de um órgão central da administração do processo eleitoral como é a CNE. A legitimação a olhos de todos do processo eleitoral passa por respeitar o órgão que o supervisiona. Quando não se concorda, há sempre a possibilidade de recursos para outras instâncias. De qualquer forma, o próximo Parlamento terá oportunidade de rever o código e, se achar necessário, fazer as emendas para que não haja dúvidas quanto à sua conformidade com a Constituição da República.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 744 de 02 de Março de 2016.