As declarações da Ministra Eunice Silva em S.Vicente pôs muita “boa gente” em pé de guerra. Disse que Cabo Verde não era só S. Vicente. Acrescentou que a ilha esta numa fase de expansão acelerada a qual precisa ser contida no quadro de um plano. À frente das câmaras da RTC estava a responder ao pedido de apoio do presidente da câmara municipal para mais infraestruturas na cidade. Pode não ter sido feliz na escolha das palavras ou na forma como se expressou, mas não devia haver dúvidas que quis realçar, por um lado, as dificuldades na partilha de recursos, sempre escassos, pelas diferentes ilhas e, por outro, apelar à racionalização da expansão da Cidade via um plano previamente concebido.
As reacções às declarações da ministra foram excessivas mas também reveladoras. Traduziram muito do que está subjacente a um certo pensamento político no país e é caro a uma certa ideia de Cabo Verde. Deixaram transparecer logo a mentalidade redistributiva, que se tornou prevalecente no país, acompanhada do discurso vitimizador. Um facto que normalmente se nota mais em tempos de eleições quando se prima pelo discurso de vitimização das populações e também das ilhas e se fala de discriminação, de marginalização e de abandono. Pelo impacto das palavras da ministra percebe-se o alcance já atingido por essa forma de ver os problemas do país e que soluções são realmente expectáveis para certos sectores da sociedade. Não espanta que se queira mais esquemas de ajudas, mais transferências de fundos públicos e mais obras, de preferência infraestruturas com grande visibilidade. São, porém, soluções que até agora não impediram mais dependência do Estado, mais perda de massa crítica na população das ilhas, mais reforço da centralização e menos capacidade de aproveitamento de oportunidades. Pelo contrário.
A realidade é que, depois de quarenta anos a viver enquadrado num modelo de desenvolvimento com base na gestão de fluxos externos designadamente doações, remessas de emigrantes, empréstimos concessionais e recentemente dívida externa, dificilmente se pode escapulir imediatamente para uma outra mentalidade que não aquela que valoriza a dependência e o espírito redistributivo. Os anos noventa foram os únicos durante os quais se pretendeu fugir desse modelo. As reformas políticas e económicas porém foram insuficientes para fazer emergir uma nova mentalidade de abertura ao mundo para conter as tendências autárcicas, uma cultura empresarial que contrariasse a cultura administrativa predominante e uma classe média autónoma que se diferenciasse da classe média criada pelo Estado e fosse a coluna vertebral de uma sociedade civil alerta e actuante.
Nos 15 anos que se seguiram predominou o discurso ilusionista com foco na competitividade e no empreendedorismo. Serviu para camuflar a progressiva centralização do país apesar de alguma dinâmica nova devido ao turismo nas ilhas do Sal e da Boa Vista, mas não conseguiu instilar nas pessoas e nas instituições uma cultura de serviço e de resultados indispensável para combater a burocracia, para criar um bom ambiente de negócios e para incentivar a iniciativa privada. Esses anos terminaram com dívida pública pesada que agora constrange grandemente a possibilidade de futuros investimentos públicos para arrancar a economia e com crescimento anémico que desmotiva o investimento privado. Para além disso ainda ficou um lastro de chumbo: custo excessivo de factores designadamente energia e água, sistema de transportes marítimos e aéreos ineficazes e ameaçando colapso, infraestruturas em portos, aeroportos e estradas subaproveitadas, segurança pública comprometida, sistema de saúde aquém das necessidades e um sistema educativo inadequado e de qualidade duvidosa.
É evidente que no novo ciclo político devia-se romper completamente com o modelo, a mentalidade e o discurso político que já pôs o país na situação difícil em que se encontra actualmente. Pelas reacções às palavras da ministra das Infraestruturas vê-se que isso ainda não aconteceu. Mas o tempo urge. As muitas incertezas no mundo de hoje deviam ainda ser mais um estímulo para se fazer rapidamente o corte e também para, parafraseando Marcelo Rebelo de Sousa, sem medo se “ver a realidade e decidir com visão e sem preconceitos”.
O apelo feito às elites portuguesas também podia aplicar-se à classe política cabo-verdiana. Cabo Verde precisa de liderança esclarecida que não se enverada pelo discurso fácil e demagógico para ganhar eleições. Servir e respeitar o povo cabo-verdiano deve significar fazer discurso político plural com verdade e sem exploração desonesta das emoções primárias das pessoas. E isto aplica-se a todos tanto no governo como na oposição.
Editorial do Jornal Expresso das ilhas de 22 de Junho de 2016