segunda-feira, setembro 10, 2018

Enfraquecimento das instituições

Depois de meses a assistir ao desgaste do parlamento devido, entre outros factores, à excessiva crispação das forças políticas, à duvidosa organização e gestão dos trabalhos parlamentares e às ausências prolongadas e injustificadas do primeiro-ministro em sessões sucessivas da Assembleia Nacional, o país depara-se agora com despiques públicos entre o Presidente da República e o governo.
É uma situação que não beneficia ninguém e muito pelo contrário tende a enfraquecer a imagem das instituições e a minar a confiança na democracia. Nos tempos actuais – em que a tentação populista na abordagem e resolução dos problemas associada ao acesso rápido e quase universal das pessoas às redes sociais põe especial desafio às democracias – todo o cuidado é pouco na gestão do processo político essencial para que o desenvolvimento do país se faça na liberdade e no pluralismo. O que menos se precisa é que se aumente e se aprofunde a descrença nos princípios e valores democráticos por razões ligadas à actuação de titulares de órgãos de soberania e de dirigentes políticos ávidos de protagonismo e pouco dispostos a seguir procedimentos já sedimentados, mesmo na nossa jovem democracia, nas relações entre o presidente, o governo e o parlamento.
A tensão entre o presidente da república e o governo, aparentemente à volta do SOFA, veio depois provar que afinal ela tem uma origem mais profunda que é de saber quem tem competência para dirigir a política externa do país. Pelas declarações feitas à TCV, no dia 20 de Setembro de 2017, apercebe-se claramente que o PR pensa que, por exemplo, no caso do acordo SOFA com os Estados Unidos da América o seu papel não deve ser apenas de ratificar o acordo depois de negociado e assinado pelo governo e levado ao parlamento para discussão e aprovação como parece estipular a alínea a) do artigo 136º da Constituição. O PR mostra-se convicto de que em matéria de acordos internacionais não deve apenas ser informado nos encontros regulares com o primeiro-ministro mas que deve “haver acompanhamento das negociações e até em certos casos o assentimento prévio do Chefe do Estado para que na altura da ratificação não haja situações..”. Prossegue suas declarações dizendo que a intervenção é “pedagógica” mas na realidade pela alusão ao “assentimento prévio” do PR em certos pontos negociais a impressão com que se fica é que pretende ter participação efectiva no processo.
É um facto que o PR tem um papel a desempenhar na política externa no âmbito da sua função de representação externa da República. Também é um dado assente que quem constitucionalmente dirige a política interna e externa do país é o governo. Desde os primórdios da Constituição de 1992 o regime democrático cabo-verdiano foi caracterizado como “parlamentarismo mitigado”. Diferentemente do semi-presidencialismo português, o governo em Cabo Verde não é responsável politicamente perante o presidente da república. Por isso estranha que haja quem pense que o PR em Cabo Verde possa ter competências ou protagonismo na direcção da política externa do país que nem no sistema português actual nem no sistema francês no quadro da coabitação Miterrand/Chirac e Chirac/Jospin, todos de pendor presidencial mais pronunciado, os presidentes da república pareciam ostentar. É só ver como na fotografia oficial da recente Cimeira da CPLP a dupla Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa protocolarmente se apresentava enquanto o PR cabo-verdiano se encontrava no centro com o PM Ulisses Correia e Silva distante junto à secretária executiva da CPLP. Não é essa a imagem que se tem, por exemplo, do presidente Miterrand e do primeiro-ministro Chirac nas cimeiras internacionais em que a França participava.

Exemplos que vêm de países recentemente democráticos, mas que já mostram sinais de crise e tendências populistas e autoritárias pronunciadas dão-nos conta de que tudo aparentemente começa quando partes do sistema político começam a bordejar as fronteiras das suas competências e acabam em incursões nas competências das outras. Ao reagir - seja no formato de aceitação de diminuição a que é sujeita, seja da luta que terá que fazer para se reafirmar – a parte agravada incorre no risco de ver a sua imagem diminuída, abrindo espaço para o desprestígio das instituições aos olhos dos cidadãos. Dos ataques que de há muito têm sido dirigidos à justiça e ao parlamento já se vêem as consequências. Com o governo e a presidência da república num terreno movediço que só pode levar ao desprestígio dos envolvidos, a situação só pode piorar. O ambiente de crispação política extrema em que a luta política tende a ficar pelas conveniências do momento e pela postura quase tribal dos militantes e activistas pode deixar o sistema sem defensor consequente perante as múltiplas ameaças que hoje se apresentam contra a democracia representativa e contra o Estado de direito.
Há que arrepiar caminho. Vários exemplos vindos todos os dias de fora dizem-nos que ataque aos media, à eficácia da justiça e ao parlamento não traz nada de bom para a democracia. Que também não é boa opção demonizar a oposição mesmo quando ela lá no íntimo se considera uma espécie de “Dono Disto Tudo” e mais preocupada em preservar o seu legado histórico do que em defender o sistema democrático. Há finalmente que defender as instituições e garantir que se tornem perenes e que sejam colocadas ao serviço de todos. Experiências democráticas confrontadas com derivas populistas ou autoritárias confirmam que só com instituições construídas sobre princípios e valores democráticos é que se pode ter esperança de combater os excessos de protagonismo e conter com eficácia a ameaça que parece pairar sobre todos e que servindo-se de fake news e do ilusionismo põem em causa os factos e a verdade, erigem a desonestidade, o tacticismo conveniente e o eleitoralismo como forma de fazer política e de conquistar e de se manter no poder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 875 de 5 de Setembro de 2018.

segunda-feira, julho 30, 2018

Estado da Nação: em “gestão corrente”

O debate na Assembleia Nacional sobre o estado da Nação acontece nesta sexta-feira dia 27 de Julho. Mais uma vez os parlamentares e o governo vão debruçar-se sobre a realidade vivida no país com as suas vulnerabilidades de sempre, com os seus problemas do momento e com a constante tensão entre as expectativas criadas e a capacidade de as materializar. Em geral, nesse tipo de debates a complexidade da situação do país é passada de lado. No calor do embate a preocupação em tirar dividendos políticos imediatos leva muitas vezes a posições extremadas que dificultam a devida perspectivação dos problemas, não deixam espaço para consensos em matérias estruturantes e bloqueiam o diálogo plural que o país tanto precisa para poder enfrentar com sucesso os desafios do desenvolvimento.
Não estranha, pois, que ano após ano e com mais ou menos diferença, o estado da Nação seja realmente o de quem está sob “gestão corrente”. Vai-se vivendo com os fluxos que mais ou menos vêm de fora em forma de ajuda, também com os efeitos de uma conjuntura internacional favorável na procura externa e com o impacto do aproveitamento por outros de oportunidades pontuais, mas sem garantia de continuidade futura. Razão por que as vulnerabilidades não diminuem significativa e permanentemente, não há aumento rápido de postos de trabalho com qualidade e o país não sobe para patamares em termos de capital humano, de conectividade e de prestação de serviços que o tornariam atractivo para o investimento estrangeiro e fariam crescer as exportações. Se, pelo contrário, em vez da costumeira gestão corrente, passiva e sem ousadia a opção fosse para uma gestão estratégica, pro-activa e visionária o foco seria na criação de riqueza e no esforço colectivo para ganhar competitividade externa e elevar o nível de produtividade do país. Aí sim não seria evidente o desapontamento já palpável das pessoas que ainda estão por sentir concretamente as vantagens da alternância na governação.
Não se vai por esse caminho porque ainda há demasiadas forças em Cabo Verde que resistem a mudanças no status quo. A tentação dos poderes instalados em controlar tudo e todos põe-se demasiadamente no caminho do desenvolvimento. Não é por acaso que o Estado burocrático dividido nas suas “capelinhas” e cioso das suas prerrogativas continua a pesar proeminentemente sobre tudo o que se faz e, em particular, sobre o que de novo se quer fazer. Em vários países mesmo alguns não democráticos, governos ganham confiança da população e legitimam-se presidindo a uma economia que cresce significativamente e mantém níveis baixos de desemprego. Em Cabo Verde não é clara que essa ligação tenha sido estabelecida.
Governos no passado já foram reeleitos mesmo com crescimento baixo e altos níveis de desemprego porque se mostraram aptos em fazer a “gestão corrente” seguindo o modelo de reciclagem da ajuda externa. Aconteceu em parte porque não é fácil mudar comportamentos criados por políticas populistas e assistencialistas que depois se transformam eles próprios em obstáculos ao próprio desenvolvimento. O ilusionismo que acompanha essas práticas mascara a realidade, esconde os problemas e alimenta as expectativas com promessas de dádivas do Estado. A verdade, porém, é que os problemas simplesmente não desaparecem, pelo contrário, acumulam-se e progressivamente tornam-se quase intratáveis ou só resolvidos a elevado custo.
É só ver o que se passa com a TACV, com as barragens, com o programa Casa para Todos, os problemas das populações na Ilha do Sal e da Boa Vista, a quebra na dinâmica económica de S. Vicente, a vulnerabilidade completa da população rural, os problemas de emprego dos que saem dos liceus e das universidades para se aperceber que ficar pela “gestão corrente” do país focalizada em conseguir financiamentos para infraestruturas e em “diplomacias económicas” que mobilizam milhões para a ajuda orçamental e programas de emergência não tira o país da mediania e só agrava os problemas para o futuro. Se essa opção já não resultava no passado, muito menos efeito no crescimento e no emprego terá nos dias de hoje em que as exigências de transacções com o resto do mundo são maiores em termos de qualificação de mão-de-obra, de serviço prestado e de produtividade. Também não é boa ideia deixar-se apanhar pela tentação de disfarçar as práticas de uma gestão corrente com “fugas em frente” do tipo clusters dos anos atrás que nunca se materializaram. Ainda nesta perspectiva, o excessivo foco na inovação talvez esteja deslocado e eficiência devesse ser a preocupação primeira do Estado. Como bem sugere o Fórum Económico Mundial, Cabo Verde está entre os países nos quais o que mais conta para o crescimento económico é a eficiência na utilização dos recursos do capital e do trabalho e o desenvolvimento dos mercados.
Sair do paradigma debilitante, que exceptuando provavelmente alguns anos na década de noventa, tem dominado a prática governativa do país, é essencial para se poder projectar alguma esperança em que todos os cabo-verdianos poderão finalmente ultrapassar as fragilidades de outrora. A experiência de sucesso de países como Maurícias, Seychelles, Botswana e Singapura revela que para que medidas estruturantes e estratégicas fossem tomadas em momentos-chave da vida económica desses países houve necessidade de construir consensos entre as principais forças políticas e firmar pactos entre autoridades, sindicatos e empregadores que realmente pusessem o crescimento e o emprego acima de qualquer agenda. Em Cabo Verde, o ambiente político e o laboral confundem-se de algum modo e estando todos a defender os interesses próprios não parece que se deixe espaço para a sociedade realmente convergir em questões que se mostrarem fundamentais para o futuro.
Por outro lado, para se produzir riqueza, há que criar valor mas nem todos os operadores agem a todo o tempo seguindo esse registo. Como diz a economista britânica Marina Mazzucato no seu último livro “O Valor de Tudo” na sociedade há quem produza valor, há quem destrua valor e há quem extraia valor. Saber distinguir uns dos outros e apostar em quem realmente produz valor, neutralizar quem o destrói e não deixar-se enganar por quem simplesmente o procura extrair, não é tarefa fácil. Mais difícil fica se não se se conseguir primeiramente um entendimento de base entre os partidos e na sociedade para se efectivamente deixar a gestão corrente para uma governação estratégica. O debate sobre o estado da Nação podia ser um bom começo para esse entendimento indispensável para o presente e futuro do país. É preciso ter presente que as nuvens da incerteza ameaçam o abrandamento da economia mundial com impacto negativo certo para toda a gente. Não há tempo a perder.
Humberto Cardoso

segunda-feira, julho 23, 2018

Paga-se caro a inacção

Nos últimos dias de Dezembro de 2017 a Polícia Nacional entrou em greve por três dias. A população assistiu numa mistura de espanto e ansiedade à greve inédita na história do país. O governo também aparentemente apanhado de surpresa acabou por fazer uma requisição civil que não foi aceite por boa parte dos grevistas e que pelo contrário foi repudiada pelos sindicatos. Felizmente não houve perturbações maiores da ordem pública. Terá perdurado a má impressão deixada pelo comportamento de alguns agentes durante as manifestações pelas ruas da capital. Na época houve muita discussão se a polícia tem ou não direito à greve. O assunto acabou esquecido depois das convenientes salvas de artilharia trocadas entre os partidos, todos à procura de ganhos de curto prazo, preferindo varrer os problemas para debaixo do tapete.
O anúncio pelo sindicato da polícia SINAPOL de uma greve de seis dias para a próxima semana a partir de 26 de Julho trouxe outra vez à ribalta a insatisfação, mal-estar e falta de motivação que parece persistir na polícia não obstante os muitos investimentos já feitos nestes dois anos do actual governo em meios de comunicação e de transporte e também em aumentos salariais e promoções. E a injecção de meios não parou aí; continua tanto em efectivos, como em novas instalações e armamento. Na semana passada foi anunciado que cerca de 90 mil contos provenientes do Fundo do Turismo foram gastos em coletes à prova de bala, armas de fogo e outros meios para a polícia. Tudo isso porém parece que nem melhora o ambiente no seio da polícia, nem contribui significativamente para aumentar a sua eficácia a ponto de diminuir significativamente a percepção de insegurança na população. Talvez os dois problemas, mal-estar e falta de eficácia, tenham a mesma raiz como sugerem os altos oficiais da polícia Manuel Alves e Alcides da Luz em críticas publicadas respectivamente no Facebook e no jornal online Mindelsite que apontam para a inexistência de reformas ou de uma direcção capaz de elevar a actuação da polícia ao nível de eficácia desejável para enfrentar os desafios de hoje. Para esses dois oficiais, um no activo e outro recentemente passado à reforma, se mudanças profundas não acontecerem o prognóstico em matéria de segurança para os próximos tempos poderá não ser positivo.
Garantir a segurança é dever do Estado. É a razão primeira porque se criou a instituição Estado. Por isso não pode haver dúvidas quem tem a responsabilidade de a assegurar para tranquilidade de todos os cidadãos. E não é uma responsabilidade compartilhada no sentido em que o Estado e os seus agentes fazem a sua parte e os indivíduos, as famílias, a igreja e outras organizações da sociedade contribuem com a outra parte ficando a responsabilidade última pela eventual insegurança perdida algures sem que ninguém a assuma frontalmente. A desejável colaboração de indivíduos e organizações na manutenção da ordem e tranquilidade também compete ao Estado promove-la através de acções como cultivar o civismo e o sentimento de pertença à comunidade, facilitar a participação cívica e política e incentivar o associativismo. Se há falhas aí, a colaboração dos indivíduos é fraca e o baixo capital social da comunidade manifesta-se na falta de confiança na relação entre as pessoas, na tentação de fazer justiça privada e na desconfiança em relação às instituições. Quando é assim não se pode ficar pela simples constatação dos factos. Há que assumir as responsabilidades e há que agir em conformidade.
Do investimento feito na segurança, esperam-se legitimamente resultados num quadro que se quer marcado por critérios de eficiência e eficácia. Interesses de indivíduos, de grupos ou mesmo de corporações não podem prevalecer sacrificando o serviço público que se quer e que justifique a utilização dos recursos que afinal são de todos os contribuintes. Compete ao governo garantir que assim seja. Há que pôr fim ao mal-estar na polícia e há que aumentar a motivação dos agentes. E certamente que a questão não pode reduzir-se simplesmente a reivindicações salariais. O Estado tem recursos limitados e razoavelmente não se pode esperar que, de imediato ou quase, se resolva todos problemas que se acumularam durante mais de uma década. Por outro lado, não se pode deixar as coisas como essencialmente estavam e esperar automaticamente que haja motivação se o mérito continua a não contar e interesses difusos a serem obstáculos à elevação do nível de eficácia da organização e à realização das ambições de carreira de muitos.
Uma questão que porém já devia ter sido resolvida é da do direito à greve. A hipótese de greve da polícia foi aventada já se passaram alguns anos e houve por isso tempo para as forças políticas se debruçarem sobre o assunto e agir de modo a que nunca viesse a acontecer. Nada se fez e a greve aconteceu no final de 2017. Passados sete meses, está-se na iminência de outra greve da polícia e as opiniões divergem se é legal ou não, que limites poderá ter a requisição civil dos agentes e quem, em última instância, garantirá a ordem no país se a única força de segurança se encontra em greve. O entendimento na generalidade das democracias consolidadas é que polícias não têm direito à greve. Essa é opinião do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e de tribunais constitucionais de vários países incluindo o Supremo Tribunal Federal do Brasil. Para o supremo brasileiro a polícia sendo “o braço armado do Estado para a segurança interna não pode exercer o direito de greve sem pôr em risco a função primeira do Estado em garantir a segurança, a ordem pública e a paz social”.
Em Cabo Verde, apesar de há já algum tempo o problema se ter manifestado não se sabe se algum parecer sobre o assunto foi solicitado ao Ministério Público ou se procurou saber das instâncias judiciais algum posicionamento sobre a matéria. Também não é do conhecimento público que tenha havido alguma iniciativa legislativa para suprir eventuais omissões na lei. A postura, parece, é de nada fazer, mas esperar que o pior não aconteça. Não é razoável e facto é que a inacção muitas vezes se paga caro.
Humberto Cardoso

segunda-feira, julho 16, 2018

SOFA gera controvérsia

É cada vez mais frequente no mundo globalizado e interconectado de hoje os países procurarem estabelecer parcerias especiais. As razões invocadas são múltiplas, mas fundamentalmente têm natureza política e económica ou são ditadas pela necessidade de segurança mútua. Na generalidade dos casos a relação entre estados, seja no quadro de uma comunidade económica, de uma aliança militar ou de uma simples parceria para paz e segurança implica cedências de soberania.
Por isso mesmo o caminho para ali chegar nunca está livre de espinhos e escolhos. Mesmo quando se chega ao fim e a parceria funciona normalmente não cessam as críticas, não desaparece a sensação que se cedeu demais ou que a contrapartida não é a melhor. Prova disso, mesmo em parcerias há muito consolidadas, são as tensões à volta do euro, à volta das migrações e das directivas da Comissão Europeia que levam muitos dos estados membros a ressentirem-se contra o que consideram cedência excessiva às instituições da Europa. Tensões similares são percebidas em blocos económicos como a NAFTA e a CEDEAO e entre os países integrantes da NATO.
Em Cabo Verde a discussão do Acordo do Estatuto das Forças Militares Americanas (SOFA, da sigla inglesa) que poderão num momento ou outro estar em Cabo Verde no quadro da parceria para segurança também está a ser motivo de grande controvérsia, envolvendo os partidos políticos e a sociedade. Para os Estados Unidos a controvérsia não é novidade considerando que se verificou e em muitos casos continua a se verificar na generalidade dos mais de 100 estados com quem já assinou um SOFA. Há um entendimento que é legítimo que se queira saber em que a medida a presença de tropas estrangeiras vai ter implicações na relação do país com o exterior, como irá afectar a sociedade e que impacto eventualmente terá na economia. Claro que se é mais sensível a essas questões se, como no caso de Cabo Verde, sempre predominou no país uma postura oficial de não alinhamento com blocos militares traduzida ainda na recusa constitucionalizada de bases militares estrangeiras. Não espanta pois que o debate sobre a matéria se tenha exacerbado e trazidas à baila questões de identidade e de patriotismo, a par de dúvidas quanto à conformidade à Constituição do SOFA aprovado na Assembleia Nacional pela maioria parlamentar do MpD com abstenção dos deputados do PAICV e da UCID.
A realidade do mundo de hoje já não é a de blocos militares ideologicamente antagónicos a se ameaçarem mutuamente com armas nucleares. Os problemas maiores de segurança advêm principalmente do terrorismo, dos diferentes tráficos, da pirataria marítima e do crime organizado. São ameaças caracterizadas por nem sempre terem rosto visível, por não serem corporizadas por um Estado e também por tomarem toda a gente como alvo potencial. Reconhecendo a nova realidade, na revisão da Constituição de 2010 introduziu-se no n.2 do artigo 11º das relações internacionais que o Estado de Cabo Verde “participa no combate internacional contra o terrorismo e a criminalidade organizada transnacional”. A partir daí, o país já não é mais neutro porque ele próprio está sob ameaça dessas entidades subestatais e não tendo meios próprios para as enfrentar sozinho deve procurar parcerias internacionais para garantir a sua própria segurança e não permitir que nenhum ponto do seu território sirva de base ou depósito para tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou para qualquer tipo de suporte de acções terroristas. É evidente que a colaboração com outros estados no quadro de parcerias para a defesa e segurança do país terá de implicar cedências no domínio da soberania. O quanto que se deve ceder certamente que vai ser sempre matéria de controvérsia, mas decisões devem ser tomadas e em tempo útil porque a escolha poderá ser entre, por um lado, no presente não ter controlo completo do próprio território porque não se tem nem os recursos nem a necessária cooperação de forças estrangeiras para isso, e, por outro, orgulhosamente proclamar que não se quer bases militares estrangeiras numa recusa que teria razão de ser em tempos da guerra fria mas que actualmente na era dos drones e das operações especiais não faz sentido. Hoje a tendência é abandonar as bases permanentes como deverá acontecer com a base americana das Lajes, nos Açores.
Na concretização da cooperação quase incontornável para se garantir segurança contra as ameaças transnacionais um dos problemas mais melindrosos é o da jurisdição criminal, civil e administrativa. A pergunta é se a jurisdição deve ser concorrencial entre os dois estados ou ficar só com o estado de origem do contingente militar e não com o estado hóspede. Os Estados Unidos da América compreensivelmente procuram subtrair todos os seus soldados e funcionários a qualquer tipo de jurisdição do Estado hóspede. Na prática, os SOFAs que tem negociado designadamente com os países da NATO, o Japão e a Coreia têm variantes conforme a resistência encontrada junto do estado hóspede e também o seu próprio interesse em ter uma presença no país mesmo quando o estatuto das suas tropas num quadro do SOFA não seja o ideal. De acordo com o documento do Departamento do Estado americano citado por este jornal na edição anterior, esse ideal consubstanciado num Global Sofa Template só foi aceite completamente por alguns micro-estados. Imagina-se que quem o aceitou fez uma opção para ceder em termos de soberania e de jurisdição criminal no seu território em troca de ganhar em segurança. Certamente que terá razões para isso e as deverá apresentar a eventuais críticos ou opositores..
O SOFA aprovado em Junho último no parlamento não foi o primeiro adoptado por Cabo Verde. Em 2006, aprovou um SOFA para as forças da NATO que vieram participar nos exercícios militares da Steadfast Jaguar. Nesse SOFA houve naturalmente cedências em matéria de jurisdição criminal e civil, mas no nº 4 do artigo 7 (BO de 2 de Janeiro de 2006) deixou-se a possibilidade de “em casos específicos, Cabo Verde puder solicitar que renunciem à imunidade de jurisdição do Estado de Origem relativamente aos seu pessoal militar ou civil presente”. Também em 2008 no acordo de Cabo Verde com a Espanha foi aprovado um SOFA que no artigo 9º nº 2 dizia que “Cada uma das partes considerará a possibilidade de renunciar às imunidades criminais que os membros das suas forças usufruem a pedido de outra, em situações que se justifique a realização de um processo no próprio local do crime, por motivos de especial gravidade do crime”.
No SOFA com os Estados Unidos, assinado dez anos depois, autorizou-se os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre as tropas durante a sua permanência em Cabo Verde sob a justificação da necessidade de controlo disciplinar das mesmas (artigo III , nº 2). Como o documento do Departamento do Estado acima referido deixa claro essa, é uma cláusula vivamente procurada pela América para garantir que se vá além da Convenção de Viena e se institua, de facto, a exclusividade da sua jurisdição penal. Certamente que o governo cabo-verdiano ao assinar e fazer aprovar o SOFA terá as suas razões. Seria bom que as explicitasse e as contextualizasse para a tranquilidade dos caboverdianos.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 867 de 11 de Julho de 2018.

segunda-feira, julho 09, 2018

Ultrapassar a lógica das “capelinhas”

O Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças, Olavo Correia, anunciou ontem, 3 de Julho, que o Governo está a trabalhar em parceria com as entidades seguradoras e o INPS, para que o país tenha, muito em breve, um bom sistema de evacuação dos doentes.
Certamen­te todos esperam que sim por­que o país precisa. O problema é que anúncios similares feitos por governantes vêm de longe e ninguém em particular nas ilhas e fora das cidades da Praia e de Mindelo até hoje pode sentir-se seguro de um socorro rápido em caso de emergência grave apesar das promessas feitas ao longo dos anos. E não há menos caso para isso. Há duas semanas viu­-se o que aconteceu na Boa Vista. Outros casos recentes na mesma ilha, no Sal e no Fogo vieram re­lembrar a urgência em encontrar uma solução para o problema das evacuações, problema esse agora mais agravado pela per­cepção geral que a companhia aérea Binter não se considera obrigada a proceder da forma como era esperada da TACV nas mesmas circunstâncias.
Situações dramáticas foram vividas num passado recente de­signadamente com a erupção do Vulcão do Fogo, o afundamento do navio Vicente e o massacre do Monte Tchota. Em todos elas constatou-se a impotência das estruturas do Estado, seja na ausência de planos de contin­gência no âmbito da protecção civil, seja na montagem de uma capacidade nacional de busca e salvamento ou na simples garan­tia de sistemas de comunicação entre destacamentos das forças armadas e a base. Na sequência dos desastres, vieram promes­sas diversas: helicópteros para busca e salvamento, mais uma unidade naval e outra aérea para não se repetir o caso do Guardião e do Dornier inoperacionais no momento da erupção do vulcão do Fogo e helicópteros para re­solver o problema de transporte para a Brava. Recentemente, já
no actual governo, repetiram­-se promessas de aquisição de dois helicópteros e em Outubro de 2017 fez-se apresentação no Aeroporto da Praia de dois apa­relhos de origem austríaca com capacidade para evacuações mé­dicas e para patrulhamento ma­rítimo. Mistério é porque apesar de todos estes “démarches”, con­tinua-se praticamente na estaca zero, sem capacidade de resposta efectiva e tempestiva a qualquer tipo de emergência real no país.
O vice-primeiro-ministro fala de uma solução trabalhada com as seguradoras e com o INPS mas dirigida para um problema em particular que são as evacua­ções médicas. Fica-se por saber quais as soluções para os outros problemas como busca e salva­mento, protecção civil, patru­lhamento marítimo e transporte para ilhas sem aeroporto que advêm da natureza arquipelá­gica do país. E pergunta-se por que não uma solução integrada que responda às necessidades de forma compreensiva e mais em linha com o binómio custo/benefício. Evacuações médicas inter-ilhas não parecem ter a frequência que justificaria um investimento exclusivo para as garantir. Aparentemente o mais lógico seria investir de modo a garantir capacidade de respos­ta global para os problemas do país arquipélago. A dificuldade em se enveredar por esse ca­minho, não obstante os muitos anos de discursos e promessas, talvez resida no facto de todas essas competências não terem sido atribuídas a uma autorida­de marítima e pelo contrário es­tarem espalhadas por entidades díspares como guarda costeira, polícia marítima, serviço de pro­tecção civil, agência marítima e portuária, capitania dos portos, etc,. A lógica das “capelinhas” e de interesses corporativos não terá ajudado na adopção de uma abordagem mais sistémica e pas­sível até de negociar cooperação internacional favorável, capaz de suprir os fracos recursos do país
na tarefa de assegurar a ligação entre as ilhas em qualquer cir­cunstância e também a seguran­ça das costas e o controlo efecti­vo da zona económica.
No BO de 31 de Maio de 2018 o governo instituiu o ser­viço de busca e salvamento ma­rítimo e aeronáutico. Segundo o decreto–lei o prestador des­se serviço deve ser a Guarda Costeira e o financiamento do mesmo deve vir de uma taxa de segurança marítima. Sen­do a Guarda Costeira parte das forças armadas e não uma força de segurança como a polícia ma­rítima não é claro que possa as­sumir completamente as outras funções da autoridade marítima designadamente de policiamen­tos dos mares e costas. Por outro lado, ficando limitado às receitas do fundo de segurança marítima para busca e salvamento que por lei também tem outros destina­tários como, por exemplo, servir para “eventuais indemnizações compensatórias pelo serviço público de transporte marítimo inter-ilhas” não é líquido que consiga de facto pôr-se à altura do que lhe é exigido.
É, de facto, da maior impor­tância sair do status quo actual que variadíssimas vezes já de­monstrou que deixa o país pra­ticamente indefeso perante as ameaças dos vários tráficos e sem meios e capacidade para responder às necessidades da população em situações de ca­tástrofe natural, naufrágios e emergências. Para isso, porém, é cada vez mais claro que o sistema de forças tal qual tem existido há mais de uma década não pode continuar. Não é eficaz, dificulta a coordenação do esforço nacio­nal e não potencia a cooperação internacional em domínios tão essenciais como sejam a segu­rança das populações e o exercí­cio da soberania sobre todos os pontos do território nacional e da zona económica exclusiva.
Ultrapassar os obstáculos para reformulação do sistema actual de forças não é porém fá­cil. Até parece que o sistema já aprendeu a contornar todas as tentativas de reforma. A oportu­nidade de transformação que um novo governo podia representar foi gorada quando se insistiu em deixar tudo como estava. As con­sequências
não podiam ser dife­rentes. Agora, para que o estado das coisas mude e se encontre saídas para os problemas de fun­do do país terá que haver um alto nível de consenso entre as forças políticas. Mas com a crispação política no rubro e a excessiva preocupação com ganhos políti­cos de curto prazo não fica muito espaço para os entendimentos estratégicos que o futuro do país exige. As incertezas que actual­mente não deixam ver com cla­reza o futuro exigem uma outra postura das forças políticas que mais enfase pusesse no que têm de comum do que exacerbar aquilo que as faz diferentes. Com essa nova atitude mais energia, motivação e foco se conseguiria mobilizar para fazer as reformas a todos os níveis que o país ur­gentemente precisa. Vamos fa­zer do 5 de Julho um dia em que, sem deixarmos de ser diferentes e de cultivarmos o pluralismo, reforcemos a unidade da nação na prossecução dos seus grandes objectivos de liberdade, justiça e prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.

segunda-feira, julho 02, 2018

Estará o sistema de governo em Cabo Verde a mudar?

A actuação dos diferentes protagonistas políticos nos últimos tempos deixa uma forte impressão que algo no sistema de governo está a mudar em Cabo Verde. O que se tomou como certo e garantido nos 25 anos da vigência da Constituição de 1992 quanto à configuração dos poderes do presidente da república, do parlamento e do governo já não parecem tão claros.
O protagonismo do presidente da república é cada vez maior, o papel do parlamento diminui a olhos vistos e o governo alterna, ora mostrando uma postura submissa ao PR, ora revelando arrogância na relação com o parlamento. O Primeiro-ministro há mais de seis meses que não se apresenta ao parlamento nem para as sessões de fiscalização do governo, mas com o presidente da república põe-se em situações que lançam dúvidas sobre quem realmente comanda a política interna e externa do país.
O sistema de governo cabo-verdiano sempre foi considerado como semipresidencial, mas com forte pendor parlamentar. Nesse sentido, nota-se que apesar de ser o PR a nomear o PM tendo em conta os resultados eleitorais, o governo só é politicamente responsável perante o parlamento. Por outro lado, a assunção plena de funções pelo governo deve ser precedida da aprovação de uma moção de confiança pela maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções. Com as funções e competências assim distribuídas é óbvia a centralidade do parlamento no sistema e, em particular, na fiscalização da actividade governativa assim como também é fundamental para o funcionamento do sistema o papel do PR como guardião da Constituição, árbitro e moderador do sistema, ficando o governo com a exclusiva responsabilidade de dirigir a política interna e externa do país.
As maiorias absolutas que resultaram das seis eleições legislativas já verificadas na II República nunca deixaram espaço para exercícios do poder de geometria variável pelo presidente da república, como aconteceu em outras paragens com sistemas semipresidenciais, que tiveram em algum momento de lidar com governos minoritários ou coligações frágeis. Por isso causa algum espanto as tendências actuais da evolução na relação entre os órgãos de soberania quando não há sinais de fragilidades na maioria que suporta o governo. Também não seria de esperar tensões entre o actual PR e o governo considerando que grosso modo resultam da mesma base eleitoral e o presidente se encontra no seu último mandato. A deriva no sistema do governo poderá ter razões específicas mas não deixa de manifestar sintomas já notados noutras paragens e que se caracterizam pelo descrédito das instituições representativas como o parlamento, pela atracção e vontade de sujeição a personalidades singulares indutoras de sentimentos e emoções extremadas nas pessoas e pela desconfiança em relação a instituições mediadoras como os partidos políticos e os mídias.
O que se vê em muitos países da Europa e também nos Estados Unidos da América e que fez renascer populismos de esquerda e de direita em várias democracias consolidadas também está-se a fazer sentir em Cabo Verde. Um sinal é a influência crescente do PR que se desdobra em múltiplos encontros e múltiplas deslocações no país e no estrangeiro na sua política de “estar junto das pessoas” . Está-se a transformar na figura providencial a que todos vão recorrer. Na semana passada, dia 19, recebeu a presidente do PAICV que segundo o post no facebook da presidência da república foi lá submeter para informação e apreciação dois projectos de lei que por sinal já estavam agendados para a sessão ordinária de 25 de Junho da Assembleia Nacional. Foi um acto insólito para um sujeito parlamentar contornar a sede própria de discussão e aprovação da legislação e também estranho para o PR que sabe que o momento de avaliação política dos diplomas aprovados no parlamento é o da promulgação. Em relação a outras matérias também abordadas pela líder, designadamente o acordo SOFA com os Estados Unidos da América, o PR “garantiu toda a atenção”. O encontro de ontem com o PM e o Ministro de Negócios Estrangeiros teve como um dos objectivos essa questão como publicita um post na página do Facebook do próprio PR. Curioso que todas estas démarches e também a crispação entre os partidos à volta de acordos militares poderiam talvez ser evitadas se discutidas em tempo e sede próprio no Conselho Superior da Defesa Nacional, presidido pelo PR, e composta pelo PM, membros do governo, o Chefe de Estado-Maior e três deputados representativos de todos os partidos presentes na assembleia nacional.
O afastar ou “bordejar” dos procedimentos há muito estabelecidos para tratar os assuntos da república não deixa de ser um grande motivo de preocupação para todos. Retira previsibilidade à acção colectiva do Estado, faz deslocar o exercício do poder para onde não é esperado, fragiliza as instituições e convida a protagonismos individuais que armados de agendas próprias e suportados pelo erário público desdobram-se em actos cujos custos podem ser conhecidos, mas os benefícios para o colectivo não se vêem claramente. A democracia é o sistema de governo em que o exercício do poder só é legítimo se se verificar em conformidade com a Constituição e as leis. Quem recebeu o mandato para o exercer deve poder prestar contas e considerar-se publicamente responsável pelas suas consequências. A transparência no exercício do poder garante que se está a seguir todos os procedimentos exigidos e que a responsabilidade de quem governa não está sendo diluída a ponto de a culpa morrer solteira e de interesses individuais, corporativos ou de grupo ficarem em posição de se apropriem dos recursos públicos sem que sejam impedidos.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 865 de 27 de Junho de 2018.

segunda-feira, junho 25, 2018

Facilitismo na legalização de imigrantes

A Assembleia Nacional vai na próxima semana discutir um projecto de lei apresentado pela maior força da oposição, o PAICV, cujo objecto é a regularização da situação de cidadãos oriundos da CEDEAO que se encontram em Cabo Verde sem autorização legal de permanência. No preâmbulo da lei o PAICV diz que avança com a iniciativa movido por “um imperativo moral e político, tributário de uma amizade especial” para com os imigrantes vindos da costa ocidental africana, uma amizade que remonta “à luta de libertação nacional”.
Ao procurar no texto fundamentação para a proposta constata-se logo nos primeiros parágrafos que não há um conhecimento real da situação da imigração no país. Assim no que respeita à dimensão do fenómeno simplesmente “estima-se em número elevado de cidadãos estrangeiros”; quanto à proveniência dos mesmos não há certezas mas “é percepção generalizada que muitos são originários da CEDEAO”; e quanto aos pedidos de legalização contenta-se com o facto de que “é de conhecimento público que existem muitos pedidos pendentes”. Sem dados concretos o proponente fica por estimativas, percepções generalizadas e suposições. Não parece que esse seja a melhor base para legislar. A complexidade da matéria deveria sugerir uma abordagem mais cuidada, mais suportada nos factos e mais ponderada nas medidas a serem tomadas considerando as consequências de eventuais maus passos numa pequena sociedade como Cabo Verde.
Assuntos tão importantes e delicados do Estado como é questão da imigração deviam merecer um outro tratamento das forças políticas, em particular das situadas no arco da governação, estejam elas no governo ou na oposição. Se o dia-a-dia do país não os desperta para a enormidade do problema e das dificuldades que pode causar, a observação do que se passa um pouco por todo o mundo, mas em particular na Europa e nos Estados Unidos da América, devia ser motivo para alguma cautela. Como se sabe, nesses países, a problemática dos migrantes e também dos refugiados já contribuíram para mudanças na política nacional e na configuração das forças políticas. O mesmo tem acontecido no processo de emergência do populismo e de derivas iliberais acompanhadas de manifestações de xenofobia, de racismo e de intolerância. Também os países de passagem dos migrantes não ficaram incólumes. A corrupção e o crime alimentados pelo tráfico humano tendem a perpetuar a instabilidade, a insegurança e guerras sectárias que dilaceram essas sociedades. Questões como migrações internas ou fluxos exteriores não deviam ser tratadas de ânimo leve ou servir de pretexto para exibições de populismo e confrontos demagógicos. As consequências desses exercícios nem sempre são controláveis e quase sempre deixam marcas profundas na memória colectiva.
Cabo Verde, neste momento, depara-se com fluxos internos de pessoas sob pressão do exterior. Para além das costumeiras movimentações em direcção às cidades de Praia e Mindelo a procura turística vinda do estrangeiro introduziu uma nova dinâmica no fluxo inter-ilhas focando-se essencialmente sobre as ilhas que menos população tinham. O caso paradigmático é o da ilha da Boa Vista que antes de ser o destino procurado pelos grandes operadores turísticos tinha cerca de 4 mil habitantes. Em menor grau, o mesmo aconteceu com a ilha do Sal. Mas, como não se pode desenvolver actividade económica sem mão-de-obra, era óbvio que milhares de pessoas das diferentes ilhas iriam deslocar-se para onde poderiam conseguir trabalho. Só foi aparentemente surpresa para o governo de então que tardou em identificar os múltiplos e complexos problemas de fazer crescer a população na ilha sem fazer os investimentos públicos indispensáveis, sem um ambiente de negócios e um mercado de trabalho devidamente regulados e sem a sensibilidade necessária para preservar o legado histórico-cultural que cada ilha soube construir ao longo dos séculos. E como foram sistematicamente empurrados para debaixo do tapete os problemas persistiram, amplificaram-se ainda mais e afectam o destino dessas pessoas na forma como se vêem a si próprios e como interagem com os outros. Resolvê-los de uma forma compreensiva e abrangente dificilmente iria compadecer com iniciativas avulsas como o que parece ser esta regularização de imigrantes ilegais. Aliás, este é um problema em grande parte criado por omissão e pela incapacidade de desenvolver e implementar uma estratégia de mobilização e formação de mão-de-obra qualificada que o país, e em particular algumas ilhas, tanto precisavam.
As razões e fundamentações para a apresentação do projecto-lei mostram como sectores da classe política ainda continuam “distraídos” quanto às questões fundamentais que se colocam ao país. O foco em ganhos de curto prazo junto ao eleitorado ou à custa de quem governa mantém-se como objectivo pessoal e partidário dos líderes. Nem o facto de o mundo à volta estar a dar sinais de se desmoronar sob o impacto dos sucessivos desafios que as políticas do presidente Trump tem colocado à ordem mundial consegue alterar isso. Ninguém aparentemente se incomoda que o mundo, marcado pelo apego ao primado da lei, pela defesa da democracia e dos direitos humanos e pela promoção do comércio livre entre as nações e que propiciou prosperidade a uma parcela importante da humanidade em todos os continentes, poderá estar em perigo com os assaltos sucessivos protagonizados por Donald Trump e por muitos outros políticos populistas que aparecem por aí.
Na estreiteza de visão que faz escola em Cabo Verde, as guerras comerciais e as zangas entre as grandes potências do G7 não afectam a ninguém. O país parece “blindado” a isso. Esquecem porventura que as instituições internacionais que canalizam a ajuda ao desenvolvimento também são produtos dessa mesma época da PAX Americana. Com ataques a partes fundamentais não há que espantar se todo o edifício se desmorona. Há que se preparar para todos esses cenários num ambiente em que a política não pode só ficar por ganhos de curto prazo, por iniciativas como a da regionalização e, agora, a da regularização de ilegais que muito dificilmente vão resolver os problemas do país. Há que dar o salto e ver que problemas seculares como a seca persistem e que só com uma outra atitude de todos, na democracia e respeitando o pluralismo mas procurando o bem geral, se poderá equacionar e respondê-los a contente de todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 864 de 20 de Junho de 2018.

terça-feira, junho 19, 2018

Banhos de realismo precisam-se

O Primeiro-ministro Ulisses Correia Silva esteve nas duas últimas semanas ausente do país, primeiro nos Açores no quadro de um encontro dos arquipélagos da Macaronésia e logo de seguida em visita oficial a São Tomé e Príncipe.
 Curiosamente de entre as conclusões dos encontros realizados nos dois momentos sempre se destaca a necessidade da criação de condições para a livre circulação de pessoas e bens e o estabelecimento de tráfico aéreo e marítimo ligando os diferentes arquipélagos. São passos considerados vitais para se atingir os objectivos de uma aproximação maior entre os diferentes espaços e de diversificação das relações económicas. Propõe-se o mesmo quando se fala em reforçar a integração de Cabo Verde no espaço da CEDEAO. O problema é que se passou anos a repetir esse discurso e nada de significativo acontece. E a razão é simples – não há movimento de pessoas nem de mercadoria que justifique a manutenção de tráfico aéreo e marítimo regular entre os diferentes espaços. Nem também o futuro a médio prazo augura um incremento nas transacções que viabilize as rotas criadas.
A realidade do que é o comércio entre os arquipélagos e do que potencialmente poderá atingir não parece afectar o discurso oficial que sistematicamente é proferido nessas circunstâncias. Repetem-se as propostas mesmo que no fundo se saiba que dificilmente se vão traduzir em algo real e sustentável. Não é por acaso que a questão da subsidiação das rotas que devia acompanhar qualquer discurso realista nesta matéria é recorrentemente omitida. Ouvindo os políticos, fica-se com a impressão que a simples manifestação de vontade em fazer é suficiente e que a partir daí o mercado se encarregaria de dinamizar a vida económica, aumentar as transacções e acelerar a circulação e o intercâmbio das pessoas nesses diferentes espaços geográficos. Age-se diferente quando a política não é oca e não se pretende criar narrativas ilusionistas, mas pelo contrário se procura com infraestruturas, investimentos e mercados potenciar o que está latente e pode florir no ambiente certo.
Recentemente foi notícia um arranjo das autoridades portuguesas para assegurar a ligação Funchal/Porto Santo no arquipélago da Madeira. No processo foi instituído o serviço público, concessionado a rota à Binter Canárias na sequência de concurso público e o governo português alocou o valor de 5,6 milhões de euros para compensar a operadora por operar entre as duas ilhas com a frequência estabelecida em contracto e praticando tarifas diferenciadas para nacionais e estrangeiros. Não se deixou a companhia à mercê do mercado ou que inventasse formas de se compensar pelas perdas que as rotas praticadas eventualmente produzissem ao mesmo tempo que se lhe exigia na prática um serviço público. Tal aconteceu com a TACV que só viu reconhecer a existência de rotas no serviço doméstico com baixa densidade de tráfico num resolução do governo anterior, publicada dez dias antes das eleições de 20 de Março de 2016 (Resolução nº 24/16).
Em Cabo Verde, talvez porque os governantes sempre se sentiram tentados pelo ilusionismo na política, é demasiado frequente as manifestações de falta de realismo na enunciação de políticas públicas. Não se dá muita atenção à relação custo/benefício e isso faz com que o país em muitos aspectos se transforme num “cemitério” de projectos que custaram milhões, mas pouco retorno geraram para além do efeito dos gastos em salários e compra de bens. Quando a governação persiste na sua falta de realismo, as consequências são muitas vezes catastróficas como foi o caso da TACV. Globalmente os efeitos são sentidos na pesada dívida pública, no crescimento muito aquém do desejável, nos níveis altos de desemprego em particular entre os jovens e os mais escolarizados, na baixa produtividade e também na falta de competitividade externa. Pela insistência nos discursos tendo como palco a Macaronésia, a CEDEAO e por último São Tomé e Príncipe vê-se que a política no país ainda não prima pelo realismo e continua a singrar pelos caminhos que já mostraram não serem os melhores.
Sentimentos, eleitoralismo e pensamento mágico continuam a marcar o discurso político. Se mais nenhuma outra razão houvesse para se deixar para trás políticas de ilusionismo, a realidade do mundo de hoje deveria ser razão suficiente. Vive-se uma nova era em que a confiança nos políticos e nas instituições é cada vez mais precária, em que se espera o rápido cumprimento das promessas eleitorais e em que a nível individual quer-se a gratificação quase instantânea das expectativas. Deixar-se apanhar pela sua própria retórica é o pior que pode acontecer a um governo. As dificuldades com o programa de mitigação dos efeitos da seca é um exemplo de como expectativas criadas nas pessoas chocam com o possível e o racional desejáveis em anos de escassez extrema de água e pasto. Falhas na comunicação ou comunicação enviesada pelo ilusionismo endémico na política cabo-verdiana alimentada pela excessiva publicidade dada aos donativos internacionais criou a missão impossível da salvar “todo o gado”. Perante esse objectivo inatingível as acções do governo vão sempre ficar aquém das expectativas dos criadores e o espaço político para se tomar medidas para prevenir situações similares de seca no futuro será sempre limitado pela tentação da oposição de aproveitar a vulnerabilidade do governo na matéria para o expor e o fragilizar.
Uma outra área onde a falta de realismo na condução de políticas poderá ser prenhe de consequências é no domínio do transporte marítimo. Diferentemente do que aconteceu com o tráfico aéreo em que a TACV deixou o mercado para um operador com capital estrangeiro sem que fosse estabelecido os termos do serviço público, para o transporte marítimo esse serviço é estabelecido imediatamente e a concessão do mesmo é para um único operador. O Estado faz exigências importantes ao futuro concessionário designadamente quanto ao número e idade dos navios mas não há sinal que irá compensar o mesmo pelas rotas não rentáveis. O realismo deveria forçar a que se tivesse sempre em consideração os problemas de escala quanto ao volume de carga e o número de passageiros que se colocam a um pequeno país de pouco mais de quinhentos mil habitantes e dividido em 9 ilhas habitadas. Os privados no transporte marítimo nacional já convivem com o problema actualmente e imagine-se como vai ser com um concessionário único. A coabitação entre eles irá manter-se? O Estado vai subvencionar certas rotas? Ninguém parece saber. Em tal ambiente vir ainda propor a criação de outras rotas (CEDEAO, S. Tomé) que necessariamente terão de ser subsidiadas não parece ser realista nem razoável. Não se pode ficar eternamente à espera que outros paguem a nossa falta de realismo.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 863 de 13 de Junho de 2018.

sexta-feira, junho 15, 2018

Tempos conturbados

Os tempos continuam conturbados. Incerteza, falta de confiança e desesperança de camadas expressivas da população nas democracias vêm produzindo fenómenos complicados.
As causas seriam, entre outras, o aumento da desigualdade social, os efeitos da globalização do mercado de trabalho e a incapacidade das sociedades em propiciar vias para a satisfação de expectativas individuais criadas em paralelo com a conectividade crescente do mundo via redes sociais. Em consequência, para além das já habituais surpresas que a América de Donald Trump brinda o resto do mundo quase todos os dias, assistiu-se nos últimos dias em Espanha às peripécias da queda do governo e ao ballet dos partidos populistas de extremos opostos na formação do governo italiano. Em todos esses casos as instituições dão sinais de querer soçobrar sob o impacto da corrupção, a polarização do discurso político abre caminho para o tribalismo político, e a tentação autoritária da democracia, tal qual um tsunami, vai-se propagando sem se deixar notar até que se torne inevitável e tudo varre numa onda populista.
Cabo Verde vive também estes tempos e isso foi notório nos últimos dois anos nas múltiplas manifestações e passeatas realizadas nas diferentes ilhas, nas frustrações ventiladas nas redes sociais, em sondagens e em estudos de opinião e nas críticas dirigidas à classe política acompanhadas de especial sensibilidade em relação a qualquer sinal de abuso, apropriação ou má utilização de bens e recursos públicos. Há quem veja nessa nova disponibilidade das pessoas em dar a conhecer a sua posição face aos problemas do país a prova que está-se agora mais livre para opinar, participar e contestar posições do governo. A realidade, porém, é que, de facto, em termos de sentimento e emoções em relação aos políticos, aos partidos e a indícios de corrupção, muito mudou. Anos seguidos de ilusionismo político deixaram as pessoas frustradas e deram lugar a acelerado cepticismo e descrença por não cumprimento em tempo quase imediato das promessas feitas. Isso não chega para explicar a deterioração rápida da confiança das pessoas no próprio sistema eleitoral e nas instituições democráticas. Deve haver algo mais a trabalhar e que encontra correspondência em outras democracias. Os fenómenos de descrença são similares assim como também o são a tendência para ceder a propostas populistas e a um mal escondido fascínio por políticos com tiques autocráticos, mesmo para aqueles que não se apresentam como “animais ferozes”.
O colunista e autor David Brooks do jornal New York Times aponta entre as razões para a estranha situação de descrença do homem e cidadão moderno o facto da sociedade ter resvalado para um ponto em que se deixou de avaliar as pessoas pelo seu carácter e passou-se a concentrar no sucesso conseguido independentemente da forma e meios utilizados. Com isso, na sua opinião, a sociedade desmoralizou-se deixando de haver sistemas morais que restabeleçam a harmonia entre as pessoas, as instituições passaram a ser simplesmente um meio para se conseguir certos fins e manifestações de narcisismo tornaram-se cada vez mais frequentes alimentadas em particular pelas redes sociais, o culto de celebridades e a exploração sem pudor de emoções e sentimentos das pessoas para ganho pessoal. Nessas condições, a luta pela afirmação pessoal, que naturalmente contraria o tipo de cooperação entre as pessoas, a começar pelo dever cívico de participação na comunidade que o desenvolvimento do mundo de hoje exige, também mina as instituições existentes que são essenciais para se garantir a democracia e não permite que se crie convergência política suficiente para, na diversidade e pluralismo, se realizar o interesse público.
Em Cabo Verde, o multiplicar de intervenções públicas de personalidades políticas em quase todas actividades que se fazem no país não consegue mudar a percepção pública da fragilidade das instituições. No Afrobarómetro os cidadãos queixam-se da falta de diálogo ou da falta de acesso a políticos não obstante as visitas, as mesas redondas, os workshops, fóruns, socializações etc., que acontecem por todo o país. E certamente que não se vai corrigir a falha e melhorar a situação pela via de aumento desses eventos. O que deixa as pessoas na mesma desemparadas, sem a satisfação de sentirem que foram ouvidas e as suas preocupações devidamente consideradas, vem em boa medida da tendência crescente dos governantes e políticos em geral em realizar a sua agenda própria em detrimento da função institucional. Os perigos dessa forma de fazer política é que quase sempre tende a resvalar para o populismo e a demagogia e, não poucas vezes, tem que recorrer à corrupção para manter os fiéis à sua volta e prontos para serem lançados em combates políticos futuros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 862 de 06 de Junho de 2018.

Humberto Cardoso

segunda-feira, junho 04, 2018

Realismo e pragmatismo na governação

Nesta última semana falou-se do Acordo Cambial, da liberalização de capitais e até da euroização. O pretexto foi a comemoração dos 20 anos do acordo que estabelece o “peg” fixo do escudo cabo-verdiano com o euro.
Também na semana em que se celebrou o Dia da África, 25 de Maio, e os 43 anos da criação da CEDEAO, foi trazida à baila a possibilidade da adesão de Cabo Verde à união monetária no espaço da sub-região africana e a importância crucial para o futuro do país que seria a integração económica de Cabo Verde nessa comunidade. Algo insólito, nesses dois momentos que parecem configurar opções diferentes, houve manifestações de entusiasmo de personalidades oficiais, políticos e académicos. Aparentemente, num evento regozijavam-se com o sucesso do acordo cambial e, e no outro, mostravam-se entusiastas em avançar para um cenário em que Cabo Verde integra uma outra união monetária com países com os quais as suas transacções anuais não conseguem ultrapassar 5% da totalidade do seu comércio internacional.
A atitude assim demonstrada não parece primar-se pelo realismo e pragmatismo que deve caracterizar a gestão das questões do Estado, em particular na relação com outras nações. Factores como a ideologia, sentimentalismos diversos e questões identitários dão a impressão de sobreporem-se à realidade dos factos evidentes nas limitadas transacções económicas, nos relativamente raros intercâmbios culturais e académicos e no pouco espaço para protagonismo no seio da comunidade, como ficou demonstrado recentemente na corrida para a presidência da Comissão da CEDEAO. Só assim se compreende que, apesar de tudo o que aconteceu, em vez de se acautelar os interesses do país, lança-se numa ofensiva para integração, compreendendo a criação de um cargo ministerial para o efeito, abertura de embaixada em Abuja e maior abertura para acomodar imigrantes provenientes da sub-região.
Continua-se a propalar que a CEDEAO constituiu um mercado de 300 milhões de pessoas, que Cabo Verde tem uma posição estratégica única para o “transhipment” na região e como “hub” aéreo, que é ideal para oferecer serviços como praça financeira e que pode ser a via para entrada de investidores no espaço da comunidade. Nem a afirmação de Jean-Paul Dias a este jornal a reduzir os trezentos milhões a vinte milhões, ou a realidade do movimento nos portos e aeroportos de Dakar e das Canárias, ou ainda a pequena dimensão do nosso sistema financeiro e os sinais claros de fraco conhecimento das regras no seio da comunidade parecem suficientes para temperar o entusiasmo dos governantes e políticos. Ao país convém explorar e desenvolver relações com os estados vizinhos, mas para isso deve poder optar por políticas realistas e efectivas e saber sempre pôr em perspectiva o interesse comum. Não é fazendo mais do mesmo das últimas quatro décadas que se vai alterar a situação actual caracterizada pelo comércio regional fraco e pela interacção limitada que se constata a todos os níveis. Simplesmente subsidiando mais uma vez barcos e aviões não se vai aumentar a quantidade de carga e passageiros entre Cabo Verde e os países da CEDEAO. Há que fazer muito mais.
O foco excessivo e deslocado na questão da integração na CEDEAO contrasta com a falta de foco e sentido de urgência que se faz sentir sobre os problemas da ilha do Sal e na Boa Vista. As manifestações da população nas duas ilhas deixam perceber que, em particular, no que respeita à segurança, saúde e habitação não se fez o suficiente para reverter a situação que vinha de anos atrás. Diferentemente do que se passa com as relações com a CEDEAO em que a economia e a vida de muitos milhares de cabo-verdianos não depende do que ali é transaccionado, nas ilhas do Sal e da Boa Vista estão uma boa fatia da economia cabo-verdiana e a base de muitos milhares de empregos, tanto aí como nas outras ilhas. Toda a atenção do governo deve ser para dirigida para as estabilizar, criar as melhores condições de vida e de enquadramento da população de modo a potenciar os seus recursos naturais e seu capital humano. A aposta do país no turismo como um dos motores principais da sua economia obriga a que investimentos sejam feitos com a necessária urgência onde já acontece e onde tem maior potencial de crescer, de criar empregos e de eficazmente arrastar a economia nacional. A estratégia para aumentar os fluxos turísticos não deve ser deixada só para os actuais e futuros operadores. O país deve ter a sua própria estratégia e ser pro-activo em orientar o turismo para onde o impacto sobre toda a economia seja maior e os efeitos nos rendimentos e qualidade de vida sejam mais imediatos e mais profundos. É evidente que para isso recursos não devem ser desperdiçados e a atenção de governantes não deve desviar-se para objectivos que para serem atingidos vão exigir muito tempo e muito investimento mas sem garantia razoável que o retorno justifique todo o esforço despendido. Há de facto que priorizar no interesse do país e não ir atrás de sentimentos e ideologias datadas.
A complexidade dos desafios do desenvolvimento de Cabo Verde obriga, em particular, na encruzilhada em que se encontra, a que se dê particular atenção à necessidade de manter a estabilidade governativa, a confiança das pessoas nas instituições e o sentido do colectivo e do bem comum. Para isso é essencial a realização prática dos princípios e valores da democracia e do pluralismo que foram instituídos na segunda república. Liderar não pode significar subtrair-se ao exercício desse pluralismo e pôr-se acima ou abaixo do que é exigido nas relações entre as instituições, a sociedade e as pessoas. Imprescindível é pois o papel de um parlamento representativo dessa pluralidade de opiniões e da diversidade de interesses, um papel que os mídias e outros fóruns podem complementar mas nunca substituir. Pelo exercício do contraditório é que se evita cair na tentação de certa ideologia que retira realismo e pragmatismo na condução da governação, que se contornam os custos escondidos da gestão autocrática e sem transparência e que se mantém clara a responsabilização política e bem viva a possibilidade de alternância política. Mais do que nunca é desse jogo democrático que o país precisa.
Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 861 de 30 de Maio de 2018.

segunda-feira, maio 28, 2018

Não confundir as prioridades

Discursos do governo e dos partidos políticos na Assembleia Nacional e também de outros sujeitos políticos sistematicamente deixam transparecer a importância crucial da descentralização e da regionalização no desenvolvimento de Cabo Verde.
Pela ênfase que põem na matéria presume-se que a consideram não só como condição sina qua non para o sucesso futuro do país como também uma das primeiras prioridades senão mesmo a principal prioridade. As iniciativas legislativas do governo e da principal força de oposição que já deram entrada no parlamento dão sinal da vontade em avançar ainda que com diferenças quanto ao modelo, distribuição de competências pelos vários poderes e necessidade ou não de se operar uma grande reforma do Estado concomitantemente com a implementação da regionalização preconizada. O debate parlamentar desta sessão de Maio sobre a descentralização também é manifestação dessa vontade em manter o assunto bem vivo na mente dos eleitores. Pelos resultados e animosidade manifestada entre as partes ao longo do debate não é porém muito auspicioso quanto à possibilidade de se chegar aos acordos e compromissos necessários para a sua concretização.
Autonomia do poder local e descentralização da administração pública são princípios constitucionais que devem presidir a organização do Estado democrático e que importa operacionalizar da melhor forma para que os interesses específicos das populações organizadas em autarquias sejam reconhecidos e respeitados e que a máquina do Estado na sua tarefa de servir os cidadãos o faça com eficiência e eficácia, sem discriminação e garantindo igualdade de oportunidades. A dificuldade em aplicar esses princípios vem de longe. No pós-independência, o regime de partido único, por natureza centralizador, e o modelo de desenvolvimento adoptado baseado na estatização da economia e na reciclagem da ajuda externa exacerbaram a herança da centralização recebida do regime colonial. Quando finalmente nos anos noventa da democracia se verificou a restauração das câmaras municipais e a institucionalização do poder local eleito já se mostrou difícil reverter a onda do centralismo. Nem o esperado impacto da liberalização económica na dinamização das ilhas e na ascensão de uma sociedade civil autónoma conseguiu sobrepor-se aos efeitos socioeconómicos causados pela dependência externa que depois internamente se traduzia nas múltiplas dependências do poder centralizado a partir da capital do país.
As dificuldades de vária ordem, ideológicas ou outras, encontradas em operar uma verdadeira reorientação económica do país acabaram por acumular-se e criar frustração e ressentimentos que no ambiente político do eleitoralismo fácil foram canalizados para conseguir apoio político sob o argumento que uns tiram a outros o seu quinhão e que é imperativo para o desenvolvimento fazer a redistribuição dos recursos sem a correspondente preocupação com a produção. Com isso, infelizmente a matéria da descentralização e da regionalização passa a dominar a vida política e partidária não porque se reconhece que é essencial para a integridade do Estado de Direito democrático ou para se conseguir melhor ambiente de negócios ou ainda dar às comunidades de todo o país oportunidade para realizarem o seu futuro com autonomia, mas sim por ganância política. Ouvindo as muitas propostas que neste âmbito são avançadas, percebe-se que os objectivos de todo esse exercício político, apesar de todo o discurso feito, prendem-se com a necessidade em manter e conservar bases eleitorais. Ainda não se moveu para o centro da atenção de todos a necessidade de liberar as pessoas para construírem o seu próprio futuro e não deixá-las presas nas malhas que sistemas de dependência tendem a alimentar e a perpetuar.
Não estranha pois que dificilmente se chegue a acordo ou que se firmem compromissos quanto ao melhor caminho para realizar a descentralização ou a regionalização. Todos querem ganhar à cabeça e ao longo do processo. Com esse objectivo em mente todos os argumentos são válidos para se manter acesas as paixões dos grupos de apoio. Na generalidade das democracias, ataques a políticos tornaram-se corriqueiros, críticas devastadoras são feitas às instituições e o cinismo é abertamente cultivado em relação às políticas dos governos. Ninguém parece escapar à tentação de agitar sentimentos anti-partido, atacar o parlamento como órgão de mediação política e apontar a actuação dos governantes como distantes do real sentir do país e portanto de legitimidade duvidosa. Tanto assim é que, seguindo essa corrente e em nome da regionalização já se propõe diminuir o número de deputados, mudar o sistema eleitoral para se ter círculos uninominais, combater o partidarismo com primárias, com enfraquecimento de disciplina partidária e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de candidaturas nas legislativas. Em simultâneo faz-se apologia de práticas na actuação política como “estar junto das pessoas”, ouvir as pessoas e estar atenta às vozes expressas nas redes sociais sem mediação de qualquer tipo.
A realidade demonstrada pelo Afrobarómetro é que, não obstante as alterações já em curso, a democracia não está bem. A apreciação maioritária traduzida nas sondagens que vieram a público é que as pessoas estão insatisfeitas com a democracia e não se sentem ouvidas ou tidas em devida consideração pelos representantes do Estado. Tal apreciação deixa entender que afinal toda essa tendência para os políticos se comportarem como celebridades com voz própria, fraca ligação partidária e grande proximidade das pessoas não contribui muito para melhorar a confiança na democracia. Pelo contrário, poderá estar a piorar a situação com o ambiente quase caótico que se vai criando em que pessoas com um cargo já parecem ter uma agenda própria para se posicionarem para outro cargo público, e em que tiques narcísicos normalmente encontrados em celebridades aparecem com facilidade e em que não é muita a disponibilidade para mostrar coerência na actuação política, prejudicando no processo a procura da verdade e a capacidade para fazer os compromissos necessários para se atingir os grandes objectivos do país.
Cabo Verde no ponto em que se encontra não deve confundir as suas prioridades e não deve assumir que tem o tempo todo para soltar-se das amarras que dificultam crescimento rápido e criação de emprego. Deve sim poder construir consensos, acordos ou pactos de regime que favoreçam a consolidação das instituições democráticas e a reforma no sentido de maior eficácia em sectores-chave como a segurança e justiça.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 860de 23 de Maio de 2018.

segunda-feira, maio 21, 2018

Agir agora para não adiar o futuro

A dívida pública de Cabo Verde no montante de 2.150 milhões de dólares correspondeu em 2017 a 125% de Produto Interno Bruto. De 2016 para 2017 o PIB caiu de 130% para 125% do PIB devido a uma maior dinâmica económica que se traduziu num crescimento de 3,9%, superior à média de 1% dos cinco anos anteriores. Uma dívida de tais proporções é certamente preocupante e exige do governo respostas consistentes no quadro de estratégias que ajudem a manter a confiança no país enquanto condição indispensável para atrair investimentos e criar melhor ambiente de negócios. O quiproquó da semana passada à volta das declarações do primeiro-ministro e do vice-primeiro-ministro tem a ver com a necessidade e a urgência do país em traçar essa estratégia e em como engajar o FMI e eventualmente outras organizações internacionais para conseguir esse objectivo.
O acordo cambial em vigor desde 1998 exige para a sua sustentabilidade uma adesão firme do país aos critérios de Maastricht que estipulam a dívida pública até 60% e o défice orçamental até 3% aos países ligados ao euro. Em 2008, a dívida pública cabo-verdiana situava-se em 57% do PIB. Nos anos que se seguiram escalou rapidamente atingindo 91% em 2012 e 126% em 2015. O governo do PAICV justificou o rápido endividamento como necessário para se fazer face à crise financeira mundial de 2008 e também para construir as infraestruturas necessárias para uma rápida modernização do país. Insistiu sempre que as condições da dívida eram concessionais e por isso sustentáveis a prazo. Não se cansou de prometer que na sequência do investimento público verificar-se-ia o “crowding in” do investimento privado que levaria a uma economia dinâmica com taxas de crescimento mais elevadas e mais criação de emprego. Ao contrário do prometido, viveram-se anos de estagnação económica e alto desemprego ao mesmo tempo que o sector privado nacional atolava-se cada vez em dívidas e não conseguia aproveitar as oportunidades criadas por investimentos no turismo nas ilhas do Sal e da Boa Vista.
A economia de Cabo Verde sempre sofreu de um desequilíbrio estrutural derivado da sua fraca capacidade de produção e de exportação. Sem suficientes divisas para pagar as suas importações, precisa de fluxos externos, designadamente remessas dos emigrantes e ajuda externa para as compensar. Por outro lado, sendo um pequeno país com população diminuta e fraca capacidade de poupança, para poder crescer e criar emprego precisa de investimento directo estrangeiro, que trazendo capital, tecnologia e mercados lhe permita explorar recursos naturais, valorizar a posição geográfica e potenciar o capital humano existente. O problema do país é que passados mais de quatro décadas após a independência ainda não resolveu o seu desequilíbrio básico. A opção por um desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa impediu que se desse suficiente atenção à questão central que é a atracção de investimento para o país poder criar riqueza e exportar bens e serviços. Devia ser evidente que persistindo nesse caminho o “ajuste de contas” acabaria por se verificar um dia quando as ajudas diminuíssem e ainda não houvesse suficientes receitas de exportação para repor os equilíbrios.
Quando aconteceu, a opção não foi de rever o modelo de desenvolvimento, mas de persistir nele recorrendo agora ao endividamento externo para compensar a perda de donativos. Justificando que os créditos eram concessionais, beneficiando de juros bonificados ou prazos dilatados de pagamento, os governantes apressaram-se a utilizá-los, mas sem se preocupar com a relação custo/benefício na selecção dos projectos e muito menos se os projectos tinham custos escondidos em forma de cláusulas que privilegiavam empresas estrangeiras nas grandes obras ou forçavam a compra de uma boa parcela dos materiais no país concedente do crédito. Aparentemente o que lhes interessava, de facto, eram os ganhos políticos à volta das obras que iam anunciando e inaugurando um pouco por todo o país. Pareciam não se importar com o fraco impacto dessa obras na criação de emprego e na dinamização da economia, nem com a implosão do sector nacional de construção civil e nem também com o facto de os vários clusters que iam suportar-se nessas infra-estruturas não se terem materializado. Muitos milhões foram gastos. Registam-se hoje como um passivo na extraordinária dívida externa que põe Cabo Verde entre os países mais devedores do mundo, mas os retornos obtidos desses investimentos são comparativamente demasiados parcos.
Num encontro recente com as autoridades a propósito da política de investimento, especialistas da UNCTAD recomendaram que Cabo Verde tem de ser mais pró-activo na atracção do investimento estrangeiro. Insistem em que o país não tem que ficar pelas propostas dos investidores e que deve activamente promover o tipo de investimento que “pode melhor contribuir para os seus objectivos de desenvolvimento”. De outra forma, como dizem, não há diversificação da economia e o desenvolvimento do sector empresarial local fica limitado. Esta constatação dos especialistas quanto à importância do investimento directo estrangeiro devia ser evidente para todos. Só não é, porque no fundo continua-se a privilegiar as políticas de sempre de reciclagem de ajuda externas mas apresentadas em cada momento com as roupagens ajustadas aos tempos no estilo como se diz na gíria “para inglês ver”, enquanto tiques autárcicos, hostilidade a turistas e a investimentos estrangeiros são sub-repticiamente alimentados.
a encruzilhada em que se encontra, a opção em manter o país num caminho similar ao que tem percorrido não é desejável, nem sustentável. As ajudas diminuíram, a dívida pública é extremamente pesada e não devia haver espaço para mais sessões de ilusionismo. A tentação de voltar a repetir o que se fez no passado, mas com diferentes argumentos e escusas é porém muito grande. O problema é que desta vez a margem já é demasiado pequena e os custos de mais uma vez se adiar o país demasiado grandes. Não é fácil deixar de pensar pelos mesmos pressupostos, de exercer o poder sempre da mesma maneira e de manter uma posição passiva e reactiva na governação em vez de se optar por uma pro-actividade e uma abordagem estratégica na condução do país. Mas é isso que terá que ser feito para que o futuro não seja sistematicamente adiado.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 859 de 16 de Maio de 2018.

segunda-feira, maio 14, 2018

Isenção de vistos, medida fracturante

Na sequência do Conselho de Ministros da quinta-feira passada, o porta-voz do governo anunciou que a isenção de vistos para cidadãos da União Europeia e do Reino Unido irá vigorar a partir de Janeiro de 2019. A medida foi inicialmente apresentada ao público pelo próprio Primeiro-Ministro em Abril de 2017. A ideia então era que a medida seria efectiva no mês seguinte. Não foi possível e adiou-se para Janeiro de 2018. Adiamentos posteriores para Maio de 2018 e agora para 2019 deveram-se a questões operacionais levantadas pelos operadores turísticos políticos e ao que recentemente a embaixadora da União Europeia chamou de condições técnicas necessárias. Se logo do início a proposta de isenção de vistos não foi bem aceite, em particular em certos círculos de opinião sensíveis a questões identitárias, com o passar do tempo a percepção geral é que piorou. A sondagem do Afrobarómetro publicada em Abril estimou que uma maioria de 58% dos cabo-verdianos seriam contra a isenção de vistos a turistas europeus. No meio de tanta hostilidade há quem pergunte se realmente os sucessivos adiamentos devem-se a questões operacionais ou se são sinais de recuo ou de pelo menos de alguma hesitação do governo na sua implementação.
O objectivo da isenção de vis tos, de acordo com o PM, é “criar todas as condições para potenciar ainda mais o turismo e o investimento” com a eliminação de barreiras que normalmente colocam à livre circulação. Aparentemente não devia haver dúvidas quanto à necessidade de o país facilitar a vinda de capitais e conseguir aumentar o fluxo de turistas. Podia-se discutir se a melhor via é a isenção de vistos ou se as barreiras são na realidade burocracias e serviços ineficazes. Não se tinha que pôr em causa o objectivo de potenciar os
ingredientes essenciais para acelerar o crescimento do país, criar com rapidez postos de trabalho e possibilitar economias de escala a empresas nacionais envolvidas na produção de bens e serviços. Estranhamente, foi precisamente o que aconteceu e acontece sempre que a questão da isenção dos vistos é trazida para discussão. Prefere-se discutir porque é que
o cabo-verdiano tem de facilitar o visto ao turista, investidor ou homem negócios europeu, quando a mesma “gentileza” não lhe é estendida para entrar na Europa. Não se quer entender que para se ser bem-sucedido na relação com outros países há que adoptar estratégias diferenciadas, aceitar que nem tudo vai à mesma velocidade e que prioridades divergem e mudam com o tempo.
Em 1998, por exemplo, não se falou de reciprocidade quando se estabeleceu o peg fixo do escudo ao euro, mas é facto que com essa decisão unilateral o país ganhou anos de baixa inflação, granjeou confiança que lhe permitiu atrair investimento externo e conseguiu
manter a estabilidade macroeconómica enquanto duplicava o seu PIB. Hoje também há que assumir que há uma estratégia para atrair investimentos e turistas e deve haver outra para conseguir a aproximação com a Europa num quadro de livre circulação. Assim como outros países africanos insulares como as Maurícias e as Seicheles já conseguiram isenção de vistos para Europa também Cabo Verde atingirá esse Iobjectivo se tiver uma estratégia para isso e souber tomar as medidas que se impõem para designadamente “securitizar” as suas fronteiras. De outra forma o ressentimento contra os europeus só irá aumentar, prejudicando todo o esforço de desenvolvimento do país, inibindo o crescimento económico e impedindo a criação de postos de trabalho que, com novos investimentos e o aumento da procura interna devido ao consumo de turistas, seria possível conseguir.
A dificuldade em ver o óbvio nesta matéria deve-se em grande parte ao logro que de há muito os cabo-verdianos e, em particular, os que aspiram a emigrar, têm caído devido às omissões e meias verdades nas declarações dos governantes em matéria de isenção de vistos. É prática generalizada os países através de isenção de vistos facilitarem a homens de negócios, turistas, investidores, cientistas e outros estadias de curta duração de 30 ou 90 dias. Não são vistos para emigrar nem autorizações de residência ou permissão de trabalho, mas num país com tradição de emigração podem ser tidos como um expediente para emigração clandestina. Se essa interpretação nunca é, de facto, contrariada e, em sentido oposto, nas entrelinhas dos seus discursos, os governantes sistemática e disfarçadamente deixam entender que assim é,
mesmo quando assinam acordos de mobilidade com a União Europeia que os obriga a aceitar gente deportada na sequência de processos acelerados para fazer face à emigração ilegal, então o problema perpetua-se. Não tarda que venham acusações de discriminação ou de racismo e que o ressentimento desponte.
Se a discussão à volta da isenção dos vistos ficasse só pelas estratégias a seguir na consecução dos objectivos seja quanto ao investimento e turistas, por um lado, e livre circulação, por outro, e não fosse alimentada por equívocos, seria relativamente fácil ultrapassá-los como maior e melhor informação. A realidade é que não é assim e a razão disso é que há muito que a política em Cabo Verde deixou-se contaminar por elementos identitários. A fragilidade do cabo-verdiano apanhado entre a Europa e África tem vindo a agravar-se e o mais normal é que, como se vê noutras democracias, e um pouco por todo o mundo, o populismo emergente procure tirar proveito das questões identitárias e aprofunde ainda mais o fosso. A irracionalidade que normalmente acompanha esses fenómenos já é verificável em Cabo Verde nas sondagens que colocam a maioria dos cabo-verdianos contra os próprios turistas que mantêm uma parte decisiva da economia nacional a produzir e a trabalhar.
A batalha entre a África e Europa continua a ser travada com fragor mesmo que no processo não se melhore significativa mente o destino turístico, não se garanta a segurança e não se consiga controlar o comércio informal que assedia o turista no seu dia-a-dia. E certamente que o projecto de lei ontem anunciado pela maior força da oposição e que visa legalizar imigrantes vindos dos países da CEDEAO ir trazer mais acha para a fogueira. Será mais uma oportunidade para picardias entre africanistas e europeístas. Dividido, Cabo Verde dificilmente poderá fazer uma discussão séria e consequente de como deverá posicionar-se para poder crescer de forma sustentada e garantir trabalho para todos.Com as questões identitárias a chocarem-se qual placas tectónicas é o país que fica adiado enquanto fracturas propagam no tecido social causando estragos ao nível das comunidades e dos próprios indivíduos. Considerando como a consciência da cabo-verdianidade nas múltiplas manifestações se consolidou ao longo de boa parte do século 20 não tinha que ser esta a realidade 43 anos depois da independência.

segunda-feira, maio 07, 2018

Grito de alerta

​O Afrobarómetro divulgou na quarta-feira passada, 25 de Abril, os resultados do inquérito realizado em Novembro de 2017. A generalidade dos políticos e dos observadores foi apanhada de surpresa. Ninguém esperava ouvir que 76% dos cabo-verdianos estivessem nada ou pouco satisfeitos com a democracia e que 44% qualificassem o regime político cabo-verdiano como sendo uma democracia com grandes problemas. Nem tão pouco podia-se adivinhar que apenas dois anos após a mudança de governo já houvesse uma maioria de 58% a considerar que o governo está a caminhar na direcção errada.
O facto, porém, é que já se devia ter previsto que esta legislatura não iria ser como as anteriores. Os tempos são outros: as pessoas mostram-se mais críticas, as instituições democráticas têm vindo a fragilizar-se sob a pressão do populismo e o país globalmente está escaldado e céptico após anos seguidos de política ilusionista. Devia ser óbvio que quem ganhasse as eleições teria curto tempo para agir, comunicar eficazmente e convencer os caboverdianos que iria cumprir com as promessas, sob pena de entrar num processo rápido de desgaste. A sucessão de manifestações, as ameaças e as greves destes dois anos constituíram avisos sérios que talvez o governo não tenha levado em devida conta. O resultado vê-se no inquérito.
Mas podia ter sido pior na ausência do crescimento de 3,8% e 3,9% do PIB verificado em 2016 e 2017 respectivamente muito superior à média de cerca de 1% dos cinco anos anteriores e com impacto na criação de emprego. Não é por acaso que os inquiridos do Afrobarómetro manifestaram confiança na melhoria das condições de vida mesmo quando a maioria diz que o país está na direcção errada. A contradição talvez traduza, por um lado, o reconhecimento que dinâmicas benéficas para a economia estão a ser geradas pela nova atitude do governo em relação à actividade privada quando, por outro lado, ainda persistem dúvidas sobre onde se quer levar o país. O governo ainda não convenceu quanto à despartidarização da administração pública, quanto à privatização de empresas em sectores-chave e quanto à estratégia de atracção de investimento externo e aumento do fluxo turístico. E verdade seja dita, dificilmente confiança é ganha, para se se ser suficientemente persuasivo em apontar um rumo diferente ao país, se problemas urgentes como insegurança, justiça, combate ao desemprego, habitação, saúde e educação não dão sinais inequívocos de estarem a ser equacionados e resolvidos.
Confiança nas instituições é fundamental nas democracias. Mostra-se por isso problemático verificar no inquérito do Afrobarómetro que comparativamente aos anos anteriores diminuiu a confiança do cabo-verdiano no funcionamento da democracia e em fazer-se ouvir pelos seus representantes nos órgãos de poder político. Num determinado sentido esta perda de confiança é um sinal dos tempos em que a crise grassa por todas as democracias novas ou consolidadas. Noutras paragens, razões como a globalização, as migrações internacionais, as sequelas da Grande Recessão de 2008 e da crise do euro e conflitos entre soberanistas, nativistas e cosmopolitas já levaram a saídas da União Europeia, eleições de populistas, rearranjos no sistema de partidos com desaparecimento de uns e emergências de outros, ameaças de secessão e ressurgimento do fascismo. Em Cabo Verde o populismo não alterou ainda o quadro partidário. Tem- se manifestado dentro e através dos partidos e no processo afectado as instituições, a relação entre órgãos de soberania e o modo de fazer política.
Ao alimentar o espírito anti-partido e anti-política o populismo reduziu o papel dos partidos na criação da vontade política e abriu caminho para percursos individuais que pela forma como ascendem explorando sentimentos, criando empatias e recorrendo a factores identitários dificilmente se ajustam às exigências de funcionamento das instituições da democracia representativa. Da deriva, o que se nota é que os novos políticos e a nova política tendem a comportar-se como celebridades sempre no centro de tudo e fazendo concentrar tudo na sua pessoa em detrimento da instituição, do recato que o seu funcionamento exige, da preocupação em seguir as normas procedimentais e do foco na procura do interesse geral num quadro plural e de exercício do contraditório.
A degenerescência e consequente perda de prestígio que, por exemplo, consome o parlamento verifica-se quando os seus trabalhos são dominados por esse tipo de protagonismo que se autojustifica com uma suposta ligação especial do deputado, sem mediação alguma, com o povo. Não deixa de ser de alguma forma trágico que o desejo legítimo das pessoas em se fazerem ouvir e em decidir quem as deve representar desencadeie um processo de escolha de representantes que contrariamente ao pretendido vai ajudar a alimentar uma fogueira de vaidades capaz de consumir políticos, a política e as instituições, deixando a todos em pior situação. No mesmo sentido, o espectáculo da degradação institucional que se vem notando nestes anos tende a reforçar ainda mais o desejo de se romper com as formas tradicionais de fazer política. Ao fazer isso tem o potencial de precipitar ainda o mais o descrédito dos parlamentos e partidos e permitir o reforço precisamente do tipo de política que inevitavelmente deixa todos mais abertos à ascensão triunfal de algum líder exigente na lealdade que quer de todos em troca de uma liderança com soluções simples e completa para tudo.
A publicação do inquérito do Afrobarómetro e dos dados neles contidos sobre o relacionamento do cabo-verdiano com a democracia deve ser tomada com um grito de alerta quanto à degradação da imagem já sofrida pelas instituições sob o impacto do populismo infiltrado nos partidos políticos. Populismo esse que encontrou aliados nos velhos inimigos da democracia representativa que nunca deixaram de repetir que pluralismo é desperdício de recursos e que a defesa dos direitos fundamentais é um obstáculo à democracia musculada necessária para acabar com a insegurança. Opor-se à degenerescência da democracia é fundamental para preservar a liberdade e garantir a igualdade de oportunidades e justiça. Não é a tarefa que se deixa para fazer depois. O próximo Afrobarómetro tem que poder mostra uma inversão da tendência actual na confiança na democracia.

Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 857 de 02 de Maio de 2018.