Neste ano de 2019 a comemoração do 5 de Julho, dia da
independência, ficou marcada pela habitual cerimónia oficial na
Assembleia Nacional e pela manifestação de mais de uma dezena de milhar
de populares nas ruas de S. Vicente.
No
parlamento os actores políticos aparentemente alheios à situação real
sucediam-se nos discursos de auto-congratulação por, supostamente, se
ter feito de um país dado como inviável no momento da independência o
Cabo Verde de hoje com desenvolvimento sustentável. Nas ruas do Mindelo
com os pés no chão as multidões cansadas de discursos sem consequência
relembravam o quanto isso tem de ilusório, mostrando as dificuldades
quotidianas de existência. O contraste nas posições não ficou por aí. No
acto oficial ainda se insistiu nos discursos a homenagear os
auto-intitulados obreiros da independência, passando uma esponja pelos
15 anos de ditadura que protagonizaram, deixando cair para segundo plano
a necessidade da união de todos os caboverdianos numa comunidade
política de liberdade, pluralismo e respeito pela dignidade humana. Já
na manifestação, o exercício vigoroso da liberdade garantiu que fosse
ouvida a voz dos que temem que o seu presente e futuro continuem a estar
comprometidos por opções governativas que em legislaturas alternadas e
até agora não se mostraram à altura de produzir os resultados
prometidos.
Este encontro díspare de discursos, percepções e expectativas no dia 5 de Julho já se tinha verificado há dois anos atrás em 2017. Também na altura ficou um registo no editorial deste jornal como sendo uma voz da sociedade civil cabo-verdiana que se devia escutar com muita atenção. No seio da classe política e nas reacções do governo a tentação então foi de ver jogadas políticas, desvalorizar as questões colocadas e de praticamente ignorar os desejos de uma franja crescente de cidadãos numa participação política livre de amarras político-partidárias. Outra vez, em 2019, algo atenuado, repetem-se algumas dessas apreciações. É pena que seja assim, porque corre-se o risco de perder mais uma oportunidade de se fazer uma análise aprofundada do fenómeno político cabo-verdiano e de como poderá vir a ser influenciado pelo que se passa em outras democracias. O ciclo eleitoral começa no próximo ano de 2020 com as eleições autárquicas provavelmente separadas das legislativas por seis meses e estas das presidenciais também por seis meses, facto que já por si só define este ciclo como diferente por ser mais fácil o contágio. Se se juntar a isso que vão ser eleições onde pela primeira vez se irá sentir todo o efeito disruptivo das redes sociais, como vem acontecendo em várias democracias desde o referendo do Brexit e da eleição de Trump, tudo leva a crer que irão apresentar características nunca antes vistas. Razão bastante para análises e apreciações mais cuidadas e que não fiquem pelos clichés dos tempos passados.
Um outro aspecto a ter em devida consideração é que essas manifestações não são um simples sintoma de um mal-estar que seria típico de S.Vicente por resultarem de reivindicações só ali feitas. Há quem fale de bairrismo numa espécie de reacção ao centralismo do Estado, mas isso seria redutor. Razões outras e mais transversais em todo o país deverão existir. É o que justificam as manifestações já verificadas noutras ilhas e com exigências similares, mas, obviamente, numa escala mais reduzida pois não têm o nível de concentração urbana e a mesma tradição de agitação política de S. Vicente. Por isso, a haver descontentamento em relação a questões abrangentes como emprego, rendimentos, conectividade e serviço deficiente da administração pública o mais natural é que tenha caracter geral e não fique só por uma ilha. Afinal trata-se de um país e de um estado unitário e não se espera que haja políticas implementadas na perspectiva que vão beneficiar uma ilha e descriminar outras. Investimentos feitos em qualquer ponto do território ganham sentido e legitimidade se tiverem sempre presente o interesse geral. Havendo mal-estar em qualquer ponto do país deve-se analisar para saber que medidas de política ficaram aquém dos resultados propalados em vez de se assumir que com protestos e reivindicações as pessoas estão a reagir a bairrismos e a outros interesses menores.
S. Vicente, por razões designadamente da sua história económica, legado cultural e vivência urbana foi alvo de investimentos em consonância com a sua vocação de elo de ligação do país à economia mundial. Como é uma evidência histórica que os momentos de alguma prosperidade gozada no país estão intimamente ligados à satisfação de alguma procura externa via prestação de serviços ou exportações, tais investimentos faziam sentido e esperava-se um retorno que devia beneficiar todo o país. Não aconteceu em boa medida porque depararam-se com políticas contrárias à abertura ao mundo, não foram articuladas com medidas de políticas noutros sectores e em muitos casos não foram feitos no tempo próprio. O país perdeu com isso e não é por acaso que hoje a sua economia se apresenta pouco diversificada e ainda muito dependente do turismo resultante da procura externa para o “sol e mar” que as ilhas do Sal e da Boa Vista magnificentemente oferecem.
O mal-estar de S.Vicente deve ser assumido como o mal-estar do país no seu todo por ver investimentos nacionais vultuosos feitos ainda sem o retorno desejado na criação de riqueza e empregos desejados. Deve ser uma mola a impulsionar para acção, para se remover os obstáculos e simplificar o processo de decisão estatal, clarificar a política de atracção de investimento externo e apostar fortemente na formação dos recursos humanos. Não é razoável subutilizar investimentos já realizados particularmente quando se sabe que com a dívida pública nos três dígitos há fortes constrangimentos para investimentos do Estado. Pelo contrário, há que os potenciar e por isso há que fazer aposta forte e urgente em S.Vicente.
O país tem que ser sempre visto no seu todo mas como os recursos são escassos devem ser empregues de forma a trazerem o máximo de retorno e criarem o maior número de empregos. Porém, políticas de redistribuição para assegurar a sustentabilidade da diversidade no quadro nacional e decisões no planeamento do investimento na perspectiva de potenciar o país para aproveitar oportunidades futuras não podem ignorar nenhuma ilha. Mais do que nunca a ideia da nação que há mais de um século une todos os cabo-verdianos deve ser a base de sustentação para a construção de um futuro comum e factor fundamental para não permitir que manifestações de frustração e ressentimento e também de bairrismos e impulsos hegemónicos se coloquem no caminho do desenvolvimento e da prosperidade desejados. Não deve haver dúvidas a ninguém que a divisão é, por excelência, o sentimento que a história destas ilhas regista como o mais anti-caboverdiano.
Este encontro díspare de discursos, percepções e expectativas no dia 5 de Julho já se tinha verificado há dois anos atrás em 2017. Também na altura ficou um registo no editorial deste jornal como sendo uma voz da sociedade civil cabo-verdiana que se devia escutar com muita atenção. No seio da classe política e nas reacções do governo a tentação então foi de ver jogadas políticas, desvalorizar as questões colocadas e de praticamente ignorar os desejos de uma franja crescente de cidadãos numa participação política livre de amarras político-partidárias. Outra vez, em 2019, algo atenuado, repetem-se algumas dessas apreciações. É pena que seja assim, porque corre-se o risco de perder mais uma oportunidade de se fazer uma análise aprofundada do fenómeno político cabo-verdiano e de como poderá vir a ser influenciado pelo que se passa em outras democracias. O ciclo eleitoral começa no próximo ano de 2020 com as eleições autárquicas provavelmente separadas das legislativas por seis meses e estas das presidenciais também por seis meses, facto que já por si só define este ciclo como diferente por ser mais fácil o contágio. Se se juntar a isso que vão ser eleições onde pela primeira vez se irá sentir todo o efeito disruptivo das redes sociais, como vem acontecendo em várias democracias desde o referendo do Brexit e da eleição de Trump, tudo leva a crer que irão apresentar características nunca antes vistas. Razão bastante para análises e apreciações mais cuidadas e que não fiquem pelos clichés dos tempos passados.
Um outro aspecto a ter em devida consideração é que essas manifestações não são um simples sintoma de um mal-estar que seria típico de S.Vicente por resultarem de reivindicações só ali feitas. Há quem fale de bairrismo numa espécie de reacção ao centralismo do Estado, mas isso seria redutor. Razões outras e mais transversais em todo o país deverão existir. É o que justificam as manifestações já verificadas noutras ilhas e com exigências similares, mas, obviamente, numa escala mais reduzida pois não têm o nível de concentração urbana e a mesma tradição de agitação política de S. Vicente. Por isso, a haver descontentamento em relação a questões abrangentes como emprego, rendimentos, conectividade e serviço deficiente da administração pública o mais natural é que tenha caracter geral e não fique só por uma ilha. Afinal trata-se de um país e de um estado unitário e não se espera que haja políticas implementadas na perspectiva que vão beneficiar uma ilha e descriminar outras. Investimentos feitos em qualquer ponto do território ganham sentido e legitimidade se tiverem sempre presente o interesse geral. Havendo mal-estar em qualquer ponto do país deve-se analisar para saber que medidas de política ficaram aquém dos resultados propalados em vez de se assumir que com protestos e reivindicações as pessoas estão a reagir a bairrismos e a outros interesses menores.
S. Vicente, por razões designadamente da sua história económica, legado cultural e vivência urbana foi alvo de investimentos em consonância com a sua vocação de elo de ligação do país à economia mundial. Como é uma evidência histórica que os momentos de alguma prosperidade gozada no país estão intimamente ligados à satisfação de alguma procura externa via prestação de serviços ou exportações, tais investimentos faziam sentido e esperava-se um retorno que devia beneficiar todo o país. Não aconteceu em boa medida porque depararam-se com políticas contrárias à abertura ao mundo, não foram articuladas com medidas de políticas noutros sectores e em muitos casos não foram feitos no tempo próprio. O país perdeu com isso e não é por acaso que hoje a sua economia se apresenta pouco diversificada e ainda muito dependente do turismo resultante da procura externa para o “sol e mar” que as ilhas do Sal e da Boa Vista magnificentemente oferecem.
O mal-estar de S.Vicente deve ser assumido como o mal-estar do país no seu todo por ver investimentos nacionais vultuosos feitos ainda sem o retorno desejado na criação de riqueza e empregos desejados. Deve ser uma mola a impulsionar para acção, para se remover os obstáculos e simplificar o processo de decisão estatal, clarificar a política de atracção de investimento externo e apostar fortemente na formação dos recursos humanos. Não é razoável subutilizar investimentos já realizados particularmente quando se sabe que com a dívida pública nos três dígitos há fortes constrangimentos para investimentos do Estado. Pelo contrário, há que os potenciar e por isso há que fazer aposta forte e urgente em S.Vicente.
O país tem que ser sempre visto no seu todo mas como os recursos são escassos devem ser empregues de forma a trazerem o máximo de retorno e criarem o maior número de empregos. Porém, políticas de redistribuição para assegurar a sustentabilidade da diversidade no quadro nacional e decisões no planeamento do investimento na perspectiva de potenciar o país para aproveitar oportunidades futuras não podem ignorar nenhuma ilha. Mais do que nunca a ideia da nação que há mais de um século une todos os cabo-verdianos deve ser a base de sustentação para a construção de um futuro comum e factor fundamental para não permitir que manifestações de frustração e ressentimento e também de bairrismos e impulsos hegemónicos se coloquem no caminho do desenvolvimento e da prosperidade desejados. Não deve haver dúvidas a ninguém que a divisão é, por excelência, o sentimento que a história destas ilhas regista como o mais anti-caboverdiano.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 919 de 10 de Julho de 2019.