segunda-feira, abril 19, 2021

“O que podes fazer por teu país”

 

​Já nos últimos dias antes do voto de 18 de Abril que vai determinar o rumo do novo ciclo governativo no país a grande questão a pôr aos cabo-verdianos devia ser similar à colocada por John Kennedy na sua tomada de posse como presidente dos Estados Unidos da América, em Janeiro de 1961: “Pergunta não o que o teu país pode fazer por ti, mas o que tu podes fazer por ele”.

De facto, os tempos actuais marcados pela pandemia do coronavírus e pela recessão económica global e pelo contínuo descrédito das instituições nas democracias clamam por outra atitude das pessoas. Querer-se-ia uma atitude que fosse mais altruística e tivesse como base a crença num destino comum e não aquela que prevalece hoje e é egoísta, do tipo “cada um por si”, e orienta-se para extrair do Estado o máximo, sem olhar a meios.

Nos pequenos países frágeis e sem recursos como Cabo Verde a mudança no sentido apontado por Kennedy é claramente mais urgente. Sem mais cooperação entre as pessoas, mais engajamento cívico e mais esforço individual e colectivo para elevar a qualidade e os níveis das competências produzidas no sistema de ensino e formação dificilmente se conseguirá estar à altura dos extraordinários desafios que o futuro comporta. Infelizmente, os sinais vindos de todos os lados, especialmente nos momentos eleitorais em forma de promessas de campanha e propostas de políticas, vão no sentido contrário. Tendem a consolidar e a revalidar a condição de dependência do Estado e a postura de feroz concorrência entre indivíduos e grupos para acesso aos recursos.

Cabo Verde está numa encruzilhada com um futuro desafiante e incerto como diz o FMI e o mais normal é que houvesse um apelo ao engajamento de todos para que com um outro espírito o país possa enfrentar as dificuldades do mundo pós-covid e preparar-se para aproveitar oportunidades que eventualmente surjam. Nesse sentido o discurso que menos se deveria ouvir é o que faz crer que a salvação está no Estado a funcionar paternalisticamente como antes a “realizar sonhos” de uns e a contemplar outros com ganhos. Já se vai na segunda eleição deste ciclo eleitoral que se iniciou em Outubro último com as autárquicas e não há sinal que o discurso vá mudar. A pandemia pode até estar a dar sinais que poderá agravar-se numa nova onda provavelmente induzida por uma variante mais contagiosa do vírus como vem acontecendo na Europa e na América nestes primeiros meses de 2021. Mas ninguém parece dar atenção especial a isso para além de se repetir as já habituais recomendações de uso da máscara, distanciamento social e higienização pessoal e do espaço físico.

A verdade é que pelo que se tem visto neste ano sem paralelo de pandemia do coronavírus e de recessão global nada parece suficientemente forte para alterar as formas de estar, de pensar e de fazer política neste país. A crispação política não baixou de intensidade para criar espaço para compromissos fundamentais num momento único de grandes constrangimentos tanto no país como no mundo. Não se deu pausa às reivindicações laborais e às greves e ameaças de greve particularmente no sector público como se não tivesse qualquer relevância a paralisação de sectores importantes da economia como o turismo com reflexo no desemprego de milhares de pessoas, perda de mais de 40% das receitas do Estado e diminuição drástica das exportações.

Nem tão pouco se fez um compasso de espera para perceber o que poderá ser o mundo pós covid-19 antes de continuar a promover os mesmos projectos de infraestruturas, de criação de plataformas, hubs ou clusters, de expansão de portos e aeroportos e de terminais de cruzeiros. Com promessas novas como levar o ensino superior a todas ilhas deu-se mais um impulso à deriva de se ver Cabo Verde como nove países multiplicando as dificuldades já existentes e diminuindo a possibilidade de potenciar devidamente a diversidade das noves ilhas. É evidente que na insistência em fazer o mesmo apesar de mudanças profundas a verificarem-se a nível local e global o mais provável é que se esteja a perder a oportunidade de avançar com reformas que noutras circunstâncias seriam mais difíceis. Um exemplo são os transportes, seja o aéreo, o marítimo e o interurbano que em todo o lado vão ser alvo de reformas por forma a poder se adaptar às exigências de viajar no “novo normal”. Aqui tudo ficou praticamente como estava. As crises têm sempre custos, mas ficam mais caras quando as oportunidades que eventualmente ofereçam não são aproveitadas.

A campanha eleitoral devia incluir momentos únicos para a apresentação e discussão de propostas para se adaptar o país aos rigores dos novos tempos. Seriam ocasiões certas para mobilizar vontades para se fortalecer os alicerces da nação e com novas perspectivas adequar o país de instrumentos necessários para construir prosperidade sustentável. Não é, porém, fácil fugir do que sempre se fez. Numa certa perspectiva podia-se até considerar normal que os partidos do chamado arco do poder não conseguissem afastar muito do tipo de discurso e de promessas que reconfirmam no essencial o modo de funcionamento do país enquanto economia pequena e frágil e dependente da ajuda externa. Esse é o paradigma na base do qual o Estado vem funcionando há décadas e que já se provou no essencial resistente a intenções reformistas vindas de todos os quadrantes.

Estranho é o facto de pequenos partidos aparentemente sem qualquer possibilidade de ganhar as eleições, se juntarem ao coro dos que fazem promessas nessa mesma linha. Acabam por exagerar nas medidas propostas só para se diferenciarem e supostamente ficarem em posição de criticar, mas sem acrescentar praticamente nada de novo. Pontualmente dão guarida a sentimentos anti-sistémicos que de uma forma ou de outra procuram descredibilizar as instituições da democracia representativa e do Estado de Direito constitucional. A verdade é que não se revelando portadores de políticas alternativas, nem conseguindo afirmar-se como partidos de protesto, acabam por ser ignorados pelo eleitorado. Aconteceu nas autárquicas e poderá verificar-se outra vez nas legislativas.

As pessoas no meio dessas lucubrações partidárias, que em geral se mostram aquém dos enormes desafios que se colocam ao país, não vêem como outra saída se não a de se desenrascarem e com sorte ou com os contactos certos serem bem-sucedidos num sistema que por si próprio tende a reproduzir a dependência de todos em relação ao Estado e a manter a posição sobranceira e paternal do Estado em todos os domínios da vida do país. Quando as dificuldades aumentam, como acontece actualmente com a pandemia, tudo fica muito pior. Inflectir a situação significaria cortar com uma espécie de “cinismo cívico” que alguns anos depois da independência se instalou no país após o desencanto com o regime de partido único.

Dizia-se amiúde que “militância dja kaba” para justificar ausência de sentido de serviço público e “N ka mata Cabral” para fugir a qualquer tipo de responsabilidade. Ou seja, legitimava-se atitude de tudo ir buscar ao Estado que detinha os recursos, fazia os favores e propiciava os acessos. Deixar para trás esse cinismo que até hoje perdura é fundamental para se ter de facto um Estado de Direito com servidores a todos os níveis cumpridores de uma ética republicana. Passa por responder ao apelo de John Kennedy de uma outra relação com o país e o Estado que reforce a confiança nas instituições, valorize a auto-responsabilidade e a autonomia individual e promova a cooperação entre as pessoas. São os ingredientes que se precisa para construir uma comunidade mais forte e resiliente e que mesmo nas maiores dificuldades sempre encontrará vias para prosperar e ser livre.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1011 de 14 de Abril de 2021.

segunda-feira, abril 12, 2021

Evitar erros que levam gerações a corrigir

 Recorrentemente em Cabo Verde a questão da autonomia das universidades, da qualidade do ensino e da capacidade de investigação e produção científica é trazida à discussão pública.

O país diz-se detentor de cerca de dez universidades, mas é impressão generalizada que o impacto do ensino superior é ainda bastante fraco. Em particular não parece contribuir para elevação do nível do debate na esfera pública, nem se mostra capaz de propiciar às instituições do país expertise em várias áreas de forma sistemática e perceptível como seria de esperar. O que as pessoas notam em relação ao papel das universidades vai de encontro em grande medida com o que ficou exposto na resolução do congresso dos doutorados realizado a 11 de Março em Mindelo quando diz que “a falta de um projecto universitário que valorizasse desde a sua génese a função criativa da Universidade impediu a emergência de uma comunidade científica em Cabo Verde”.

Para os participantes no congresso a falha vem de longe, em particular na universidade pública, a Uni-CV, segundo os quais “foi marcada na sua génese pelo facto de o corpo docente ter sido recrutado de entre professores formatados nos anos 1975-1980 nas escolas do Partido Único”. Acrescentam ainda que a “corrupção sistémica” que daí resultou “conseguiu asfixiar a crítica aos poderes públicos pela Academia” e que a “centralização da autoridade académica na administração universitária converteu a instituição em mera extensão da administração pública, retirando-lhe a função de Casa do Saber”. Não é nada que se desconhecia considerando o que se sabe do processo de instalação do ensino universitário nos últimos anos.

Em alguns momentos, por altura de eleição para o cargo de reitor, ou em artigos de jornal, questões semelhantes foram levantadas, mas como de há muito se tornou habitual em Cabo Verde são logo desvalorizadas ou esquecidas, ou varridas para “debaixo do tapete”. Entretanto recursos públicos consideráveis são gastos em manter tal sistema sem que se vislumbre retorno adequado que os justifique. Também milhares de estudantes e seus familiares investem parte importante dos seus rendimentos e muito das suas esperanças de uma vida melhor sem de facto qualquer garantia de atingir os seus objectivos particularmente quando escasseiam empregos do Estado a exigir licenciatura, o mercado de trabalho não é suficientemente dinâmico e as qualificações existentes não são as mais procuradas por potenciais empregadores. Com o país a viver uma pandemia sem precedentes podia ser uma oportunidade para a Uni-CV desempenhar um papel de relevo como acontece em outros países. Aqui, pelo contrário, está-se por saber o papel da universidade em apoiar o esforço de combate ao coronavírus e as contribuições no estudo da epidemia, sua evolução e seu impacto nas populações.

Este jornal em vários editoriais e reportagens ao longo dos últimos dez anos procurou chamar a atenção para a problemática que rodeou todo o processo de instalação do ensino universitário. Já em 2010 este semanário alertava que as universidades enquanto bastiões do conhecimento, do ensino superior e da investigação precisam para realizar a sua missão da mais ampla liberdade intelectual e liberdade de expressão e de ser funcional num quadro de autonomia administrativa e financeira e independência do poder político. E que a forma como foi criada a universidade pública de Cabo Verde determinou que muito do que se esperava de uma instituição de ensino superior fosse sacrificado. Compreende-se a motivação e a urgência expressas nos alertas que se sucederam vindos de diferentes quadrantes. Tratava-se de uma instituição nova chamada a desempenhar um papel crucial para vida de gerações de jovens e a ser central para o desenvolvimento do país enquanto produtor e disseminador do conhecimento e criador do ambiente propício para a inovação. Se falhasse em realizar a sua missão como tudo parece indicar os estragos seriam consideráveis e os custos para reverter a situação teriam que ser suportados por gerações.

Infelizmente o que aparentemente acabou por acontecer com a universidade pública é análogo ao que vem acontecendo com outras instituições no país e com a generalidade da administração pública. A dependência do país da ajuda externa, o historial de partidarização da administração pública a partir das suas origens no partido/Estado e a presença forte do Estado na economia entre outros factores garantiram que se reproduzisse ao longo de décadas, não obstante as tentativas de reforma, a figura do Estado centralizador, burocrático e pouco sensível às necessidades dos utentes. Com a crescente incapacidade do sector privado nos vários domínios, seja industrial, seja o do turismo e dos serviços em ganhar proeminência e em inflectir a posição do Estado no topo da proverbial “cadeia alimentar” a tendência de muitos tem sido de encontrar a melhor forma de se colocarem sob a sombra protectora do sector público.

Naturalmente que isso tem consequências tanto pelo impacto sobre as instituições e a administração pública no que concerne à composição dos órgãos, nível de funcionamento e comprometimento com o serviço público como sobre o tipo de discurso e de campanha eleitoral que é produzido no processo de acesso ao poder político. A situação de crise que se vive actualmente devido à Covid-19 só agrava a tendência e torna mais saliente essa evolução negativa no seio das instituições. A cada dia que passa fica mais difícil tentar inflectir o caminho de uma certa desinstitucionalização, quase sempre acompanhada de centralização do poder no chefe e a transformação de outros titulares de cargos ou dirigentes em variantes de facilitadores, bajuladores e vendidos. E isso acontece quando precisamente a pandemia em todo o mundo veio relembrar a importância de se ter um Estado competente, comprometido com a verdade dos factos e congregador de vontades para mitigar os efeitos das crescentes desigualdades sociais, combater os efeitos das alterações climáticas e garantir a sustentabilidade do processo de desenvolvimento.

Para um pequeno país como Cabo Verde deixar-se levar num processo em que as suas instituições enfraquecem ou não estão à altura do que é delas esperado como parece acontecer com a universidade pública é de uma gravidade enorme. De facto, não há muito espaço para cometer erros que levam gerações a corrigir particularmente quanto desafios como pandemias, alterações climáticas e dívida pública em crescendo podem constituir uma mistura potencialmente perigosa nos próximos anos. Neste sentido é de maior importância identificar as razões profundas por que reformas não são feitas, instituições enfraquecem e descredibilizam-se e elementos da sociedade civil não conseguem sair de uma espécie de modorra para forçarem mudanças.

No processo talvez se descubra – parafraseando o economista Paul Samuelson que não se importava com quem escrevia as leis de uma nação conquanto ele pudesse escrever os manuais escolares – que a raiz do problema esteja no que em termos de princípios e valores e de perspectiva histórica da nação cabo-verdiana é passado às novas gerações através designadamente do sistema de ensino. Tudo indica que há uma tensão entre o substracto cultural inculcado e os valores vertidos na Constituição e nas leis e o resultado não tem sido positivo para as instituições, para a cidadania e para a própria democracia. Para se ter mudança, há que encarar isso frontalmente como fizeram os participantes do segundo congresso dos doutorados na resolução que trouxeram a público. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1010 de 7 de Abril de 2021.

segunda-feira, abril 05, 2021

Futuro desafiante e incerto

 

O FMI na sua última comunicação sobre as perspectivas económicas de Cabo Verde para o futuro próximo foi peremptório a dizer que se mantêm desafiantes e incertas. Para começar, a Covid-19, em 2020, provocou uma contracção de 14% da economia. Parou praticamente tudo, seja o turismo, a aviação e a exportação de vários bens e serviços.

O resto da economia nacional limitou-se a concentrar no fornecimento do essencial para o país funcionar mesmo quando a braços com estados de emergência e outros graus de confinamento. Nunca se tinha visto algo semelhante. Em 2009 na sequência da crise financeira de 2007/2009 a contracção da economia tinha sido de 1,3% do PIB e, aquando da retoma, depois de um primeiro ano de 2010 com 4% de crescimento, seguiram-se quase cinco anos de estagnação com a taxa do crescimento do PIB à volta de 1%. A expectativa de todos é que esse padrão não se repita e que o crescimento retome a dinâmica iniciada a partir do último trimestre de 2015 e que perdurou até Março de 2020.

O FMI, apesar de prever que o país possa crescer 5,8% do PIB em 2021 e que o crescimento a médio prazo chegue a 6%, não deixa de constatar que os riscos de uma evolução no sentido negativo são reais considerando a pandemia do coronavírus e a suas ramificações globais. Na sua comunicação faz qualquer avanço na economia depender de vários factores de entre os quais uma retoma mundial, o aumento do turismo e de investimentos, a execução de projectos de infraestrutura já identificados, reformas estruturais decisivas no Estado e no sector empresarial do Estado, acesso de pequenas e médias empresas ao crédito e políticas de apoio à estabilidade macroeconómica em particular em sede da gestão orçamental e da dívida pública. Alguns desses factores são externos e dependem de como irá ser o novo normal nas relações entre países, em como as viagens vão ficar condicionadas e em como vão ser reorganizadas as cadeias de valor e estruturados os canais de aprovisionamento de bens essenciais e estratégicos.

Os outros factores, aqueles que dependem do país, constituem provavelmente uma complicação maior. Pô-los a funcionar exigiria “reformas estruturais decisivas” como diz o FMI, reformas que implicariam a despartidarização do aparelho do Estado, descentralização e desburocratização dos serviços e adopção generalizada de uma cultura de serviço público e de um ethos de servidor público que até agora se revelaram praticamente impossíveis de implementar. E sem elas não há redefinição do papel do Estado para além da sua função na reciclagem da ajuda externa, nem diminuição dos custos de contexto que retira competitividade à economia, nem uma aposta consequente e estratégica na potenciação dos recursos do país a começar pelos recursos humanos que devia ser o pilar fundamental do desenvolvimento.

O falhanço na realização dessas reformas estruturais terá contribuído para que depois da crise financeira de 2008 a entrada de fluxos externos em doações e empréstimos só tenha feito crescer a dívida externa para cerca de 120% do PIB sem que a economia por largos anos conseguisse descolar. E quando depois de 2015 a conjuntura internacional se tornou mais favorável com todas as grandes economias e em particular a União Europeia a crescer as taxas do PIB aumentaram consideravelmente de uma média de 1% nos anteriores 5% até que chegou a pandemia. Provavelmente não atingiu os 7% que tinham sido previstos devido a ineficiências várias, à produtividade baixa e à fraca competitividade derivadas da ausência de reformas em sectores-chave e também a prioridades trocadas em matéria de investimento público e de recursos humanos.

Compreender as dificuldades com que a economia cabo-verdiana se depara e os constrangimentos que tem que vencer para poder crescer a taxas que permitam retirar pessoas da pobreza extrema, diminuir as vulnerabilidades das populações e abrir o caminho para uma prosperidade que chegue a todos é fundamental para a paz e a concórdia na sociedade cabo-verdiana. Há quem aponte um crescimento acima de 7% como meta a atingir para que esse desiderato seja possível. Falta é identificar os obstáculos para lá chegar e mobilizar vontades para os ultrapassar. É verdade que se até agora não se conseguiu fazer as reformas estruturais que se impõem é por não ser tarefa fácil e também por se tratarem de medidas que provavelmente mexem com interesses entrincheirados ou que não são de imediato populares em alguns sectores. Não se pode deixar de notar é que, com tentativas de reforma sucessivamente fracassadas, mais longínqua se torna a possibilidade de realizar uma mudança de fundo com impacto visível na eficácia da acção do Estado. Em simultâneo e contribuindo para ineficácia estatal nota-se também o crescente poder de corporativismos diversos que já se tornaram em verdadeiros empecilhos para quem tem legitimidade democrática para governar.

A política devia ser a via para se debater como ultrapassar as dificuldades referidas. Infelizmente cada vez mais passa-se a impressão é de que se quer o poder para tentar manipular o status quo a favor de clientelas próprias sem uma grande preocupação com a realização do interesse geral. O ambiente de crispação que se instala na esteira do que parece uma autêntica corrida para abocanhar recursos do estado não deixa espaço para posições mais equilibradas. Períodos eleitorais deviam ser momentos cruciais para se dar o passo em frente. Por isso a urgência devia ser maior em procurar reconhecer onde estão os obstáculos e inventariar vias para os ultrapassar.

O FMI ao caracterizar como desafiantes e incertas as perspectivas de Cabo Verde no futuro próximo chama a atenção para não se tomar os tempos que vêm aí como algo seguro e previsível e confiar que simplesmente se pode recomeçar do ponto onde se ficou há um ano atrás. Dificilmente será assim e o facto de o coronavírus constituir uma ameaça global ninguém pode ter a pretensão de ficar aquém dos seus efeitos devastadores. Em Cabo Verde reina a crença que a solidariedade é mais forte em momentos de desgraça porque é preciso cooperação de todos para minorar os estragos e encontrar uma saída. Em tempos de pandemia as pessoas, os candidatos e os partidos deviam se mostrar mais abertos ao diálogo político que pode levar a soluções duradoiras e consistentes e mobilizar energias para fazer as reformas que todos esperam.

Nos tempos que correm não há, porém, certeza que depois da tempestade venha imediatamente a bonança. Mais uma razão para apelos à solidariedade ao longo do processo eleitoral que vai culminar nas eleições legislativas de 2021. A democracia e a liberdade vão depender dos muitos problemas colocados no dia-a-dias e de como as reformas foram encetadas e as soluções foram encontradas. Do sucesso nas reformas, de um renovado papel do Estado e de um maior foco em construir pontes entre as pessoas irá depender a prosperidade geral, o rendimento individual e familiar e maior proximidade na relação entre as pessoas. As eleições de 18 de Abril deviam ser pretexto para uma nova abordagem dos problemas de Cabo Verde. Vamos esperar que seja desta. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1009 de 31 de Março de 2021.

segunda-feira, março 29, 2021

Quer-se debate mais construtivo

 

A primeira impressão que se tem ao assistir ao primeiro debate entre os líderes partidários em período de preparação para as eleições legislativas é que Cabo Verde não parece estar no meio de uma pandemia.

Os argumentos trocados, as críticas feitas e as propostas apresentadas pouca atenção deram ao facto concreto e presente de que o país vive uma recessão sem precedentes, acumulou uma enorme dívida pública e as perspectivas de retoma são incertas e dependentes de como outros países irão dinamizar as suas economias. Ao longo do debate a abordagem escolhida pelos diferentes actores acabou por reforçar a ideia de que o discurso político – cheio de chavões como inclusão, empreendedorismo, clusters e hubs, futuro digital e de ideias fixas como mobilização de água para agricultura, terminais de cruzeiros e aeroportos internacionais sem um quadro estratégico claro – está divorciado da vida real. Passa ao lado da realidade de que as pessoas querem a possibilidade de ter um emprego de qualidade, de se qualificarem através de uma educação e formação adequada e de prosperarem num ambiente ordeiro e não discriminatório. Para isso requerem segurança pessoal, mas também jurídica e condições sanitárias que lhes permita qualidade de vida.

Tal discurso contribui para uma postura das pessoas e da sociedade perante os problemas do país que passa por minimizar ou desvalorizar os formidáveis obstáculos que teimam em manter-se no caminho para o desenvolvimento. As persistentes vulnerabilidades do país e precariedade na vida das pessoas deviam estar aí para ajudar a reconhecê-los e a criar vontade para os superar. Vê-se, porém, pela forma como a pandemia do coronavírus tem sido assumida que aparentemente nem com uma ameaça maior e de natureza existencial consegue-se sacudir a modorra.

As recentes reivindicações acompanhadas de ameaças de greve que tem aparecido nas últimas semanas deixam claro a impressão de que aparentemente não se reconhece que o país vive dificuldades extraordinárias. O corte com a realidade presente e futura é mais notória porque vêm particularmente do sector público, precisamente de onde nos meses de estado de emergência e de quatro lay-offs que reduziu o rendimento de milhares de trabalhadores a 70%, os salários dos funcionários mantiveram-se a 100%. E ninguém protesta por causa disso.

Sem assunção da gravidade do problema em mãos não há como trazer à tona sentimentos mais altruísticos e solidários, atenuando impulsos mais reivindicativos, nem se é capaz de mobilizar energia para fazer da crise uma oportunidade e encetar reformas profundas que serão necessárias para redinamizar a economia. O facto de, em algumas sondagens, a pandemia ter aparecido em lugares muito abaixo nas preocupações dos caboverdianos denota o quanto o discurso político no país tem ajudado a dar uma falsa perspectiva da realidade vivida. Estar-se a viver um ano eleitoral em tempo de pandemia, agravou a situação ainda mais.

A tendência é de reproduzir discursos e práticas políticas que, numa espiral ascendente de promessas estimulado pelas duras críticas da oposição apontando a não realização, deficiente realização ou inadequação das soluções da governação, põem enfase em obras e na distribuição de rendimentos. A dialéctica entre as forças aí estabelecida não leva nem ao melhor conhecimento da situação do país nem a mais cooperação para enfrentar os problemas. Pelo contrário, tende a excitar ainda mais o sentido reivindicativo das pessoas e da sociedade quando menos dele se precisava e mais solidariedade se mostrava necessário.

A falta da adequação do discurso político produzido aos problemas do país e à realidade do mundo é vista por uns como oportunidade para se oferecerem como alternativa na governação e por outros como prova de falência da democracia, do seu sistema de partidos, do seu pluralismo, das suas instituições e das suas leis. Pelo debate vê-se que há projectos de poder diferentes. Não é claro para muitos como é que as propostas de governação divergem substancialmente. Ninguém parece querer disponibilizar-se em ver o país numa outra perspectiva não obstante as crises recentes e a pandemia que revelaram profundas vulnerabilidades das populações. Nem tão pouco quer-se ter em devida conta a conjuntura internacional que tornou evidente que voltar a crescer irá exigir reformas inovadoras, uma outra atitude e muita solidariedade.

Neste ambiente o cepticismo de alguns em relação aos partidos parece justificar-se. Daí os ataques aos partidos que acabam por fragilizar o sistema democrático e que, a exemplo de outros países, pode abrir caminho a líderes tendencialmente autocráticos e a derivas iliberais com baterias apontadas no pluralismo, na liberdade de expressão e de imprensa e na independência dos tribunais. Essa via, porém, não tem que ser a única possível para os descontentes com o funcionamento da democracia e com a aparente falta de alternativa.

Tocqueville no seu livro A Democracia na América fala no papel das associações de todo o tipo profissional, social, civil e político, naquilo que hoje se chama de sociedade civil, em ancorar o sistema democrático. Para ele a democracia não tem que ficar só pelos cargos e órgãos eleitos. Precisa da participação activa, atenta e fiscalizadora dos cidadãos e das suas associações para que a sua integridade baseada na liberdade, no pluralismo e no primado da lei não seja posta em causa. Atirar-se contra as instituições da democracia descredibilizando-as, por que descontente com o seu funcionamento num determinado momento, é como dar um tiro no pé. E a história mostra que depois de se fazer ruir as instituições o caminho fica aberto para candidatos a “salvadores da pátria” todos eles prontos a sacrificar a liberdade em nome da sua ordem e da sua justiça.

A democracia também é ancorada nos seus fundamentos quando, como se viu recentemente na América de Trump, maiorias conjunturais são limitadas no seu poder de desestruturação institucional do sistema político vigente por órgãos independentes. O Supremo Tribunal de Justiça, a comissão eleitoral e a instituição militar efectivamente impediram que a legitimidade das eleições de 2020 fosse posta em causa e que não se verificasse a transferência de poder para o candidato vencedor. O exercício independente, competente e com sentido de serviço público das suas funções pelas magistraturas judiciais e do ministério público e pelos titulares de órgãos como o banco central, comissão eleitoral, autoridades reguladoras, comissão de dados e outras entidades afins é de maior importância para a credibilidade do sistema e para manter a confiança dos cidadãos. Devem ser protegidas de interferências desestabilizadoras das suas funções.

Ainda estão por realizar mais dois debates antes das legislativas e a campanha eleitoral só começa no dia 1 de Abril. Deve haver mais pressão das pessoas e da sociedade civil para que o discurso produzido pelos candidatos reflicta mais a situação real do país neste tempo de pandemia e de recessão mundial na perspectiva de se encontrar as melhores soluções. O momento não é só dos partidos. É também de todos os cidadãos e suas organizações. E não se trata só de votar no dia 18 de Abril, mas de se fazerem ouvir com responsabilidade e um sentido apurado de que é preciso preservar as virtualidades do sistema democrático para que o futuro do país se realize com ganhos para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1008 de 24 de Março de 2021.

segunda-feira, março 22, 2021

Um ano de Covid, tempo para reflexão

 

Um ano a conviver com a Covid-19 devia ser momento de uma reflexão profunda de como se encarou a pandemia, de como as pessoas se adaptaram às exigências dos novos tempos e de como as políticas públicas e o Estado mudaram para responder aos novos desafios.

Em todo o mundo reflexões dessa natureza têm sido feitas pelos mais diversos sectores da sociedade envolvendo personalidades das mais diferentes áreas, incluindo cientistas, políticos, operadores económicos, agentes culturais, entidades religiosas e activistas sociais. Em Cabo Verde, infelizmente reflexões sobre a matéria não abundam, prefere-se ficar quase sempre pelos comunicados dos números diários de casos acompanhados de análises da evolução da doença muitas vezes a contragosto, quando instados por jornalistas. Da parte das autoridades, nota-se não poucas vezes uma certa irritação se não hostilidade sempre que opiniões não oficiais são manifestadas sobre os dados da pandemia e que questionamentos são feitos quanto à condução da luta contra o vírus mesmo quando vêm de profissionais com experiência na área da saúde.

É mais que provável que a convivência com a Covid-19 vai durar de uma forma ou outra por vários anos. A grande questão é se se pode ir ultrapassando as dificuldades colocadas pela pandemia sem uma efectiva mobilização de todos para a combater. É verdade que se pode retirar erradas conclusões do que se passou até agora e concluir que se pode continuar a fazer o mesmo sem riscos futuros de problemas maiores em termos de saúde pública, do impacto sócio económico e dos efeitos a prazo na qualidade de vida das pessoas. A tentação é grande para manter a atitude, sempre que há crises sejam elas secas, furacões ou epidemias, de mobilizar ajuda externa e dar continuidade a programas que o tempo tem demonstrado que permitem sobrevivência no dia-a-dia, mas a prazo não diminuem as vulnerabilidades das populações e a precariedade na vida das pessoas.

De facto, passou um ano e não houve pressão sobre o sistema de saúde que pudesse ameaçar colapso. As mortes pela Covid-19 ficaram sempre aquém do 1% dos casos identificados e não foram traumáticas a ponto de forçar reflexão e mudanças na postura das pessoas. A população em grande medida acatou as recomendações das autoridades quanto ao distanciamento social e em particular quanto ao uso de máscaras o que eventualmente veio a revelar-se a grande medida para a contenção da velocidade de transmissão do vírus. O impacto do desemprego massivo causado pelo coronavírus foi amortecido com programas de lay-off para os trabalhadores privados, com rendimento social assegurado a muitos operadores informais e com vários programas de suporte às famílias vulneráveis. Nesse sentido também contribuíram as moratórias nos pagamentos bancários, as rendas de habitações sociais perdoadas ou diminuídas e a construção civil alimentada pelo Estado, pelos municípios e também por privados. As remessas de emigrantes mantiveram-se no seu papel fulcral de ser a grande safety net, a rede que ampara muitas famílias em momentos de necessidade.

Pode bem acontecer que alguém venha dizer que se num primeiro ano conseguiu-se isso seguindo um certo caminho e recorrendo a uma determinada orientação por que não continuar na mesma senda num segundo ou terceiro ano ou durante todo o tempo que durar a pandemia. A grande diferença é que no caso da pandemia da covid-19 todos os países sofrem e endividam-se e vão levar algum tempo para se recuperarem e conseguirem ser generosos com os outros. Caso para dizer que com a pandemia o mundo mudou e o egoísmo das nações nem sempre será equilibrado pelo espírito altruísta manifestado noutros tempos. Não é pois razoável contar com a repetição da generosidade, sem perceber que mesmo se mantendo será cada vez menor o seu impacto sobre a economia, face ao acumular da dívida pública e as dificuldades reais em avançar com uma retoma robusta e sustentável. Claro que perceber e assumir isso seria uma demostração de que algo se entendeu da pandemia e que convém mudar em muita coisa para se estar preparado na próxima vez, porque haverá sempre uma próxima vez.

A chegada das vacinas para a Covid-19 antes que do que se supunha como tempo necessário para desenvolver uma vacina eficaz pode levar muitos a pensar que é possível ou mesmo desejável continuar a fazer o mesmo e esperar que as coisas mudem. Não se faz por compreender que os sacrifícios de ontem não foram só para evitar o colapso do sistema de saúde e conter o número de mortos como também para se construir uma resposta em termos de imunidade de grupo. A proximidade das eleições com o ciclo eleitoral iniciado com as eleições autárquicas de Outubro e seguidas pelas legislativas em Abril e as presidenciais de Outubro não ajuda a fugir desta tentação perigosa.

Muito pelo contrário, a excessiva politização agora exacerbada em tempo de eleições só vai empobrecer ainda mais o discurso político, polarizar opiniões, açambarcar e diluir todo o pensamento, criatividade e iniciativa das pessoas na contenda para chegar ao poder. Até as vacinas não escapam a essa politização primária com a agravante dos protagonistas fingirem não perceber que a desconfiança lançada contra as vacinas torna as pessoas renitentes em as aceitar. Com isso é a saúde das pessoas que são colocadas em perigo ou vidas que terminam antes do que devia ser a “sua hora”. Ao insistir nesse caminho dificilmente se deixa espaço para a reflexão plural dos problemas, para a mobilização das energias e para o espírito de cooperação que, alimentando a confiança entre as pessoas, constitui a base a partir da qual se aumenta o capital social necessário para a prosperidade individual, familiar e colectiva.

Com a pandemia muitos países estão a mudar. Há dias os Estado Unidos aprovaram um plano de ajuda às pessoas e à economia no valor de 1,9 triliões de dólares. Somando esse novo estímulo aos outros concedidos durante este ano de covid, como nota o colunista do New York Times David Brooks, chega-se ao valor de 5,5 triliões de dólares gastos com a pandemia, uma quantia muito superior aos 4,8 triliões gastos durante a segunda guerra mundial. Para um país que até recentemente acreditava em governos pequenos e não muito intervencionistas em matéria de luta contra desigualdades diversas é uma inflexão de políticas e do papel do Estado de tal forma transformacional que alguns já a apontam como igual ou superior ao do New Deal de Franklin Roosevelt. A Europa vai provavelmente seguir passos similares assim como outros países emergentes para fazer face aos desafios que o coronavírus irá coloca a todos ainda por alguns anos. Cabo Verde não pode, nem deve ser excepção. Período eleitoral não é desculpa. Muito pelo contrário.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1007 de 17 de Março de 2021.

quinta-feira, março 18, 2021

Emigração, um activo a não desperdiçar

 

Em tempo de eleições invariavelmente volta-se à questão da participação dos caboverdianos residentes no exterior nos pleitos eleitorais.

Há vozes que dizem para se alargar a participação para as eleições autárquicas. Outras, mais em surdina, mostram preocupação com os efeitos da transposição da crispação política e do partidarismo excessivo que resulta das disputas políticas no país para as comunidades no exterior. Neste ciclo eleitoral o foco das atenções tem sido a participação nas eleições presidenciais. Contestam-se os requisitos para se ser candidato a presidente da república, em particular, a exigência de ser caboverdiano de origem e de não ter dupla ou plurinacionalidade. Disputa-se o chamado valor do voto do caboverdiano residente no estrangeiro que segundo algumas interpretações seria de um quinto do voto do cidadão recenseado no território nacional.

A participação da diáspora nas eleições iniciou-se com a Constituição de 1992. Para as legislativas ficou estabelecido no nº2 do artigo 153º da versão originária que ao conjunto dos círculos eleitorais fora do território nacional correspondiam seis deputados. A lei eleitoral depois viria a criar três círculos na emigração com dois deputados cada. Para as presidenciais estendeu-se o sufrágio a residentes e não residentes com a ressalva de que o total desses votos equivalia no máximo a um quinto dos votos apurados no território nacional. A ousadia em dar aos emigrantes a possibilidade de votar nas eleições do PR diluiu-se na controvérsia criada à volta da limitação dos efeitos da votação no exterior. Alguns países na época permitiam a votação da diáspora nas legislativas, mas não nas presidenciais. Portugal só viria a consagrar a participação dos emigrantes na revisão de 1997 mais de vinte anos depois da adopção da Constituição da III República.

Em Cabo Verde, ao contrário da generalidade dos países, existe a percepção de que o número de caboverdianos e seus descendentes a viver fora do país é maior do que a população residente. Esse facto coloca potencialmente a hipótese de o presidente ser eleito só com os votos dos emigrantes. Ora, sendo o presidente da república o representante da comunidade política e o Chefe de Estado no território que define o país não parece próprio que a sua escolha em eleições seja determinada por cidadãos não residentes, embora recenseados. Daí talvez que se tenha querido limitar o eventual impacto dos votos a um quinto dos conseguidos nas urnas em território nacional.

Curiosamente, apesar de até agora nunca se ter aplicado o critério porque a votação na diáspora nas eleições presidenciais tem ficado sempre muito aquém desse máximo não falta quem queira ver agravo na matéria e queira interpretar o preceito como uma espécie de discriminação do emigrante, quando, de facto, era claro o intento do legislador constituinte de tornar mais inclusiva a sua participação política. Prova disso é que – quando se trata da representação dos cidadãos num órgão plural como o parlamento – a quota dos deputados pela emigração, é de seis em 72 deputados, ou seja, de (8,3%) quando em Portugal são 4 em 230 deputados representando 1,7%. Em relação a uma outra objecção que é levantada quanto a dupla nacionalidade do candidato a PR, a posição de constitucionalistas como Gomes Canotilho e Vital Moreira é que é de se questionar se o cargo é compatível com a posse de outra cidadania e de se admitir implicitamente uma proibição de eleição de cidadãos plurinacionais.

A verdade é que, não obstante o esforço feito ao longo dos anos na promoção do recenseamento no exterior, o número de caboverdeanos recenseados que vão votar não tem aumentado extraordinariamente. Embora sejam inquestionáveis os laços afectivos que os ligam à terra, à família e aos amigos nota-se que para muitos a participação política é uma outra coisa. As questões do país não deixam de estar distantes do seu quotidiano e por isso não são seguidas de forma sistemática e muito menos apaixonada. Democracia liga comunidade a um território específico e conecta a representação nos órgãos de poder político à contribuição fiscal dos cidadãos e às suas perspectivas de como o “bolo” geral deve ser aplicado na resolução dos problemas da comunidade.

É natural que, existindo possibilidade de participação, quem mais se engaja no processo é quem é afectado directamente tanto pelos impostos pagos como pelos benefícios recebidos e serviços disponibilizados pelas autoridades públicas. Não é à toa que na base da democracia está o princípio de“no taxation without representation” (sem representação não há tributação). Aliás, nas eleições autárquicas vê-se aplicado o princípio quando limita o voto aos considerados munícipes com exclusão mesmo dos que eventualmente ali nasceram, mas não têm residência permanente. Por isso, assumir que existe um quadro discriminatório nas actuais limitações de elementos da diáspora nas eleições presidenciais parece excessivo e apenas pode servir para exacerbar antagonismos onde nem deviam existir.

A pandemia da covid-19 veio mais uma vez confirmar a importância-chave da ligação do país às suas comunidades no exterior. As remessas dos emigrantes aumentaram na actual situação de maior necessidade demonstrando o quanto que a solidariedade com os familiares nas ilhas é consistente em qualquer circunstância mesmo quando a conjuntura não é boa e os rendimentos diminuem. O fluxo externo assim gerado ajuda a estabilizar o país e faz relembrar que é preciso desenvolver estratégias a vários níveis para o garantir, ampliar e qualificar de modo a ter o máximo de impacto na economia nacional e a afectar de forma mais positiva o rendimento das pessoas.

Nesse sentido, é fundamental que o país no seu todo aposte no sucesso das suas comunidades nos países de emigração. Noutras paragens diz-se que querelas partidárias não devem ir além da linha de horizonte para que a política externa tornada consensual no país seja mais efectiva no plano internacional. Em Cabo Verde esse princípio também devia ser aplicado à política dirigida às comunidades emigradas. Constituem um activo demasiado importante para serem alienadas com crispações em nome da participação política nas ilhas quando a atenção na comunidade devia ser virada para conseguir mais mobilidade social, melhor posicionamento na estrutura produtiva e crescente capacidade de influenciação política e cultural nos países de acolhimento.

Cabo Verde ainda pode ajudar com uma política de educação e formação que fomente uma emigração mais qualificada. Países como a Índia fizeram isso durante décadas no domínio das ciências e hoje colhem o rico retorno do investimento em particular nos sectores da economia do conhecimento e das tecnologias de informação e comunicação. As Filipinas “exportam” anualmente mais de 13 mil enfermeiras e outros profissionais de saúde. Também Cabo Verde deverá ter uma política activa nesse sentido considerando que sem um sector industrial dinâmico não tem como resolver o problema do desemprego de forma rápida e com emprego de qualidade.

Uma aposta podia ser feita no domínio da saúde onde claramente há um mercado global em franca expansão principalmente agora com a Covid-19 que hoje é uma pandemia, amanhã provavelmente será uma doença endémica exigindo cuidados permanentes para neutralizar os surtos, vacinar e cuidar de sequelas. No país já há várias escolas de enfermagem e de outros cuidadores de saúde, mas seria de toda a importância que, dentro de uma estratégia não só de qualificar a emigração como também de preparar o país para ser um futuro fornecedor de cuidados de saúde, conseguissem certificação internacional dessas classes de profissionais. A convergência com a União Europeia no quadro do acordo especial não tem que ser só no campo normativo. Deve ser mais abrangente e incluir o exercício de profissões que, para benefício das partes, justificariam a ampliação do acordo de mobilidade. Aliás, neste aspecto, há muito que o caminho foi aberto pelos emigrantes que nos vários países são cuidadores só que infelizmente sem capacitação formal e por causa disso prejudicados no rendimento que poderiam auferir.

Para Cabo Verde é de grande importância que os emigrantes tenham possibilidade de participação política efectiva na vida nacional. O quadro existente mesmo não sendo o ideal é claramente satisfatório e está a par do que existe nas democracias mais avançadas. O estreitamento das relações do país com as suas comunidades no estrangeiro deve ir por outras vias que realmente aumentem as suas probabilidades de sucesso e de prosperidade nos países de acolhimento e em simultâneo as capacitem para melhor ajudar os familiares e investir na economia das ilhas. De evitar de todo deve ser a tentação de transplantar a crispação política no país para as comunidades. Colhem-se ganhos políticos mínimos e deixa-se como resultado mal-estar, ressentimentos e questiúnculas identitárias perturbadores que constituem obstáculos ao almejado por todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1006 de 10 de Março de 2021.

segunda-feira, março 08, 2021

Desconstrução da justiça não é solução

 Assistiu-se na semana passada a mais alguns episódios do que se podia chamar a novela da “não Justiça”. O julgamento de um advogado que alegadamente difamou magistrados judiciais, entre os quais juízes conselheiros, foi pontuado por vários incidentes que, sem surpresa, levaram a mais um adiamento dos procedimentos para o dia 5 e seguintes de Março.

Será a quarta tentativa de julgamento. Inicialmente previsto para 5 de Janeiro depois de um hiato de quase dois anos – a última tentativa tinha sido em Março de 2019 – o julgamento foi adiado para 23 de Fevereiro por não comparência do acusado. A detenção do advogado com o intuito de prevenir a repetição da não comparência em Janeiro não serviu de muito para garantir o prosseguimento normal do julgamento.

Actos perturbadores dos procedimentos como abandono de sala, contestação da competência do juízo criminal e questionamentos quanto à idoneidade da juíza que se seguiram e tiveram eco ao longo da semana em órgãos de comunicação social e nas redes sociais foram suficientes para provocar mais outro adiamento. Curiosamente do lado de onde vêm denúncias parece haver maior disponibilidade e criatividade no uso de tácticas diversas para garantir que a justiça fica sempre adiada, confirmando num círculo vicioso a noção inicial de “não justiça” no país. Sem julgamentos iniciados e concluídos não há como os caluniados obterem reparação de quem os acusou nem este tem a possibilidade de finalmente provar as denúncias feitas. Os estragos vão porém muito além ao deixar sob suspeita juízes, processos e procedimentos judiciais. É todo o sistema judicial que se arrisca a ser descredibilizado se a situação perdurar por muito mais tempo.

Na democracia a realização da justiça é fundamental para a Liberdade e a paz social. O Estado de Direito democrático instituído, para além de se reger pelo princípio de separação dos poderes tem o seu suporte no primado da lei e na independência dos tribunais. A democracia corre perigo se se transmite a ideia de que a lei pode não ser igual para todos, que a justiça não é eficaz ou que há espaço para os juízes servirem interesses próprios ou de outrem na administração da justiça sem receio de serem punidos e expurgados do sistema. Não é por acaso que os inimigos da democracia liberal e constitucional tomam a integridade e a independência da justiça como alvo central de ataque. Sempre que acontecimentos, eventos ou conjunturas se mostrarem propícios a ataques à justiça nota-se como que de repente e de diferentes quadrantes frustrações com a actuação da justiça ou sua morosidade se juntam a sentimentos às vezes cépticos em relação à democracia e em alguns casos até anti-sistémicos para descredibilizar a democracia.

Em Cabo Verde é visível como, com o arrastar por anos seguidos do julgamento referido em que magistrados judiciais foram alegadamente caluniados, o caso tem sido transformado na bandeira de quantos querem demonstrar o seu descontentamento com o sistema de justiça e o actual regime democrático. Nos últimos tempos a força gravitacional desse caso tem aumentado, ameaçando atrair os próprios partidos políticos, em particular os mais pequenos que julgam poder capitalizar a onda populista que nele se revê. Não havendo no país factores fracturantes do tipo existentes noutras democracias nomeadamente grupos étnicos ou religiosos em tensão permanente, migrações expressivas de outras regiões, ou discriminações claras entre grupos populacionais, fica muito pouco para ser canalizado por sentimentos anti-sistema e por descontentes da democracia. Não estranha pois que alguma percepção da crise na justiça existente na sociedade seja aproveitado nesse sentido.

A petição “em prol de uma melhor justiça em Cabo Verde” dirigida ao presidente da república, provavelmente associada às manifestações recentes de pessoas e grupos à volta dos julgamentos sucessivamente marcados e adiados, terá deixado alarmado o próprio presidente de república, como parece transparecer de um seu post na sua página do Facebook. No post de 26 de Fevereiro logo a seguir a um outro de 25 de Fevereiro em que confirma ter recebido a petição, o PR escreve : “ficamos surpresos às vezes quase «arrepiados», ao lermos e ouvirmos coisas, propostas, manifestações, crenças, opções, de gente que - legítima e justificadamente insatisfeita com a situação em que vive e que observa no dia a dia - nos parecia completamente vacinada contra remédios do autoritarismo político, de um bonapartismo à mão de semear, sugestões aventureiras, amiúde a roçar a leviandade e/ou fundadas em grosseira manipulação de factos e realidades, propalados por profetas da salvação fácil, imediata e, portanto, atraente!”

De facto é muito complicado encarar questões importantes da vida do país quando o ponto de partida não corresponde aos factos. Para se propor uma “comissão de gente independente” para investigar a justiça começa-se primeiramente por semear dúvidas e suspeições numa espécie de realidade alternativa: “terá sido ordenado um inquérito”; “é verdade que não se lhe conhecem os resultados”; “é evidente que um inquérito dessa natureza (realizado pelos pares) não dá garantias de credibilidade”. Facto é que foram feitos três inquéritos: dois do Ministério Público e um outro pelo serviço de inspecção judicial a pedido do Conselho Superior de Magistratura judicial (CSMJ). Os comunicados da Procuradoria-Geral da República, um datado de 10 Abril de 2019, e o outro de 3 de Janeiro de 2020, são peremptórios a dizer que existem “prova bastante de não verificação dos alegados crimes” e anunciam que os despachos de encerramento estão abertos na PGR para consulta por qualquer cidadão. Vai no mesmo sentido o comunicado do CSMJ de 20 de Outubro de 2017. Porém, mais complicada ainda será a aparente sugestão posta a circular que não há “garantia de isenção que permita ao cidadão dizer em consciência, caso não se provar as acusações”, que [o réu] merece ser severamente punido por ter-se permitido denegrir a Justiça do país”. Ou seja, sugere-se que não se aceite a sentença do tribunal.

Ora, acontecimentos recentes vieram relembrar precisamente a importância de se manter a credibilidade do sistema judicial face às ameaças a que nos tempos actuais as democracias estão sujeitas. Há pouco mais de um mês viu-se como o sistema judicial, as comissões eleitorais nos diferentes estados americanos e a postura da instituição militar nos Estados Unidos da América contribuíram para salvar a democracia americana das investidas de forças antidemocráticas que contestavam os resultados das eleições. No Brasil, e noutros países onde os sinais da crise da democracia são mais evidentes, vê-se como o poder judicial ajuda a conter o populismo iliberal e como também se torna o alvo preferido de todas as manifestações anti sistémicas. Quando todas as democracias, sejam elas novas ou consolidadas, parecem estar a passar por uma crise profunda, incluindo crise de representação, descredibilização das instituições e o recrudescer de sentimentos anti elitistas, é fundamental que se preserve a confiança no sistema da justiça.

Em Cabo Verde os dados recentes apresentados pelo Afrobarómetro deram conta do desgaste já sentido nas instituições democráticas do país. Há razões externas que na actual conjuntura afectam todas as democracias e que se fazem sentir no país mas também há razões internas que importa identificar e contrariar para se poder reverter o actual curso. Os partidos políticos têm responsabilidade no processo, mas a culpa não deve ser somente atribuída à classe política. É fundamental exigir-se a responsabilidade de quantos em várias instituições reguladoras, de fiscalização e supervisão contribuem para que a sociedade seja autónoma e inovadora e se mantenha plural. Em particular do sistema judicial todos esperam que com competência e celeridade necessária garantam a eficácia da justiça e mesmo nos momentos difíceis saibam manter a confiança das pessoas. Dessa relação de confiança é que depende toda a credibilidade e a legitimidade do sistema judicial aos olhos do cidadão comum. Os sobressaltos dos tempos de hoje mais do que nunca convidam a relembrar de como é fundamental preservar a justiça para se ter paz e liberdade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1005 de 3 de Março de 2021.

segunda-feira, março 01, 2021

Imunidade de grupo, objectivo estratégico a atingir

 

O governo publicou na quinta-feira,18, o seu plano de introdução e vacinação contra a Covid 19. No documento ficou estabelecido que se espera vacinar um total de 60% da população até 2023, sendo 20% em 2021, 20% em 2022 e 20% em 2023.

Como estratégia opta-se por priorizar alguns grupos alvos seguindo as orientações da OMS e por fasear o processo de vacinação conforme a disponibilidade das doses. Em consequência, as 111.372 pessoas a receber em primeiro lugar as vacinas em 2021 serão profissionais de saúde, gente com doença crónica ou com idade igual ou superior a 60 anos, trabalhadores hoteleiros e ligados ao turismo, funcionários nos pontos de entrada dos aeroportos e portos, professores, polícias, militares, bombeiros e pessoal de protecção civil. O plano, entretanto recebido com alguma perplexidade, não deixou claro quando se espera atingir imunidade de grupo como forma de impedir a transmissão do vírus na comunidade e, como se espera, obtê-la ilha por ilha sendo o país um arquipélago. Também não se indica quando poder-se-á contar com a retoma da economia sabendo que ela só será possível se os países emissores de turistas considerarem Cabo Verde um país seguro em termos sanitários e isso não é possível com apenas 20% da população vacinada e nem mesmo com 40 ou 60%.

A pandemia da covid-19 é uma ameaça à vida e aos meios de vida das pessoas. Para a combater tem que se cuidar da saúde das pessoas e isso necessariamente inclui manter o sistema de saúde a funcionar, administrar as vacinas necessárias e desenvolver terapêuticas eficazes para fazer face aos sintomas às vezes críticos da doença. O facto de se transmitir através do ar obriga a que sejam medidas de confinamento e de distanciamento social e se generalize o uso de máscaras faciais com impacto geral na economia e consequente perda de rendimentos e também de outras dinâmicas em todos outros domínios como o pessoal, familiar, profissional, social e cultural. Retornar a alguma normalidade é essencial tanto para a sanidade das pessoas como para futuras retomas de prosperidade. Na ausência de tratamentos específicos e efectivos para a covid-19 as campanhas de vacinação são imprescindíveis para se atingir tal desiderato.

Um plano que não consagre explicitamente esse objectivo num horizonte temporal razoável – para um país frágil e dependente como Cabo Verde o razoável é “ontem” - só pode, de facto, causar perplexidade e estranheza. Vê-se que para a feitura do plano só se contou praticamente com as doses previstas no quadro da Covax que inicialmente são 5.850 doses da vacina da Pfizer e as 108.000 doses da AstraZeneca. Com esse condicionamento, aparentemente perdeu-se de vista que a par do objectivo de proteger a população mais vulnerável devia-se programar para preparar o país para a retoma económica. Ora a retoma num país dependente do turismo significa reactivar o fluxo de turistas em tempo para aproveitar a época alta que começa em meados de Outubro e vai até Abril/Maio. Já bastam os prejuízos de 2020.

Para aproveitar a temporada de 2021/2022, o destino turístico cabo-verdiano deve poder dar garantias aos países emissores que o risco de contágio dos seus nacionais em férias é mínimo. Na Europa, designadamente no Reino Unido de onde vem o maior número de turistas, os governos esperam ter no fim de Verão entre 80 e 90% da população já vacinada. Ser atractivo para esses turistas pode significar ir além da meta inicial de vacinar os trabalhadores nos hotéis e nas actividades conexas e procurar conseguir a imunidade de grupo da população geral. O facto dos dois grandes destinos turísticos de Cabo Verde, Sal e Boa Vista serem ilhas de população relativamente pequena pode prestar-se à construção de uma imagem de ilhas perfeitamente seguras para o turismo.

Ser um país arquipélago tem muitas desvantagens, mas tem também algumas vantagens que convém saber aproveitar quando se enfrentam certos tipos de desafios. As ilhas enquanto territórios descontínuos naturalmente constituem espaços mais propícios para confinamentos. Permitem o controlo mais efectivo de epidemias e dos seus efeitos. Com isso em mente devia haver um consenso geral de que um forte investimento no Sal e na Boa Vista para controlar a Covid-19 e assegurar desta forma a reactivação do fluxo turístico que, pelo seu impacto na retoma da actividade económica, é de maior importância para o resto do país. Exceptuando o que se aplica na defesa da saúde da população mais vulnerável, que certamente é a prioridade das prioridades, a utilização planificada dos meios existentes devia ter isso em devida conta.

Em simultâneo Cabo Verde devia estar activamente através de múltiplos canais tanto bilaterais como multilaterais a mobilizar apoios no sentido de também conseguir atingir a imunidade de grupo da sua população, ou seja, de ter a sua população vacinada acima dos 70% ainda durante este ano de 2021. Convenhamos que o país só tem pouco mais do que 550 mil habitantes. Não conseguir isso poderá afectar severamente por vários anos tanto a imagem como a economia nacional. O maior parceiro económico de Cabo Verde é a União Europeia. Sendo assim, o país não pode ficar muito atrás nos seus planos de vacinação de uma doença com elevado grau de contágio se quiser continuar a beneficiar do turismo e dos múltiplos intercâmbios com essa região, incluindo contactos com a sua própria diáspora. Realmente, no quadro actual atingir imunidade de grupo deve ser o objectivo estratégico de capital importância a ser assumido por todos, Estado, sociedade e pessoas.

Em encontrar ânimo para fazer essa luta toda a nação cabo-verdiana devia inspirar-se no exemplo de solidariedade que durante este ano de pandemia da covid-19 foi dado pelas comunidades emigradas. Quando se podia esperar que com a quebra nos rendimentos dos emigrantes diminuiriam as remessas constatou-se precisamente o contrário. Aumentaram em mais de 3% de 2019 para 2020 atingindo o valor de 14.918 milhões de escudos em Setembro de 2020. A atitude solidária dos emigrantes deve ajudar a relembrar as virtudes que outrora face a situações de calamidade natural fizeram do cabo-verdiano um povo resiliente. A generosidade, a afectividade e e o sentido de pertença demonstrados devem também fazer sentir-se dentro do país para que os condicionalismos físicos e mentais da dependência sejam ultrapassados e para que sejam vencidas as vulnerabilidades presentes ainda nos diferentes sectores da população. O futuro só será possível com outro espírito. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1004 de 24 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 22, 2021

Evitar bloqueio, se não colapso

A dois meses das eleições legislativas são notórias as movimentações de partidos, sindicatos, associações, grupos de interesses e personalidades para beneficiar ainda da situação actual e desde já ficarem bem posicionados para o que segue.

O governo desdobra-se em inaugurações por todas as ilhas, municípios e outros pontos do território nacional; partidos da oposição apontam o não cumprimento de promessas e minimizam obras feitas; sindicatos marcam manifestações, ameaçam greves e reivindicam aumentos, promoções e progressões para trabalhadores do sector público; grupos de interesses diversos pelas razões as mais espúrias, como se viu na última sessão do parlamento com a petição de ex-militares, procuram extrair benefícios do Estado em forma de pensões e outras facilidades; e personalidades apanhadas na luta intrapartidária para listas de deputados salvaguardam-se para o amanhã. Com o futuro imprevisível e os outros sectores da economia à espera de uma oportunidade de retoma, o Estado tornou-se o foco da atenção de todos. Na corrida aos recursos públicos assim desencadeada nem a pandemia da Covid-19 mostra-se capaz de forçar a olhar para os lados.

Em vários momentos de lucidez surgem vozes na sociedade cabo-verdiana que apelam a mudança de atitude e a troca de “chip”. Os apelos invariavelmente caem em saco roto ou são esquecidos. Entretanto, o mundo não pára e o país inexoravelmente vai ficando para trás porque as reformas para a modernização não chegam a tempo. Neste processo o país vai acumulando dívida pública, aumentando vulnerabilidades, reproduzindo precariedade e perdendo oportunidades. Mesmo quando beneficia de uma conjuntura internacional favorável como aconteceu entre 2016 e Março 2020 com todas as grandes economias do mundo a crescerem em simultâneo, não consegue dar o salto. Não fez as reformas no tempo certo. Suficientes, porém, revelaram-se os três anos de seca para revelar as vulnerabilidades que persistem no país não obstante ter vindo a crescer até o surto do coronavírus a taxas que se aproximava dos 6% do PIB.

A chegada da Covid-19 a partir de Março de 2020 acabou por mostrar cabalmente a extrema fragilidade de uma economia pequena, insular, muito pouco diversificada e dependente do turismo. O grande problema é que, quase um ano depois do início da pandemia, não se vislumbram alterações substantivas na forma como os actores políticos e sociais se comportam. Não há muitos sinais de que realmente se quer mudar de atitude, trocar de chip ou iniciar preparativos para um eventual take off. Num mundo em que a normalidade anterior desapareceu, quer-se continuar a funcionar como se nada tivesse acontecido.

A questão que se pode colocar é, ou o choque da pandemia não foi suficiente para uma chamada à realidade, ou então o país de tão preso que está na sua forma de estar, viver e sobreviver que nada já o afecta. A falta de reacção adequada a situações anteriores de erupções, desastres, naufrágio e até de massacre que não foram seguidas de mudanças consequentes nas instituições, nos procedimentos e na postura das autoridades já deixava entender isso. Não se esperava é que, mesmo com uma pandemia global sem uma previsão de acabar tão cedo, a tentação de persistir em fazer o mesmo fosse tão forte. Não muito ausente dessa atitude provavelmente estará a crença que a dívida pública entretanto acumulada será perdoada, que a ajuda externa até irá aumentar por causa da covid-19 e que o interesse dos operadores estrangeiros não se alterará no “novo normal”.

Ajuda a manter essa inércia o sentimento que muitos parecem nutrir de que a pandemia da covid-19 poderá ter os dias contados particularmente depois que várias vacinas com elevados níveis de eficácia foram criadas. A realidade porém é muito mais complexa como demonstra o aparecimento de várias variantes do coronavírus mais contagiosas e algumas talvez até mais letais. A luta de vários anos que vai opor o coronavírus em mutação rápida e o sistema imunitário humano com a ajuda das vacinas certamente terá consequências. Prevê-se que depois de contida a pandemia, em vários países a doença vai ficar endémica com surtos epidémicos periódicos. Também sequelas da doença não deixarão de manifestar-se entre os muitos milhões de recuperados. Os constrangimentos que tudo isso irá provocar a todos os níveis asseguram que não haverá o regresso à normalidade anterior.

É evidente que será profundo o impacto que a Covid’19 vai provocar nas economias nacionais e na economia mundial. Como reagir a essas mudanças é o grande desafio que se coloca a todos, sejam países desenvolvidos, emergentes ou mais pequenos e frágeis como Cabo Verde. Há que reformular políticas, prioridades e atitudes. Recentemente Ruchir Sharma, autor do livro Milagres Económico do Futuro, no jornal Financial Times, aconselhava os países em desenvolvimento a fazer as reformas necessárias para aumentar a produtividade e a competitividade e a não seguir o exemplo dos países ricos que procuram estimular a economia com injecção de liquidez recorrendo a mecanismos financeiros que aumentam extraordinariamente a dívida pública. Estes, além de terem capacidade para pagar a dívida ainda beneficiam de juros baixos e mesmo negativos o que dificilmente acontecerá com os outros países menos desenvolvidos.

Pensar diferente é também o que aconselha Dani Rodrik. O economista de Harvard propõe para ultrapassar a situação actual de grandes desigualdades sociais e esvaziar os extremismos políticos que se faça um comprometimento sério para criação de um grande número de postos de trabalho que também sejam bons empregos. Num artigo no Project-Syndicate ele nota que em África constata-se que grandes empresas industriais de capital intensivo são produtivas, mas empregam poucas pessoas enquanto pequenas e médias empresas têm muitos trabalhadores, mas produtividade muita baixa o que leva globalmente a salários mais baixos, não criando os bons empregos. Ao Estado aconselha um novo papel para resolver esse e outros problemas, nesta nova era pós-pandémica e de necessidade de um novo contrato social, numa linha próxima daquela que Mariana Mazzucato expõe no seu novo livro Economia de Missão.

Em Cabo Verde infelizmente o papel do Estado não é visto como promotor e facilitador de processos de criação de riqueza. É mais compreendido no papel que aparece todos os dias na televisão a representar. O papel de distribuidor de riqueza que o faz paternalista, realizador de sonhos da população e generoso para com as reivindicações das pessoas. Com o Estado nessa função todos, as pessoas e a sociedade, correm o risco perder a noção de como se cria valor. Também sempre vai aparecer quem tente extrair valor para servir a si próprio e à uma clientela. Globalmente acaba por verificar-se uma grande destruição de valor com as ineficiências, os desvios e as oportunidades perdidas.

Mudar de atitude ou trocar o chip deveria passar por redefinir o papel do Estado numa a perspectiva em que a criação de riqueza não estaria desligada da sua distribuição e utilização na potenciação dos recursos do país e em particular do capital humano. Infelizmente o que parece estar na ordem do dia é o poder e a corrida aos recursos. A possibilidade real de “um bloqueio, se não colapso do Estado” se não houver perdão da dívida externa e investimentos externos transformadores, como referiu o Vice-Primeiro-Ministro, na segunda-feira, devia servir de travão efectivo a tais ímpetos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1003 de 17 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 15, 2021

Tempo para acabar com os mitos

 

A reorganização da economia mundial e de muitas economias nacionais é uma das consequências da pandemia da Covid-19 que vem avassalando o mundo desde dos primeiros meses de 2020.

É um processo quase incontornável considerando o impacto que o Sars-coV-2 tem tido em todos os aspectos da vida. As previsões para o regresso a uma normalidade, que certamente não será a mesma de antes, apontam para um mínimo de dois ou três anos. Entrementes, para combater os efeitos disruptivos do coronavírus, não obstante a vacinação em massa das populações, vão-se exigir novos comportamentos e novas formas de trabalhar. Para se posicionarem com vantagem para o futuro os países terão de renovar a capacidade de resposta a pandemias e a outras catástrofes naturais. Muita coisa vai mudar e nem sempre para melhor. Já há sinais de proteccionismo e de repatriação de indústrias estratégicas, mas também de priorização de investimentos no sector da saúde e em geral medidas de reconfiguração do comércio internacional.

Para os países mais pequenos e insulares o desafio é ainda maior. Muitos como Cabo Verde têm uma economia pouco diversificada e qualquer perturbação nas transacções de mercadorias e no fluxo de pessoas e de capitais tem efeitos demolidores. A retracção do turismo tem um efeito demolidor porque põe em causa sectores-chave como a construção, transportes e acolhimento que depois afectam por arrastamento várias indústrias e serviços. O desemprego e a perda de rendimento que daí resultam têm consequências sociais e até psicológicas graves que juntas com as exigências de distanciamento social e outros constrangimentos podem levar a situações muito complicadas.

Saber reagir perante o choque inesperado que foi a pandemia é crucial para poder conter os seus efeitos perniciosos e preparar-se para potenciar eventuais vantagens. Uma das vias a ser considerada numa perspectiva de maior diversificação da economia e de criação de mais riqueza nacional é a exploração dos recursos naturais existentes. A celebração do Dia do Pescador veio relembrar a importância actual do sector para a economia e para o rendimento das pessoas e o que potencialmente podia ter, se ao longo dos tempos, nele se tivesse investido com uma outra visão.

O sector, de facto, teria outra relevância se ao invés das quinze mil toneladas pescadas anualmente se se aproximasse das 40.000 toneladas possíveis. Se houvesse capacidade para suprir com captura de origem cabo-verdiana os milhares de toneladas de peixe que a Frescomar precisa processar durante o ano e depois vender como enlatados nos mercados da Europa sem necessidade de pedidos anuais de derrogação dos direitos de origem. Se, ao invés de milhares de operadores na pesca artesanal e na distribuição de peixe sobrevivendo com pequenos rendimentos e a viver precariamente, fosse possível organizar o sector em outros moldes, por forma a aumentar a produtividade da faina, alargar a área de actividade da mesma e ainda melhorar a qualidade do produto que chega ao consumidor. Todos ganhariam com consequente ampliação do mercado e maior mais-valia nas vendas.

A verdade é que, como todos reconhecem - operadores, público e Estado - o sector das pescas, mais de 45 anos depois da independência, está muito aquém do que seria desejável. Ouvindo os debates públicos sobre a matéria, fica-se com a sensação que praticamente ainda se está nos primórdios do que seria necessário para um verdadeiro arranque. Da captura nacional, cerca de 43% vem da pesca artesanal feita com botes frágeis e de alcance muito limitado mesmo quando motorizados. A outra parte é feita com embarcações semi-industriais que, não obstante os esforços, mostram-se incapazes de explorar devidamente os vários bancos de pesca existentes no arquipélago. Toda a actividade da pesca nos termos referidos apresenta riscos que dificultam investimentos no sector e tendem a onerar créditos já conseguidos. As tentativas de quebrar o círculo vicioso e diminuir os riscos de financiamento com fundos públicos não tiveram grande sucesso. Talvez tenha contribuído para isso o facto de nunca se ter encontrado uma visão e desenvolvido uma estratégia que efectivamente fizesse o sector crescer de forma sustentável e ir além do estádio artesanal e semi-industrial que sempre o limitou.

A omissão em matéria de políticas públicas estranhamente parece conviver com mitos à volta do potencial de pescas no país que ainda em 2021 se luta por ultrapassar. Um esforço provavelmente inútil considerando que até agora ninguém o conseguiu. Continua-se a acreditar que o país é rico em peixe. Num mesmo fôlego dá-se por assente que os recursos haliêuticos andam a ser roubados por estrangeiros. Paradoxalmente não há acção consequente para criar riqueza a partir dos recursos reais nem mesmo para fiscalizar as águas nacionais e os acordos de pesca assinados com outros países. Assim é, porque alimentar mitos e nutrir sentimentos de vitimização nunca beneficiaram ninguém e convidam à inacção.

Um primeiro resultado é o espectáculo que se assiste todos os anos à volta da possibilidade da Frescomar fechar com perda de centenas de empregos e prejuízos enormes nas exportações. Um outro é o debate patético que se faz à volta dos acordos de pesca com a União Europeia. Já no que diz respeito à capacitação de uma Guarda Costeira, virada para a fiscalização da zona económica exclusiva do arquipélago e para busca e salvamento de forma a diminuir os riscos de perda de vida dos pescadores, não se discute, talvez para não se intrometer em domínios “reservados”. O facto é que Cabo Verde continua indefeso perante as incursões ilegais de entidades outras e dependente da ajuda externa num sector em que por excelência devia criar riqueza, submetendo-se, pelo contrário, a uma lógica redistributiva de botes, motores, caixas térmicas e até bicicletas e motos eléctricos para procurar superar vulnerabilidades que insistem em se manter. Economias de escala e acesso a outros mercados seriam necessários para diminuir os riscos inerentes à actividade, mas mesmo quando essas condições são criadas, pela via das conserveiras viradas para exportação como a Frescomer, faltam políticas para as aproveitar em pleno.

Outros mitos alimentados por gerações servem muitas vezes para distrair do essencial, justificar investimentos duvidosos e convidar a uma espécie de resignação que de tempos em tempos é sobressaltada com euforias particularmente na sequência de construção de infraestruturas, seguida de frustrações quando os objectivos não são atingidos para depois a ela se regressar. Um desses mitos baseia-se na crença que se o país chovesse “todos seriam felizes e ninguém precisaria do Estado”. Muito da euforia à volta da mobilização da água via barragens ontem, e via dessalinização de água hoje, resulta desse mito. Água é importante assim como ter mar e peixe. Mas não chega, como mostra a persistente vulnerabilidade das populações envolvidas nessas actividades.

Há que ter políticas consequentes com investimento, desenvolvimento do capital humano e acesso organizado a mercados para se criar um círculo virtuoso que resulte em mais riqueza para o país e mais rendimento para as pessoas. Cabo Verde precisa libertar-se dos mitos que o mantém ainda conformado a esperar a ajuda dos outros. O impacto da pandemia sobre o turismo e sobre toda a economia nacional deveria ser choque suficiente para se livrar desse torpor e mobilizar energia e vontade para construir a prosperidade que todos almejam.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1002 de 10 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 08, 2021

Pandemia e política externa

 A política externa tem sido tema de conversa e controvérsia nas últimas semanas. Depois da demissão do ministro dos Negócios Estrangeiros, na sequência da nomeação de um cônsul honorário considerado controverso por certos sectores da política nacional por causa das suas preferências políticas, ganhou mais força.

A matéria foi agendada para a discussão na Assembleia Nacional e como seria de esperar o debate acabou por resumir-se a disputas de quem foi mais patriótico, quem trouxe mais ajuda externa e quem mais prestigiou o país. Interessante, mas revelador do nível e pertinência do discurso político produzido pelas partes, é o facto que, quando se traz à baila a questão concreta da taxa comunitária no valor de 20 milhões de dólares que Cabo Verde já deve à CEDEAO e cujo montante aumenta todos os dias, não há respostas claras.

Ninguém aparece a disputar a taxa, todos se predispõem a pagar, mas não se fica com a impressão que alguém sabe realmente como fazer. Aparentemente ninguém tem um plano de rever as transacções internacionais do país para deixarem de ser mais de 80% com países que não são da CEDEAO e não produzir essa taxa comunitária elevadíssima e desproporcional. Isso obrigaria Cabo Verde, um país insular a mais de 400 milhas da costa ocidental da África a industrializar-se e a diversificar a sua economia no sector de serviços e das tecnologias de informação e comunicação de forma a competir com outros países no acesso aos mercados africanos. De facto, é só com a expansão da economia nacional provocada pelo aumento de produtos transaccionáveis com a África é que se pode pretender pagar o montante da taxa em dívida e a prazo minimizar o valor anual da própria taxa. E sem pagamento não há meio de Cabo Verde ter algum papel de relevo na comunidade como todos tiveram a oportunidade de constatar no caso recente da apresentação da candidatura à presidência da CEDEAO.

Ou seja, todos podem proclamar ter a melhor, a mais inteligente e mais pragmática política externa, mas a verdade é que sem uma consistente política interna de atracção de investimentos, de incentivo à iniciativa privada e de desenvolvimento dos recursos humanos não há como posicionar-se externamente de forma vantajosa para crescer e produzir riqueza. Fica-se na prática por uma política externa dirigida para a captação de ajudas que pode parecer pragmática por não questionar a origem e os condicionalismos das doações e até “esperta”, numa perspectiva de curto prazo de mobilizar fluxos externos para o país. A médio e longo prazo porém revela-se pouco inteligente porque sendo na essência passiva e submissa não é articulada com uma política interna virada para o crescimento. Com o andar dos anos, já se passaram mais quatro décadas após a independência nacional, acabam por se revelar os custos das opções feitas visíveis na persistente vulnerabilidade do país, e na precariedade da vida das populações e num endividamento externo quase insustentável.

Um debate sobre a política externa do país não deveria ficar por exercícios de auto-congratulação por supostos grandes resultados conseguidos. Muito menos deveria servir de arma de arremesso para conquistar eleitores na emigração com vista às próximas eleições legislativas e presidenciais. A fragilidade do país é por demais notória e a pandemia do coronavírus veio expô-la ainda mais. Sem uma política interna dirigida para a potencialização dos recursos do país a começar pelos recursos humanos e sem espírito de abertura ao mundo para realisticamente aperceber das oportunidades e agir sem complexos e com desembaraço para os aproveitar fica difícil construir um outro caminho. E isso é fundamental para sair do que retrospectivamente se pode constatar como tendo sido uma gestão “corrente” do Estado que apesar de avanços nalguns indicadores do crescimento económicos e social nunca de facto foi capaz de colocar o país numa plataforma sustentável de desenvolvimento.

A urgência de uma nova abordagem é ainda maior quando é mais que evidente que o mundo está a mudar e que o multilateralismo das últimas décadas dificilmente irá sobreviver nos mesmos moldes. Nesse sentido há que considerar que já passou o tempo da guerra fria em que se podia tomar como grandes artes da diplomacia saber esconder certas simpatias ideológicas para aproveitar o grosso da ajuda externa que vinha das democracias da Europa e da América. Ou que se podia recorrer às velhas reivindicações de utilidade do país no plano internacional como eixo da política externa em grande parte para salvaguardar o orgulho nacionalista e terceiro-mundista e para justificar um quadro de relação que era de facto de dependência da ajuda externa.

O tempo é agora fundamentalmente para a utilidade que conduz a maior autonomia das pessoas e da sociedade e traz prosperidade e que o país pode granjear atraindo investimentos, sendo destino turístico de qualidade e integrando cadeias de valor globais. Também em simultâneo com o fortalecimento de relações multilaterais deve-se investir em relações bilaterais fortes e confiáveis na base da partilha de princípios e valores que sirvam de âncora para enfrentar as múltiplas ameaças, sejam elas do crime, do terrorismo ou dos diferentes tráficos, sejam elas naturais como a da actual pandemia e as alterações climáticas. O pragmatismo na actual situação deve significar evitar que resquícios ideológicos de outras épocas interfiram nas relações com os outros países não deixando espaço para que a prosperidade mútua se construa na base de confiança.

A pandemia do coronavírus enquanto ameaça global tem permitido obter uma perspectiva dinâmica das relações entre as nações e seu possível impacto no futuro. A escassez sucessiva de máscaras, álcool gel, máquinas de PCR e reagentes e agora de vacinas desencadeou várias reacções dos países desenvolvidos que vão desde o proteccionismo com controlo de certas exportações consideradas vitais, a apelos para fazer regressar ao país (onshoring) indústrias estratégicas e até à redefinição das actuais cadeias globais de abastecimento. Em tal ambiente sofrem os mais pequenos e os mais fracos. Desembaraçam-se melhor os que souberam alimentar relações bilaterais fortes por razões históricas ou outras com países em posições- chave.

As ilhas Maurícias e as Seichelles por exemplo receberam da Índia respectivamente 100 mil e 50 mil doses de vacinas e puderam iniciar a imunização da sua população em Janeiro. O mesmo aconteceu nas Caraíbas onde várias ilhas que se suportaram na relação especial com países da União Europeia para beneficiar da quota das vacinas atribuídas. Já Portugal, em Janeiro, abdicou de comprar 800 mil doses de vacinas que constavam da sua cota. Se logo no início da pandemia o aprofundamento da relação bilateral com Portugal tivesse sido visto como estrategicamente vital para o país talvez as coisas tivessem corrido melhor na luta contra a covid-19, fruto de melhor articulação, acesso a recursos diversos e apoio científico.

Os tempos de hoje pedem um outro foco nas relações externas que realmente beneficiem o país e não sejam simplesmente ir atrás de certos sentimentos ou interesses que depois trazem custos como a taxa comunitária que ninguém depois sabe como justificar ou como pagar. O debate sobre a política externa deve ter essa perspectiva de futuro e não deixar-se apanhar por distracções como o pseudo conflito entre embaixadores políticos e embaixadores de carreira, que só servem para o arremesso político e justificar as insuficiências da diplomacia. Convenhamos que ninguém ignora que o vaivém entre cargos políticos e cargos diplomáticos não é de hoje. Vem desde sempre e nunca constituiu o problema maior da política externa cabo-verdiana.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1001 de 3 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 01, 2021

Ininterrupto

 


O Expresso das Ilhas põe nas bancas nesta quarta-feira, 27 de Janeiro, a sua edição número mil. Quase vinte anos se passaram desde a primeira edição de 12 de Dezembro de 2001.

Ininterruptamente nas bancas desde então o jornal passou por muitas fases e até agora tem conseguido driblar o destino que muitos pressagiam para a imprensa escrita. Com uma nova direcção a partir de Agosto de 2010, e após uma reestruturação profunda, que colocou a empresa em bases financeiras mais resilientes, o Expresso das Ilhas tem vindo a navegar os ventos difíceis encontrados pelos jornais em todo o mundo. Em Cabo Verde, como noutras latitudes, alguns já soçobraram ou tiveram de mudar de plataforma para poder sobreviver, ficando o país em tempos de pandemia sob o risco de não ter qualquer jornal impresso.

De facto, à actual realidade de um mercado publicitário a encolher-se, juntaram-se há algum tempo as ameaças da televisão 24/7, que vinham de longe, e as novas ameaças representadas pelas redes sociais. Estas últimas até dão espaço a alguma pretensão de que os médias tradicionais não são necessários e que se pode passar sem mediação na comunicação social. Por isso mesmo a caminhada não tem sido fácil até agora mas talvez este momento venha a revelar-se como um ponto de inflexão numa tendência que até recentemente parecia inelutável. Um sinal claro é a derrota de Trump. Na sua esteira sofreram sério revés as movimentações que vinham propondo realidades alternativas e também combatendo a comunicação social tradicional e acenando com uma sedutora ligação directa do líder às pessoas através do Twitter, do Facebook e de outras plataformas na internet. Uma oportunidade poderá estar a oferecer-se para afirmação de uma outra forma de jornalismo que não deixe as pessoas completamente expostas à demagogia, ao populismo e à manipulação violenta de sentimentos e paixões em detrimento da razão.

Ninguém hoje pode pretender desconhecer que por detrás dessas ondas de apoios a demagogos e extremistas estão problemas reais que tardam em ser devidamente enfrentados. As frustrações, os ressentimentos, a insegurança, a perda de rendimentos e de estatuto social de largas camadas da população nas democracias têm sido a fonte que alimenta todos os candidatos a autocratas no seu esforço de descredibilização das instituições, de questionamento dos processos democráticos e de se apresentarem como o único e verdadeiro representante do povo. Não se pode esconder, porém, que ao longo do tempo têm recebido preciosa ajuda de onde em princípio devia haver mais recato.

É uma realidade os estragos que a classe política vem provocando nas instituições democráticas. Quantas vezes usam do mesmo discurso populista para lançar descrédito sobre as instituições ou servem-se de argumentos mesquinhos para bloquear acções urgentes e necessárias, mostrando-se incapazes de compromissos. Também é preciso ver o papel dos médias que no seu afã de conquista de audiência perdem a perspectiva do que deles se espera: fiscalização consistente e até acutilante da acção governativa e não produção de mais cinismo em relação às instituições que depois deixa as pessoas e todo o sistema político mais vulnerável. Ainda há a acrescentar a indiferença de boa parte da sociedade civil que, mostrando desprezo pela actividade política e cultivando um cosmopolitismo que não deixa ver os problemas mais locais, tudo faz para alimentar sentimentos anti-elitistas que tendem a ser aproveitados por demagogos para lançar as pessoas contra tudo o que é ciência, conhecimento consolidado e informação institucional.

O Expresso das Ilhas na sua última iteração procurou ir além do que o panorama jornalístico cabo-verdiano oferecia. Como historicamente se pode comprovar, as democracias nos seus primeiros anos tendem a ter uma imprensa muita partidarizada ou facciosa. É, em certos aspectos, natural que seja assim considerando que instituições democráticas estão a ser construídas, uma cultura democrática está ainda por ser absorvida e nem sempre se consegue distinguir o adversário do inimigo. Também não se viveu tempo suficiente em democracia para perceber que a política é a arte do possível e que para se conseguir ganhos consistentes há que criar disponibilidade para negociar, chegar a acordos e firmar compromissos. Num ambiente do tipo, muito do que aparece nos jornais é um misto de informação, opinião e especulação procurando servir interesses de partidos e facções e ambições de certas personalidades. A crispação política nas instituições e em particular no parlamento é replicada e amplificada via imprensa com sacrifício muitas vezes da verdade e do debate das questões públicas pertinentes e num registo que não poucas vezes desemboca em acções judiciais por injúria, calúnia e difamação.

Preparar Expresso das Ilhas para ir além das contendas iniciais da democracia e prestar-se a servir o público com mais equilíbrio e objectividade traduziu-se em primeiro lugar na introdução do editorial enquanto opinião expressa do jornal quanto aos assuntos correntes do país. Libertava-se assim o resto do jornal e também os jornalistas para informação sem contaminação opinativa e especulativa. Nas páginas deixadas para os colunistas e opinião de colaboradores houve sempre a preocupação em as manter plural. Por outro lado, querendo um jornal generalista, procurou-se dar cobertura com alguma profundidade a matérias de natureza económica e ter uma secção de cultura vibrante, não descurando o seguimento de situações internacionais e o acesso a opiniões habilitadas de personalidades estrangeiras. A ciência e a tecnologia sempre foram áreas de eleição no jornal e é com agrado que se pode constatar que de alguma forma a “moda” pegou.

A partir da nova abordagem o jornal reafirmou o seu comprometimento com a verdade e com a informação factual e também a sua disponibilidade em promover o conhecimento indispensável para uma participação cidadã plena. Coincidentemente é o que hoje em plena crise das democracias se espera de um papel renovado da imprensa na defesa das instituições e dos direitos fundamentais e na luta contra realidades alternativas e contra os promotores da pós-verdade. Neste número 1000 celebra-se essa caminhada e renova-se a vontade de a prosseguir com firmeza.

Saudamos todos os colaboradores do Expresso das Ilhas pela contribuição ao jornal ao longo de todos estes árduos anos de colocar o jornal nas bancas com a qualidade e assiduidade esperadas pelos leitores e anunciantes.

O nosso apreço vai para todos os que com os seus artigos de opinião contribuíram para que o jornal fosse um espaço plural de debate político.

Os nossos agradecimentos aos patrocinadores das múltiplas iniciativas do Expresso da Ilhas na promoção da cultura cabo-verdiana s e aos anunciantes pela sua contribuição na sustentabilidade do jornal como uma voz interventiva no espaço público do país.

Um muito obrigado ao parceiro especial que é a Tipografia Santos que todas as quartas-feiras com mais uma edição acabada de imprimir nos permite cumprir com os nossos leitores e anunciantes.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1000 de 27 de Janeiro de 2021.

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Democracia e verdade

 

Hoje, dia 20 de Janeiro de 2021, acontece nos Estados Unidos da América a inauguração de uma nova presidência com a substituição de Donald Trump por Joe Biden. As inaugurações americanas, que acontecem de quatro em quatro anos na sequência das eleições presidenciais, por se tratarem de um processo de transferência de poder feito de forma pacífica desde os primórdios da república, são seguidas com fascínio em todo o mundo.

Evidenciam a superioridade do sistema de governo democrático que consegue renovar-se e apresentar alternativas de governação sem convulsões, revoluções ou violência de qualquer espécie. Desta vez o acto inaugural é especial porque o seu caracter pacífico, a concordância das partes e o veredicto institucional quanto aos resultados foram postos em causa. Felizmente ganhou a democracia e espera-se que a enorme ameaça às instituições e à liberdade tenha sido ultrapassada para benefício e conforto de todas as outras experiências democráticas em todos os continentes.

Durante quatro anos a democracia americana foi desafiada de forma sistemática pelo seu próprio presidente e por representantes do partido republicano nos outros órgãos de soberania. Costumes e normas ostensivamente não foram cumpridos, bloqueios foram colocados aos actos de fiscalização política da governação e fez-se da presidência o maior púlpito para propagar mentiras e teorias de conspiração, para alimentar realidades alternativas e para atacar a comunicação social com acusações de fake-news e de elitismo. Paralelamente procurou-se desequilibrar o poder judicial com nomeação de juízes ideologicamente próximos.

Viveu-se durante algum tempo uma experiência directa e assustadora de como as democracias podem morrer pela acção dos seus líderes, pela omissão de muitos que falham no cumprimento dos seus deveres e pela complacência daqueles que se deixam ficar no seu lugar por cinismo ou por considerarem que os políticos são todos iguais e todos corruptos. Ainda bem que o desfecho foi outro, mas convém que se assuma que foi quase à tangente e que é de toda a importância saber porquê, por exemplo, os checks and balances do sistema pareciam não funcionar. Também procurar conhecer as razões por que um grande número de pessoas se prontificava a seguir um chefe cuja relação com a verdade era espúria. E ainda descortinar por que gente “normal” parecia não mostrar qualquer pudor, repugnância ou estranheza mesmo perante as maiores enormidade proferidas, as demonstrações de falta de ética e a incompetência sem precedentes na condução dos assuntos do Estado.

São questões que se colocam a todos aqueles que nas democracias em crise debatem-se com populismos e extremismos tanto da direita como da esquerda. Um factor comum que contribui para esse tipo de dissonância cognitiva é o abandono da procura sistemática da verdade, o não reconhecimento de uma realidade objectiva e a eliminação da diferença entre facto e opinião. Realmente, a polarização da sociedade tem levado os actores políticos a entrincheirarem-se nas suas narrativas, na sua visão do mundo e nos seus factos, não deixando espaço para compromissos e consensos sobre qualquer matéria. As instituições de mediação têm sido alvo de ataques anti-elitistas para os descredibilizar alimentando a desconfiança em relação aos órgãos de comunicação social e atitudes de cepticismo mesmo perante as conquistas da ciência. E as redes sociais têm propiciado um espaço para o aparecimento de grupos herméticos de pensamento similar e por isso pouco dados a diálogo e tendencialmente hostis aos outros com posições diferentes.

Uma das consequências mais graves desta situação é a tendência para o surgimento de teorias de conspiração que procuram compreender e explicar a realidade não com base em métodos científicos ou em regras já estabelecidas para avaliar a evidência no quadro de processos transparentes e plurais mas sim pela revelação de jogadas, conluios e tráfico de influência obscuros. Quem se vê com esse suposto conhecimento sente-se completamente empoderado para depois de identificar os inimigos usar as tácticas que quiser para os esmagar. Da paranóia, que transforma adversários políticos em inimigos, à violência é um passo, como vários exemplos na história demonstram. O potencial para a violência dessa abordagem da realidade ficou mais uma vez patente nos últimos acontecimentos nos Estados Unidos que culminaram no ataque ao Capitólio. Impedir que a política seja sequestrada por teorias de conspiração deve ser uma preocupação fundamental das democracias neste momento que ainda se está a aprender a lidar com a realidade das redes sociais e que no contexto da pandemia se procura restaurar credibilidade à ciência, aos médias e às instituições que são fontes de informação factual.

Dificuldade maior em fazer esse combate verifica-se nos países em que a transição de regimes autoritários e totalitários para a democracia não se saldou pela ruptura completa em termos de princípios e valores ficando o novo e o velho a conviver em permanente tensão. Ora, como já alguém disse meias-vitórias, ou meias-derrotas, são uma espécie de veneno para a democracia e uma espécie de bálsamo para os ressentidos. O regime assim constituído dificilmente irá engajar-se completamente na busca da verdade histórica-política, sócio-económica e cultural que de alguma forma arriscasse a pôr em causa os equilíbrios existentes. Sendo assim, é evidente que facilmente pode tornar-se em ambiente propício para o digladiar permanente de narrativas sem possibilidade de resolução através da verificação dos factos e em terreno fértil para mentiras, fake news e teorias de conspiração que justifiquem a classificação dos adversários políticos como inimigos, antipatriotas e promotores do “quanto pior, melhor”.

Em Cabo Verde todos os anos por altura do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, que celebra a II República e, uma semana depois, até o dia 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais, que relembra a I República revive-se com mais fulgor a tensão sócio-política que resultou da percepção de meia-vitória, ou meia-derrota no processo de transição para democracia. Para quem tiver dúvidas quanto a isso é só ouvir os recentes testemunhos divulgados na comunicação social durante a chamada Semana da República. A tensão, como se pode facilmente constatar, é real e permanente no país e condiciona pela negativa o diálogo na esfera pública, a procura de soluções para o futuro do país e o enfrentar das múltiplas fragilidades que teimam em deixar o país vulnerável e asseguram que a vida das populações continue a ser precária.

Às vezes extrapola e até alimenta teorias de conspiração que numa nomeação de um cônsul honorário vão encontrar evidência da ligação do partido do governo a partidos da extrema-direita na Europa. Revive-se a paranóia de antigamente em que se acusam os inimigos internos de se aliarem a inimigos externos, neste caso não para derrubar o regime, mas talvez para prejudicar as comunidades emigradas, visto que a extrema-direita é racista, xenófoba e contra os emigrantes. A violência intrínseca nessas teorias de conspiração amplificadas nos tempos de hoje pelas redes sociais até agora só fez cair um ministro, mas pressente-se que os alvos podem ser alargados particularmente quando o primeiro foi tão fácil de atingir.

A lição a tirar da presidência de Donald Trump é que pode ser fatal para as democracias ter uma esfera pública dominada por mentiras, realidades alternativas e teorias de conspiração. A situação é mais grave quando é o próprio Estado a alimentar essa dissonância com a realidade. Na América está-se a pagar essa deriva anti-democrática com mortes, sofrimento e perda de rendimento numa escala nunca vista. A esperança é que o novo presidente restaure os pressupostos que sempre fizeram dos EUA uma democracia vibrante e engajada em diminuir o fosso entre os seus ideais e a sua prática. Para as outras democracias a esperança é que saibam arrepiar caminho a tempo e não deixar que a violência política de qualquer tipo seja tida como legítima na luta política.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 999 de 20 de Janeiro de 2021.